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Document 62018CC0234

Conclusões da advogada-geral E. Sharpston apresentadas em 31 de outubro de 2019.
Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo contra BP e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Procedimento de perda de ativos obtidos ilegalmente na ausência de condenação penal — Diretiva 2014/42/UE — Âmbito de aplicação — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI.
Processo C-234/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:920

 CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 31 de outubro de 2019 ( 1 )

Processo C‑234/18

Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo

contra

BP,

AB,

PB,

ТRAST B ООD,

AGRO IN 2001 EOOD,

ACCAUNT SERVICE 2009 EOOD,

INVEST MANAGEMENT OOD,

ESTEYD OOD,

BROMAK OOD,

BROMAK FINANCE EAD,

Viva Telecom Bulgaria EAD,

BULGARIAN TELECOMMUNICATIONS COMPANY EAD,

HEDZH INVESTMANT BULGARIA AD,

КЕМIRA OOD,

Dunarit AD,

TEHNOLOGICHEN TSENTAR‑INSTITUT PO MIKROELEKTRONIKA AD,

ЕVROBILD 2003 EOOD,

ТЕCHNOTEL INVEST AD,

КЕN TREYD EAD,

КОNSULT AV EOOD,

Louvrier Investments Company 33 SA,

EFV International Financial Ventures Ltd,

InterV Investment SARL,

LIC Telecommunications SARL,

V Telecom Investment SCA,

V2 Investment SARL,

Empreno Ventures SARL,

sendo interveniente:

Corporate Commercial Bank (em liquidação)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2014/42/UE — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI — Artigos 2.o e 5.o — Perda — Presunção de inocência — Legislação nacional sobre a perda sem condenação penal prévia»

1. 

No presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), são pedidas ao Tribunal de Justiça orientações sobre a interpretação de várias disposições do direito da União relativas à perda de produtos, meios pelos quais as infrações são cometidas («instrumentos») ( 2 ) e bens relacionados com o crime. O contexto é o de processos de perda ao abrigo do direito nacional, perante um tribunal cível, que não estão relacionados com uma condenação penal, e o da questão de saber se tais processos são compatíveis com o direito da União. A resposta ao órgão jurisdicional de reenvio exige que o Tribunal de Justiça se debruce sobre a aplicabilidade ratione materiae e ratione temporis de dois instrumentos da União em matéria de perda, a saber, a Decisão‑Quadro 2005/212/JAI e a Diretiva 2014/42/UE, bem como sobre a relação entre os mesmos.

Direito da União

Tratado da União Europeia

2.

O artigo 31.o, n.o 1, alínea c), do Tratado da União Europeia, na versão aplicável à data em que foi adotada a Decisão‑Quadro, dispõe que a ação em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal terá por objetivo, nomeadamente, «[a]ssegurar a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados‑Membros, na medida do necessário para melhorar a referida cooperação». O seu artigo 34.o, n.o 2, alínea b), confere, assim, poderes ao Conselho, deliberando por unanimidade, por iniciativa de qualquer Estado‑Membro ou da Comissão, para adotar decisões‑quadro «para efeitos de aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados‑Membros. As decisões‑quadro vinculam os Estados‑Membros quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. As decisões‑quadro não produzem efeito direto».

Protocolo n.o 36 Relativo às Disposições Transitórias

3.

O Protocolo n.o 36 organiza a transição entre as disposições institucionais dos Tratados aplicáveis antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e as disposições institucionais previstas neste Tratado ( 3 ). O seu artigo 9.o dispõe que «[o]s efeitos jurídicos dos atos das instituições, órgãos e organismos da União adotados com base no Tratado da União Europeia antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa são preservados enquanto esses atos não forem revogados, anulados ou alterados em aplicação dos Tratados […]».

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

4.

O artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ( 4 ) dispõe que «[t]odo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa».

5.

Nos termos do seu artigo 51.o, n.o 1, as disposições da Carta «têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União […] bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União».

Decisão‑Quadro 2005/212/JAI

6.

Os considerandos da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI contêm as seguintes declarações. A principal motivação da criminalidade organizada além‑fronteiras é o lucro. Por conseguinte, para ser eficaz, qualquer tentativa de prevenir e combater essa criminalidade deverá centrar‑se na deteção, congelamento, apreensão e perda dos produtos do crime. Tal é dificultado pelas diferenças neste domínio entre as legislações dos Estados‑Membros ( 5 ). Assim, nas conclusões do Conselho Europeu de Viena, de dezembro de 1998 ( 6 ), o Conselho Europeu apelou ao reforço da ação da União Europeia contra a criminalidade organizada internacional de acordo com um plano de ação sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de Amesterdão no espaço de liberdade, de segurança e de justiça ( 7 ). Contudo, os instrumentos vigentes nesta área não se têm mostrado suficientes para induzir uma efetiva cooperação além‑fronteiras no que respeita à perda, na medida em que ainda existem vários Estados‑Membros não habilitados a declarar perdidos os produtos de todas as infrações puníveis com pena privativa de liberdade de duração superior a um ano ( 8 ). Assim, o objetivo da Decisão‑Quadro é o de assegurar que todos os Estados‑Membros disponham de regras efetivas que regulem a perda dos produtos do crime, nomeadamente no que respeita ao ónus da prova relativamente à origem dos bens detidos por uma pessoa condenada pela prática de uma infração relacionada com a criminalidade organizada ( 9 ).

7.

O artigo 1.o, terceiro travessão, define «instrumentos» como «quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais». O quarto travessão define «perda» como «uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem».

8.

O artigo 2.o, n.o 1, dispõe que «[c]ada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos». O artigo 2.o, n.o 2, prevê uma derrogação específica quando se trate de «infração fiscal» (que não é definida): em tais casos, os Estados‑Membros «podem utilizar processos não penais para destituir o autor da infração dos produtos desta».

9.

Nos termos do artigo 4.o, «[c]ada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afetadas pelas medidas previstas nos artigos 2.o e 3.o disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos».

10.

O artigo 5.o prevê que a Decisão‑Quadro «não tem por efeito a alteração da obrigação de respeitar os direitos e os princípios fundamentais consagrados no artigo 6.o do Tratado da União Europeia, nomeadamente o da presunção de inocência».

11.

O artigo 7.o exigia que os Estados‑Membros adotassem as medidas necessárias para dar cumprimento à Decisão‑Quadro até 15 de março de 2007.

Diretiva 2014/42

12.

O considerando 5 da Diretiva 2014/42 indica que «[a] adoção de regras mínimas aproximará os regimes de congelamento e de perda dos Estados‑Membros, promovendo, assim, a confiança mútua e uma cooperação transfronteiriça eficaz». O considerando 9 indica que a diretiva visa «alterar e alargar as disposições das Decisões‑Quadro 2001/500/JAI e 2005/212/JAI. Essas decisões‑quadro deverão ser parcialmente substituídas para os Estados‑Membros vinculados pela presente diretiva» ( 10 ).

13.

Nos termos do seu artigo 1.o, n.o 1, a diretiva «estabelece regras mínimas para o congelamento de bens tendo em vista a eventual perda subsequente e para a perda de produtos do crime».

14.

O artigo 2.o, ponto 3, define «instrumentos» de forma idêntica à definição que figura no artigo 1.o, terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI. O ponto 4 define «perda» como a «privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal».

15.

O artigo 3.o define o âmbito de aplicação material da diretiva ( 11 ):

«A presente diretiva é aplicável às infrações penais abrangidas pelos seguintes atos:

a)

Convenção estabelecida com base no artigo K.3, n.o 2, alínea c), do Tratado da União Europeia, relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados‑Membros da União Europeia […];

b)

Decisão‑Quadro 2000/383/JAI do Conselho, de 29 de maio de 2000, sobre o reforço da proteção contra a contrafação de moeda na perspetiva da introdução do euro;

c)

Decisão‑Quadro 2001/413/JAI do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário;

d)

Decisão‑Quadro 2001/500/JAI do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime;

e)

Decisão‑Quadro 2002/475/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo;

f)

Decisão‑Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativa ao combate à corrupção no setor privado;

g)

Decisão‑Quadro 2004/757/JAI do Conselho, de 25 de outubro de 2004, que adota regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis no domínio do tráfico ilícito de droga;

h)

Decisão‑Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada;

i)

Diretiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas, e que substitui a Decisão‑Quadro 2002/629/JAI do Conselho;

j)

Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão‑Quadro 2004/68/JAI do Conselho;

k)

Diretiva 2013/40/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de agosto de 2013, relativa a ataques contra os sistemas de informação e que substitui a Decisão‑Quadro 2005/222/JAI do Conselho,

bem como quaisquer outros atos jurídicos, se os mesmos previrem especificamente que a presente diretiva se aplica às infrações penais neles harmonizadas.»

16.

Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, «[o]s Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos instrumentos e produtos ou dos bens cujo valor corresponda a tais instrumentos ou produtos, sob reserva de uma condenação definitiva por uma infração penal, que também pode resultar de processo à revelia». O artigo 4.o, n.o 2, dispõe que «[s]e não for possível a perda com base no n.o 1, e pelo menos se tal impossibilidade resultar de doença ou de fuga do suspeito ou arguido, os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos instrumentos ou produtos nos casos em que foi instaurado processo penal por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, e em que tal processo possa conduzir a uma condenação penal se o suspeito ou arguido tivesse podido comparecer em juízo».

17.

O artigo 5.o diz respeito à perda alargada de bens pertencentes a pessoas condenadas por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, caso um tribunal conclua que os bens em causa provêm de comportamento criminoso. Inclui uma lista não exaustiva de «infrações penais» às quais, «pelo menos», deve ser aplicável.

18.

O artigo 6.o, n.o 1, prevê a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda.

19.

O artigo 8.o, n.o 1, dispõe que «[o]s Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na presente diretiva tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, para defender os seus direitos».

20.

O artigo 12.o fixa o prazo de transposição para dar cumprimento à diretiva em 4 de outubro de 2016.

21.

O artigo 14.o, n.o 1, dispõe que «[s]ão substituídos pela presente diretiva, para os Estados‑Membros que a ela estão vinculados […] o artigo 1.o, primeiro ao quarto travessões, e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, sem prejuízo das obrigações desses Estados‑Membros quanto ao prazo de transposição destas decisões‑quadro para o direito nacional». O artigo 14.o, n.o 2, precisa que, «[p]ara os Estados‑Membros que estão vinculados à presente diretiva, as referências […] às disposições das Decisões‑Quadro 2001/500/JAI e 2005/212/JAI, que são referidas no n.o 1, devem ser entendidas como referências à presente diretiva».

22.

O artigo 15.o dispõe que a diretiva entra em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação no Jornal Oficial (29 de abril de 2014) ( 12 ).

Direito nacional

Lei Relativa à Perda de Bens Obtidos Ilegalmente

23.

Em 2012, a Bulgária adotou a Zakon za otnemane v polza na darzhavata na nezakonno pridobito imushtestvo (Lei Relativa à Perda de Bens Obtidos Ilegalmente, a seguir «Lei de 2012»), que entrou em vigor em 19 de novembro de 2012. Esta lei foi revogada pela Zakon za protivodeystvie na koruptsiata i za otnemane na nezakonno pridobito imushtestvo (Lei Relativa à Luta Contra a Corrupção e à Perda de Bens Obtidos Ilegalmente), que foi publicada em 19 de janeiro de 2018. Por força do § 5, n.o 1, desta última, as investigações e os processos iniciados ao abrigo da Lei de 2012 devem ser concluídos, em conformidade com as disposições desta lei, pela Comissão encarregada da luta contra a corrupção e da apreensão de bens obtidos ilegalmente (a seguir «Comissão de luta contra a corrupção»).

24.

O artigo 1.o, n.o 1, da lei indica que o objetivo desta consiste em regular os requisitos e procedimentos para a perda de bens obtidos ilegalmente. Nos termos do artigo 1.o, n.o 2, consideram‑se bens obtidos ilegalmente os bens para cuja aquisição não seja identificada qualquer fonte legal.

25.

O artigo 5.o, n.o 1, institui a Comissão de luta contra a corrupção como autoridade nacional independente, especializada e permanente.

26.

O artigo 2.o dispõe que «[o] processo regulado pela presente lei é conduzido independentemente de qualquer processo penal contra a pessoa investigada e/ou contra pessoas com ela relacionadas».

27.

Nos termos do artigo 21.o, n.o 1, a Comissão de luta contra a corrupção instaura processos quando tenha motivos razoáveis para suspeitar que determinados bens foram adquiridos ilegalmente. O artigo 21.o, n.o 2, dispõe que existem motivos razoáveis quando se verifique, após uma investigação, que existe uma diferença substancial quanto aos bens detidos pelas pessoas investigadas. O artigo 22.o, n.o 1, precisa ainda que «a investigação prevista no artigo 21.o, n.o 2, é iniciada […] quando uma pessoa for acusada da prática de uma infração penal prevista nos […] artigos 201.o a 203.o do [Código Penal]».

28.

O artigo 66.o, n.os 1 e 2, trata dos bens transferidos para pessoas coletivas ou por elas controlados. Dispõe que «[s]erão declarados perdidos os bens que a pessoa investigada tenha transferido para uma pessoa coletiva ou para o capital de uma pessoa coletiva como contribuição monetária ou de outro tipo, se as pessoas que gerem ou controlam essa pessoa coletiva sabiam ou, tendo em conta as circunstâncias, podiam presumir que os bens tinham sido obtidos ilegalmente»; e que «[s]erão igualmente declarados perdidos os bens obtidos ilegalmente por uma pessoa coletiva que, de maneira autónoma ou conjunta, é controlada pela pessoa investigada ou por pessoas a ela ligadas».

Código Penal

29.

O artigo 203.o, n.o 1, do Nakazatelen kodeks (Código Penal) classifica o desvio de fundos em grande escala cometido por um dirigente como desvio de fundos particularmente grave, punível com pena privativa de liberdade de 10 a 20 anos.

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

30.

Em 28 de julho de 2014, o Ministério Público de Sófia informou a Comissão de luta contra a corrupção de que BP era arguido num inquérito pelo facto de (com a participação de outros), entre dezembro de 2011 e 19 de junho de 2014, na sua qualidade de dirigente [presidente do conselho de supervisão da Korporativna targovska banka AD (a seguir «Banco»)], ter instigado outras pessoas a desviar fundos pertencentes ao Banco que lhes tinham sido entregues ou confiados para guarda ou gestão. Os montantes ascendiam a mais de 205 milhões de BGN (cerca de 105 milhões de euros). Os factos sugeriam, portanto, que tinha sido cometido um crime de desvio de fundos, na aceção do artigo 203.o, n.o 1, do Código Penal.

31.

Em 5 de agosto de 2014, a Comissão de luta contra a corrupção deu início a uma investigação, relativa ao período compreendido entre 4 de agosto de 2004 e 4 de agosto de 2014, que revelou irregularidades significativas no que respeita ao património pessoal de BP. Durante essa investigação, a Comissão de luta contra a corrupção fez uma análise da situação financeira e das transações realizadas pelas sociedades comerciais demandadas que alegadamente tinham agido conjuntamente com BP ou eram por ele controladas. Essa análise concluiu que algumas transações tinham sido realizadas com recursos obtidos ilegalmente, ao passo que outras não tinham sido efetivamente realizadas, mas tinham servido para dissimular bens ou recursos de origem ilegal, e que os fundos provinham de créditos não garantidos, concedidos pelo Banco, que tinham levado à insolvência deste.

32.

Em 14 de maio de 2015, a Comissão de luta contra a corrupção deu início a um processo no órgão jurisdicional de reenvio para obter o congelamento de bens alegadamente obtidos de forma ilegal por BP e por outras pessoas singulares e coletivas, que se presumia estarem com ele relacionadas ou sob o seu controlo (a seguir «pedido de congelamento»). Em 20 e 28 de maio de 2015, o órgão jurisdicional de reenvio adotou medidas para congelar os bens cuja perda é requerida.

33.

As presentes ações perante o órgão jurisdicional de reenvio, relativas à perda dos bens alegadamente obtidos de forma ilegal, foram intentadas em 22 de março de 2016.

34.

Foi instaurado um processo penal contra BP e outras pessoas no Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) em 2017, que estava ainda pendente à data do pedido de decisão prejudicial.

35.

O órgão jurisdicional de reenvio observa que, nos termos da legislação nacional aplicável à data dos factos, os processos cíveis relativos à perda de bens como os que lhe foram submetidos tramitam independentemente da questão de saber se a pessoa investigada foi condenada por sentença penal transitada em julgado. Expressa dúvidas quanto à compatibilidade dessa legislação com as normas mínimas relativas à perda de bens previstas na Diretiva 2014/42, que dispõe que a perda pode ser declarada quanto a bens que tenham sido obtidos através de uma infração penal pela qual o autor tenha sido condenado por sentença transitada em julgado.

36.

O órgão jurisdicional de reenvio submete, assim, as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 […], que estabelece “regras mínimas para o congelamento de bens tendo em vista a eventual perda subsequente e para a perda de produtos do crime”, ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros aprovar disposições sobre a perda civil, não baseada numa condenação?

2)

Decorre do artigo 1.o, n.o 1, atendendo ao artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 […] que o início de um processo penal contra a pessoa cujos bens são objeto de perda é, só por si, suficiente para iniciar e conduzir um processo civil de perda?

3)

É admissível proceder a uma interpretação extensiva dos motivos do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2014/42 […] que permite uma perda civil, não baseada numa condenação?

4)

Deve o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 […] ser interpretado no sentido de que a simples discrepância entre o património de uma pessoa e os seus rendimentos legais é suficiente para justificar que um direito de propriedade seja confiscado como produto direto ou indireto de uma infração penal, sem que exista uma sentença transitada em julgado que declare que a pessoa cometeu a infração penal?

5)

Deve o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 […] ser interpretado no sentido de que prevê a perda de bens de terceiros como medida complementar ou alternativa ou como medida complementar da perda alargada?

6)

Deve o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 […] ser interpretado no sentido de que garante a aplicação da presunção de inocência e proíbe uma perda não baseada numa condenação?»

37.

Foram apresentadas observações escritas pela Comissão de luta contra a corrupção, por BP, AB, PB e pela Trast B OOD conjuntamente, pela Dunarit AD, pela AGRO IN 2001 EOOD e pelo Banco, pelos Governos búlgaro, checo e irlandês, bem como pela Comissão Europeia. Na audiência de 5 de junho de 2019, foram apresentadas alegações pela Comissão de luta contra a corrupção, por BP, AB, PB e pela Trast B OOD, pela Dunarit AD, pelo Banco, pelos Governos búlgaro e irlandês, bem como pela Comissão.

Apreciação

38.

Este processo apresenta certas particularidades que exigem que o Tribunal de Justiça se afaste das questões que lhe foram efetivamente submetidas, a fim de prestar ao órgão jurisdicional de reenvio orientações úteis sobre os problemas suscitados.

39.

As questões submetidas partem da simples premissa de que a Diretiva 2014/42 é aplicável ao caso em apreço. Contudo, parece‑me que é necessária uma análise mais aprofundada para determinar o direito da União aplicável ratione temporis e ratione materiae. Importa também analisar a relação entre as disposições desta diretiva e as da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI.

40.

Depois de examinar estas questões, passarei ao cerne das questões prejudiciais, concentrando‑me (conforme solicitado pelo Tribunal de Justiça) na interpretação dos artigos 2.o e 5.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI.

Direito da União aplicável ratione materiae

41.

Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar a natureza exata das infrações notificadas pelo Ministério Público de Sófia à Comissão de luta contra a corrupção que estão na origem do presente processo. Dito isto, parece‑me que o desvio de fundos, conforme descrito no despacho de reenvio, não se encontra entre as infrações abrangidas pelo âmbito de aplicação dos atos enumerados no artigo 3.o da Diretiva 2014/42. Daqui decorre, como foi alegado pelos Governos búlgaro e checo, que o objeto do processo nacional não é abrangido pelo âmbito de aplicação material da Diretiva 2014/42.

42.

Pelo contrário, a Decisão‑Quadro 2005/212/JAI aplica‑se à perda de instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa de liberdade de duração superior a um ano. Daqui resulta que infrações penais como as do caso em apreço, que são puníveis com pena privativa de liberdade de 10 a 20 anos, são abrangidas pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro. Esta conclusão não prejudica a questão de saber se o processo no caso em apreço corresponde ou não a uma «perda», na aceção do artigo 1.o, quarto travessão, da referida decisão‑quadro.

Direito da União aplicável ratione temporis

43.

No caso em apreço, existem dois processos nacionais paralelos. Por um lado, existe um processo penal, por desvio de fundos, instaurado no Tribunal Criminal Especial em 2017 e que estava pendente à data do pedido de decisão prejudicial. Por outro lado, existe um processo que, nos termos do direito nacional, é classificado como processo cível e que foi iniciado com o pedido de congelamento em 14 de maio de 2015 e o consequente congelamento dos bens alegadamente obtidos de forma ilegal, ordenado pelo órgão jurisdicional de reenvio em 20 e 28 de maio de 2015. Este processo continuou com os pedidos de perda desses bens, que foram apresentados pela Comissão de luta contra a corrupção em 22 de março de 2016 e estão atualmente pendentes.

44.

Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar as datas relevantes, mas parece‑me que o prazo fixado para a transposição da Diretiva 2014/42 expirou em 4 de outubro de 2016. Esta diretiva é relevante ratione temporis para o presente processo? Embora a diretiva não seja aplicável ratione materiae, a questão é importante porque a diretiva substitui certas disposições da Decisão‑Quadro.

45.

É jurisprudência constante que uma diretiva só pode ter efeito direto após expirar o prazo fixado para a sua transposição na ordem jurídica dos Estados‑Membros ( 13 ). Assim, a Diretiva 2014/42 não pode ser invocada perante os órgãos jurisdicionais nacionais relativamente a um processo instaurado em 22 de março de 2016, antes de expirar o prazo fixado para a sua transposição. Durante esse prazo, os Estados‑Membros devem, no entanto, abster‑se de adotar disposições suscetíveis de comprometer seriamente o resultado prescrito por essa diretiva ( 14 ).

46.

Daqui resulta que o ato da União pertinente para efeitos da perda dos bens relacionados com o crime aplicável à data dos factos é a Decisão‑Quadro 2005/212/JAI.

Decisão‑Quadro 2005/212/JAI após a entrada em vigor da Diretiva 2014/42

47.

Em conformidade com o artigo 9.o, n.o 1, do Protocolo n.o 36 Relativo às Disposições Transitórias, a Diretiva 2014/42 alterou a Decisão‑Quadro 2005/212/JAI a partir da entrada em vigor da diretiva (20 dias após a sua publicação no Jornal Oficial de 29 de abril de 2014).

48.

O âmbito de aplicação da diretiva é limitado aos domínios de criminalidade enumerados no artigo 83.o, n.o 1, TFUE. Tal implica que as disposições existentes da União em matéria de perda permanecem em vigor de modo que assegure um certo grau de harmonização quanto às atividades criminosas que não se inserem no âmbito de aplicação da Diretiva 2014/42. Consequentemente, os artigos 2.o, 4.o e 5.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI permanecem em vigor ( 15 ).

49.

Especificamente, o artigo 14.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2014/42 prevê que esta diretiva substitui os quatro primeiros travessões do artigo 1.o e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI para os Estados‑Membros que a ela estão vinculados e que as referências aos artigos substituídos da Decisão‑Quadro «devem ser entendidas como referências à presente diretiva».

50.

Coloca‑se então a seguinte questão: estas disposições devem ser interpretadas como parte da diretiva ou da Decisão‑Quadro?

51.

Na minha opinião, uma vez que estas disposições resultam da diretiva, são os objetivos e a economia da diretiva que devem orientar a sua interpretação, e não os da Decisão‑Quadro. É o que corresponde à redação clara do artigo 14.o, n.o 2, da diretiva. Esta posição respeita igualmente a necessidade de uma interpretação uniforme do direito da União: as mesmas disposições não podem ser interpretadas de forma diferente consoante sejam lidas no contexto da diretiva ou no contexto da Decisão‑Quadro.

52.

Na medida em que uma decisão‑quadro não tenha sido «revogad[a], anulad[a] ou alterad[a]», nos termos do artigo 9.o do Protocolo n.o 36 Relativo às Disposições Transitórias, mantém a sua natureza jurídica. Quando uma disposição individual é alterada (ou, no caso em apreço, substituída) por uma diretiva, é apenas a natureza jurídica individual dessa disposição que é alterada. Mas a alteração de uma disposição individual não pode alterar a natureza jurídica da totalidade do instrumento jurídico que contém essa disposição. Pelo contrário, o que acontece neste caso é que a decisão‑quadro original se torna um instrumento jurídico misto que contém elementos tanto da decisão‑quadro como da diretiva ( 16 ).

53.

A particularidade do caso em apreço é que os processos nacionais de perda foram iniciados depois da entrada em vigor da diretiva (e, por conseguinte, depois de o texto da Decisão‑Quadro ter sido alterado), mas antes de expirar o prazo estabelecido para a sua transposição para o direito nacional.

54.

As disposições da diretiva que substituíram os quatro primeiros travessões do artigo 1.o e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI não podiam, portanto, ser invocadas perante os órgãos jurisdicionais nacionais antes de 4 de outubro de 2016. Assim, para efeitos do presente processo, a Decisão‑Quadro continua a ser aplicável na sua forma inalterada. Contudo, durante o prazo fixado para a transposição para o direito nacional, os Estados‑Membros devem abster‑se de adotar disposições suscetíveis de comprometer seriamente o resultado prescrito pelas disposições da diretiva que altera a Decisão‑Quadro ( 17 ). Recordo, a este respeito, que a jurisprudência do Acórdão Pupino, que exige que os órgãos jurisdicionais nacionais interpretem o direito nacional, na medida do possível, à luz do teor e da finalidade das decisões‑quadro, a fim de atingir o resultado visado, continua a ser extremamente importante ( 18 ).

Problemas suscitados pelas questões prejudiciais

55.

Com as suas primeira a quarta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se processos nacionais de perda como os do caso em apreço (que são iniciados depois de instaurado o processo penal, mas em que a perda é declarada sem que tenha havido condenação) são compatíveis com várias disposições da Diretiva 2014/42.

56.

Com a sua sexta questão, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta preocupações quanto à aplicação da presunção de inocência, na medida em que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 se opõe à perda que não se baseie numa condenação penal.

57.

Examinarei as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz do direito da União aplicável ratione materiae e ratione temporis, ou seja, da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, em particular dos seus artigos 2.o e 5.o (conforme solicitado pelo Tribunal de Justiça). Não abordarei a quinta questão do órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que só é relevante no contexto do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42, que não é aplicável ao caso em apreço.

Perda no âmbito da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI

58.

O artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI introduz a obrigação de os Estados‑Membros tomaram as medidas necessárias que permitam a perda dos instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano. A perda é definida no artigo 1.o, quarto travessão, da Decisão‑Quadro, como «uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem» ( 19 ).

59.

É possível interpretar estas disposições da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, antes da sua alteração pela Diretiva 2014/42 ter produzido efeitos, no sentido de que se opõem à possibilidade de os Estados‑Membros aplicarem um regime de perda, como o do caso em apreço, em que a perda não depende de uma condenação penal transitada em julgado?

60.

Na minha opinião, a resposta é negativa.

61.

A Decisão‑Quadro 2005/212/JAI tem como base jurídica o título VI do Tratado da União Europeia, relativo à cooperação policial e judiciária em matéria penal e, em particular, os seus artigos 29.o, 31.o, alínea c), e 34.o, n.o 2, alínea b). Assim, o objetivo da Decisão‑Quadro consiste em assegurar a compatibilidade das regras aplicáveis nos Estados‑Membros, na medida necessária para melhorar a cooperação judiciária em matéria penal, através da aproximação das suas leis e regulamentos, e em assegurar que todos dispõem de regras efetivas que regulem a perda dos produtos do crime ( 20 ). A Decisão‑Quadro 2005/212/JAI está associada à adoção da Decisão‑Quadro 2006/783/JAI, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda, cujo objetivo consiste em estabelecer as regras segundo as quais um Estado‑Membro reconhecerá e executará no seu território as decisões de perda proferidas por um tribunal competente em matéria penal de outro Estado‑Membro ( 21 ).

62.

A nota justificativa da iniciativa do Reino da Dinamarca tendo em vista um projeto de decisão‑quadro sobre o confisco de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime apresenta a decisão‑quadro proposta como um «instrumento horizontal» que determine, sem ambiguidade, quais as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros em matéria de confisco ( 22 ).

63.

Decorre da base jurídica, do objetivo da Decisão‑Quadro e do contexto em que foi adotada que se trata de um instrumento: i) relativo apenas a questões penais; ii) destinado a assegurar a compatibilidade das legislações dos Estados‑Membros na medida necessária para a cooperação entre eles; iii) que introduz a obrigação de os Estados‑Membros tomarem as medidas necessárias para declarar perdidos os instrumentos e produtos relacionados com o crime; e iv) que aproxima as legislações dos Estados‑Membros nos domínios abrangidos, a fim de facilitar o reconhecimento mútuo das decisões de perda. Trata‑se de uma aproximação mínima das legislações («na medida necessária para a cooperação»).

64.

Nos termos da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, os instrumentos e produtos de infrações penais estão sujeitos a perda (artigo 2.o, n.o 1) decretada por um tribunal em consequência de um processo «relativ[o] a uma ou várias infrações penais» (artigo 1.o, quarto travessão). Esta definição corresponde à definição constante do artigo 1.o, alínea d), da Convenção do Conselho da Europa, de 8 de novembro de 1990, relativa ao branqueamento, deteção, apreensão e perda dos produtos do crime ( 23 ). Importa recordar, a este respeito, que o âmbito de aplicação desta convenção é limitado a atividades criminosas ou atos relacionados com atividades criminosas ( 24 ). A base jurídica, o contexto e a letra da Decisão‑Quadro indicam que deve ser abordada de modo semelhante.

65.

Os processos penais são os processos iniciados quando é comunicado à pessoa em causa que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e prosseguem até à decisão definitiva sobre a questão de saber se essa pessoa cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado ( 25 ).

66.

É manifesto que os processos em causa submetidos ao órgão jurisdicional nacional não são «processos penais». Com base nos elementos dos autos, concluo que também não se trata de processos «relativos a uma ou várias infrações penais», na aceção do artigo 1.o, quarto travessão, da Decisão‑Quadro.

67.

Embora incumba ao órgão jurisdicional nacional verificar estas questões, tais processos foram descritos perante o Tribunal de Justiça como processos cíveis (que coexistem com um regime de perda de direito penal). Têm apenas um ponto de contacto com o processo penal: são iniciados pela autoridade nacional independente quando esta é informada de que uma pessoa foi acusada de uma determinada infração penal. Uma vez iniciado, o processo cível tramita independentemente do processo penal contra a pessoa investigada (v. artigo 2.o da Lei de 2012). O processo cível incide sobre os bens (não sobre a pessoa investigada). A origem e o modo de aquisição dos bens são investigados a fim de determinar se devem ser congelados e/ou, em devido tempo, declarados perdidos. A perda mantém‑se independente do resultado do processo penal. Não está associada à questão de saber se é provada a infração penal da pessoa investigada.

68.

Por conseguinte, concordo com a afirmação da Comissão na audiência segundo a qual esse regime de perda não está abrangido pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro. Chegaria à mesma conclusão com base na letra do artigo 1.o, quarto travessão, da Decisão‑Quadro, conforme alterado pela Diretiva 2014/42. Embora a definição de «perda» tenha sido modificada ( 26 ), a formulação essencial «relativamente a uma ou várias infrações penais» não sofreu alterações.

69.

Não creio que esta conclusão seja afetada pelo facto de o artigo 2.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro prever que os Estados‑Membros podem utilizar processos não penais para privar o autor de infrações fiscais dos produtos das mesmas ( 27 ). A redação desta disposição mantém uma ligação clara com o processo penal («autor» e «produtos [da infração]»). Não pode ser interpretada no sentido de alargar o âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro a uma perda que não esteja relacionada com um processo penal.

70.

Por uma questão de exaustividade, acrescento apenas que, se o processo principal for considerado relacionado com um processo penal e, por conseguinte, abrangido pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro, nada nesta decisão‑quadro (ao contrário da Diretiva 2014/42) faz depender a perda de uma condenação penal definitiva. O seu artigo 1.o, quarto travessão, define a perda como «uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem». A Decisão‑Quadro é omissa quanto ao resultado do processo penal. É inteiramente verdade que a perda no contexto da diretiva ocorre «sob reserva de uma condenação definitiva por uma infração penal» (artigo 4.o, n.o 1) ( 28 ). Mas este artigo não é um dos que substituíram artigos da Decisão‑Quadro.

71.

Concluo, portanto, que a Decisão‑Quadro 2005/212/JAI não se opõe a processos de perda como os que estão pendentes no órgão jurisdicional nacional, quando tais processos não sejam «relativos a uma ou várias infrações penais» e o seu resultado não dependa de uma condenação penal.

Presunção de inocência

72.

O artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI reitera a obrigação de respeitar a presunção de inocência. A presunção de inocência é reconhecida pelo artigo 48.o, n.o 1, da Carta.

73.

É jurisprudência constante que os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União devem ser aplicados em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações ( 29 ).

74.

Pelas razões acima expostas, os processos de perda como o pendente no órgão jurisdicional de reenvio não podem ser considerados «relativo[s] a uma […] infraç[ão] pena[l]» abrangidos pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro. O artigo 5.o da Decisão‑Quadro e o artigo 48.o da Carta não são, por conseguinte, aplicáveis ao caso em apreço.

Conclusão

75.

À luz de todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Sofyski Gradski Sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) do seguinte modo:

«A Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime, não se opõe a processos de perda como os que estão pendentes no órgão jurisdicional nacional, quando tais processos não sejam “relativos a uma ou várias infrações penais” e o seu resultado não dependa de uma condenação penal.»


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Esta curiosa palavra [N. do T.: «instrumentalities» na versão original das conclusões] é definida no artigo 1.o, terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime [JO 2005, L 68, p. 49 (a seguir «Decisão‑Quadro 2005/212/JAI» ou «Decisão‑Quadro»)] e no artigo 2.o, ponto 3, da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014 (JO 2014, L 127, p. 39), conforme retificada pela Retificação da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (JO 2014, L 138, p. 114) (v. n.os 7 e 14, infra).

( 3 ) V. primeiro considerando do Protocolo n.o 36 Relativo às Disposições Transitórias do TFUE.

( 4 ) JO 2007, C 303, p. 1.

( 5 ) Considerando 1.

( 6 ) V. Plano de ação do Conselho e da Comissão sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de Amesterdão relativas à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça — Texto aprovado pelo Conselho Justiça e Assuntos Internos de 3 de dezembro de 1998 (JO 1999, C 19, p. 1).

( 7 ) Considerando 2.

( 8 ) Considerando 9.

( 9 ) Considerando 10.

( 10 ) O Reino Unido e a Dinamarca não participaram na adoção da Diretiva 2014/42, que não os vinculava nem se lhes aplicava. V., respetivamente, considerandos 43 e 44 da diretiva.

( 11 ) Por uma questão de legibilidade, omiti a longa série de referências ao JO que acompanham esta lista — constam da própria Diretiva 2014/42.

( 12 ) 29 de abril de 2014 é a data da publicação «original» da diretiva no Jornal Oficial, que foi seguida da publicação de uma retificação (v. nota 2) e de uma versão consolidada de 19 de maio de 2014.

( 13 ) V. Acórdão de 17 de janeiro de 2008, Velasco Navarro (C‑246/06, EU:C:2008:19, n.o 25 e jurisprudência referida).

( 14 ) V., nomeadamente, Acórdão de 18 de dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonie (C‑129/96, EU:C:1997:628, n.o 45).

( 15 ) É esta, com efeito, a posição expressa no ponto 2.3 da Exposição de motivos da proposta da Comissão de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre o congelamento e o confisco do produto do crime na União Europeia, COM(2012) 85 final.

( 16 ) A posição que aqui defendo corresponde a uma das duas formas possíveis de interpretar as decisões‑quadro examinadas por Satzger, H., «Legal effects of directives amending or repealing Pre‑Lisbon framework decisions», New Journal of European Criminal Law, vol. 6, n.o 4, 2015, pp. 528‑537. A segunda forma possível, que este autor rejeita, consiste em aceitar que as decisões‑quadro, ao serem «tocadas» por uma diretiva de alteração, se transformam em diretivas (um equivalente legislativo ao toque de ouro de Midas). A aceitar esta ideia, os instrumentos jurídicos que não foram adotados com as salvaguardas aplicáveis às diretivas (atendendo, em particular, ao papel do Parlamento Europeu em cada um dos processos legislativos) adquiririam automaticamente os efeitos jurídicos das diretivas. Por conseguinte, não subscrevo a posição seguida por F. Zeder segundo a qual os artigos 9.o e 10.o, n.o 2, do Protocolo n.o 36 Relativo às Disposições Transitórias, lidos em conjunto, só podem ser entendidos no sentido de que «qualquer alteração de uma disposição de um ato implica a “lisbonização” do ato na sua totalidade» (v. Zeder, F. «Typology of pre‑Lisbon acts and their legal effects according to Protocol No 36», New Journal of European Criminal Law, vol. 6, n.o 4, 2015, p. 487).

( 17 ) V. n.o 45 e nota 13, supra.

( 18 ) Acórdão de 16 de junho de 2005, Pupino (C‑105/03, EU:C:2005:386, n.o 43). V., igualmente, Lenaerts, K., «The contribution of the European Court of Justice to the area of freedom, security and justice», International and comparative law quarterly, vol. 59, n.o 2, 2010, pp. 255‑301, 271.

( 19 ) A definição de perda constante do artigo 2.o, ponto 4, da Diretiva 2014/42 como «privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal» é ligeiramente diferente. Esta definição substitui a da Decisão‑Quadro, conforme se explicou nos n.os 49 e 54, supra.

( 20 ) V. artigo 31.o, n.o 1, alínea c), do Tratado da União Europeia e considerando 10 da Decisão‑Quadro.

( 21 ) Decisão‑Quadro 2006/783/JAI do Conselho, de 6 de outubro de 2006 (JO 2006, L 328, p. 59). V. considerando 10 da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI.

( 22 ) Comunicação do Reino da Dinamarca, Documento do Conselho n.o 9956/02 ADD 1 (a seguir «nota justificativa da iniciativa dinamarquesa»).

( 23 ) V. nota justificativa da iniciativa dinamarquesa, p. 5. Observo, a este respeito, que o artigo 3.o da Decisão‑Quadro do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime (JO 2001, L 182, p. 1), remete, quanto à definição do termo «perda», no contexto dessa decisão‑quadro, para a referida Convenção.

( 24 ) V. Relatório explicativo da Convenção do Conselho da Europa relativa ao branqueamento, deteção, apreensão e perda dos produtos do crime, de 8 de novembro de 1990, pp. 6 e 7.

( 25 ) V., neste sentido, mas no que respeita ao artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal (JO 2010, L 280, p. 1), Acórdão de 9 de junho de 2016, Balogh (C‑25/15, EU:C:2016:423, n.o 36).

( 26 ) V. n.o 14, supra. [N. do T.: Apesar de a formulação na diretiva ser «relativamente a uma infração penal», a definição manteve inalterado o seu sentido].

( 27 ) V. n.o 8, supra.

( 28 ) V. n.o 16, supra.

( 29 ) No Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 21), o Tribunal de Justiça Tribunal declarou que «[a] aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta» (o sublinhado é meu). V., igualmente, Acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 49).

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