EUR-Lex Access to European Union law

Back to EUR-Lex homepage

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62019CC0597

Conclusões do advogado-geral M. Szpunar apresentadas em 17 de dezembro de 2020.
Mircom International Content Management & Consulting (M.I.C.M.) Limited contra Telenet BVBA.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Ondernemingsrechtbank Antwerpen.
Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Direito de autor e direitos conexos — Diretiva 2001/29/CE — Artigo 3.o, n.os 1 e 2 — Conceito de “colocação à disposição do público” — Descarregamento através de uma rede descentralizada (peer‑to‑peer) de um ficheiro que contém uma obra protegida e concomitante colocação à disposição dos segmentos desse ficheiro para carregamento — Diretiva 2004/48/CE — Artigo 3.o, n.o 2 — Abuso das medidas, procedimentos e recursos — Artigo 4.o — Pessoas com legitimidade para requerer a aplicação das medidas, procedimentos e recursos — Artigo 8.o — Direito de informação — Artigo 13.o — Conceito de “prejuízo” — Regulamento (UE) 2016/679 — Artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, alínea f) — Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — Licitude do tratamento — Diretiva 2002/58/CE — Artigo 15.o, n.o 1 — Medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações — Direitos fundamentais — Artigos 7.o e 8.o, artigo 17.o, n.o 2, e 47.o, primeiro parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Processo C-597/19.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:1063

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 17 de dezembro de 2020 ( 1 )

Processo C‑597/19

Mircom International Content Management & Consulting (M.I.C.M.) Limited

contra

Telenet BVBA,

sendo intervenientes:

Proximus NV,

Scarlet Belgium NV

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo ondernemingsrechtbank Antwerpen (Tribunal das Empresas de Antuérpia, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Direito de autor e direitos conexos — Diretiva 2001/29/CE — Artigo 3.o, n.o 1 — Conceito de “comunicação ao público” — Download através de uma rede descentralizada (peer‑to‑peer) de um ficheiro que contém uma obra protegida e concomitante colocação à disposição dos segmentos desse ficheiro para upload por outros utilizadores — Diretiva 2004/48/CE — Artigo 3.o, n.o 2 — Abuso das medidas, procedimentos e recursos — Artigo 4.o — Legitimidade para requerer a aplicação das medidas, procedimentos e recursos — Artigo 8.o — Direito de informação — Artigo 13.o — Conceito de “prejuízo” — Regulamento (UE) 2016/679 — Artigo 6.o, n.o 1, alínea f) — Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — Licitude do tratamento — Direitos fundamentais — Carta dos direitos fundamentais da União Europeia — Artigos 7.o e 8.o e artigo 17.o, n.o 2»

Introdução

1.

O fenómeno da partilha de obras protegidas pelo direito de autor e pelos direitos conexos sem autorização dos titulares destes direitos em redes descentralizadas (peer‑to‑peer) é, para os criadores e para a indústria da cultura e lazer, um dos maiores quebra‑cabeças associados à Internet. Este fenómeno assume proporções consideráveis e acarreta prejuízos de milhares de milhões todos os anos ( 2 ). É também extremamente difícil de combater, nomeadamente devido ao caráter descentralizado dessas redes e a algum apoio do público à ideia do acesso gratuito à cultura e lazer. Não é, pois, surpreendente que surjam constantemente novas questões jurídicas a respeito do mesmo.

2.

O Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de declarar que a colocação à disposição e a gestão de uma plataforma de partilha na Internet, que permite aos utilizadores dessa plataforma localizar obras protegidas pelo direito de autor e partilhá‑las no âmbito de uma rede peer‑to‑peer constituem uma comunicação destas obras ao público uma vez colocadas à disposição através dessa rede sem o consentimento dos titulares dos direitos de autor ( 3 ). No entanto, verifica‑se que é igualmente problemática uma questão bem mais essencial: os utilizadores de uma rede peer‑to‑peer executam eles próprios atos de comunicação ao público? Se, à primeira vista, uma resposta afirmativa parece evidente, argumentos astuciosos baseados nas especificidades técnicas do funcionamento destas redes permitem defender o contrário. O facto de milhares de pessoas terem acesso às obras sem pagar o correspondente preço resultaria, assim, de uma espécie de milagre. No presente processo, o Tribunal de Justiça terá oportunidade de esclarecer esta questão.

3.

Face a estas dificuldades jurídicas, alguns titulares de direitos de autor e direitos conexos decidem pagar na mesma moeda aos utilizadores das redes peer‑to‑peer. Empresas ou escritórios de advogados especializados adquirem direitos de exploração limitados sobre as obras apenas para efeitos de utilizar os processos judiciais para obter os nomes e os endereços desses utilizadores, tendo identificado previamente os endereços IP das respetivas ligações Internet. Em seguida, são enviados a estes utilizadores, com a cominação de instauração de processo judicial, pedidos de indemnização por alegados danos sofridos por estas empresas. No entanto, o mais frequente é que, em vez de intentarem as ações judiciais, estas empresas proponham uma resolução amigável, mediante o pagamento de uma quantia que, embora por vezes ultrapasse o prejuízo efetivo, é bastante inferior às indemnizações que poderiam ser pedidas judicialmente. Deste modo, mesmo que apenas uma parte das pessoas contactadas aceite pagar, as empresas em questão podem daí obter receitas que, por vezes, ultrapassam as provenientes da exploração legal das obras, receitas que depois partilham com os titulares dos direitos sobre essas obras.

4.

Apesar de o procedimento ser, literalmente, legal, acaba por não explorar a vertente económica dos direitos de autor, mas sim a violação destes direitos, criando assim uma fonte de receitas baseada na violação do direito. Deste modo, o direito de autor é desviado dos seus objetivos e utilizado, se não mesmo utilizado abusivamente, para fins que lhe são alheios.

5.

Uma empresa que atue desta forma é normalmente designada pela doutrina como um «troll do direito de autor» (copyright troll) ( 4 ). O sistema jurídico dos Estados Unidos parece ser particularmente propício aos copyright trolls, mas o fenómeno também se verifica em vários Estados‑Membros da União Europeia. No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a responder à questão de saber em que medida o sistema de proteção dos direitos da propriedade intelectual instituído pelo direito da União permite, ou exige, que seja tida em conta essa utilização abusiva, caso a mesma se verifique, aquando da aplicação dos instrumentos jurídicos integrantes deste sistema.

6.

Esta resposta terá de ter em conta a articulação entre, por um lado, a necessária proteção jurisdicional dos direitos de propriedade intelectual e, por outro, a proteção dos dados pessoais dos eventuais infratores.

Quadro jurídico

7.

Do pedido de decisão prejudicial no presente processo não consta nenhuma descrição do quadro jurídico nacional. Limitar‑me‑ei, assim, nesta parte das conclusões, a apresentar o quadro do direito da União. Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio adaptar a interpretação deste direito dada pelo Tribunal de Justiça ao seu próprio quadro jurídico interno.

Direito de propriedade intelectual

8.

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1 e n.o 2, alínea c), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação ( 5 ):

«1.   Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

2.   Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que seja acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, cabe:

[…]

c)

Aos produtores de primeiras fixações de filmes, para o original e as cópias dos seus filmes;

[…]»

9.

Em conformidade com o artigo 8.o desta diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros devem prever as sanções e vias de recurso adequadas para as violações dos direitos e obrigações previstas na presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação efetiva de tais sanções e vias de recurso. As sanções previstas devem ser eficazes, proporcionadas e dissuasivas.

2.   Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas necessárias para assegurar que os titulares dos direitos cujos interesses sejam afetados por uma violação praticada no seu território possam intentar uma ação de indemnização e/ou requerer uma injunção e, quando adequado, a apreensão do material ilícito, bem como dos dispositivos, produtos ou componentes referidos no n.o 2 do artigo 6.o

3.   Os Estados‑Membros deverão garantir que os titulares dos direitos possam solicitar uma injunção contra intermediários cujos serviços sejam utilizados por terceiros para violar um direito de autor ou direitos conexos.»

10.

O artigo 2.o da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual ( 6 ) dispõe:

«1.   Sem prejuízo dos meios já previstos ou que possam vir a ser previstos na legislação [da União] ou nacional e desde que esses meios sejam mais favoráveis aos titulares dos direitos, as medidas, procedimentos e recursos previstos na presente diretiva são aplicáveis, nos termos do artigo 3.o, a qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual previstos na legislação [da União] e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa.

2.   A presente diretiva não prejudica as disposições específicas previstas na legislação [da União], relativas ao respeito pelos direitos e às exceções no domínio do direito de autor e direitos conexos, nomeadamente […] na diretiva [2001/29], nomeadamente […] no seu artigo 8.o

3.   A presente diretiva não prejudica:

a) […] a diretiva 95/46/CE [ ( 7 )] […]

[…]»

11.

O capítulo II desta diretiva regula as «[m]edidas, procedimentos e recursos» necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. Nos termos do artigo 3.o da referida diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros devem estabelecer as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual abrangidos pela presente diretiva. Essas medidas, procedimentos e recursos devem ser justos e equitativos, não devendo ser desnecessariamente complexos ou onerosos, comportar prazos que não sejam razoáveis ou implicar atrasos injustificados.

2.   As medidas, procedimentos e recursos também devem ser eficazes, proporcionados e dissuasivos e aplicados de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio lícito e a prever salvaguardas contra os abusos.»

12.

O artigo 4.o da mesma diretiva enuncia:

«Os Estados‑Membros reconhecem legitimidade para requerer a aplicação das medidas, procedimentos e recursos referidos no presente Capítulo, às seguintes pessoas:

a)

Titulares de direitos de propriedade intelectual, nos termos da legislação aplicável,

b)

Todas as outras pessoas autorizadas a utilizar esses direitos, em particular os titulares de licenças, na medida do permitido pela legislação aplicável e nos termos da mesma,

c)

Os organismos de gestão dos direitos coletivos de propriedade intelectual regularmente reconhecidos como tendo o direito de representar os titulares de direitos de propriedade intelectual, na medida do permitido pela legislação aplicável e nos termos da mesma,

d)

Os organismos de defesa da profissão regularmente reconhecidos como tendo o direito de representar os titulares de direitos de propriedade intelectual, na medida do permitido pela legislação aplicável e nos termos da mesma.»

13.

Nos termos do artigo 8.o da Diretiva 2004/48:

«1.   Os Estados‑Membros devem assegurar que, no contexto dos procedimentos relativos à violação de um direito de propriedade intelectual e em resposta a um pedido justificado e razoável do queixoso, as autoridades judiciais competentes possam ordenar que as informações sobre a origem e as redes de distribuição dos bens ou serviços que violam um direito de propriedade intelectual sejam fornecidas pelo infrator e/ou por qualquer outra pessoa que:

[…]

c)

Tenha sido encontrada a prestar, à escala comercial, serviços utilizados em atividades litigiosas; ou

[…]

2.   As informações referidas no n.o 1 incluem, se necessário:

a)

Os nomes e endereços dos produtores, fabricantes, distribuidores, fornecedores e outros possuidores anteriores dos bens ou serviços, bem como dos grossistas e dos retalhistas destinatários;

[…]

3.   Os n.os 1 e 2 são aplicáveis, sem prejuízo de outras disposições legislativas e regulamentares que:

[…]

e)

Regulem a proteção da confidencialidade das fontes de informação ou o tratamento dos dados pessoais.»

14.

Por último, nos termos do artigo 13.o, n.os 1 e 2, desta diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros devem assegurar que, a pedido da parte lesada, as autoridades judiciais competentes ordenem ao infrator que, sabendo‑o ou tendo motivos para o saber, tenha desenvolvido uma atividade ilícita, pague ao titular do direito uma indemnização por perdas e danos adequada ao prejuízo por este efetivamente sofrido devido à violação.

[…]

2.   Quando, sem o saber ou tendo motivos razoáveis para o saber, o infrator tenha desenvolvido uma atividade ilícita, os Estados‑Membros podem prever a possibilidade de as autoridades judiciais ordenarem a recuperação dos lucros ou o pagamento das indemnizações por perdas e danos, que podem ser preestabelecidos.»

Direito das comunicações eletrónicas

15.

Nos termos do artigo 2.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva‑quadro) ( 8 ), conforme alterada pela Diretiva 2009/140/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2009 ( 9 ) (a seguir «Diretiva 2002/21»):

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a)

“Rede de comunicações eletrónicas”: os sistemas de transmissão e, se for o caso, os equipamentos de comutação ou encaminhamento e os demais recursos que permitem o envio de sinais por cabo, feixes hertzianos, meios óticos, ou por outros meios eletromagnéticos, incluindo as redes de satélites, as redes terrestres fixas (com comutação de circuitos ou de pacotes, incluindo a internet) e móveis, os sistemas de cabos de eletricidade, na medida em que são utilizados para a transmissão de sinais, as redes utilizadas para a radiodifusão sonora e televisiva e as redes de televisão por cabo, independentemente do tipo de informação transmitida;

[…]

c)

“Serviço de comunicações eletrónicas”: o serviço oferecido em geral mediante remuneração, que consiste total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas, incluindo os serviços de telecomunicações e os serviços de transmissão em redes utilizadas para a radiodifusão, excluindo os serviços que prestem ou exerçam controlo editorial sobre conteúdos transmitidos através de redes e serviços de comunicações eletrónicas; excluem‑se igualmente os serviços da sociedade da informação, tal como definidos no artigo 1.o da Diretiva 98/34/CE [ ( 10 )] que não consistam total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas;»

16.

O artigo 1.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas) ( 11 ), conforme alterada pela Diretiva 2009/136/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2009 ( 12 ) (a seguir «Diretiva 2002/58»), dispõe:

«1.   A presente diretiva harmoniza as disposições dos Estados‑Membros necessárias para garantir um nível equivalente de proteção dos direitos e liberdades fundamentais, nomeadamente o direito à privacidade, no que respeita ao tratamento de dados pessoais no setor das comunicações eletrónicas, e para garantir a livre circulação desses dados e de equipamentos e serviços de comunicações eletrónicas na [União].

2.   Para os efeitos do n.o 1, as disposições da presente diretiva especificam e complementam a Diretiva [95/46]. […]»

17.

De acordo com o artigo 2.o da Diretiva 2002/58:

«Salvo disposição em contrário, são aplicáveis as definições constantes da Diretiva [95/46] e da Diretiva [2002/21].

São também aplicáveis as seguintes definições:

a)

“Utilizador” é qualquer pessoa singular que utilize um serviço de comunicações eletrónicas publicamente disponível para fins privados ou comerciais, não sendo necessariamente assinante desse serviço;

b)

“Dados de tráfego” são quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma;

[…]

d)

“Comunicação” é qualquer informação trocada ou enviada entre um número finito de partes, através de um serviço de comunicações eletrónicas publicamente disponível; […]»

18.

Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva:

«Os Estados‑Membros garantirão, através da sua legislação nacional, a confidencialidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis. Proibirão, nomeadamente, a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por pessoas que não os utilizadores, sem o consentimento dos utilizadores em causa, exceto quando legalmente autorizados a fazê‑lo, de acordo com o disposto no n.o do artigo 15.o O presente número não impede o armazenamento técnico que é necessário para o envio de uma comunicação, sem prejuízo do princípio da confidencialidade.»

19.

O artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:

«Sem prejuízo do disposto nos n.os 2, 3 e 5 do presente artigo e no n.o 1 do artigo 15.o, os dados de tráfego relativos a assinantes e utilizadores tratados e armazenados pelo fornecedor de uma rede pública de comunicações ou de um serviço de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis devem ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação.»

20.

Por último, nos termos do artigo 15.o, n.o 1, da mesma diretiva:

«Os Estados‑Membros podem adotar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.o e 6.o […] da presente diretiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas, tal como referido no n.o 1 do artigo 13.o da Diretiva [95/46]. Para o efeito, os Estados‑Membros podem designadamente adotar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito [da União], incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.o do Tratado da União Europeia.»

Disposições gerais sobre a proteção de dados pessoais

21.

O artigo 4.o, pontos 1, 2, 7 e 9, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) ( 13 ), dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)

“Dados pessoais”, informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (“titular dos dados”); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;

2)

“Tratamento”, uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;

[…]

7)

“Responsável pelo tratamento”, a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado‑Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado‑Membro;

[…]

9)

“Destinatário”, uma pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, agência ou outro organismo que recebem comunicações de dados pessoais, independentemente de se tratar ou não de um terceiro. […]»

22.

Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, alínea f), deste regulamento:

«O tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações:

[…]

f)

O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança.»

23.

Nos termos do artigo 9.o do referido regulamento:

«1.   É proibido o tratamento de dados […] relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa.

2.   O disposto no n.o 1 não se aplica se se verificar um dos seguintes casos:

[…]

f)

Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da sua função jurisdicional;

g)

Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público importante, com base no direito da União ou de um Estado‑Membro, que deve ser proporcional ao objetivo visado, respeitar a essência do direito à proteção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos fundamentais e os interesses do titular dos dados;

[…]»

24.

Nos termos do artigo 23.o, n.o 1, alíneas i) e j), do mesmo regulamento:

«O direito da União ou dos Estados‑Membros a que estejam sujeitos o responsável pelo tratamento ou o seu subcontratante pode limitar por medida legislativa o alcance das obrigações e dos direitos previstos nos artigos 12.o a 22.o e no artigo 34.o, bem como no artigo 5.o, na medida em que tais disposições correspondam aos direitos e obrigações previstos nos artigos 12.o a 22.o, desde que tal limitação respeite a essência dos direitos e liberdades fundamentais e constitua uma medida necessária e proporcionada numa sociedade democrática para assegurar, designadamente:

[…]

i)

A defesa do titular dos dados ou dos direitos e liberdades de outrem;

j)

A execução de ações cíveis.»

25.

Por último, os artigos 94.o e 95.o do Regulamento 2016/679 têm a seguinte redação:

«Artigo 94.o

Revogação da Diretiva [95/46]

1.   A Diretiva [95/46] é revogada com efeitos a partir de 25 de maio de 2018.

2.   As remissões para a diretiva revogada são consideradas remissões para presente regulamento. […]

Artigo 95.o

Relação com a Diretiva [2002/58]

O presente regulamento não impõe obrigações suplementares a pessoas singulares ou coletivas no que respeita ao tratamento no contexto da prestação de serviços de comunicações eletrónicas disponíveis nas redes públicas de comunicações na União em matérias que estejam sujeitas a obrigações específicas com o mesmo objetivo estabelecidas na Diretiva [2002/58].»

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

26.

A Mircom International Content Management & Consulting (M.I.C.M.) Limited (a seguir «Mircom») é uma sociedade de direito cipriota. Em virtude de contratos celebrados com vários produtores de cinema erótico estabelecidos nos Estados Unidos e no Canadá, é titular de licenças para comunicação ao público dos respetivos filmes em redes peer‑to‑peer e em redes de partilha de ficheiros na Internet, nomeadamente no território da «Europa». Por outro lado, estes contratos obrigam a Mircom a investigar a existência de atos de violação dos direitos exclusivos destes produtores praticados através das redes peer‑to‑peer e das redes de partilha de ficheiros e processar judicialmente, em nome próprio, os autores dessas violações, a fim de obter indemnizações cujos montantes deve pagar 50 % aos referidos produtores.

27.

A Telenet BVBA, a Proximus NV e a Scarlet Belgium NV são fornecedores de acesso à Internet na Bélgica.

28.

Em 6 de junho de 2019, a Mircom intentou uma ação no ondernemingsrechtbank Antwerpen (Tribunal das Empresas de Antuérpia, Bélgica), pedindo, nomeadamente, que fosse ordenado à Telenet que apresentasse os dados de identificação dos seus clientes cujas ligações Internet teriam sido utilizadas para partilhar, numa rede peer‑to‑peer com recurso ao protocolo BitTorrent, filmes constantes do catálogo da Mircom. Os endereços IP das referidas ligações foram recolhidos, por conta da Mircom, pela Media Protector GmbH, sociedade de direito alemão, com recurso a um software especializado. A Telenet contesta este pedido.

29.

A Proximus e a Scarlet Belgium, contra quem também foram intentadas ações idênticas por parte da Mircom, foram admitidas pelo órgão jurisdicional de reenvio a intervir no processo principal em apoio dos pedidos da Telenet.

30.

O ondernemingsrechtbank Antwerpen (Tribunal das Empresas de Antuérpia) tem dúvidas a respeito da procedência do pedido da Mircom. Em primeiro lugar, interroga‑se sobre se, tendo em conta a especificidade das redes peer‑to‑peer, os utilizadores executam atos de comunicação ao público das obras que partilham através dessas redes. Em segundo lugar, esse órgão jurisdicional tem dúvidas de que uma sociedade como a Mircom possa beneficiar da proteção conferida pelo direito da União quanto ao respeito dos direitos de propriedade intelectual, uma vez que não explora efetivamente os direitos adquiridos aos produtores dos filmes, limitando‑se a cobrar indemnizações a alegados infratores. Esta conduta corresponde quase plenamente à definição dada pela doutrina do conceito de «copyright troll». Finalmente, em terceiro lugar, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à licitude da recolha dos endereços IP dos utilizadores de Internet que alegadamente partilharam obras protegidas através das redes peer‑to‑peer.

31.

Neste contexto, o ondernemingsrechtbank Antwerpen (Tribunal das Empresas de Antuérpia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

a)

Podem o download de um ficheiro através de uma rede descentralizada (peer‑to‑peer) e, ao mesmo tempo, a colocação à disposição para o upload (“seeden”) dos segmentos (“pieces”) desse ficheiro (por vezes de forma bastante fragmentada em relação ao ficheiro completo), ser considerados uma comunicação ao público na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, ainda que tais segmentos individuais sejam, em si, inutilizáveis?

Em caso afirmativo,

b)

existe um limiar mínimo para que a colocação à disposição (seeding) para o upload destes segmentos (pieces) possa constituir uma comunicação ao público?

c)

é relevante o facto de a colocação à disposição (seeding) poder ocorrer de forma automática (devido às configurações do cliente de torrent) e, consequentemente, de forma involuntária por parte do utilizador?

2)

a)

Pode a pessoa que seja titular contratual dos direitos de autor (ou direitos conexos) mas que não explora os direitos e apenas cobra indemnizações a alegados infratores — e cujo sustento económico depende, portanto, da existência da pirataria e não de luta contra a pirataria — invocar os mesmos direitos que os conferidos pelo capítulo II da Diretiva 2004/48 aos autores ou detentores de licença que exploram os direitos de autor da forma habitual?

b)

De que forma é que, neste caso, o detentor da licença pode ter sofrido “prejuízo” (na aceção do artigo 13.o da Diretiva 2004/48) em razão da infração?

3)

As circunstâncias concretas descritas nas questões 1 e 2 são relevantes para efeitos da ponderação do justo equilíbrio entre, por um lado, a proteção dos direitos de propriedade intelectual e, por outro, os direitos e liberdades consagrados na [Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir “Carta”)], como o respeito pela vida privada e a proteção dos dados pessoais, em especial no âmbito da análise da proporcionalidade?

4)

Pode considerar‑se que, em todas estas circunstâncias, o registo automático e o tratamento geral dos endereços IP de um conjunto de seeders (swarm) (pelo próprio detentor da licença ou por um terceiro a mando daquele) é justificado nos termos do Regulamento [2016/679] designadamente do seu artigo 6.o, n.o 1, alínea f)?»

32.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de agosto de 2019. Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal, pelos Governos italiano, austríaco e polaco, bem como pela Comissão Europeia. As partes no processo principal e a Comissão fizeram‑se representar na audiência que se realizou em 10 de setembro de 2020.

Análise

33.

A primeira questão prejudicial suscita o problema fulcral da própria existência de uma violação do direito de autor e dos direitos conexos no caso da partilha de obras através das redes peer‑to‑peer. A segunda a quarta questões dizem respeito a diversos aspetos da situação de um agente como a Mircom sob o ponto de vista das disposições do direito da União relativas ao respeito desses direitos, bem como à proteção de dados pessoais. Por conseguinte, importa, naturalmente, começar por essa primeira questão.

Quanto à primeira questão prejudicial

34.

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito exclusivo de colocação à disposição do público de obras protegidas, na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2001/29, abrange a partilha dessas obras através das redes peer‑to‑peer pelos utilizadores destas. O órgão jurisdicional de reenvio refere o artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva, mas parece que é sobretudo o artigo 3.o, n.o 2, alínea c), desta que é aplicável no processo principal quanto aos direitos dos produtores de cinema. No entanto, não se nega que esses produtores sejam também titulares de direitos de autor sobre as respetivas produções, bem como de outros direitos conexos. Importa, pois, ter em conta as duas disposições. Estas preveem uma proteção equivalente no que respeita à forma específica de comunicação de obras ao público, que é a sua colocação à disposição deste, a fim de as tornar acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

35.

Nas respetivas observações, a Telenet, a Proximus e a Scarlet Belgium refutam categoricamente a existência de uma comunicação ao público pelos utilizadores das redes peer‑to‑peer, pelo menos no que respeita aos utilizadores que descarregam os ficheiros através dessas redes. Baseando‑se nas especificidades do funcionamento das redes peer‑to‑peer atuais, essas partes alegam que os segmentos de ficheiros que contêm as obras em questão eventualmente carregadas ( 14 ) por esses utilizadores são inutilizáveis em si mesmos e demasiado pequenos para serem equiparados, pelo menos abaixo de um certo limiar, a uma obra ou mesmo a uma parte desta. Por outro lado, esses utilizadores não terão normalmente consciência de que, ao descarregarem as obras através das referidas redes, estas são simultaneamente carregadas noutros utilizadores. Por conseguinte, as referidas partes alegam que a comunicação de obras ao público através das redes peer‑to‑peer só é efetuada pelas pessoas que deram origem à colocação à disposição de uma obra através da rede, em conjunto, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 15 ), com os administradores dos sítios de indexação de ficheiros. Em contrapartida, os utilizadores normais das redes peer‑to‑peer mais não fariam do que fornecer as instalações que permitem a realização dessa comunicação ao público. Estes argumentos parecem estar na origem da primeira questão prejudicial.

36.

Para lhe dar uma resposta, importa referir as modalidades de funcionamento das redes peer‑to‑peer baseadas na tecnologia do protocolo BitTorrent ( 16 ).

Funcionamento do protocolo BitTorrent

37.

O protocolo BitTorrent é um protocolo que permite a partilha de ficheiros nas redes peer‑to‑peer. Para que funcione, é necessário descarregar um software específico: o «cliente BitTorrent» (BitTorrent client) ( 17 ). Este software funciona com recurso a «ficheiros torrent» (torrent files). Os ficheiros torrent não contêm as informações que integram o formato digital da obra partilhada ( 18 ), mas sim metainformação que permite, nomeadamente, encontrar um ficheiro concreto que contém uma obra. Para cada ficheiro contendo a obra, é criado um ficheiro torrent. Os ficheiros torrent podem ser descarregados a partir de sítios de indexação existentes na Internet ( 19 ). Depois de descarregado o ficheiro torrent relativo à obra pesquisada (mais precisamente, a um ficheiro que contém essa obra), o cliente BitTorrent começa por contactar um servidor especial, o tracker, que lhe indica os computadores que integram a rede peer‑to‑peer que possuem o ficheiro em questão ( 20 ). Em seguida, o cliente BitTorrent entra em contacto diretamente com estes computadores ( 21 ) para descarregar o ficheiro. Os computadores que partilham o mesmo ficheiro constituem a rede peer‑to‑peer propriamente dita (swarm).

38.

A especificidade do protocolo BitTorrent reside no facto de os ficheiros não serem carregados na íntegra, mas dissociados em pequenos segmentos (pieces). Esses segmentos são descarregados numa ordem aleatória, a partir de diversos computadores que participam no swarm. As informações sobre os diversos segmentos necessários para completar o ficheiro a descarregar encontram‑se no ficheiro torrent. É o cliente BitTorrent que reúne esses segmentos para (re)criar o ficheiro que contém a obra. Uma outra especificidade do protocolo BitTorrent é a de que qualquer segmento de um ficheiro descarregado pode ser simultaneamente carregado noutros pares, e isto até completar o download integral do ficheiro. Tal permite aumentar consideravelmente a velocidade de download para todos os pares, uma vez que esta depende, nomeadamente, do número de pares que podem carregar cada segmento. O cliente BitTorrent vai, de resto, carregar em primeiro lugar os segmentos mais raros no swarm, a fim de aumentar o respetivo número.

Colocação das obras à disposição do público nas redes peer‑to‑peer ( 22 )

39.

Uma obra está disponível para partilha numa rede peer‑to‑peer enquanto o ficheiro completo que contém essa obra se encontrar numa pasta acessível ao cliente BitTorrent de um utilizador de uma rede e o seu computador estiver ligado à Internet. Se nenhum utilizador estiver disponível para partilhar um ficheiro contendo a obra, o ficheiro torrent correspondente não pode ser descarregado a partir da plataforma de indexação (está «morto»).

40.

O ato pelo qual uma pessoa permite que outras, não pertencentes ao seu círculo privado, descarreguem obras protegidas gravadas na memória do seu computador está abrangido pelo direito exclusivo de autorizar ou proibir a colocação dessas obras à disposição do público, a fim de as tornar acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2001/29.

41.

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, para que haja um ato de colocação à disposição, basta que uma obra seja colocada à disposição do público, de modo que as pessoas que o compõem possam ter acesso à mesma, a partir do local e no momento por elas escolhido, sem que seja determinante que utilizem ou não essa possibilidade ( 23 ). Por outras palavras, no caso de uma colocação à disposição do público, é indiferente que tenha efetivamente ocorrido uma transmissão da obra. Importa apenas a existência da possibilidade dessa transmissão, sendo esta, em seguida, eventualmente desencadeada por um membro do público que pretenda ter acesso à obra. Essa característica é crucial para efeitos da apreciação da partilha das obras nas redes peer‑to‑peer da perspetiva do direito de autor e, nomeadamente, do direito de colocação à disposição do público.

42.

É possível distinguir três situações nas quais se podem encontrar os utilizadores de uma rede peer‑to‑peer no que respeita ao carregamento do conteúdo.

– Seeders

43.

A primeira é relativa aos utilizadores que possuem um ficheiro completo e que partilham esse ficheiro carregando segmentos para as pessoas interessadas. Estes utilizadores, designados seeders («semeadores»), tanto podem ser pessoas que partilham um ficheiro ao qual tiveram acesso através de outras fontes diferentes da rede peer‑to‑peer como pessoas que, depois de terem descarregado o ficheiro na íntegra, deixam o cliente BitTorrent a funcionar para que este dê resposta a pedidos de carregamento de segmentos desse ficheiro provenientes de outros utilizadores.

– Peers

44.

A segunda situação é relativa às pessoas que estão em vias de descarregar um ficheiro, mas que ainda não o têm na íntegra. Estas pessoas, ou mais precisamente os seus computadores, são designados peers («pares») ( 24 ). O princípio de funcionamento dos clientes BitTorrent é o de que, quando estes descarregam os segmentos de um ficheiro, eles carregam automática e simultaneamente os segmentos já carregados para outros pares que estavam à procura desses segmentos, e isto até completar o download de todos os segmentos que constituem o ficheiro completo. Em seguida, o utilizador decide ou parar o cliente BitTorrent e, assim, o upload dos segmentos do ficheiro ou deixá‑lo a funcionar, tornando‑se, deste modo, um seeder.

45.

Do ponto de vista do direito de colocação à disposição do público, a situação dos seeders e dos peers é, na minha opinião, comparável. Com efeito, assim que o peer descarrega um ficheiro, coloca simultaneamente, e necessariamente, os segmentos do ficheiro que possui à disposição do swarm, ou seja, o seu cliente BitTorrent irá responder aos pedidos de upload provenientes dos outros peers. Como o download não para, salvo acidente técnico, sem que o ficheiro esteja descarregado na íntegra, pois os segmentos não são utilizáveis antes da compilação do ficheiro completo, a colocação à disposição do público consiste, portanto, na totalidade do ficheiro que contém a obra. O mesmo sucede com o seeder, que continua a colocar o ficheiro à disposição do público (os membros do swarm), depois de o ter descarregado na íntegra.

46.

Em contrapartida, o carregamento efetivo dos segmentos do ficheiro e a quantidade de segmentos carregados dependem do facto de haver ou não peers interessados em descarregá‑los, do número de seeders do mesmo ficheiro, bem como da velocidade de upload da ligação Internet do utilizador em causa. Isto é válido quer para os peers quer para os seeders: um seeder não carrega nada se não tiver destinatários para o seu ficheiro, um peer não carrega nada se possuir apenas segmentos que os outros membros do swarm já possuem ou se outros peers os puderem carregar mais rapidamente. Deste modo, tanto um seeder como um peer podem potencialmente não carregar qualquer segmento de um ficheiro ou carregar quer um número indeterminado desses segmentos quer a totalidade do ficheiro. No entanto, essa circunstância é irrelevante do ponto de vista do direito de colocação à disposição do público, uma vez que, como já expliquei, o facto de a transmissão da obra em questão ter ou não ter efetivamente ocorrido é irrelevante para determinar se houve uma colocação à disposição do público: basta a mera possibilidade dessa transmissão. Não há, assim, lugar à aplicação de um limiar no que respeita à quantidade de dados carregados, tal como referido na primeira questão prejudicial, alínea b).

47.

Por outro lado, o funcionamento das redes peer‑to‑peer, enquanto redes de partilha de ficheiros, assenta no princípio «do ut des»: para ter a possibilidade de descarregar, é necessário carregar. Por isso, os sítios de indexação exigem que os utilizadores respeitem um determinado rácio entre upload e download, fixado normalmente em cerca de 1 ( 25 ). Os utilizadores que tenham um rácio demasiado baixo podem ser bloqueados («banidos», do inglês ban). Ora, nem que seja apenas pelo facto de, nas ligações Internet, a velocidade de upload ser frequentemente inferior à de download, o mero upload de segmentos de ficheiros no momento do respetivo download não é suficiente para manter o rácio ao nível exigido ( 26 ). É, assim, necessário carregar além do mero tempo de download. Qualquer utilizador regular de uma rede peer‑to‑peer é, consequentemente, levado a transformar‑se num seeder e a colocar à disposição do público os ficheiros na sua posse.

48.

Os argumentos apresentados pela Telenet, a Proximus e a Scarlet Belgium de que os segmentos trocados nas redes peer‑to‑peer não constituem partes de obras que beneficiem da proteção do direito de autor são, por conseguinte, improcedentes. Com efeito, esses segmentos não são partes de obras, mas partes de ficheiros que contêm essas obras. Esses segmentos são apenas o instrumento que serve para a transmissão desses ficheiros segundo o protocolo BitTorrent. Contudo, o facto de os segmentos que são transmitidos serem inutilizáveis em si mesmos é irrelevante, pois o que é colocado à disposição é o ficheiro que contém a obra, ou seja, a obra em formato digital. Ora, se, da perspetiva do direito de colocação à disposição do público, é indiferente que tenha havido ou não uma transmissão da obra, o procedimento técnico pelo qual essa transmissão se efetua ainda o é mais ( 27 ).

49.

Finalmente, a este respeito, o funcionamento das redes peer‑to‑peer não difere grandemente do da «rede» (World Wide Web). A publicação de uma obra em linha significa apenas que o ficheiro que a contém é armazenado num servidor ligado à Internet e possui um endereço URL (Uniform Resource Locator) por intermédio do qual lhe é possível aceder. A obra enquanto objeto percetível pelo homem só existe na «rede» a partir do momento em que um computador cliente acede ao servidor em questão, reproduz o ficheiro e exibe essa obra no ecrã (ou lhe reproduz os sons). No entanto, basta o mero facto de colocar o ficheiro que contém a obra num servidor acessível a partir da «rede» para haver um ato de comunicação (colocação à disposição). Além disso, a Internet funciona segundo o princípio do packet switch («comutação de pacotes»): o ficheiro que contém a obra em questão está dividido em pequenos pacotes ( 28 ) de dados, que são enviados entre o servidor e o cliente numa ordem aleatória e por diferentes vias. Esses pacotes são inutilizáveis em si mesmos ou, em todo o caso, demasiado pequenos para comportar partes originais da obra, só depois de enviados é que são reunidos para formar o ficheiro‑obra. Por conseguinte, não há dúvida de que se verificou uma comunicação ao público na «rede». O direito de colocação à disposição do público foi concebido, em primeiro lugar na «rede», justamente para as utilizações das obras na Internet.

– Leechers

50.

A terceira situação na qual se encontram os utilizadores das redes peer‑to‑peer é a dos utilizadores que descarregam os ficheiros sem os carregar, nem durante o download nem depois. Com efeito, alguns clientes BitTorrent permitem essa configuração ( 29 ). Estes utilizadores são designados leechers. Bloqueando a possibilidade de download dos segmentos dos ficheiros a partir dos respetivos computadores, os leechers não colocam ficheiros à disposição do público e daí não resulta, assim, nenhuma violação deste direito exclusivo.

51.

Dito isto, por um lado, os leechers cometem, ainda assim, uma violação do direito exclusivo de reprodução, protegido pelo artigo 2.o da Diretiva 2001/29. Com efeito, mesmo que a reprodução do ficheiro que contém a obra protegida que resulta do seu download seja privada, é jurisprudência constante que a exceção de cópia privada prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea b), desta diretiva, não abrange uma reprodução que tenha sido efetuada a partir de uma fonte ilícita ( 30 ). Ora, esse é precisamente o caso do download de uma obra colocada à disposição numa rede peer‑to‑peer sem autorização do titular dos direitos de autor e dos direitos conexos. A violação do direito de reprodução não é, todavia, invocada no processo principal. Por outro lado, em alguns sistemas de direito nacionais, o facto de beneficiar de uma contrafação cometida por um terceiro é, por si só, um crime.

52.

Por outro lado, o funcionamento das redes peer‑to‑peer baseia‑se no mecanismo de partilha, ou seja, qualquer download deve ter como contrapartida um upload. Se o número de utilizadores da rede que carregam for demasiado baixo, a rede funciona mal, pois a velocidade de download é demasiado lenta. Quando deixa de haver qualquer seeder, o funcionamento da rede cessa completamente e o ficheiro torrent está «morto». Por tal motivo, os trackers discriminam os utilizadores que não carregam (leechers), diminuindo‑lhes a velocidade de download, ou até mesmo bloqueando‑lhes o acesso. Por conseguinte, a estratégia do download sem carregamento só pode funcionar para utilizações ocasionais das redes peer‑to‑peer e os leechers são, por definição, um fenómeno marginal nestas redes.

53.

Daqui resulta que, se o facto de ter bloqueado a função de carregamento do seu cliente BitTorrent pode constituir um meio de defesa num processo judicial de indemnização do prejuízo causado pela violação do direito de colocação à disposição do público, o facto de ter descarregado obras protegidas numa rede peer‑to‑peer é, na minha opinião, um indício suficiente da probabilidade dessa violação na fase em que o titular lesado procura obter os dados pessoais das pessoas em causa a partir dos endereços IP das respetivas ligações Internet.

Quanto à exigência do conhecimento de causa e do papel incontornável do utilizador

54.

A Telenet, a Proximus e a Scarlet Belgium apresentam também o argumento de que os utilizadores das redes peer‑to‑peer poderiam não estar cientes de que, ao descarregar obras através dessas redes, estão igualmente a carregá‑las. De qualquer modo, estes utilizadores não desempenhariam um papel incontornável na colocação à disposição do público de obras partilhadas nestas redes. Ora, por força da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o conhecimento de causa e o papel incontornável do utilizador são requisitos indispensáveis para constatar a existência de um ato de comunicação ao público.

55.

Em primeiro lugar, no que respeita ao conhecimento de causa dos utilizadores das redes peer‑to‑peer, importa observar que os clientes BitTorrent não são softwares padrão, normalmente existentes num computador. As respetivas instalação, configuração e utilização necessitam de um saber‑fazer específico que, todavia, é atualmente muito fácil de adquirir, nomeadamente com recurso aos inúmeros tutoriais disponíveis na Internet. Ora, qualquer tutorial informa claramente que o download a partir de uma rede peer‑to‑peer é automaticamente acompanhado do carregamento do mesmo conteúdo. Alguns destes tutoriais também indicam como desativar esta funcionalidade.

56.

Em segundo lugar, como já expliquei ( 31 ), os utilizadores das redes peer‑to‑peer são informados do respetivo rácio upload/download, sendo que um rácio demasiado baixo pode levar a que sejam banidos do sítio de indexação. Eles estão, pois, perfeitamente cientes de que a participação nas redes peer‑to‑peer não implica apenas descarregar conteúdo mas implica também carregá‑lo.

57.

Por conseguinte, não estou convencido da alegada falta de consciência destes utilizadores, o que, porém, não tem grande relevância, uma vez que o conhecimento de causa não me parece ser um requisito da existência de um ato de colocação à disposição do público em situações como a do caso em apreço.

58.

É certo que, numa série de acórdãos, o Tribunal de Justiça realçou a importância do caráter deliberado da intervenção do utilizador para constatar a existência de um ato de comunicação ao público. Assim acontecia, nomeadamente, no processo que deu origem ao Acórdão Stichting Brein, relativo aos administradores de um sítio de indexação de ficheiros numa rede peer‑to‑peer ( 32 ). No entanto, partilho da opinião da Comissão de que esse requisito da intervenção deliberada era necessário nos processos em que o Tribunal de Justiça tinha atribuído o ato de comunicação ao público a agentes que não estavam na origem da comunicação inicial da obra. Com efeito, sem esta intervenção deliberada, esses agentes seriam apenas meros intermediários passivos, ou mesmo fornecedores de instalações técnicas, aos quais não poderia ser atribuído nenhum ato de comunicação.

59.

Em contrapartida, na situação em que são os próprios utilizadores em causa que estão na origem da comunicação ao público (colocação à disposição), o conhecimento de causa destes utilizadores não é constitutivo do ato em questão. Com efeito, o artigo 3.o da Diretiva 2001/29 não contém nenhuma indicação nesse sentido. O caráter involuntário da conduta do infrator pode, quando muito, ser tido em conta aquando da fixação da indemnização por perdas e danos, como está expressamente previsto no artigo 13.o, n.o 2, da Diretiva 2004/48, mas é irrelevante sob a perspetiva da licitude da conduta. Esta disposição constitui, de resto, uma indicação suplementar quanto ao facto de o caráter deliberado não ser, regra geral, um elemento constitutivo de uma violação de um direito de propriedade intelectual protegido pelo direito da União.

60.

O mesmo se verifica quanto ao caráter incontornável da intervenção do utilizador para dar acesso à obra ao público. Este critério é determinante para que se possa atribuir a comunicação a uma pessoa que não esteja na origem dessa comunicação ( 33 ). Com efeito, este papel incontornável consiste em permitir o acesso à obra a um público novo, ou seja, um público que não tinha sido visado na comunicação original ( 34 ).

61.

Ora, os utilizadores de uma rede peer‑to‑peer não se encontram nesta situação. Embora seja verdade que colocam à disposição dos outros pares os segmentos de ficheiros que, quase sempre, descarregaram anteriormente através da mesma rede, esses ficheiros estão agora armazenados nos seus próprios computadores ( 35 ), a sua colocação à disposição tem assim o caráter de uma comunicação original ou, pelo menos, autónoma. De forma semelhante, o Tribunal de Justiça não hesitou em declarar a existência desse ato no caso da publicação numa página da Internet de uma obra já livremente acessível noutra página ( 36 ). Por conseguinte, o papel incontornável destes utilizadores não é decisivo para constatar a existência de um ato de comunicação ( 37 ).

Quanto à existência de um público novo

62.

É jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que a comunicação ao público de uma obra protegida inclui o ato de comunicação e um público ( 38 ). A partilha dos ficheiros numa rede peer‑to‑peer visa, normalmente, um número indeterminado de potenciais destinatários e abrange um número significativo de pessoas. Verifica‑se, assim, a existência de um público ( 39 ).

63.

Por outro lado, a exigência de que o público em causa deve ser um público novo só é aplicável no caso de uma comunicação secundária. Com efeito, o público novo é definido como o público que não foi tomado em consideração pelos titulares dos direitos de autor quando estes últimos autorizaram a comunicação inicial ( 40 ). Uma vez que a colocação à disposição de obras protegidas pelos utilizadores de uma rede peer‑to‑peer tem o caráter de uma comunicação original ( 41 ), o critério do público novo não é aplicável no caso em apreço.

64.

De qualquer forma, mesmo que esse critério fosse aplicável, na medida em que nenhum público foi tomado em consideração pelos titulares dos direitos de autor e dos direitos conexos quando as obras são partilhadas sem autorização destes titulares, qualquer público ao qual se destine a comunicação, no caso em apreço os utilizadores da rede peer‑to‑peer, deve assim ser considerado novo.

Proposta de resposta

65.

Deste modo, os utilizadores das redes peer‑to‑peer, oferecendo a possibilidade de descarregar segmentos de ficheiros que contêm obras protegidas pelo direito de autor a partir dos respetivos computadores, seja durante o download desses ficheiros ou independentemente desse download, colocam essas obras à disposição do público na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2001/29.

66.

Por conseguinte, a resposta que proponho à primeira questão prejudicial é que o artigo 3.o da diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que está abrangido pelo direito de colocação à disposição do público, na aceção deste artigo, o facto de colocar à disposição para download, através de uma rede peer‑to‑peer, segmentos de um ficheiro que contém uma obra protegida, e isto mesmo antes de o próprio utilizador em causa ter descarregado na íntegra o referido ficheiro e sem que o conhecimento de causa desse utilizador seja determinante.

Quanto à segunda questão prejudicial

67.

Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se uma sociedade como a Mircom, que, embora tenha adquirido determinados direitos sobre obras protegidas, não os explora e apenas cobra indemnizações às pessoas que violam esses direitos, no caso, colocando essas obras à disposição do público em redes peer‑to‑peer, pode beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos no capítulo II da Diretiva 2004/48. O órgão jurisdicional de reenvio tem igualmente dúvidas quanto à questão de saber se esse organismo pode ser considerado como tendo sofrido algum prejuízo na aceção do artigo 13.o desta diretiva.

Legitimidade da Mircom enquanto detentor da licença

68.

As quatro categorias de agentes que devem ter legitimidade para beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos na Diretiva 2004/48 para garantir o respeito dos direitos de propriedade intelectual estão enumeradas no artigo 4.o, alíneas a) a d), desta diretiva. Trata‑se dos titulares desses direitos, de outras pessoas autorizadas a utilizar esses direitos, nomeadamente, os titulares de licenças, os organismos de gestão dos direitos coletivos de propriedade intelectual, bem como os organismos de defesa da profissão regularmente reconhecidos como tendo o direito de representar os titulares de direitos de propriedade intelectual. No que respeita às três últimas categorias, só têm direito a beneficiar das disposições da Diretiva 2004/48 se e na medida em que o direito nacional aplicável o preveja.

69.

É pacífico, no processo principal, que a Mircom não é titular de qualquer direito de autor ou direito conexo sobre as obras em questão. Por conseguinte, o artigo 4.o, alínea a), da Diretiva 2004/48 não lhe é aplicável.

70.

Em contrapartida, a Mircom alega ter adquirido licenças que lhe permitem proceder à comunicação ao público das obras em causa no processo principal através das redes peer‑to‑peer. À primeira vista, esta empresa devia ser, portanto, considerada titular de uma licença e, consequentemente, beneficiar das disposições da Diretiva 2004/48 por força do artigo 4.o, alínea b), desta. Com efeito, o legislador da União considera os titulares de licenças pessoas lesadas pelas atividades litigiosas, uma vez que estas atividades podem obstar à exploração normal das licenças ou diminuir as receitas que são suscetíveis de gerar.

71.

Cabe ainda ao órgão jurisdicional de reenvio verificar a validade dos acordos de licença celebrados pela Mircom à luz do direito aplicável a esses contratos, bem como a legitimidade ativa desse titular da licença tendo em conta as regras processuais aplicáveis ao litígio.

72.

Porém, esse órgão jurisdicional observa que a Mircom não explora efetivamente as referidas licenças e apenas cobra indemnizações às pessoas que violam os direitos de autor e direitos conexos sobre as obras em causa, colocando‑as à disposição do público nas redes peer‑to‑peer. Segundo ele, a forma de atuar da Mircom corresponde perfeitamente à definição do que é frequentemente designado como um copyright troll.

73.

Recordo que um copyright troll é uma pessoa que, tendo adquirido direitos de exploração limitados sobre obras protegidas, não os explora efetivamente e apenas cobra indemnizações a quem viola esses direitos, nomeadamente através da Internet, quase sempre através de redes de partilha de ficheiros, como as redes peer‑to‑peer. Além disso, um copyright troll intenta ações judiciais apenas para obter os nomes e os endereços dos infratores, a fim de lhes propor em seguida uma resolução amigável mediante o pagamento de uma determinada quantia, na maior parte das vezes sem os processar judicialmente. As suas receitas provêm, assim, principalmente das quantias pagas «voluntariamente» pelos infratores, as quais partilha com os titulares dos direitos de autor e dos direitos conexos sobre as obras em questão. Este procedimento parece ser particularmente eficaz no que respeita às violações dos direitos de autor e dos direitos conexos sobre filmes pornográficos, pois, além da cominação de uma eventual imputação de danos significativos, é possível explorar o sentimento de vergonha provocado, deliberadamente, nos alegados infratores ( 42 ). Assim, num grande número de casos, as pessoas em causa podem estar dispostas a pagar as quantias exigidas sem pensar em eventuais meios de defesa, mesmo não sendo os verdadeiros agentes das violações dos direitos em questão ( 43 ).

74.

A própria Mircom reconheceu, durante a audiência, que não explora, nem tem intenção de o fazer, as licenças que lhe foram concedidas sobre as obras em causa no processo principal. Por outro lado, apesar de as redes peer‑to‑peer poderem constituir a via de distribuição lícita de alguns conteúdos protegidos pelo direito de autor, são necessários esforços consideráveis para ultrapassar as dificuldades técnicas associadas a essa via de distribuição e assegurar a rentabilidade da mesma. A mera aquisição das licenças não é, portanto, suficiente e não parece que a Mircom tenha intenção de realizar esses esforços.

75.

Pelo contrário, o órgão jurisdicional de reenvio refere decisões judiciais, nomeadamente no Reino Unido, nas quais se constatou que a Mircom tinha adotado as atitudes típicas dos copyright trolls, nomeadamente utilizando os dados dos alegados infratores obtidos no âmbito de processos judiciais anteriores, a fim de contactar esses infratores e lhes propor «transações», sem processar judicialmente as pessoas que recusaram essas transações ( 44 ).

76.

Por conseguinte, parece que, efetivamente, a conduta da Mircom corresponde à de um copyright troll. Este conceito não é, todavia, conhecido do direito da União. Por outro lado, a conduta da Mircom não é, em si mesma, ilegal. Como bem assinala a Comissão, nada impede um interessado de renunciar à instauração de procedimentos judiciais se não os considerar oportunos nem de procurar resolver amigavelmente os litígios que o opõem aos infratores dos direitos de autor.

77.

Em contrapartida, existe, no direito da União, um princípio geral de direito segundo o qual os particulares não podem abusiva ou fraudulentamente invocar normas desse direito. Com efeito, a aplicação da regulamentação da União não pode ser alargada a ponto de cobrir as operações realizadas com o objetivo de beneficiar de forma fraudulenta ou abusiva das vantagens previstas no direito da União. É o que acontece quando as disposições do direito da União são invocadas não com vista a alcançar os objetivos dessas disposições, mas com a finalidade de beneficiar de uma vantagem do direito da União quando os requisitos para beneficiar dessa vantagem só formalmente são preenchidos ( 45 ).

78.

Uma vez que o princípio da proibição do abuso de direito é aplicável em matérias muito variadas do direito da União ( 46 ), não vejo nenhum motivo que possa impedir a sua aplicação no domínio da propriedade intelectual. A própria Diretiva 2004/48 exige, de resto, no seu artigo 3.o, n.o 2, que sejam previstas salvaguardas contra o abuso das medidas, procedimentos e recursos que estabelece.

79.

Ora, pode considerar‑se que a Mircom, ao adquirir licenças de exploração que não tem intenção de executar, pretende na verdade invocá‑las abusivamente, a fim de adquirir o estatuto de titular da licença que lhe permite instaurar os procedimentos judiciais previstos na Diretiva 2004/48, com a finalidade de obter os dados dos infratores dos direitos de autor e dos direitos conexos sobre as obras objeto destas licenças. Dispondo desses dados, estaria em condições de contactar esses infratores com a cominação da instauração de processos judiciais, a fim de conseguir o pagamento de um montante fixo a título de resolução amigável.

80.

Por conseguinte, tendo preenchido formalmente os requisitos para beneficiar do estatuto de titular da licença, a Mircom invocaria esse estatuto com uma finalidade diferente daquela para a qual a Diretiva 2004/48 confere aos titulares de licenças o direito de recorrer à justiça em caso de violação dos direitos de propriedade intelectual. Com efeito, a finalidade do legislador da União era dar aos titulares de licenças um instrumento de proteção da exploração normal dessas licenças, ao passo que a da Mircom é apenas punir as violações dos direitos de autor e direitos conexos e daí retirar uma vantagem económica. Esta conduta corresponde, assim, à definição do abuso de direito proibido no direito da União.

81.

A declaração de existência dessa conduta abusiva exige uma apreciação factual que cabe, portanto, ao órgão jurisdicional nacional. Se concluir que a Mircom tenta efetivamente invocar de forma abusiva o seu estatuto de titular de licença para beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos nas disposições adotadas no âmbito da transposição da Diretiva 2004/48, esse órgão jurisdicional deverá então recusar‑lhe o benefício dessas medidas, procedimentos e recursos, uma vez que esse benefício se baseia no estatuto de titular de licença.

Legitimidade da Mircom enquanto cessionária dos créditos

82.

No entanto, tendo em conta os contratos celebrados entre a Mircom e os produtores dos filmes apresentados ao Tribunal de Justiça, o estatuto dessa sociedade parece poder analisar‑se de forma diferente. Com efeito, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se esses contratos não são de natureza diferente dos contratos de licença. Se assim for, não se trataria de um abuso de direito, mas de uma relação jurídica diferente da que resulta, à primeira vista, desses contratos.

83.

Nomeadamente, a Mircom pretende ser não só titular da licença dos produtores dos filmes em causa no processo principal mas também cessionária dos créditos de que esses produtores seriam detentores devido às violações dos direitos de autor e dos direitos conexos sobres esses filmes. Suscita‑se assim a questão de saber se um cessionário de créditos pode beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos na Diretiva 2004/48.

84.

Recordo que as categorias de pessoas às quais a Diretiva 2004/48 confere o benefício das medidas, procedimentos e recursos que prevê estão enumeradas no seu artigo 4.o, alíneas a) a d). O artigo 4.o, alínea a), desta diretiva diz respeito aos titulares dos direitos de propriedade intelectual, categoria que, sem dúvida, não engloba os cessionários dos créditos associados à violação desses direitos.

85.

Em contrapartida, o artigo 4.o, alínea b), da Diretiva 2004/48 refere «[t]odas as outras pessoas autorizadas a utilizar [os direitos de propriedade intelectual]». Como já referi, a Mircom poderia, em princípio, na sua qualidade de titular de licença, beneficiar desta disposição, desde que as suas licenças não fossem consideradas como tendo sido adquiridas com uma finalidade abusiva. Por conseguinte, importa agora verificar se essa sociedade pode beneficiar da referida disposição enquanto cessionária dos créditos associados à violação dos direitos de propriedade intelectual.

86.

Sou da opinião de que não é esse o caso. Com efeito, o conceito de «utilização dos direitos de propriedade intelectual» deve ser interpretado no sentido de que abrange o exercício das prerrogativas exclusivas que decorrem desses direitos. No que respeita aos objetos protegidos pelo direito de autor e direitos conexos, trata‑se, nomeadamente, de atos de reprodução, de comunicação ao público e de distribuição de cópias desses objetos. Com efeito, são as pessoas autorizadas a exercer essas prerrogativas que, à semelhança dos titulares dos direitos, têm um interesse direto na proteção desses direitos, referido no considerando 18 da Diretiva 2004/48 ( 47 ), uma vez que qualquer violação destes entra potencialmente em conflito com as referidas prerrogativas.

87.

Ora, a aquisição e a cobrança de créditos associados a essas violações constituem, não o exercício de prerrogativas exclusivas dos titulares dos direitos de propriedade intelectual, mas antes um mecanismo, habitual em direito civil, de indemnização dos danos resultantes da violação dessas prerrogativas. Por conseguinte, o artigo 4.o, alínea b), da Diretiva 2004/48 deve, na minha opinião, ser interpretado no sentido de que a categoria de pessoas autorizadas a utilizar os direitos de propriedade intelectual visada nessa disposição não abrange os cessionários dos créditos associados à violação dos referidos direitos.

88.

Não é menos verdade que os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem ter interesse em ceder os respetivos créditos associados à violação desses direitos, nomeadamente devido às dificuldades que podem encontrar para cobrar, eles próprios, esses créditos. Ora, tais créditos encontrariam mais provavelmente interessados se os cessionários pudessem beneficiar dos mecanismos destinados a facilitar a declaração de existência e a cobrança dos mesmos, como os mecanismos previstos no capítulo II da Diretiva 2004/48.

89.

Por conseguinte, não excluo que o direito nacional possa dar aos cessionários desses créditos legitimidade para beneficiar das medidas tomadas na transposição da Diretiva 2004/48. Com efeito, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta diretiva limita‑se a consagrar um nível mínimo de proteção que pode ser elevado pelos Estados‑Membros ( 48 ), não o exigindo, porém.

90.

Particularmente, essa exigência não decorre, na minha opinião, do Acórdão SNB‑REACT ( 49 ). É certo que, neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, baseando‑se, nomeadamente no considerando 18 da Diretiva 2004/48, que «por um lado, quando a legislação nacional prevê que um organismo de gestão coletiva de direitos de propriedade intelectual, ao qual é reconhecido o direito de representar os titulares dos referidos direitos, tem um interesse direto na defesa desses direitos e, por outro, quando essa legislação lhe atribui legitimidade processual, os Estados‑Membros devem reconhecer a este organismo a legitimidade para requerer a aplicação das medidas, procedimentos e recursos previstos na referida diretiva, bem como para intentar ações ou interpor recursos para defender tais direitos» ( 50 ). Tratava‑se, no entanto, como refere o texto do acórdão, de um organismo de gestão coletiva de direitos de propriedade intelectual, ou seja, uma entidade pertencente a uma das categorias mencionadas no artigo 4.o da Diretiva 2004/48 [alínea c)]. Resulta do considerando 18 da Diretiva 2004/48 que as pessoas que pertencem a estas categorias têm, segundo o legislador da União, um interesse direto no respeito dos direitos de propriedade intelectual. Em contrapartida, o referido considerando não pode exigir que se reconheça o mesmo direito a organismos não incluídos em nenhuma destas categorias, tais como os cessionários dos créditos associados à violação dos direitos de propriedade intelectual, mesmo que devam ser considerados como tendo, também eles, um interesse direto. Com efeito, se é certo que um considerando pode explicar as escolhas do legislador e, deste modo, orientar a interpretação das disposições de um ato de direito da União, não tem valor normativo próprio, independente destas disposições.

91.

Por outro lado, contrariamente ao argumento apresentado pela Telenet na audiência, não me parece que o facto de a cessão à Mircom incidir sobre créditos que não existiam à data da celebração dos contratos em causa e o facto de esses contratos serem celebrados por um período de tempo determinado se oponham à existência de uma cessão de créditos. Com efeito, se o direito aplicável o permite, essa cessão pode incidir sobre créditos futuros e ser reversível no caso de o crédito não ser cobrado. Em contrapartida, o órgão jurisdicional de reenvio deve verificar, em primeiro lugar, a validade destas cessões à luz do direito aplicável aos contratos em questão e, em segundo lugar, a oponibilidade dessas cessões aos devedores, à luz da legislação aplicável, incluindo das regras processuais perante o órgão jurisdicional competente.

Outros casos de potencial legitimidade da Mircom

92.

Baseando‑se também no Acórdão SNB‑REACT ( 51 ), a Telenet defende que a Mircom deve ser considerada um organismo de gestão coletiva de direitos de propriedade intelectual. À semelhança da Proximus, da Scarlet Belgium e da Comissão, sou da opinião de que esta interpretação não é correta. Com efeito, a Mircom não gere os direitos de autor e os direitos conexos dos seus cocontratantes, procurando apenas obter a indemnização dos prejuízos resultantes da violação desses direitos. Também não parece que a Mircom cumpra os requisitos impostos aos organismos de gestão coletiva pela diretiva 2014/26/UE ( 52 ). Por outro lado, a própria Mircom afirma que não é um desses organismos.

93.

Por último, partilho da opinião do Governo polaco de que cada titular de um direito de autor ou de um direito conexo tem o direito de autorizar outra pessoa, através de um mandato ou de outro ato jurídico de autorização, a exercer os seus direitos em seu nome, designadamente para cobrar a indemnização devida pela violação do seu direito. Além disso, o artigo 4.o, alínea d), da Diretiva 2004/48 prevê expressamente essa situação. No entanto, não parece ser este o caso no processo principal. Com efeito, é pacífico perante o órgão jurisdicional de reenvio que a Mircom não atua em nome e por conta dos produtores dos filmes em causa, mas em seu próprio nome e por conta própria. Esta sociedade não pode, portanto, ser considerada um organismo de defesa com direito a representar os titulares de direitos de propriedade intelectual na aceção do artigo 4.o, alínea d), da Diretiva 2004/48.

Proposta de resposta

94.

Proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial que o artigo 4.o, alínea b), da Diretiva 2004/48 deve ser interpretado no sentido de que um organismo que, embora tenha adquirido determinados direitos sobre obras protegidas, não os explora e apenas cobra indemnizações às pessoas que violam esses direitos, não tem legitimidade para beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos no capítulo II desta diretiva, na medida em que o órgão jurisdicional competente conclua que a aquisição dos direitos por esse organismo apenas se destinava a conseguir essa legitimidade. A referida diretiva não exige nem se opõe a que a legislação interna de um Estado‑Membro reconheça esta legitimidade a um cessionário de créditos associados a violações dos direitos de propriedade intelectual.

Quanto à terceira questão prejudicial

95.

Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta em que medida as circunstâncias descritas no âmbito das duas primeiras questões devem ser tidas em conta para efeitos da ponderação do justo equilíbrio entre, por um lado, o respeito pelos direitos de propriedade intelectual e, por outro, os direitos e liberdades dos utilizadores, como o respeito pela vida privada e a proteção de dados pessoais.

Observações preliminares

96.

Resulta do presente pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio conhece a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à transmissão a entidades privadas de dados pessoais para permitir o procedimento judicial, em instâncias cíveis, contra violações do direito de autor. Segundo esta jurisprudência, essa transmissão é autorizada, mas não exigida, pelas disposições conjugadas do artigo 8.o, n.o 3, da Diretiva 2004/48 e do artigo 15.o, n.o 1, da diretiva 2002/58 ( 53 ). O Tribunal de Justiça considerou, no entanto, que, nomeadamente na transposição das Diretivas 2002/58 e 2004/48, compete aos Estados‑Membros zelar por que seja seguida uma interpretação das mesmas que permita assegurar um justo equilíbrio entre os diversos direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União. Por ouro lado, na execução das medidas de transposição das referidas diretivas, compete às autoridades e aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros não só interpretar os seus direitos nacionais em conformidade com estas mesmas diretivas mas também zelar por que seja seguida uma interpretação destas diretivas que não entre em conflito com os referidos direitos fundamentais ou com os outros princípios gerais do direito da União, como o princípio da proporcionalidade ( 54 ).

97.

Esta jurisprudência deve ser lida à luz de uma jurisprudência mais recente que parece pôr o seu acento tónico na obrigação de os Estados‑Membros assegurarem aos titulares dos direitos de propriedade intelectual possibilidades reais de obterem uma indemnização pelos prejuízos resultante da violação desses direitos. Assim, o Tribunal de Justiça declarou, num processo em que os factos no litígio principal diziam respeito à partilha de ficheiros, que o direito da União (as diretivas 2001/29 e 2004/48) se opunha a uma legislação ou a uma prática jurisprudencial nacional nos termos da qual o titular de uma ligação Internet usada na violação do direito de autor podia subtrair‑se à sua responsabilidade designando simplesmente um membro da família que tinha a possibilidade de aceder a essa ligação, sem fornecer nenhum esclarecimento adicional, deixando assim o titular dos direitos de autor lesado sem nenhuma possibilidade de recurso efetivo, não dando essa legislação a este titular outros meios de ser indemnizado, por exemplo, responsabilizando o titular da ligação Internet ( 55 ). Ora, se o facto de o titular de uma ligação Internet usada para violar direitos de autor reconhecer a sua própria responsabilidade por estas violações ou indicar a pessoa responsável constitui um requisito para que o titular desses direitos possa ser indemnizado pelo prejuízo sofrido, por maioria de razão o mesmo acontece quanto à fase prévia, a saber, a identificação do titular da ligação, o que, frequentemente, só é possível com base no endereço IP e nas informações prestadas pelo fornecedor de acesso à Internet.

98.

No entanto, o Tribunal de Justiça proferiu recentemente o Acórdão La Quadrature du Net e o. ( 56 ), importante no que respeita à fase prévia a qualquer comunicação de dados tais como os endereços IP, a saber, a conservação desses dados. Embora este acórdão se baseie numa jurisprudência anterior, introduz precisões importantes. Ora, não é difícil notar uma certa tensão entre este acórdão e a jurisprudência referida nos números precedentes, relativa à comunicação dos endereços IP no âmbito de ações em matéria de proteção dos direitos de propriedade intelectual.

99.

Com efeito, no Acórdão La Quadrature du Net e o., o Tribunal de Justiça admite que, «no caso de uma infração cometida em linha, o endereço IP [pode] constituir o único meio de investigação que [permita] a identificação da pessoa à qual esse endereço estava atribuído no momento da prática dessa infração» ( 57 ). A situação não é diferente no caso de infrações no âmbito do direito civil praticadas em linha, como as violações dos direitos de propriedade intelectual. O Tribunal de Justiça considera igualmente que «[e]sta categoria de dados [os endereços IP] tem um grau de sensibilidade menor que o dos outros dados de tráfego» ( 58 ).

100.

Deste modo, segundo o Tribunal de Justiça, «a conservação generalizada e indiferenciada [ou seja, relativa aos endereços IP de todas as pessoas singulares proprietárias de um equipamento terminal a partir do qual pode ser efetuado um acesso à Internet] apenas dos endereços IP atribuídos à fonte de uma ligação [ ( 59 )] não se afigura, em princípio, contrária ao artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz dos artigos 7.o, 8.o e 11.o, bem como do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, desde que essa possibilidade esteja sujeita ao estrito respeito das condições materiais e processuais que devem regular a utilização desses dados» ( 60 ).

101.

No entanto, segundo o Tribunal de Justiça, «[t]endo em conta o caráter grave da ingerência nos direitos fundamentais consagrados nos artigos 7.o e 8.o da Carta que esta conservação comporta, só a luta contra a criminalidade grave e a prevenção das ameaças graves contra a segurança pública são suscetíveis, à semelhança da salvaguarda da segurança nacional, de justificar essa ingerência» ( 61 ). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz dos artigos 7.o, 8.o e 11.o, bem como do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, se opunha a medidas legislativas prevendo, para os fins previstos no artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, a título preventivo, uma conservação generalizada e indiferenciada dos dados de tráfego, exceto, nomeadamente, a conservação generalizada e indiferenciada dos endereços IP atribuídos à fonte de uma ligação (comunicação) para efeitos da salvaguarda da segurança nacional, da luta contra a criminalidade grave e da prevenção de ameaças graves contra a segurança pública ( 62 ).

102.

Ora, tendo os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, em virtude do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, a obrigação de eliminar ou tornar anónimos os dados de tráfego, designadamente os endereços IP, quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação ( 63 ), só uma medida do Estado‑Membro baseada no artigo 15.o, n.o 1, dessa diretiva os pode autorizar a conservar esses dados ( 64 ).

103.

É certo que o Acórdão La Quadrature du Net e o. apenas diz respeito à conservação de dados por razões de segurança pública e de luta contra a criminalidade. No entanto, fixou‑se aí um nível de proteção particularmente elevado e será, na minha opinião, difícil de o ignorar em outros domínios, tais como a proteção dos direitos de terceiros no âmbito do direito civil. Ora, na minha opinião é duvidoso que os interesses associados à proteção dos direitos da propriedade intelectual sejam tão importantes como os subjacentes à salvaguarda da segurança nacional, à luta contra a criminalidade e à prevenção de ameaças graves contra a segurança pública. Por conseguinte, a conservação dos endereços IP para efeitos desta proteção, bem como a respetiva comunicação aos interessados no âmbito dos procedimentos relativos a essa proteção, ainda que esses endereços sejam conservados para outros fins ( 65 ), seria contrária à Diretiva 2002/58, tal como foi interpretada nesse acórdão. Os titulares dos direitos de propriedade intelectual seriam assim privados do principal, senão único, meio de identificar os autores das violações em linha dos referidos direitos, quando estes atuam, como acontece nas redes peer‑to‑peer, sob anonimato, o que pode pôr em causa o equilíbrio entre os diferentes interesses em jogo que o Tribunal de Justiça se esforçou por demonstrar ( 66 ).

104.

No presente processo, o pedido de decisão prejudicial não faz referência ao fundamento jurídico da conservação dos endereços IP cuja comunicação é pedida pela Mircom. Contudo, segundo a Telenet, esta conservação é baseada no artigo 126.o da Wet betreffende de elektronische communicatie (Lei Relativa às Comunicações Eletrónicas), de 13 de junho de 2005 ( 67 ), disposição que estava em causa num dos processos ( 68 ) que deu origem ao Acórdão La Quadrature du Net e o. ( 69 ). Se a conservação dos endereços IP com fundamento nesta disposição ou, pelo menos, a respetiva utilização para fins diferentes dos declarados lícitos nesse acórdão forem consideradas contrárias ao direito da União, o processo principal e, consequentemente, o presente pedido de decisão prejudicial ficam sem objeto ( 70 ).

105.

Não é menos verdade que, no presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber como devem ser interpretados os critérios estabelecidos na jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.o 96 das presentes conclusões em circunstâncias como as do litígio no processo principal. Trata‑se, por um lado, de dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio no que respeita à existência de uma violação dos direitos de autor e dos direitos conexos no caso da partilha de ficheiros através das redes peer‑to‑peer e, por outro, do papel equívoco desempenhado pela Mircom na prática dessas violações.

Quanto à existência de uma violação dos direitos de propriedade intelectual

106.

No que respeita à existência de uma violação dos direitos de autor e dos direitos conexos, penso que a resposta que proponho à primeira questão prejudicial esclarece suficientemente a situação. Desde logo, a colocação à disposição do público dos segmentos de um ficheiro que contém uma obra protegida através de uma rede peer‑to‑peer está abrangida pelo monopólio do titular dos direitos de autor e dos direitos conexos sobre esta obra e viola esse monopólio quando é efetuada sem autorização do respetivo titular. Como esta colocação à disposição é habitualmente associada ao download de ficheiros através das redes peer‑to‑peer, uma vez que é constitutiva do respetivo modo de funcionamento, esse download constitui um indício suficiente de uma provável violação dos direitos de autor ou dos direitos conexos para justificar o pedido de informações relativas à identidade dos titulares das ligações Internet utilizadas para esse efeito por parte do fornecedor desta ligação. Evidentemente, o titular dos direitos em questão deve demonstrar que foram partilhados sem a sua autorização, com recurso a ligações Internet indiciadas, ficheiros que contêm obras cujos direitos detém.

107.

Em seguida, o titular da ligação Internet pode, para se defender, apresentar elementos de prova a fim de demonstrar que não deu origem à violação em questão, que se limitou a descarregar os ficheiros, sem os colocar à disposição de outros utilizadores da rede, que não tinha consciência desta colocação à disposição automática, etc. Esta é, no entanto, a fase seguinte, a de um processo que visa demonstrar uma eventual responsabilidade. Em contrapartida, a proteção dos dados pessoais não pode constituir uma imunidade contra qualquer pedido justificado de divulgação de informações necessárias para instaurar um processo judicial de indemnização equitativo ( 71 ).

108.

A Telenet, a Proximus e a Scarlet Belgium apresentam ainda o argumento de que a divulgação dos nomes dos titulares das ligações Internet, com recurso às quais foram partilhados os filmes cujos direitos a Mircom detém, constitui, devido, se bem compreendo, aos títulos explícitos desses filmes, um tratamento de dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa singular, na aceção do artigo 9.o do Regulamento 2016/679. Ora, esse tratamento é, em princípio, proibido nos termos do artigo 9.o, n.o 1, deste regulamento.

109.

Não obstante, mesmo que se admita que o facto de ser titular de uma ligação Internet que foi utilizada para partilhar filmes eróticos em redes peer‑to‑peer constitui uma informação relativa à vida ou orientação sexual da pessoa em causa, sou da opinião de que as exceções previstas no artigo 9.o, n.o2, alíneas f) e g), do Regulamento 2016/679 são aqui aplicáveis. Portanto, não penso que o artigo 9.o, n.o 1, deste regulamento se possa opor à divulgação dos nomes desses titulares de ligações Internet no âmbito de uma ação de indemnização de um prejuízo resultante de uma partilha.

Quanto ao papel do demandante

110.

Os problemas suscitados pelo papel e pelo modo de atuar de uma entidade como a Mircom são mais delicados.

111.

Em primeiro lugar, o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48 exige que o pedido de informação seja formulado «no contexto dos procedimentos relativos à violação de um direito de propriedade intelectual». O Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de declarar que esta expressão não pode ser interpretada no sentido de que se refere unicamente aos processos que visam a obtenção da declaração de existência de uma violação de um direito de propriedade intelectual ( 72 ). Reconheceu efetivamente que o direito à informação pode também ser exercido num processo autónomo, após a declaração da violação ( 73 ). À semelhança da Comissão, penso que esse direito pode, por maioria de razão, ser exercido antes dessa declaração, nomeadamente quando o pedido de informação for relativo a dados dos eventuais infratores, que são necessários para intentar uma eventual ação judicial.

112.

A dificuldade no presente processo reside no facto de o órgão jurisdicional de reenvio parecer duvidar de que a Mircom tenha intenção de intentar essas ações; segundo esse órgão jurisdicional, trata‑se antes de pressionar as pessoas em causa a aceitar a sua proposta de resolução amigável.

113.

Não obstante, penso que a expressão «no contexto dos procedimentos relativos à violação de um direito de propriedade intelectual» é suficientemente ampla para incluir um procedimento do tipo do empreendido pela Mircom. A verdade é que o seu procedimento está estreitamente relacionado com violações de direitos de autor e de direitos conexos e configura um método, ainda que duvidoso em termos morais, de defesa desses direitos, não sendo também, em si mesmo, ilegal. Por outro lado, a tentativa de uma resolução amigável é, frequentemente, prévia à instauração do processo judicial propriamente dito. Tal como na ação judicial, é necessário conhecer o nome e o endereço do alegado infrator.

114.

Portanto, não penso que o órgão jurisdicional de reenvio possa julgar improcedente o pedido da Mircom considerando que este não foi apresentado no âmbito de um procedimento relativo a uma violação de um direito de propriedade intelectual, como exige o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48.

115.

Em segundo lugar, o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48 dispõe que o pedido de informação deve ser justificado e razoável. É esta a questão que o órgão jurisdicional de reenvio deveria, na minha opinião, ter em consideração relativamente à forma de atuar da Mircom.

116.

Com efeito, se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que a aquisição, pela Mircom, de licenças de exploração dos filmes em causa tinha uma finalidade abusiva, o seu pedido deverá ser declarado injustificado. Por outro lado, mesmo que se admita a legitimidade da Mircom enquanto detentora de licenças, esta sociedade, uma vez que não tem intenção de explorar essas licenças, não teria na realidade nenhum prejuízo cuja indemnização pudesse vir a pedir nos termos do artigo 13.o da Diretiva 2004/48. Por conseguinte, o seu procedimento seria desprovido de objeto e o seu pedido injustificado.

117.

Seria ainda possível considerar a Mircom cessionária dos créditos dos produtores cinematográficos decorrentes das violações do direito de colocação à disposição do público dos filmes em causa. Nesse caso, segundo a resposta que proponho que seja dada à segunda questão, o locus standi da Mircom seria baseado apenas no direito nacional. Por conseguinte, é nos termos deste direito que o órgão jurisdicional de reenvio deverá apreciar o pedido de informação.

118.

Por último, em terceiro lugar, o artigo 3.o, n.o 2, da diretiva 2004/48 dispõe que as medidas, procedimentos e recursos previstos nesta diretiva devem ser aplicados para prever salvaguardas contra os abusos. Cabe, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio prever essas salvaguardas. Ora, numa situação como a que está em causa no processo principal, há duas circunstâncias que indicam que o pedido de informações relativo à identidade dos alegados infratores dos direitos de propriedade intelectual tem caráter abusivo.

119.

A primeira respeita à aquisição abusiva da legitimidade para pedir o benefício das medidas, procedimentos e recursos previstos na diretiva 2004/48, nomeadamente do direito à informação regulado no artigo 8.o desta diretiva. Analisei este problema no âmbito da resposta à segunda questão prejudicial.

120.

A segunda circunstância diz respeito, mais geralmente, ao modo de atuação da Mircom. Com efeito, como bem observa a Comissão, um determinado número de elementos — o facto de se tratar apenas de alegadas violações e presumíveis infratores, o caráter maciço do pedido de informação ( 74 ), o género de filmes em questão, o facto de a Mircom estimar a indemnização devida no montante fixo de 500 euros por pessoa, sem ter em conta as circunstâncias específicas de cada caso, e, por último, as dúvidas quanto à real intenção da Mircom de instaurar os procedimentos judiciais quando a resolução amigável seja recusada — permitem pressupor que o seu pedido de informação poderia ser utilizado, abusivamente, não para obter a indemnização proporcionada de um prejuízo mas com a finalidade de extorquir, a pretexto de uma proposta de resolução amigável do litígio, uma espécie de resgate. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio não refere nenhum processo da Mircom instaurado contra as plataformas de indexação de ficheiros torrent relativos aos filmes cujos direitos detém, apesar de a jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 75 ) lhe dar essa possibilidade. Esta é mais uma circunstância que pode levar o órgão jurisdicional de reenvio a considerar que não se trata de erradicar a contrafação, mas de se aproveitar dela.

121.

A declaração de existência de tal abuso enquadra‑se perfeitamente na apreciação dos factos do processo principal e, portanto, na competência do órgão jurisdicional de reenvio. No que diz respeito ao direito da União, este permite, e até exige, que seja efetuada essa análise e que seja recusado, sendo caso disso, o benefício do direito à informação previsto no artigo 8.o da Diretiva 2004/48.

Proposta de resposta

122.

Por conseguinte, a resposta que proponho à terceira questão é que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 2, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional nacional deve recusar o benefício do direito à informação previsto no artigo 8.o desta diretiva se, face às circunstâncias do litígio, constatar que o pedido de informação é injustificado ou abusivo.

Quanto à quarta questão prejudicial

123.

Com a sua quarta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento 2016/679 deve ser interpretado no sentido de que é lícito o tratamento de dados pessoais que consiste no registo dos endereços IP das pessoas cujas ligações Internet foram utilizadas para partilhar obras protegidas nas redes peer‑to‑peer, como o efetuado pela Media Protector por conta da Mircom.

124.

Esta questão assenta na premissa de que os referidos endereços IP constituem dados pessoais e de que o respetivo registo constitui um tratamento. Não obstante, esta premissa só é correta no caso de o órgão jurisdicional de reenvio conferir à Mircom a necessária legitimidade para beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos na diretiva 2004/48 e, designadamente, deferir o seu pedido ao abrigo do artigo 8.o desta diretiva.

125.

Com efeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de declarar que os endereços IP, incluindo os endereços dinâmicos, constituem dados pessoais quando o responsável pelo tratamento destes endereços IP disponha de meios legais que lhe permitam identificar a pessoa em causa graças às informações suplementares de que dispõe o fornecedor de acesso à Internet dessa pessoa ( 76 ). Nesse caso, não há dúvida de que o registo desses endereços para efeitos da sua posterior utilização no âmbito de procedimentos judiciais corresponde à definição de tratamento constante do artigo 4.o, n.o 2, do Regulamento 2016/679.

126.

Será essa a situação caso a Mircom, em nome da qual a Media Protector recolhe os endereços IP, disponha de um meio legal para identificar os titulares das ligações Internet em virtude do procedimento previsto no artigo 8.o da diretiva 2004/48. Em contrapartida, se o benefício deste procedimento lhe for recusado, os endereços IP em causa no caso em apreço não podem ser considerados dados pessoais, uma vez que não se referem a pessoas identificadas ou identificáveis na aceção do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento 2016/679. Por conseguinte, este regulamento não seria aplicável.

127.

No que respeita à interpretação do artigo 6.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento 2016/679, este prevê três requisitos cumulativos para que o tratamento de dados pessoais seja lícito, a saber, em primeiro lugar, a prossecução de um interesse legítimo do responsável pelo tratamento ou do terceiro ou terceiros a quem os dados são comunicados, em segundo lugar, a necessidade do tratamento dos dados pessoais para a realização do interesse legítimo prosseguido e, em terceiro lugar, o requisito de os direitos e as liberdades fundamentais da pessoa a que a proteção de dados diz respeito não prevalecerem ( 77 ).

128.

Parece‑me estar preenchido o requisito relativo à necessidade do tratamento dos dados pessoais para a realização do interesse legítimo prosseguido. Uma rede peer‑to‑peer é, do ponto de vista técnico, uma rede de computadores ( 78 ) que comunicam entre si. Esta comunicação efetua‑se graças aos endereços IP que identificam os diferentes computadores (mais precisamente, os routers que asseguram a respetiva ligação à Internet). Qualquer constatação de um ato de partilha de um ficheiro nessa rede e, portanto, de uma violação dos direitos de autor e dos direitos conexos, quando o ficheiro contém uma obra protegida e a partilha decorre sem a autorização dos titulares dos referidos direitos, passa necessariamente pela identificação e registo do endereço IP a partir do qual esse ato foi efetuado. Só numa segunda fase é possível identificar o titular da ligação Internet à qual o endereço IP em questão foi atribuído num determinado momento. Mesmo que este titular nem sempre tenha dado origem ao ato em questão, normalmente está em condições de prestar informações a respeito da pessoa responsável ou pode ele próprio ser tido como responsável pelos atos praticados com recurso à sua ligação Internet ( 79 ).

129.

Daqui resulta que, para efeitos do pedido de indemnização dos danos causados pela partilha não autorizada das obras protegidas através de redes peer‑to‑peer, é necessário registar os endereços IP dos utilizadores destas redes.

130.

O requisito relativo à prossecução de um interesse legítimo pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros está estreitamente ligado às circunstâncias descritas no âmbito da segunda e terceira questões prejudiciais e à respetiva apreciação pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, posso fazer aqui as mesmas observações que fiz sobre o pedido de divulgação dos nomes das pessoas às quais foram atribuídos os endereços IP registados nos termos do artigo 8.o da Diretiva 2004/48. Se o órgão jurisdicional de reenvio considerar esse pedido injustificado ou abusivo, o registo dos endereços IP que o antecede não pode ser considerado como efetuado na prossecução de um interesse legítimo. No entanto, nesse caso, os endereços IP deixariam de ser dados pessoais e o Regulamento 2016/679 não seria aplicável ( 80 ).

131.

Em contrapartida, a cobrança dos créditos devidamente formalizada por um cessionário desses créditos pode constituir um interesse legítimo que justifique o tratamento dos dados pessoais na aceção do artigo 6.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento 2016/679. Contudo, para que esse tratamento seja justificado, o cessionário deve poder usar em seguida esses dados a fim de identificar os devedores dos créditos adquiridos. Assim, o caráter justificado do tratamento irá depender, em todo o caso, da decisão relativa ao pedido de comunicação dos nomes dos titulares das ligações Internet identificadas pelos endereços IP em questão.

132.

Por último, quanto ao requisito de os direitos e as liberdades fundamentais da pessoa a que a proteção de dados diz respeito não prevalecerem sobre o interesse legítimo subjacente ao tratamento dos dados pessoais em causa, trata‑se da existência de eventuais circunstâncias específicas do caso em apreço que motivariam a ilicitude do tratamento, apesar da existência de um interesse legítimo. Cabe ao órgão jurisdicional competente verificar a existência dessas circunstâncias específicas.

133.

Por conseguinte, a resposta que proponho à quarta questão prejudicial é que o artigo 6.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento 2016/679 deve ser interpretado no sentido de que constitui um tratamento lícito dos dados pessoais o registo dos endereços IP das pessoas cujas ligações Internet foram utilizadas para a partilha de obras protegidas em redes peer‑to‑peer, quando este registo é efetuado na prossecução de um interesse legítimo do responsável pelo tratamento ou de terceiros, nomeadamente para apresentar um pedido justificado de divulgação dos nomes dos titulares das ligações Internet identificadas pelos endereços IP nos termos do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2004/48.

Conclusão

134.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões submetidas pelo ondernemingsrechtbank Antwerpen (Tribunal das Empresas de Antuérpia, Bélgica):

1)

O artigo 3.o da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser interpretado no sentido de que está abrangido pelo direito de colocação à disposição do público, na aceção do mesmo artigo, o facto de colocar à disposição para download no âmbito de uma rede descentralizada (peer‑to‑peer) segmentos de um ficheiro que contém uma obra protegida, e isto mesmo antes de o próprio utilizador em causa ter descarregado na íntegra o referido ficheiro e sem que o conhecimento de causa desse utilizador seja determinante.

2)

O artigo 4.o, alínea b), da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual, deve ser interpretado no sentido de que um organismo que, embora tenha adquirido determinados direitos sobre obras protegidas, não os explora e apenas cobra indemnizações às pessoas que violam esses direitos, não tem legitimidade para beneficiar das medidas, procedimentos e recursos previstos no capítulo II desta Diretiva, na medida em que o órgão jurisdicional nacional conclua que a aquisição dos direitos por esse organismo apenas se destinava a conseguir essa legitimidade. A diretiva 2004/48 não exige nem se opõe a que a legislação interna de um Estado‑Membro reconheça esta legitimidade a um cessionário de créditos associados à violação dos direitos de propriedade intelectual.

3)

O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 2, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional nacional deve recusar o benefício do direito à informação previsto no artigo 8.o desta diretiva se, face às circunstâncias do litígio, constatar que o pedido de informação é injustificado ou abusivo.

4)

O artigo 6.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), deve ser interpretado no sentido de que constitui um tratamento lícito dos dados pessoais o registo dos endereços IP das pessoas cujas ligações Internet foram utilizadas para a partilha de obras protegidas em redes peer‑to‑peer, quando este registo é efetuado na prossecução de um interesse legítimo do responsável pelo tratamento ou de terceiros, nomeadamente para apresentar um pedido justificado de divulgação dos nomes dos titulares das ligações Internet identificadas pelos endereços IP nos termos do artigo 8.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2004/48.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) V., para estimativas recentes, Blackburn, D., Eisenach, J.A., Harrison Jr., D., «Impacts of Digital Video Piracy on the U.S. Economy», junho 2019, estudo encomendado pela U.S. Chamber of Commerce (Câmara de Comércio, Estados Unidos).

( 3 ) Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, dispositivo).

( 4 ) Embora o conceito de copyright trolling seja principalmente utilizado no âmbito de violações cometidas através da Internet, a ideia em si de utilizar abusivamente o direito de autor para extorquir indemnizações antecede a Internet em, pelo menos, um século: o primeiro «copyright troll precoce» identificado na doutrina é um certo Thomas Wall, que operava no Reino Unido nos anos 1870; v., nomeadamente, Greenberg, B.A., «Copyright Trolls and Presumptively Fair Uses», University of Colorado Law Review, 2014, n.o 85, pp. 53 a 128, esp., p. 63. O fenómeno não se limita ao simples direito de autor e é, nomeadamente, sobejamente conhecido do direito das patentes.

( 5 ) JO 2001, L 167, p. 10.

( 6 ) JO 2004, L 157, p. 45.

( 7 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO 1995, L 281, p. 31).

( 8 ) JO 2002, L 108, p. 33.

( 9 ) JO 2009, L 167, p. 37.

( 10 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas (JO 1998, L 204, p. 37).

( 11 ) JO 2002, L 201, p. 37.

( 12 ) JO 2009, L 337, p. 11.

( 13 ) JO 2016, L 119, p. 1.

( 14 ) Nas presentes conclusões, uso a terminologia adotada pelo legislador da União na Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital e que altera as Diretivas 96/9/CE e 2001/29/CE (JO 2019, L 130, p. 92), ou seja, «descarregar» para uma transmissão da rede para o computador cliente (download) e «carregar» para uma transmissão do computador cliente para a rede (upload).

( 15 ) Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456).

( 16 ) V., também, Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, n.os 9 e 10), e as minhas conclusões nesse processo (C‑610/15, EU:C:2017:99, n.os 19 a 24).

( 17 ) BitTorrent Client é também a designação própria de um software cliente BitTorrent fabricado pela BitTorrent Inc. Contudo, existem outros softwares deste tipo, sendo um dos mais populares atualmente o μTorrent, desenvolvido pela mesma empresa.

( 18 ) Não abordarei aqui a questão de saber se um ficheiro digital constitui uma cópia da obra (apresentei a minha posição sobre este assunto nas minhas conclusões no processo Vereniging Openbare Bibliotheken, C‑174/15, EU:C:2016:459, n.o 44). É pacífico que o registo de uma obra em formato digital constitui a sua reprodução. Ora, esse registo só é possível sob a forma de ficheiro. Daqui resulta que este ficheiro «contém» a obra, no sentido de que contém as informações que permitem, com recurso a um computador e a um software, ler e exibir a obra. Para considerações mais amplas, v., nomeadamente, Gaudrat, Ph., «Forme numérique et propriété intellectuelle», Revue trimestrielle de droit commercial et de droit économique, 2000, p. 910.

( 19 ) É o caso do site The Pirate Bay, em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456): dado que esses sítios de indexação não contêm ficheiros‑obras, mas apenas ficheiros torrent, os respetivos administradores podiam alegar não ter cometido qualquer violação dos direitos de autor. O suprarreferido acórdão retirou‑lhes este argumento.

( 20 ) Existem igualmente protocolos mais recentes que não utilizam um tracker central, uma vez que os peers desempenham essa tarefa. Mas isto é irrelevante para o presente processo.

( 21 ) Recorrendo aos respetivos endereços IP comunicados pelo tracker.

( 22 ) Ao contrário do que se poderia pensar, este problema não foi analisado de modo aprofundado na doutrina. V., como uma das raras contribuições sobre este assunto, Zygmunt, J., «Przesyłanie plików za pośrednictwem sieci peer‑to‑peer a rozpowszechnienie utworu w rozumieniu prawa autorskiego», Zeszyty Naukowe Uniwersytetu Jagiellońskiego, 2017, n.o 1, pp. 44 a 62.

( 23 ) Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 31).

( 24 ) Como acontece frequentemente com a Internet, a terminologia relativa às redes peer‑to‑peer não está estabelecida de forma cartesiana. Por uma questão de clareza, utilizo nas presentes conclusões o termo «seeders» para os utilizadores que possuem a totalidade de um ficheiro e o colocam à disposição dos outros utilizadores, o termo «peers» para os utilizadores que estão em vias de descarregar um ficheiro e de lhe carregar os segmentos para outros peers e, por último, o termo «leecher» para os utilizadores que descarregam sem carregar.

( 25 ) O rácio de 1 significa que o utilizador carregou tantos dados como os que descarregou.

( 26 ) Ao contrário do direito exclusivo de colocação à disposição do público, apenas o upload efetivo é tomado em consideração para o cálculo do rácio, não bastando a mera colocação à disposição.

( 27 ) V., neste sentido, Acórdão de 31 de maio de 2016, Reha Training (C‑117/15, EU:C:2016:379, n.o 38).

( 28 ) Frequentemente, ainda mais pequenos do que os segmentos dos ficheiros partilhados segundo o protocolo BitTorrent.

( 29 ) Alguns outros softwares, em contrapartida, apenas permitem limitar a velocidade do upload, o que, à luz das considerações precedentes, não se opõe a que o ato seja qualificado de colocação à disposição do público.

( 30 ) Acórdão de 10 de abril de 2014, ACI Adam e o. (C‑435/12, EU:C:2014:254, n.o 41).

( 31 ) V. n.o 47 das presentes conclusões.

( 32 ) V. Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 26). V. também Acórdão de 26 de abril de 2017, Stichting Brein (C‑527/15, EU:C:2017:300, n.o 31).

( 33 ) Tal como o gerente de um hotel que envia o sinal de televisão para os respetivos quartos (Acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE, C‑306/05, EU:C:2006:764, n.o 42) ou os administradores de um sítio de indexação de ficheiros na rede peer‑to‑peer (Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein, C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 36).

( 34 ) Acórdão de 31 de maio de 2016, Reha Training (C‑117/15, EU:C:2016:379, n.o 46).

( 35 ) Que, segundo o modo de funcionamento do protocolo BitTorrent, desempenham então o mesmo papel que os servidores no funcionamento da «rede».

( 36 ) Acórdão de 7 de agosto de 2018, Renckhoff (C‑161/17, EU:C:2018:634, dispositivo).

( 37 ) A título exaustivo, acrescento que, na minha opinião, os utilizadores de uma rede peer‑to‑peer onde são partilhadas obras, que, de resto, estão acessíveis, mas mediante pagamento, colocam estas obras à disposição do público com fins lucrativos. Com efeito, como acima expliquei, na lógica do funcionamento das redes peer‑to‑peer, o carregamento é a contrapartida da possibilidade do download. Assim, os utilizadores dessa rede fazem carregamentos a fim de obterem uma vantagem económica, a saber, a possibilidade de aceder gratuitamente a obras pelas quais normalmente teriam de pagar. Por conseguinte, há claramente uma finalidade lucrativa.

( 38 ) Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 36).

( 39 ) V., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, n.os 42 e 43).

( 40 ) Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 44).

( 41 ) V. n.o 61 das presentes conclusões.

( 42 ) Muitas vezes, basta referir os títulos, explícitos, das obras objeto das alegadas violações.

( 43 ) As pessoas designadas são os titulares das ligações Internet cujos nomes são revelados com base nos endereços IP dessas ligações. Não se trata, assim, necessariamente de pessoas que tenham cometido violações.

( 44 ) Acórdão do England and Wales High Court (Chancery Division), de 16 de julho de 2019, Mircom International Content Management & Consulting Ltd & Ors v Virgin Media Ltd & Anor [2019] EWHC 1827.

( 45 ) V., por último, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o. (C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.os 96 a 98 e jurisprudência referida).

( 46 ) V., Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o. (C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.o 100 e jurisprudência referida). V., também, de la Feria, R., Vogenauer, S. (eds.), Prohibition of Abuse of Law: A New General Principle of EU Law?, Hart Publishing, Oxford — Portland, 2011.

( 47 ) Segundo este considerando, «[a]s pessoas com legitimidade para requerer a aplicação das medidas, procedimentos e recursos mencionados devem ser não apenas os titulares de direitos, mas também pessoas com um interesse e uma legitimidade diretos, na medida do permitido e nos termos da legislação aplicável, o que pode incluir as organizações profissionais encarregadas da gestão dos direitos ou da defesa dos interesses coletivos e individuais da sua responsabilidade».

( 48 ) Acórdão de 25 de janeiro de 2017, Stowarzyszenie Oławska Telewizja Kablowa (C‑367/15, EU:C:2017:36, n.o 23 e jurisprudência referida).

( 49 ) Acórdão de 7 de agosto de 2018, C‑521/17, EU:C:2018:639.

( 50 ) Acórdão de 7 de agosto de 2018, SNB‑REACT (C‑521/17, EU:C:2018:639, n.o 34).

( 51 ) Acórdão de 7 de agosto de 2018 (C‑521/17, EU:C:2018:639).

( 52 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014, relativa à gestão coletiva dos direitos de autor e direitos conexos e à concessão de licenças multiterritoriais de direitos sobre obras musicais para utilização em linha no mercado interno (JO 2014, L 84, p. 72).

( 53 ) Acórdão de 19 de abril de 2012, Bonnier Audio e o. (C‑461/10, EU:C:2012:219, n.o 55 e jurisprudência referida).

( 54 ) Acórdão de 19 de abril de 2012, Bonnier Audio e o. (C‑461/10, EU:C:2012:219, n.o 56 e jurisprudência referida).

( 55 ) Acórdão de 18 de outubro de 2018, Bastei Lübbe (C‑149/17, EU:C:2018:841, n.os 51 a 53 e dispositivo).

( 56 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020 (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791).

( 57 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 154).

( 58 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 152).

( 59 ) Trata‑se provavelmente de uma comunicação (v. n.o 152 do mesmo acórdão).

( 60 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 155).

( 61 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 156).

( 62 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 1 do dispositivo).

( 63 ) Os endereços IP das ligações Internet são habitualmente atribuídos de forma «dinâmica», ou seja, é atribuído um novo endereço de cada vez que a ligação Internet arranca, o que permite aos fornecedores de acesso ligar mais clientes do que o número de endereços IP disponíveis. Os dados relativos à atribuição de um endereço IP a um cliente particular devem, portanto, ser rapidamente eliminados.

( 64 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 154).

( 65 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 166).

( 66 ) V. jurisprudência referida nos n.os 96 e 97 das presentes conclusões.

( 67 ) Belgisch Staatsblad, 2005, p. 28070.

( 68 ) Processo C‑520/18, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o.

( 69 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020 (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791).

( 70 ) É certo que a Telenet, bem como a Proximus e a Scarlet Belgium, afirma nas suas observações que esta disposição nacional não permite a comunicação dos endereços IP à Mircom, pondo assim em causa o objeto do processo principal. Não obstante, a apreciação da existência dessa possibilidade e, portanto, da pertinência das questões prejudiciais é da competência do órgão jurisdicional de reenvio. Trata‑se, porém, de uma questão diferente da da validade dessa disposição à luz do direito da União.

( 71 ) Deixo aqui de lado a questão do modo de atuação específico da Mircom, que analisarei em seguida. Não obstante, é certo que o Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791), mencionado nos n.os 98 a 101 das presentes conclusões, propõe uma nova perspetiva sobre essa questão.

( 72 ) Acórdão de 18 de janeiro de 2017, NEW WAVE CZ (C‑427/15, EU:C:2017:18, n.o 20).

( 73 ) Acórdão de 18 de janeiro de 2017, NEW WAVE CZ (C‑427/15, EU:C:2017:18, dispositivo).

( 74 ) Segundo as informações constantes do pedido de decisão prejudicial, o pedido de informação em causa no litígio principal diz respeito a mais de 2000 endereços IP.

( 75 ) Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein (C‑610/15, EU:C:2017:456).

( 76 ) Acórdão de 19 de outubro de 2016, Breyer (C‑582/14, EU:C:2016:779, n.o 49).

( 77 ) V., no que respeita ao artigo 7.o, alínea f), da Diretiva 95/46, equivalente ao artigo 6.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento 2016/679, Acórdão de 4 de maio de 2017, Rīgas satiksme (C‑13/16, EU:C:2017:336, n.o 28).

( 78 ) O termo «peer» designa, em termos estritos, um computador ligado à rede.

( 79 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de outubro de 2018, Bastei Lübbe (C‑149/17, EU:C:2018:841, dispositivo).

( 80 ) V. n.o 126 das presentes conclusões. Acrescento que os meros endereços IP dinâmicos, não associados a ligações Internet concretas, também não constituem dados de tráfego na aceção do artigo 2.o, segundo parágrafo, alínea b), da Diretiva 2002/58.

Top