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Documento 62021CJ0660

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 22 de junho de 2023.
Processo penal contra K.B. e F.S.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal correctionnel de Villefranche-sur-Saône.
Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2012/13/UE — Artigos 3.o e 4.o — Dever de as autoridades competentes informarem prontamente os suspeitos e os acusados sobre o seu direito ao silêncio — Artigo 8.o, n.o 2 — Direito de invocar a violação desse dever — Legislação nacional que impede o juiz penal que aprecia o objeto do processo de conhecer oficiosamente semelhante violação — Artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Processo C-660/21.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:498

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

22 de junho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2012/13/UE — Artigos 3.o e 4.o — Dever de as autoridades competentes informarem prontamente os suspeitos e os acusados sobre o seu direito ao silêncio — Artigo 8.o, n.o 2 — Direito de invocar a violação desse dever — Legislação nacional que impede o juiz penal que aprecia o objeto do processo de conhecer oficiosamente semelhante violação — Artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

No processo C‑660/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo tribunal correctionnel de Villefranche‑sur‑Saône (Tribunal Correcional de Villefranche‑sur‑Saône, França), por Decisão de 26 de outubro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de outubro de 2021, no processo penal

Procurador da República

contra

K.B.,

F.S.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, C. Lycourgos, E. Regan, M. Safjan (relator), P. G. Xuereb, L. S. Rossi, D. Gratsias e M. L. Arastey Sahún, presidentes de secção, S. Rodin, F. Biltgen, N. Piçarra, I. Ziemele e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: S. Beer, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 20 de setembro de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação de K.B., por C. Lallich e B. Thellier de Poncheville, avocats,

em representação de F.S., por B. Thellier de Poncheville e S. Windey, avocates,

em representação do Governo francês, por A. Daniel e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

em representação da Irlanda, por M. Browne, Chief State Solicitor, A. Joyce, M. Lane e J. Quaney, na qualidade de agentes, assistidos por R. Farrell, SC, D. Fennelly, BL e P. Gallagher SC,

em representação da Comissão Europeia, por A. Azéma e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de janeiro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 3.o e 4.o da Diretiva (UE) 2012/13 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1), do artigo 7.o da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1), e do artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra K.B. e F.S. por crimes de furto de combustível.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2012/13

3

Os considerandos 3, 4, 10, 14, 19 e 36 da Diretiva 2012/13 têm a seguinte redação:

«(3)

A aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais pressupõe a confiança mútua dos Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal. A dimensão do reconhecimento mútuo depende estreitamente de certos parâmetros, entre os quais figuram os regimes de garantia dos direitos dos suspeitos e dos acusados e a definição de normas mínimas comuns necessárias para facilitar a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo.

(4)

O reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal só pode funcionar eficazmente num clima de confiança em que, não só as autoridades judiciais, mas também todos os intervenientes no processo penal, considerem as decisões das autoridades judiciais dos outros Estados‑Membros como equivalentes às suas, o que implica confiança não apenas na adequação nas regras dos outros Estados‑Membros, mas também na sua correta aplicação.

[…]

(10)

As regras mínimas comuns deverão contribuir para o reforço da confiança nos sistemas de justiça penal de todos os Estados‑Membros, o que, por seu turno, deverá conduzir ao aumento da eficiência da cooperação judicial num clima de confiança mútua. Essas regras mínimas comuns deverão ser estabelecidas no domínio da informação em processo penal.

[…]

(14)

A presente diretiva […] [e]stabelece normas mínimas comuns a aplicar no domínio da informação a prestar aos suspeitos ou acusados de terem cometido uma infração penal no que se refere aos seus direitos e sobre a acusação contra eles formulada, com o objetivo de reforçar a confiança mútua entre os Estados‑Membros. A presente diretiva alicerça‑se nos direitos estabelecidos na Carta, nomeadamente nos artigos 6.o, 47.o e 48.o, que por sua vez assentam nos artigos 5.o e 6.o da [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950] conforme interpretados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. […]

[…]

(19)

As autoridades competentes deverão informar prontamente os suspeitos ou acusados acerca desses direitos, tal como aplicáveis ao abrigo do direito nacional, que sejam essenciais para salvaguardar a equidade do processo, oralmente ou por escrito, como previsto pela presente diretiva. A fim de permitir o exercício prático e efetivo desses direitos, as informações deverão ser prestadas prontamente, no decurso do processo e o mais tardar antes da primeira entrevista oficial do suspeito ou acusado, pela polícia ou por outra autoridade competente.

[…]

(36)

Os suspeitos ou acusados, ou os seus advogados, deverão ter o direito de impugnar, nos termos do direito nacional, a eventual recusa ou omissão das autoridades competentes de prestarem informações ou de revelarem certos elementos do processo nos termos da presente diretiva. Esse direito não implica a obrigação de os Estados‑Membros estabelecerem um processo de recurso específico, um regime autónomo ou um procedimento de reclamação pelo qual essa omissão ou recusa possa ser impugnada.»

4

O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Direito a ser informado sobre os direitos», dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:

a)

O direito de assistência de um advogado;

b)

O direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção;

c)

O direito de ser informado da acusação, nos termos do artigo 6.o;

d)

O direito à interpretação e tradução;

e)

O direito ao silêncio.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que as informações prestadas por força do n.o 1 devem ser dispensadas oralmente ou por escrito, em linguagem simples e acessível, tendo em conta as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis.»

5

O artigo 4.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Carta de Direitos aquando da privação da liberdade», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que seja prontamente entregue uma Carta de Direitos por escrito aos suspeitos ou acusados que forem detidos ou presos. Estes devem ter a oportunidade de ler a Carta de Direitos e devem poder conservá‑la na sua posse durante todo o período em que estiverem privados da sua liberdade.

2.   Para além das informações que constam do artigo 3.o, a Carta de Direitos a que se refere o n.o 1 do presente artigo deve conter informações acerca dos seguintes direitos, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional:

a)

O direito de acesso aos elementos do processo;

b)

O direito a que as autoridades consulares e uma pessoa sejam informadas;

c)

O direito de acesso a assistência médica urgente; e

d)

O número máximo de horas ou dias que os suspeitos ou acusados podem ser privados de liberdade antes de comparecerem perante uma autoridade judicial.

3.   A Carta de Direitos contém também informações de base acerca de todas as possibilidades, nos termos do direito nacional, de impugnar a legalidade da detenção, de obter a revisão da detenção ou de requerer a libertação provisória.

4.   A Carta de Direitos deve ser redigida em linguagem simples e acessível. Um modelo da Carta de Direitos figura, a título indicativo, no Anexo I.

5.   Os Estados‑Membros asseguram que a Carta de Direitos seja facultada aos suspeitos ou acusados por escrito numa língua que estes compreendam. Caso a Carta de Direitos não esteja disponível na língua adequada, os suspeitos ou acusados devem ser informados dos seus direitos oralmente numa língua que compreendam. Uma Carta de Direitos numa língua que os suspeitos ou acusados compreendam deve ser‑lhes subsequentemente entregue sem demora indevida.»

6

O artigo 8.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Verificação e vias de recurso», tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que, sempre que forem prestadas informações aos suspeitos ou acusados nos termos dos artigos 3.o a 6.o, tal seja consignado em registo, lavrado de acordo com o procedimento de registo previsto no direito do Estado‑Membro em causa.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados, ou os seus advogados, tenham o direito de impugnar, de acordo com os procedimentos previstos no direito nacional, uma eventual omissão ou recusa por parte das autoridades competentes em facultar informações nos termos da presente diretiva.»

Diretiva 2013/48/UE

7

A Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares (JO 2013, L 294, p. 1) inclui um artigo 3.o, sob a epígrafe «Direito de acesso a um advogado em processo penal», que prevê no seu n.o 1.

«Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos e acusados tenham direito de acesso a um advogado em tempo útil e de forma a permitir‑lhes exercer de forma efetiva os seus direitos de defesa.»

8

O artigo 9.o desta diretiva, sob a epígrafe «Renúncia», tem a seguinte redação:

«1.   Sem prejuízo da legislação nacional que exige a presença ou a assistência de um advogado, os Estados‑Membros devem assegurar que, relativamente a qualquer renúncia a um dos direitos referidos nos artigos 3.o e 10.o:

a)

O suspeito ou acusado receba, oralmente ou por escrito, informações claras e suficientes, numa linguagem simples e compreensível, sobre o conteúdo do direito em questão e sobre as possíveis consequências de a ele renunciar;

b)

A renúncia seja expressa de forma voluntária e inequívoca.

2.   A renúncia, que pode ser feita por escrito ou oralmente, deve ser registada, tal como as circunstâncias em que foi expressa, nos termos da lei do Estado‑Membro em causa.

3.   Os Estados‑Membros devem assegurar que a renúncia possa ser posteriormente revogada em qualquer momento do processo penal pelo suspeito ou acusado e que este seja informado dessa possibilidade. A referida revogação produz efeitos a partir do momento em que seja feita.»

Diretiva 2016/343

9

O artigo 7.o da Diretiva 2016/343, sob a epígrafe «Direito de guardar silêncio e direito de não se autoincriminar», dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de guardar silêncio em relação ao ilícito penal que é suspeito de ter cometido ou em relação ao qual é arguido.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de não se autoincriminar.

3.   O exercício do direito de não se autoincriminar não impede a recolha pelas autoridades competentes de elementos de prova que possam ser legitimamente obtidos através do exercício legal de poderes coercivos e cuja existência é independente da vontade do suspeito ou do arguido.

4.   Os Estados‑Membros podem autorizar que as suas autoridades judiciais, ao proferirem a sua decisão, tenham em conta a atitude de cooperação do suspeito ou do arguido.

5.   O exercício do direito de guardar silêncio e do direito de não se autoincriminar dos suspeitos ou dos arguidos não deve ser utilizado contra os mesmos, nem pode ser considerado elemento de prova de que cometeram o ilícito penal em causa.

6.   Este artigo não deverá impedir os Estados‑Membros de decidir, em caso de infrações menores, que a tramitação do processo, ou de determinadas fases do mesmo, pode ser feita por escrito ou sem que o suspeito ou o arguido seja interrogado pelas autoridades competentes sobre a infração em causa, desde que o direito a um processo equitativo seja respeitado.»

Direito francês

10

O artigo 53.o, n.o 1, do Código de Processo Penal prevê:

«Considera‑se flagrante delito o crime ou o delito que esteja a ser cometido ou que acabou de ser cometido. Também se considera flagrante delito o caso em que o suspeito, logo após o ato, seja perseguido por qualquer pessoa ou encontrado na posse de objetos, ou ainda que apresente sinais ou indícios que levem a supor que participou no crime ou no delito.»

11

O artigo 63‑1 deste código tem a seguinte redação:

«A pessoa detida deve ser imediatamente informada por um oficial da polícia judiciária ou, sob a supervisão deste último, por um agente da polícia judiciária, numa língua que compreenda, se necessário por via de formulário previsto no décimo terceiro parágrafo:

1o Da sua detenção, bem como da duração da medida e da(s) prorrogação(ões) a que pode estar sujeita;

2o Da qualificação, data e local da presumida infração de cuja prática ou tentativa a pessoa em causa é suspeita, bem como dos motivos mencionados no artigo 62‑2, 1.o a 6.o que justificam a sua detenção;

3o Do facto de beneficiar:

do direito de notificar um familiar e o seu empregador, assim como, se tiver nacionalidade estrangeira, de notificar as autoridades consulares do Estado de que é nacional, e, se necessário, entrar em contacto com essas pessoas, em conformidade com o artigo 63‑2;

do direito de ser examinado por um médico, em conformidade com o artigo 63‑3;

do direito de ser assistido por um advogado, em conformidade com os artigos 63‑3‑1 a 63‑4‑3;

se necessário, do direito de ser assistido por um intérprete;

do direito de consultar, o mais rapidamente possível, e o mais tardar antes de qualquer prorrogação da detenção, os documentos mencionados no artigo 63‑4‑1;

do direito de apresentar observações ao Procurador da República ou, se for caso disso, ao juiz competente para aplicar medidas de coação, quando este magistrado se pronunciar sobre a eventual prorrogação da detenção. Se a pessoa não for apresentada ao magistrado, pode fazer consignar em ata as suas observações orais, ata essa que é comunicada ao magistrado antes de este decidir prorrogar a medida;

do direito, durante as audiências e depois de se ter identificado, de prestar declarações, responder às perguntas que lhe forem colocadas ou de permanecer em silêncio.

[…]

Uma menção às informações prestadas em aplicação do presente artigo deve ser inscrita no auto de detenção e ser assinada pela pessoa detida. Caso a pessoa em causa se recuse a assinar, essa recusa será registada.

Nos termos do artigo 803‑6, no momento da notificação da detenção, será entregue ao detido um documento em que estes direitos são enunciados».

12

Nos termos do artigo 63‑4‑1 do referido código:

«A seu pedido, o advogado pode consultar o auto lavrado nos termos do penúltimo parágrafo do artigo 63‑1 de notificação da detenção e dos direitos decorrentes da mesma, o atestado médico emitido nos termos do artigo 63‑3, bem como as transcrições de audições da pessoa a quem presta assistência. Não pode pedir ou obter uma cópia. Pode, no entanto, tomar notas.

A pessoa detida pode também consultar os documentos mencionados no primeiro parágrafo do presente artigo ou uma cópia dos mesmos.»

13

O artigo 73.o do mesmo código dispõe:

«Perante uma situação de flagrante delito, punido com pena de prisão, qualquer pessoa pode deter o autor e em seguida entregá‑lo ao oficial da polícia judiciária mais próximo.

Quando a pessoa for entregue ao oficial da polícia judiciária e as condições para a sua detenção previstas no presente código estiverem preenchidas, não é obrigatório que a pessoa em causa seja colocada sob detenção se não estiver obrigada a permanecer à disposição dos investigadores e tiver sido informada de que pode abandonar as instalações da polícia a qualquer momento. No entanto, a presente alínea não é aplicável se a pessoa tiver sido levada, sob coação, pelas forças policiais perante o oficial da polícia judiciária.»

14

O artigo 385.o, primeiro e sexto parágrafos, do Código do Processo Penal, prevê:

«O tribunal correcional tem competência para conhecer as nulidades dos processos que lhe são submetidos, exceto se os mesmos lhe tiverem sido submetidos por ordem do juiz de instrução ou da secção de instrução.

[…]

Em todos os casos, as exceções de nulidade devem ser apresentadas antes de qualquer defesa quanto ao objeto do processo.»

Tramitação processual no processo principal e questão prejudicial

15

Na noite de 22 de março de 2021, K.B. e F.S. foram interpelados por agentes da polícia judiciária por presença suspeita no parque de estacionamento de uma empresa. Os agentes verificaram que o depósito de combustível de um veículo pesado estacionado nesse parque estava aberto e detetaram a existência de jerricãs nas proximidades. Pelas 22 h 25, interpelaram e algemaram K.B. e F.S., que tentavam esconder‑se, e abriram uma investigação policial por flagrante delito de furto de combustível, nos termos do artigo 53.o, primeiro parágrafo, do Código do Processo Penal.

16

Depois de terem interrogado K.B. e F.S., sem contudo os informarem dos direitos previstos no artigo 63‑1 do Código do Processo Penal, os agentes da polícia informaram um oficial da polícia judiciária que solicitou a apresentação imediata dos dois suspeitos a fim de proceder à sua detenção, nos termos do artigo 73 in fine do Código do Processo Penal.

17

Ignorando esta instrução, os agentes da polícia judiciária chamaram, em seguida, outro oficial da polícia que se apresentou no local pelas 22 h 40 e, que em vez de deter os dois suspeitos, de os informar dos seus direitos e de avisar o Procurador da República, como exige o direito francês, revistou o veículo dessas pessoas. Durante essa revista ao veículo, foram descobertos elementos incriminatórios, tais como rolhas, um funil e uma bomba elétrica. O oficial colocou questões a K.B. e a F.S., a que estes responderam.

18

Às 22 h 50, o Procurador da República foi informado da detenção de F.S. e de K.B., aos quais foi dispensada informação dos seus direitos, respetivamente, às 23 h 00 e às 23 h 06, entre os quais o direito ao silêncio.

19

Chamado a conhecer do objeto do processo penal instaurado contra K.B. e F.S. pelos crimes de furto de combustível, o tribunal correctionnel de Villefranche‑sur‑Saône (Tribunal Correcional de Villefranche‑sur‑Saône, França), que é o órgão jurisdicional de reenvio, constata que, no caso em apreço, foram realizados atos de investigação e recolhidas declarações autoincriminatórias antes de K.B. e F.S. terem sido notificados dos seus direitos, em violação do artigo 63‑1 do Código de Processo Penal, que transpõe os artigos 3.o e 4.o da Diretiva 2012/13. Tendo em conta o caráter intempestivo da sua detenção, da notificação ao Procurador da República e da leitura dos direitos, nomeadamente, do direito ao silêncio, o órgão jurisdicional de reenvio entende que foi violado o direito de não se autoincriminar. Nessas condições, a revista do veículo, a detenção dos suspeitos e todos os atos resultantes da mesma deverão, em princípio, ser anulados, em conformidade com a jurisprudência da Cour de cassation (Tribunal da Cassação (França).

20

Nesse âmbito, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, por força do artigo 385.o do Código de Processo Penal, as exceções de nulidade de processo, tais como a violação do dever, previsto no artigo 63‑1 desse código, de informar uma pessoa do direito ao silêncio no momento da sua detenção, devem ser suscitados pela pessoa em causa ou pelo seu advogado antes de qualquer defesa quanto ao objeto do processo. Decorre igualmente deste processo que K.B. e F.S. foram assistidos por um advogado, mas que este, bem como K.B. e F.S., não suscitaram, antes de qualquer defesa quanto ao objeto do processo, uma exceção de nulidade, na aceção do artigo 385.o do referido código, baseada na violação desse dever.

21

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Tribunal de Cassação interpretou o artigo 385.o do Código de Processo Penal no sentido de que proíbe os juízes que apreciam o objeto do processo de conhecer oficiosamente a nulidade do processo, exceto no que se refere à sua incompetência, porquanto o arguido, que tem o direito de ser assistido por advogado quando comparece ou se faz representar perante o tribunal a quo, pode alegar tal nulidade antes de qualquer defesa quanto ao objeto do processo, dispondo esse arguido, aliás, da mesma possibilidade em sede de recurso se não tiver comparecido ou não tiver sido representado em primeira instância. Por conseguinte, a interpretação do artigo 385.o do Código do Processo Penal nesse sentido proíbe o órgão jurisdicional de reenvio de conhecer oficiosamente a violação do dever previsto no número anterior do presente acórdão.

22

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se a proibição que sobre ele recai nos termos do artigo 385.o do referido código de conhecer oficiosamente a violação de um dever previsto pelo direito da União, tal como o dever, previsto nos artigos 3.o e 4.o da Diretiva 2012/13, de informar prontamente os suspeitos e os arguidos do seu direito ao silêncio, está em conformidade com esse direito.

23

A esse respeito, recorda que a aplicação oficiosa do direito da União pelo órgão jurisdicional nacional cabe, perante a falta de regras desse direito em matéria processual, no âmbito da autonomia processual dos Estados‑Membros, nos limites dos princípios da equivalência e da efetividade. Ora, no Acórdão de 14 de dezembro de 1995, Peterbroeck (C‑312/93, EU:C:1995:437), o Tribunal de Justiça declarou que o direito da União se opõe à aplicação de uma norma processual nacional que proíbe o juiz nacional, a quem é submetida uma causa no âmbito da sua competência, de apreciar oficiosamente a compatibilidade de um ato de direito interno com uma disposição de direito da União, quando esta última disposição da União não tenha sido invocada dentro de um determinado prazo pelo particular.

24

Além disso o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se à jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de cláusulas abusivas, na qual o mesmo concluiu pela existência de um dever do juiz nacional de examinar oficiosamente a violação de determinadas disposições da Diretiva 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), porque esse exame constitui um meio que permite alcançar os resultados pretendidos por esta diretiva. A referida jurisprudência reconhece, assim, ao juiz nacional o seu estatuto de autoridade do Estado‑Membro tal como o seu dever correlativo de interveniente de pleno direito no processo de transposição de diretivas, num contexto específico caracterizado pela posição de inferioridade de uma das partes no processo. Ora, este raciocínio relativo ao consumidor pode ser transposto para o arguido em processo penal, tanto mais que este último não é necessariamente assistido por um advogado para invocar os seus direitos.

25

Nestas circunstâncias, o Tribunal correctionnel de Villefranche‑sur‑Saône (Tribunal Correcional de Villefranche‑sur‑Saône) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão:

«Devem os artigos 3.o (Direito a ser informado sobre os direitos) e 4.o (Carta de Direitos aquando da privação da liberdade) da [Diretiva 2012/13], o artigo 7.o (Direito ao silêncio) da [Diretiva (UE) 2016/343], em conjunto com o artigo 48.o (Presunção de inocência e direitos de defesa) da [Carta], ser interpretados no sentido de que se opõem à proibição, imposta ao juiz nacional, de conhecer oficiosamente de uma violação dos direitos de defesa garantidos [pelas] diretivas, mais especificamente pelo facto de este último estar proibido de suscitar oficiosamente, para efeitos de anulação do processo, a falta de notificação do direito ao silêncio no momento da detenção ou uma notificação tardia desse mesmo direito?»

Quanto à questão prejudicial

26

Segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Além disso, o Tribunal pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União a que o juiz nacional não fez referência no enunciado da sua questão (Acórdão de 15 de julho de 2021, Ministrstvo za obrambo, C‑742/19, EU:C:2021:597, n.o 31).

27

Com efeito, a circunstância de um órgão jurisdicional nacional ter, no plano formal, formulado uma questão prejudicial com base em certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que necessitam de interpretação, tendo em conta o objeto do litígio [Acórdão de 22 de dezembro de 2022, Ministre de la Transition écologique et Premier ministre (Responsabilidade do Estado pela poluição atmosférica), C‑61/21, EU:C:2022:1015, n.o 34, e jurisprudência referida].

28

No caso em apreço, é de observar, por um lado, que a questão prejudicial tem em vista, entre outros, o artigo 7.o da Diretiva 2016/343, o qual dispõe, no seu n.o 1, que os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de guardar silêncio em relação ao ilícito penal que é suspeito de ter cometido ou em relação ao qual é arguido.

29

Todavia, há que realçar que o pedido de decisão prejudicial foi formulado num contexto em que a informação relativa ao direito ao silêncio foi fornecida intempestivamente às pessoas interessadas uma vez que, tal como decorre dos n.os 16 a 19 do presente acórdão, foram‑lhes colocadas questões pelos agentes e por um oficial da polícia judiciária e foram recolhidas declarações autoincriminatórias anteriores à notificação dessas informações. Esse pedido tem a ver, assim, com as consequências que o órgão jurisdicional que aprecia o objeto do processo deve, sendo o caso, inferir do caráter intempestivo da referida informação quando este não foi alegado por essas pessoas ou pelo seu advogado no prazo prescrito pelo direito do Estado‑Membro em causa. Ora, o dever que incumbe às autoridades competentes de prestar prontamente aos suspeitos ou aos arguidos as informações e uma declaração de direitos relativos, designadamente, ao direito ao silêncio, juntamente com o dever dos Estados‑Membros de garantir que possam ser contestados um erro ou uma recusa de fornecer tais informações ou declarações são especificamente regidos pela Diretiva 2012/13, em especial, no que toca ao primeiro dever, pelos seus artigos 3.o e 4.o, bem como, no que se refere ao segundo dever, pelo seu artigo 8.o, n.o 2. Por conseguinte, tal como em substância realçou o advogado‑geral nos n.os 31 a 35 das suas conclusões, é à luz unicamente desta diretiva que importa responder à questão prejudicial.

30

Por outro lado, resulta do considerando 14 da Diretiva 2012/13 que esta assenta nos direitos enunciados, nomeadamente, nos artigos 47.o e 48.o da Carta e visa promover esses direitos face aos suspeitos ou acusados no âmbito de processos penais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de setembro de 2019, Rayonna prokuratura Lom, C‑467/18, EU:C:2019:765, n.o 37).

31

Ora, embora a questão prejudicial se refira unicamente ao artigo 48.o da Carta relativo à presunção de inocência e aos direitos de defesa, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que o direito ao silêncio é garantido não só por este artigo, como também pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta relativo ao direito a que o seu processo seja julgado de forma equitativa (v., neste sentido, Acórdão de 2 de fevereiro de 2021, Consob, C‑481/19, EU:C:2021:84, n.o 45). Por conseguinte, esta questão deve igualmente ser apreciada à luz desta última disposição da Carta.

32

Nessas circunstâncias, deverá considerar‑se que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 3.o e 4.o, bem como o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, lidos à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que proíbe o órgão jurisdicional que aprecia o objeto do processo penal de conhecer oficiosamente, para efeitos da anulação do procedimento, a violação do dever que incumbe às autoridades competentes, em virtude dos artigos 3.o e 4.o, de informar prontamente os suspeitos ou os arguidos do seu direito ao silêncio.

33

A este respeito, há que recordar que, por força do artigo 3.o, n.o 1, alínea e), e n.o 2, bem como do artigo 4.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2012/13, os Estados‑Membros devem assegurar que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações oralmente ou por escrito e, quando essas pessoas sejam detidas ou presas, uma Carta de direitos por escrito relativa, entre outras, ao direito ao silêncio, de modo a permitir o exercício efetivo desse direito. Estas disposições preveem, portanto, um dever de as autoridades competentes dos Estados‑Membros informarem prontamente os suspeitos ou os acusados do referido direito, especificando que, independentemente do caráter eventualmente mais estrito desse dever relativamente aos presos ou detidos, decorre do considerando 19 dessa diretiva que, seja como for, as informações acima referidas devem ser dispensadas o mais tardar antes do primeiro interrogatório oficial do suspeito ou acusado, pela polícia ou por outra autoridade competente.

34

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio constatou, em substância, que K.B. e F.S., os quais foram detidos em flagrante delito e deveriam ter sido, enquanto detidos e suspeitos de terem cometido uma infração penal, informados prontamente sobre os seus direitos ao silêncio com base no direito nacional que transpõe as disposições da Diretiva 2012/13, visadas no número anterior, foram informados tardiamente desse direito, concretamente apenas após terem sido interrogados pelos agentes e por um oficial da polícia judiciária e terem sido recolhidas por estes declarações autoincriminatórias.

35

Neste contexto, há que recordar que, por força do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, os Estados‑Membros devem assegurar que os suspeitos ou acusados, ou os seus advogados, tenham o direito de impugnar, de acordo com os procedimentos previstos no direito nacional, uma eventual omissão ou recusa por parte das autoridades competentes em facultar informações nos termos da presente diretiva.

36

Esta disposição destina‑se a ser aplicada, designadamente, a uma situação em que a informação relativa ao direito ao silêncio foi facultada tardiamente. Com efeito, dado que o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 4.o, n.o 1, dessa diretiva impõem que os suspeitos ou acusados sejam prontamente informados do seu direito ao silêncio, uma informação a esse propósito, facultada sem respeitar este requisito da prontidão, não pode considerar‑se facultada «nos termos» da presente diretiva. Portanto, por aplicação do artigo 8.o, n.o 2, da referida diretiva, os suspeitos ou os acusados, ou os seus advogados, devem poder impugnar esta não comunicação.

37

A este respeito, importa recordar que, tendo em conta a importância do direito à ação, protegido pelo artigo 47.o, n.o 1, da Carta, o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 opõe‑se a qualquer medida nacional que constitua um obstáculo ao exercício de vias de recurso efetivas em caso de violação dos direitos protegidos por essa diretiva (Acórdão de 19 de setembro de 2019, Rayonna prokuratura Lom, C‑467/18, EU:C:2019:765, n.o 57).

38

Todavia, ao remeter para os «procedimentos previstos no direito nacional», esta disposição da Diretiva 2012/13 não especifica as modalidades e os prazos em que os suspeitos e os acusados bem como, eventualmente, os seus advogados podem alegar uma violação do dever de informar prontamente esses suspeitos e esses acusados do seu direito ao silêncio, nem as eventuais consequências processuais decorrentes da falta dessa alegação, como a faculdade de o órgão jurisdicional nacional que aprecia o objeto do processo penal conhecer oficiosamente uma tal violação para efeitos de anulação do procedimento. A margem de manobra assim deixada aos Estados‑Membros para estabelecer essas modalidades e consequências é, ainda, confirmada pelo considerando 36 desta diretiva segundo o qual, o direito de impugnar, nos termos do direito nacional, a eventual recusa ou omissão das autoridades competentes de prestarem informações ou de revelarem certos elementos do processo nos termos da presente diretiva não implica a obrigação de os Estados‑Membros estabelecerem um processo de recurso específico, um regime autónomo ou um procedimento de reclamação pelo qual essa omissão ou recusa possa ser impugnada.

39

Cumpre, pois, observar que a Diretiva 2012/13 não enuncia regras que regulem a eventual faculdade de o órgão jurisdicional que decide em matéria penal conhecer oficiosamente, para efeitos de anulação do procedimento, uma violação do dever de informar prontamente esses suspeitos e esses acusados do seu direito ao silêncio.

40

Importa, porém, recordar que os Estados‑Membros, quando aplicam o artigo 3.o, n.o 1, alínea e), o artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 8.o, n.o 2 da Diretiva 2012/13, são obrigados, em conformidade com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, a assegurar o respeito quer do direito à ação e do direito a um processo equitativo, consagrados no artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, da Carta, quer do direito de defesa, consagrado no artigo 48.o, n.o 2, da Carta, os quais são concretizados por aquelas disposições da Diretiva 2012/13 (v., nesse sentido, Acórdão de 1 de agosto de 2022, TL (Falta de intérprete e de tradução), C‑242/22 PPU, EU:C:2022:611, n.o 42).

41

Importa ainda acrescentar que, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, os direitos nela contidos têm o mesmo sentido e alcance que os direitos correspondentes garantidos pela Convenção Europeia [para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), o que não obsta a que o direito da União confira uma tutela mais ampla. Na interpretação dos direitos garantidos pelo artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, e artigo 48.o, n.o 2, da Carta, o Tribunal de Justiça deve ter em conta os direitos correspondentes garantidos pelos artigos 6.o e 13.o da CEDH, como interpretados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, enquanto limiar de proteção mínima (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de fevereiro de 2021, Consob, C‑481/19, EU:C:2021:84, n.o 37 e jurisprudência referida, bem como de 9 de março de 2023, Intermarché Casino Achats/Comissão, C‑693/20 P, EU:C:2023:172, n.os 41 a 43). O considerando 14 da Diretiva 2012/13 menciona, aliás, expressamente o facto de que esta assenta designadamente nesse artigo 6.o, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça.

42

A este respeito, e sem prejuízo de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, é de realçar que, tal como decorre das explicações dadas pelo Governo francês nas suas observações escritas e na audiência, o direito penal francês, em especial o artigo 63‑1, n.o 3, o artigo 63‑4‑1 e o artigo 385.o do Código de Processo Penal, permite aos suspeitos ou aos acusados bem como, eventualmente, aos seus advogados invocar por todos os meios e em qualquer momento, entre a sua detenção e a apresentação da sua defesa quanto ao objeto do processo, qualquer violação do dever de informar prontamente os suspeitos ou os acusados do seu direito ao silêncio, tal como resulta dos artigos de 3.o e 4.o da Diretiva 2012/13, precisando‑se que, quer esses suspeitos quer esses acusados e os seus advogados têm um direito de acesso aos autos e, designadamente, ao auto que constata a notificação da detenção e dos direitos que lhe são conexos.

43

Ora, os Estados‑Membros podem, ao abrigo da margem de manobra que lhes é conferida pela Diretiva 2012/13, circunscrever temporalmente a alegação de tal violação na fase anterior à da apresentação da defesa quanto ao objeto do processo. Em especial, há que considerar que a proibição imposta ao juiz penal que aprecia o objeto do processo de suscitar oficiosamente essa violação para efeitos de anulação do procedimento respeita, em princípio, o direito à ação e a que o seu processo seja julgado de forma equitativa consagrado no artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, da Carta, bem como o direito de defesa consagrado no artigo 48.o, n.o 2, da Carta, quando os suspeitos, os acusados ou os seus advogados tenham tido a possibilidade concreta e efetiva de alegar a violação em causa e tenham disposto para esse efeito de um prazo razoável, bem como do acesso aos autos.

44

No entanto, para garantir o efeito útil do direito ao silêncio, há que precisar que tal conclusão só é válida desde que essas pessoas tenham tido a possibilidade concreta e efetiva, no decurso do prazo que tinham para alegar uma violação do artigo 3.o, n.o 1, alínea e), e do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13, do direito de acesso a um advogado, tal como consagrado no artigo 3.o da Diretiva 2013/48 e tal como facilitado pelo mecanismo do apoio judiciário previsto pela Diretiva (UE) 2016/1919 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2016, relativa ao apoio judiciário para suspeitos e arguidos em processo penal e para as pessoas procuradas em processos de execução de mandados de detenção europeus (JO 2016, L 297, p. 1).

45

Esta interpretação das referidas disposições da Diretiva 2012/13, lidas à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, é corroborada pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 6.o da CEDH, que já declarou que a situação de particular vulnerabilidade do acusado na fase de inquérito para a preparação do processo pode ser compensada do modo adequado com a assistência de um advogado, cuja missão consiste designadamente em atuar para garantir que seja respeitado o direito de qualquer acusado de não se autoincriminar (TEDH, de 27 de novembro de 2008, Salduz c. Turquia, CE:ECHR:2008:1127JUD003639102, § 54).

46

O facto de dever ser dada, pelo direito nacional, aos suspeitos ou arguidos a possibilidade concreta e efetiva de recorrerem a um advogado não exclui no entanto que, se renunciarem a essa possibilidade, tenham, em princípio, de suportar as consequências dessa renúncia se esta tiver sido feita de acordo com os requisitos previstos no artigo 9.o da Diretiva 2013/48. Em especial, o n.o1 desta disposição prevê que o suspeito ou acusado deve ter recebido, oralmente ou por escrito, informações claras e suficientes, numa linguagem simples e compreensível, sobre o conteúdo do direito de acesso a um advogado e sobre as possíveis consequências de a ele renunciar e que a renúncia deva ser expressa de forma voluntária e inequívoca.

47

A consideração referida no n.o 44 do presente acórdão não é posta em causa pelo facto de o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 prever que a violação do dever de informar prontamente os suspeitos ou os acusados do seu direito de silêncio deve poder ser alegada pelo suspeito ou acusado «ou» pelo seu advogado. Com efeito, esta conjunção coordenada deve ser entendida no sentido de que esse suspeito ou esse acusado devem eles próprios alegar tal violação unicamente nas hipóteses em que validamente renunciaram à possibilidade de se fazer representar por um advogado, renúncia cuja validade deve ser verificada por um juiz, ou preferem suscitar essa violação eles próprios em vez de o fazerem por intermédio do seu advogado.

48

Além disso, cabe ainda realçar que, em virtude da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, quando se constate um vício processual, compete aos órgãos jurisdicionais internos proceder à apreciação da questão de saber se este foi sanado no decorrer do processo que se seguiu, sendo a falta de tal apreciação em si mesma prima facie incompatível com as exigências de um processo equitativo na aceção do artigo 6.o da CEDH (TEDH, de 28 de janeiro de 2020, Mehmet Zeki Çelebi c. Turquia, CE:ECHR:2020:0128JUD002758207, § 51). Assim, na hipótese em que um suspeito não tivesse sido informado, em tempo útil, dos seus direitos de não se autoincriminar e do direito ao silêncio, deve ser determinado se, não obstante essa lacuna, o processo penal no seu conjunto deve ser considerado equitativo, atendendo a uma série de fatores dentre os quais figuram a questão de saber se a recolha das declarações na falta dessa informação são uma parte integrante ou importante de elementos incriminatórios, bem como a força de outros elementos do processo (v., nesse sentido, TEDH, 13 de setembro de 2016, Ibrahim e o. c. Reino Unido (CE:ECHR:2016:0913JUD005054108, §§ 273 e 274).

49

Resulta do que precede que não se pode considerar que uma legislação nacional que proíbe o órgão jurisdicional que aprecia o objeto do processo penal de conhecer oficiosamente, para efeitos de anulação do procedimento, a violação do dever que incumbe às autoridades competentes, em virtude dos artigos 3.o e 4.o da Diretiva 2012/13, de informar prontamente os suspeitos ou os acusados do seu direito ao silêncio, viola os artigos 47.o e 48.o da Carta, quando esses suspeitos ou esses acusados não foram privados da possibilidade concreta e efetiva de ter acesso a um advogado nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2013/48, se necessário recorrendo ao apoio judiciário nas condições previstas pela Diretiva 2016/1919, e beneficiaram, tal como, eventualmente, o seu advogado, de direito de acesso ao processo e da possibilidade de alegar essa violação num prazo razoável, nos termos do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13.

50

Esta conclusão não pode ser infirmada pela jurisprudência invocada pelo órgão jurisdicional de reenvio e mencionada nos n.os 23 e 24 do presente acórdão.

51

Com efeito, por um lado, no processo que deu origem ao Acórdão de 14 de dezembro de 1995, Peterbroeck (C‑312/93, EU:C:1995:437), o direito nacional atribuía ao juiz o poder de apreciar oficiosamente a compatibilidade de um ato de direito interno com uma disposição de direito da União. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio, porque o prazo durante o qual essa apreciação podia ser feita oficiosamente já tinha expirado na data em que se realizou a audiência, estava privado desse poder. Em contrapartida, o processo principal tem por objeto a questão de saber se o direito da União impõe reconhecer ao juiz nacional a faculdade de conhecer oficiosamente uma violação do direito da União, não obstante essa faculdade ser proibida pelo direito nacional.

52

No que diz respeito, por outro lado, à jurisprudência do Tribunal de Justiça proferida no domínio das cláusulas abusivas, é de sublinhar que as relações jurídicas que são objeto de um regime que tem em vista a proteção dos consumidores se diferenciam nesse ponto das que estão em causa no âmbito dos processos penais, tais como os visados no processo principal e recordados no n.o 45 do presente acórdão, não podendo ser feita uma mera aplicação dos princípios estabelecidos no domínio das cláusulas abusivas ao regime das garantias processuais nos processos penais.

53

Atendendo a todos os fundamentos anteriores, há que responder à questão submetida que os artigos 3.o e 4.o bem como o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, lidos à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que proíbe o órgão jurisdicional que aprecia o objeto do processo penal de conhecer oficiosamente, para efeitos de anulação do procedimento, a violação do dever que incumbe às autoridades competentes, ao abrigo destes artigos 3.o e 4.o, de informar prontamente os suspeitos ou os acusados do seu direito ao silêncio, quando estes não foram privados da possibilidade concreta e efetiva de ter acesso a um advogado nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2013/48, se necessário recorrendo ao apoio judiciário nas condições previstas pela Diretiva 2016/1919, e beneficiaram, tal como, eventualmente, o seu advogado, do direito de acesso aos autos e da possibilidade de alegar essa violação num prazo razoável, nos termos do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13.

Quanto às despesas

54

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

Os artigos 3.o e 4.o, bem como o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47.o e do artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

não se opõem a uma legislação nacional que proíbe o órgão jurisdicional que aprecia o objeto do processo penal de conhecer oficiosamente, para efeitos de anulação do procedimento, a violação do dever que incumbe às autoridades competentes, ao abrigo destes artigos 3.o e 4.o, de informar prontamente os suspeitos ou os acusados do seu direito ao silêncio, quando estes não foram privados da possibilidade concreta e efetiva de ter acesso a um advogado nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares, se necessário recorrendo ao apoio judiciário nas condições previstas pela Diretiva (UE) 2016/1919 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2016, relativa ao apoio judiciário para suspeitos e arguidos em processo penal e para as pessoas procuradas em processos de execução de mandados de detenção europeus, e beneficiaram, tal como, eventualmente, o seu advogado, do direito de acesso aos autos e da possibilidade de alegar essa violação num prazo razoável, nos termos do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

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