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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62020CJ0700

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 20 de junho de 2022.
    London Steam-Ship Owners’ Mutual Insurance Association Limited contra Kingdom of Spain.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.° 44/2001 — Reconhecimento de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro — Motivos de não reconhecimento — Artigo 34.°, n.° 3 — Decisão inconciliável com uma decisão proferida anteriormente entre as mesmas partes no Estado‑Membro requerido — Requisitos — Respeito das disposições e dos objetivos fundamentais do Regulamento (CE) n.° 44/2001 numa decisão proferida anteriormente e que reproduz os termos de uma sentença arbitral — Artigo 34.°, n.° 1 — Reconhecimento manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido — Requisitos.
    Processo C-700/20.

    Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2022:488

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

    20 de junho de 2022 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Reconhecimento de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro — Motivos de não reconhecimento — Artigo 34.o, ponto 3 — Decisão inconciliável com uma decisão proferida anteriormente entre as mesmas partes no Estado‑Membro requerido — Requisitos — Respeito das disposições e dos objetivos fundamentais do Regulamento (CE) n.o 44/2001 numa decisão proferida anteriormente e que reproduz os termos de uma sentença arbitral — Artigo 34.o, ponto 1 — Reconhecimento manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido — Requisitos»

    No processo C‑700/20,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Commercial Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench (Secção Comercial), Reino Unido], por Decisão de 21 de dezembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de dezembro de 2020, no processo

    London Steam‑Ship Owners’ Mutual Insurance Association Limited

    contra

    Kingdom of Spain,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

    composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, K. Jürimäe, C. Lycourgos, E. Regan, I. Jarukaitis e N. Jääskinen, presidentes de secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot, M. Safjan (relator), A. Kumin, M. L. Arastey Sahún, M. Gavalec, Z. Csehi e O. Spineanu‑Matei, juízes,

    advogado‑geral: A. M. Collins,

    secretário: C. Strömholm, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 31 de janeiro de 2022,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da London Steam‑Ship Owners’ Mutual Insurance Association Limited, por A. Song e M. Volikas, solicitors, A. Thompson e C. Tan, barristers, C. Hancock e T. de la Mare, QC,

    em representação do Governo do Reino Unido, por L. Baxter, B. Kennelly e F. Shibli, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo alemão, por J. Möller, U. Bartl, e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo espanhol, por S. Centeno Huerta, A. Gavela Llopis, S. Jiménez García e M. J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo francês, por A. Daniel e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo polaco, por B. Majczyna e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo suíço, por M. Schöll, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão Europeia, por C. Ladenburger, X. Lewis e S. Noë, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 5 de maio de 2022,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea d), e do artigo 34.o, pontos 1 e 3, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a London Steam‑Ship Owners’ Mutual Association Limited (a seguir «London P&I Club») ao Kingdom of Spain (Reino de Espanha) a respeito do reconhecimento, no Reino Unido, de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional espanhol.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    Regulamento n.o 44/2001

    3

    O considerando 16 do Regulamento n.o 44/2001 enuncia:

    «A confiança recíproca na administração da justiça no seio da [União Europeia] justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado‑Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, exceto em caso de impugnação.»

    4

    O artigo 1.o, n.os 1 e 2, deste regulamento prevê:

    «1.   O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

    2.   São excluídos da sua aplicação:

    […]

    d) A arbitragem.»

    5

    O capítulo II do Regulamento n.o 44/2001, intitulado «Competência», está subdividido em dez secções.

    6

    A secção 3 deste capítulo é relativa à competência em matéria de seguros.

    7

    Nesta secção, o artigo 13.o deste regulamento dispõe:

    «As partes só podem convencionar derrogações ao disposto na presente secção desde que tais convenções:

    […]

    5.

    Digam respeito a um contrato de seguro que cubra um ou mais dos riscos enumerados no artigo 14.o»

    8

    Nos termos do disposto no artigo 14.o do referido regulamento, igualmente inserido na referida secção:

    «Os riscos a que se refere o ponto 5 do artigo 13.o são os seguintes:

    1.

    Qualquer dano:

    a)

    Em navios de mar, nas instalações ao largo da costa e no alto‑mar ou em aeronaves, causado por eventos relacionados com a sua utilização para fins comerciais;

    […]

    2.

    Qualquer responsabilidade, com exceção da relativa aos danos corporais dos passageiros ou à perda ou aos danos nas suas bagagens:

    a)

    Resultante da utilização ou da exploração dos navios, instalações ou aeronaves, em conformidade com a alínea a) do ponto 1, desde que, no que respeita a estas últimas, a lei do Estado‑Membro de matrícula da aeronave não proíba as cláusulas atributivas de jurisdição no seguro de tais riscos;

    […]»

    9

    A secção 7 do capítulo II do Regulamento n.o 44/2001 diz respeito à extensão de competência e inclui, nomeadamente, o artigo 23.o do referido regulamento, que dispõe, no seu n.o 1:

    «Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado‑Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

    a)

    Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou

    b)

    Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou

    c)

    No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.»

    10

    A secção 9 do capítulo II, relativa à litispendência e conexão, inclui, nomeadamente, o artigo 27.o do referido regulamento, que prevê:

    «1.   Quando ações com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados‑Membros, o tribunal a que a ação foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar.

    2.   Quando estiver estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal declara‑se incompetente em favor daquele.»

    11

    O capítulo III do Regulamento n.o 44/2001, intitulado «Reconhecimento e execução», inclui os artigos 32.o a 56.o do mesmo.

    12

    O artigo 32.o deste regulamento dispõe:

    «Para efeitos do presente regulamento, considera‑se “decisão” qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado‑Membro independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo.»

    13

    Nos termos do artigo 33.o do referido regulamento:

    «1.   As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo.

    2.   Em caso de impugnação, qualquer parte interessada que invoque o reconhecimento a título principal pode pedir, nos termos do processo previsto nas secções 2 e 3 do presente capítulo, o reconhecimento da decisão.

    3.   Se o reconhecimento for invocado a título incidental perante um tribunal de um Estado‑Membro, este será competente para dele conhecer.»

    14

    O artigo 34.o do mesmo regulamento prevê:

    «Uma decisão não será reconhecida:

    1.

    Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido;

    […]

    3.

    Se for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado‑Membro requerido;

    […]»

    15

    O artigo 35.o do Regulamento n.o 44/2001 tem a seguinte redação:

    «1.   As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II ou no caso previsto no artigo 72.o

    2.   Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado‑Membro de origem tiver fundamentado a sua competência.

    3.   Sem prejuízo do disposto nos primeiros e segundo parágrafos, não pode proceder‑se ao controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do artigo 34.o»

    16

    Nos termos do artigo 43.o, n.o 1, deste regulamento:

    «Qualquer das partes pode interpor recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade.»

    Regulamento (UE) n.o 1215/2012

    17

    O Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), revogou e substituiu o Regulamento n.o 44/2001.

    18

    O considerando 12 do Regulamento n.o 1215/2012 tem a seguinte redação:

    «O presente regulamento não deverá aplicar‑se à arbitragem. Nada no presente regulamento deverá impedir que os tribunais de um Estado‑Membro, caso lhes seja submetida uma ação numa matéria para a qual as partes celebraram um acordo de arbitragem, remetam as partes para a arbitragem, suspendam ou encerrem o processo ou examinem se a convenção de arbitragem é nula, ineficaz ou insuscetível de aplicação nos termos da lei nacional.

    As decisões proferidas pelos tribunais dos Estados‑Membros que determinam se uma convenção de arbitragem é nula, ineficaz ou insuscetível de aplicação não deverão estar sujeitas às regras de reconhecimento e execução estabelecidas no presente regulamento, independentemente de o tribunal ter decidido destes aspetos a título principal ou incidental.

    Por outro lado, se um tribunal de um Estado‑Membro, exercendo a sua competência por força do presente regulamento ou da lei nacional, determinar que uma convenção de arbitragem é nula, ineficaz ou insuscetível de aplicação, tal não deverá impedir que a decisão do tribunal quanto ao mérito da questão seja reconhecida ou, consoante o caso, executada nos termos do presente regulamento. Tal não deverá prejudicar a competência dos tribunais dos Estados‑Membros para decidirem do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais de acordo com a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque em 10 de junho de 1958 [(Recueil des traités des Nations unies, vol. 330, p. 3)] (a “Convenção de Nova Iorque de 1958”), que prevalece sobre o presente regulamento.

    O presente regulamento não deverá aplicar‑se a ações ou processos conexos relativos, nomeadamente, à criação de um tribunal arbitral, aos poderes dos árbitros, à condução do processo arbitral ou a quaisquer outros aspetos desse processo, nem a ações ou decisões em matéria de anulação, revisão, recurso, reconhecimento ou execução de sentenças arbitrais.»

    19

    Nos termos do artigo 73.o, n.o 2, do referido regulamento:

    «O presente regulamento não afeta a aplicação da Convenção de Nova Iorque de 1958.»

    Direito do Reino Unido

    20

    A section 66 do Arbitration Act 1996 (Lei de 1996 Relativa à Arbitragem), sob a epígrafe «Execução de sentenças», dispõe:

    «(1)   Uma sentença arbitral proferida por um tribunal arbitral ao abrigo de uma convenção de arbitragem pode, mediante autorização do tribunal, ser executada do mesmo modo e com os mesmos efeitos que uma decisão ou um despacho judicial.

    (2)   Quando for concedida autorização para o efeito, pode ser proferida uma decisão que reproduza os termos da sentença arbitral.

    (3)   A autorização para a execução de uma sentença arbitral não é concedida quando, ou na medida em que, a pessoa contra a qual a execução é requerida demonstrar que o tribunal arbitral era materialmente incompetente para proferir a sentença arbitral. O direito de suscitar essa objeção está sujeito a caducidade (v. section 73).

    (4)   Nenhuma disposição do presente artigo afeta o reconhecimento ou a execução da sentença arbitral ao abrigo de qualquer outra lei ou norma jurídica, em especial ao abrigo da parte II da Lei de 1950 Relativa à Arbitragem (execução de sentenças ao abrigo da Convenção de Genebra) ou das disposições da parte III da presente lei relativas ao reconhecimento e à execução ao abrigo da Convenção de Nova Iorque [de 1958] ou ao abrigo de uma ação que tenha por objeto a sentença arbitral [“action on the award”].»

    21

    As sections 67 a 72 da Lei de 1996 Relativa à Arbitragem precisam as condições em que as partes no processo arbitral podem contestar a competência do tribunal arbitral, a regularidade do processo e o mérito da sentença arbitral.

    22

    O artigo 73.o desta lei, sob a epígrafe «Perda do direito de oposição», prevê:

    «(1)   Se uma parte num processo arbitral participar ou continuar a participar no processo sem formular objeções, imediatamente ou no prazo fixado pela convenção de arbitragem, pelo tribunal arbitral, ou por uma disposição da presente parte, no sentido de que:

    (a)

    o tribunal arbitral é materialmente incompetente,

    (b)

    o processo foi irregularmente instruído,

    (c)

    houve um incumprimento da convenção de arbitragem ou de uma disposição da presente parte I, ou

    (d)

    qualquer outra irregularidade que tenha afetado o tribunal arbitral ou a tramitação processual,

    não poderá formular essa objeção posteriormente, perante o tribunal arbitral ou perante o órgão jurisdicional, a menos que demonstre que, no momento em que participou ou continuou a participar no processo, não tinha e não podia, com razoável diligência, ter conhecimento dos fundamentos de oposição.

    (2)   Quando o tribunal arbitral se declarar materialmente competente e uma parte no processo arbitral, que pudesse ter contestado essa decisão,

    (a)

    através de procedimento arbitral de recurso ou de revisão, ou

    (b)

    mediante impugnação da sentença arbitral,

    não o tiver feito, ou não o tiver feito no prazo fixado pela convenção de arbitragem ou por qualquer disposição da presente parte, essa parte não pode contestar posteriormente a competência material do tribunal com base em qualquer fundamento que tenha sido objeto dessa decisão.»

    Direito espanhol

    23

    O artigo 117.o do Código Penal (Código Penal, a seguir «Código Penal Espanhol») enuncia:

    «As seguradoras que tenham assumido o risco pelas responsabilidades pecuniárias decorrentes da utilização ou da exploração de qualquer bem, indústria, empresa ou atividade serão responsáveis civis diretas até ao limite da indemnização legal ou convencionalmente estabelecida, sem prejuízo do direito de regresso contra o interessado, quando, em consequência de uma circunstância prevista no presente código, se produzir o evento correspondente ao risco segurado.»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    24

    Na sequência do naufrágio do petroleiro Prestige ao largo da costa espanhola, em novembro de 2002, que provocou elevados danos ambientais na costa espanhola e francesa, foi instruído em Espanha, no final de 2002, um processo penal, nomeadamente contra o comandante desse navio.

    25

    No termo dessa instrução, o processo foi remetido à Audiencia Provincial de A Coruña (Audiência Provincial da Corunha, Espanha), sendo que várias pessoas coletivas, entre as quais o Estado espanhol, intentaram, no contexto do processo penal, ações cíveis contra o comandante do Prestige, contra os seus proprietários e, com fundamento no artigo 117.o do Código Penal Espanhol, relativo à ação direta, contra o London P&I Club, seguradora da responsabilidade do navio e dos seus proprietários. Embora, logo em 16 de junho de 2003, tenha consignado nos órgãos jurisdicionais penais espanhóis uma quantia a título de indemnização pelos prejuízos suscetíveis de terem sido causados pelo naufrágio, o London P&I Club não compareceu em juízo.

    26

    Em 16 de janeiro de 2012, ou seja, posteriormente à propositura das referidas ações cíveis, o London P&I Club iniciou um processo de arbitragem em Londres (Reino Unido) destinado a obter uma declaração no sentido de que, em aplicação da cláusula compromissória constante do contrato de seguro celebrado com os proprietários do Prestige, o Reino de Espanha estava obrigado a apresentar os seus pedidos ao abrigo do artigo 117.o do Código Penal Espanhol no âmbito do referido processo de arbitragem. O London P&I Club pretendia igualmente obter uma declaração no sentido de que não podia ser responsabilizado perante o Reino de Espanha no que dizia respeito a esses pedidos, dado que o contrato de seguro estipulava que, em conformidade com a cláusula «pay to be paid» (pagar para ser pago), a pessoa segurada deve, em primeiro lugar, pagar as indemnizações devidas à vítima antes de poder recuperar o respetivo montante junto da seguradora. O Reino de Espanha não participou no processo de arbitragem, apesar de ter sido convidado para o efeito pelo tribunal arbitral.

    27

    Por Sentença proferida em 13 de fevereiro de 2013, o tribunal arbitral considerou que, uma vez que ao abrigo do direito internacional privado inglês os pedidos do Reino de Espanha eram de natureza contratual, o direito aplicável ao contrato era o direito inglês. Por conseguinte, segundo o tribunal arbitral, o Reino de Espanha não podia invocar os direitos contratuais dos proprietários sem cumprir a cláusula compromissória e a cláusula «pay to be paid». O tribunal arbitral deduziu daí que os pedidos de indemnização apresentados pelo Reino de Espanha perante os órgãos jurisdicionais espanhóis deveriam ter sido apresentados no processo de arbitragem em Londres, que a responsabilidade do London P&I Club perante o Reino de Espanha não podia ser reconhecida enquanto os proprietários do navio não procedessem ao pagamento prévio de uma indemnização a este último, e que, em todo o caso, em conformidade com as disposições do contrato de seguro, esta responsabilidade não podia ultrapassar mil milhões de dólares americanos (USD) (cerca de 900000000 euros).

    28

    Em março de 2013, o London P&I Club pediu que a High Court of Justice (England Wales), Queen’s Bench Division (Commercial Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench (Secção Comercial), Reino Unido], autorizasse, ao abrigo da section 66(1) e (2), da Lei de 1996 Relativa à Arbitragem, a execução da sentença arbitral no território nacional da mesma forma que um acórdão ou um despacho, e que proferisse um acórdão que reproduzisse os termos dessa sentença. O Reino de Espanha opôs‑se a este pedido e pediu que esse órgão jurisdicional anulasse a referida sentença arbitral ou que a declarasse inoperante, com fundamento na section 67 ou na section 72 da Lei de 1996 Relativa à arbitragem. O Reino de Espanha alegou igualmente que, fazendo uso do seu poder discricionário, o referido órgão jurisdicional devia recusar proferir um acórdão que reproduzisse os termos dessa sentença arbitral.

    29

    Por Despacho de 22 de outubro de 2013, proferido na sequência de uma audiência no decurso da qual foram apresentados elementos de prova factuais e ouvidos peritos em direito espanhol, a High Court of Justice (England Wales), Queen’s Bench Division (Commercial Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench (Secção Comercial)], autorizou o London P&I Club a executar a Sentença arbitral de 13 de fevereiro de 2013. Em 22 de outubro de 2013, proferiu igualmente um acórdão que reproduzia os termos dessa sentença.

    30

    O Reino de Espanha interpôs recurso desse despacho perante a Court of Appeal (England Wales) (Civil Division) [Tribunal de Recurso (Inglaterra e País de Gales) (Secção Cível), Reino Unido]. Por Acórdão de 1 de abril de 2015, esse órgão jurisdicional negou provimento ao recurso.

    31

    Por Acórdão de 13 de novembro de 2013 proferido no âmbito do processo penal instaurado nos órgãos jurisdicionais espanhóis, a Audiencia Provincial de A Coruña (Audiência Provincial da Corunha) absolveu o comandante do Prestige das acusações de crimes contra o ambiente, condenou‑o por desobediência grave às autoridades e declarou que o interessado não era civilmente responsável pelos danos causados pela descarga de combustíveis, tendo em conta a inexistência de um nexo entre o crime de desobediência e esses danos. Não se pronunciou sobre a responsabilidade civil dos proprietários do Prestige ou do London P&I Club.

    32

    Várias partes recorreram da decisão para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha). Por Acórdão de 14 de janeiro de 2016, esse órgão jurisdicional absolveu o comandante do Prestige do crime de desobediência grave às autoridades, tendo‑o no entanto condenado pelo crime de negligência contra o ambiente. No que respeita à ação cível, declarou civilmente responsáveis o comandante do Prestige, os proprietários do navio e, com base no artigo 117.o do Código Penal Espanhol, o London P&I Club, até ao valor do seu limite contratual de responsabilidade, fixado em mil milhões de USD. Por último, devolveu o processo à Audiencia Provincial de A Coruña (Audiência Provincial da Corunha) para a fixação do quantum das indemnizações devidas pelos demandados no processo espanhol.

    33

    Por Acórdão de 15 de novembro de 2017, retificado em 11 de janeiro de 2018, a Audiencia Provincial de A Coruña (Audiência Provincial da Corunha) declarou o comandante do Prestige, os seus proprietários e o London P&I Club responsáveis perante mais de 200 partes distintas, incluindo o Estado espanhol, até ao valor, no que respeita ao London P&I Club, do limite contratual de responsabilidade, fixado em mil milhões de USD. Esse acórdão foi, no essencial, confirmado em sede de recurso pelo Acórdão do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) de 19 de dezembro de 2018.

    34

    Por Despacho de Execução de 1 de março de 2019, a Audiencia Provincial de A Coruña (Audiência Provincial da Corunha) fixou os montantes que cada demandante tinha o direito de exigir dos respetivos demandados. Considerou, nomeadamente, que estes eram devedores de cerca de 2300 milhões de euros ao Estado espanhol, no limite, no que respeita ao London P&I Club, do montante de 855 milhões de euros.

    35

    Por petição de 25 de março de 2019, com base no artigo 33.o do Regulamento n.o 44/2001, o Reino de Espanha requereu à High Court of Justice (England Wales), Queen’s Bench Division [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench], o reconhecimento do Despacho de Execução de 1 de março de 2019 no Reino Unido. Esse órgão jurisdicional deferiu o pedido por Despacho de 28 de maio de 2019.

    36

    Em 26 de junho de 2019, o London P&I Club interpôs recurso desse despacho para o órgão jurisdicional de reenvio, ao abrigo do artigo 43.o do Regulamento n.o 44/2001.

    37

    Em apoio do seu recurso, o London P&I Club sustentou, por um lado, que o Despacho de Execução de 1 de março de 2019 é inconciliável, na aceção do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, com o Despacho e com o Acórdão de 22 de outubro de 2013 proferidos em aplicação da section 66 da Lei de 1996 Relativa à Arbitragem e confirmados em 1 de abril de 2015 pela Court of Appeal (England Wales) (Civil Division) [Tribunal de Recurso (Inglaterra e País de Gales) (Secção Cível)]. Por outro lado, baseando‑se no artigo 34.o, ponto 1, deste regulamento, alegou que o reconhecimento ou a execução desse despacho de execução seria, de qualquer forma, manifestamente contrário à ordem pública, nomeadamente à luz do princípio do caso julgado.

    38

    O Reino de Espanha pediu que fosse negado provimento ao recurso.

    39

    O órgão jurisdicional de reenvio considera que o processo principal suscita as questões de saber, em primeiro lugar, se uma decisão como aquela que proferiu ao abrigo section 66 da Lei de 1996 Relativa à Arbitragem pode ser qualificada de «decisão», na aceção do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, se esse órgão jurisdicional não tiver, ele próprio, conhecido do mérito do litígio decidido pelo tribunal arbitral. Em segundo lugar, interroga‑se sobre se uma decisão que não é abrangida pelo âmbito de aplicação material deste regulamento com fundamento na exceção respeitante à arbitragem, prevista no seu artigo 1.o, n.o 2, alínea d), pode, não obstante, ser invocada para impedir, com fundamento no artigo 34.o, ponto 3, do referido regulamento, o reconhecimento e a execução de uma decisão de outro Estado‑Membro. Em terceiro lugar, o referido órgão jurisdicional interroga‑se ainda a respeito da questão de saber se, em caso de resposta negativa a esta última questão, o artigo 34.o, ponto 1, do mesmo regulamento permite recusar o reconhecimento e a execução dessa decisão pelo facto de esta violar o caso julgado de uma sentença arbitral anterior ou de um acórdão que reproduz os termos dessa sentença.

    40

    Foi nestas condições que a High Court of Justice (England Wales), Queen’s Bench Division (Commercial Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench (Secção Comercial)] decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Tendo em conta a natureza das questões que o órgão jurisdicional nacional é chamado a decidir ao apreciar se deve ser proferida uma sentença arbitral nos termos [da section] 66 do Arbitration Act 1996 (Lei [de 1996 Relativa à Arbitragem]), pode uma decisão judicial proferida em aplicação desta disposição constituir uma “decisão” proferida no Estado‑Membro requerido, para efeitos do artigo 34.o, [ponto] 3, do Regulamento n.o 44/2001?

    2)

    Tendo em conta que uma decisão judicial [que reproduz os] termos de uma sentença arbitral, como uma decisão judicial proferida nos termos [da section] 66 do Arbitration Act 1996 (Lei de [1996 Relativa à Arbitragem]), não é abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 44/2001 por força da exceção de arbitragem prevista no artigo 1.o, n.o 2, alínea d), pode tal decisão judicial constituir uma “decisão” proferida no Estado Membro requerido para efeitos do artigo 34.o, [ponto] 3, daquele regulamento?

    3)

    No caso de o artigo 34.o, [ponto] 3, do Regulamento n.o 44/2001 não ser aplicável, se o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro forem contrários à ordem pública interna por violarem o princípio da autoridade do caso julgado devido a uma sentença arbitral nacional anterior ou a uma decisão judicial anterior proferida nos termos da sentença arbitral por um órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido, é possível invocar o artigo 34.o, [ponto] 1, do Regulamento n.o 44/2001 como fundamento de recusa do reconhecimento ou da execução, ou os artigos 34.o, [pontos] 3 e 4, deste regulamento estabelecem os fundamentos taxativos com base nos quais a autoridade do caso julgado e/ou a inconciliabilidade podem impedir o reconhecimento ou a execução de uma decisão na aceção do regulamento?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira e segunda questões

    41

    Com as suas primeira e segunda questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que um acórdão proferido por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro e que reproduz os termos de uma sentença arbitral é suscetível de constituir uma decisão, na aceção desta disposição, que impede o reconhecimento, nesse Estado‑Membro, de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional noutro Estado‑Membro, se essas decisões forem inconciliáveis entre si.

    42

    A título preliminar, importa recordar que, uma vez que o Regulamento n.o 1215/2012 revogou e substituiu o Regulamento n.o 44/2001, que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32), conforme alterada pelas convenções sucessivas relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a essa convenção, a interpretação do Tribunal de Justiça das disposições de um destes instrumentos jurídicos é igualmente válida para as disposições dos demais instrumentos, quando tais disposições puderem ser qualificadas como equivalentes (v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Volvo e o., C‑30/20, EU:C:2021:604, n.o 28).

    43

    É esse o caso do artigo 1.o, n.o 2, alínea d), de cada um destes dois regulamentos e do artigo 1.o, n.o 4, desta convenção, que excluem a arbitragem do seu âmbito de aplicação.

    44

    Ora, esta exclusão visa a matéria de arbitragem no seu conjunto, incluindo os processos intentados perante os órgãos jurisdicionais estatais (Acórdão de 25 de julho de 1991, Rich, C‑190/89, EU:C:1991:319, n.o 18).

    45

    Daqui resulta que o processo de reconhecimento e de execução de uma sentença arbitral não é abrangido pelo Regulamento n.o 44/2001, mas sim pelo direito nacional e pelo direito internacional aplicáveis no Estado‑Membro em que esse reconhecimento e essa execução são pedidos (v., neste sentido, Acórdão de 13 de maio de 2015, Gazprom, C‑536/13, EU:C:2015:316, n.o 41).

    46

    Nesse mesmo sentido, o considerando 12 do Regulamento n.o 1215/2012 passou a sublinhar que este regulamento não se aplica a uma ação ou a uma decisão relativa ao reconhecimento ou à execução de uma sentença arbitral.

    47

    Daqui resulta que um acórdão que reproduza os termos de uma sentença arbitral é abrangido pela exclusão da arbitragem prevista no artigo 1.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 44/2001 e que, por conseguinte, não pode beneficiar do reconhecimento mútuo entre os Estados‑Membros e circular no espaço judiciário da União em conformidade com as disposições do referido regulamento.

    48

    Assim sendo, esse acórdão é suscetível de ser considerado uma decisão, na aceção do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001.

    49

    A este respeito, em primeiro lugar, resulta da definição ampla do conceito de «decisão» constante do artigo 32.o do Regulamento n.o 44/2001 que este conceito abrange qualquer decisão proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, sem que haja lugar a distinção em função do conteúdo da decisão em causa e desde que a mesma tenha sido, ou pudesse ter sido, objeto, sob diversas modalidades, de instrução contraditória no Estado‑Membro de origem (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, H Limited, C‑568/20, EU:C:2022:264, n.os 24 e 26 e jurisprudência referida). Além disso, esta definição ampla aplica‑se a todas as disposições do referido regulamento em que esse termo é utilizado, incluindo o artigo 34.o, ponto 3 do referido regulamento (v., por analogia, Acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren, C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 20).

    50

    Esta interpretação do conceito de «decisão», que figura no artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, é corroborada pela finalidade desta disposição, a saber, proteger a integridade da ordem jurídica interna de um Estado‑Membro e garantir que a sua ordem social não é perturbada pela obrigação de reconhecer uma decisão proferida por outro Estado‑Membro que seja inconciliável com uma decisão proferida, entre as mesmas partes, pelos seus próprios órgãos jurisdicionais (v., por analogia, Acórdão de 2 de junho de 1994, Solo Kleinmotoren, C‑414/92, EU:C:1994:221, n.o 21)

    51

    Em segundo lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a exclusão de uma matéria do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001 não impede que uma decisão que tenha por objeto essa mesma matéria possa ser abrangida pelo artigo 34.o, ponto 3, deste regulamento e, portanto, obstar ao reconhecimento de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro com a qual aquela é inconciliável.

    52

    Assim, o Tribunal de Justiça considerou, nomeadamente, inconciliável com uma decisão de outro Estado‑Membro uma decisão de um órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido que, porque afetava o estado das pessoas singulares, não estava abrangida pelo âmbito de aplicação da convenção referida no n.o 42 do presente acórdão, uma vez que estas duas decisões tinham consequências jurídicas que se excluíam mutuamente (v., neste sentido, Acórdão de 4 de fevereiro de 1988, Hoffmann, 145/86, EU:C:1988:61, n.o 25).

    53

    Por conseguinte, um acórdão proferido num Estado‑Membro e que reproduz os termos de uma sentença arbitral é suscetível de constituir uma decisão, na aceção do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, que obsta ao reconhecimento, nesse Estado‑Membro, de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional noutro Estado‑Membro, se essas decisões forem inconciliáveis entre si.

    54

    No entanto, o mesmo não se pode dizer na hipótese de a sentença arbitral cujos termos esse acórdão reproduz ter sido proferida em circunstâncias que não teriam permitido a adoção, no respeito das disposições e dos objetivos fundamentais deste regulamento, de uma decisão judicial abrangida pelo seu âmbito de aplicação.

    55

    A este respeito, importa recordar que, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos da regulamentação de que faz parte. Por conseguinte, para responder à primeira e segunda questões prejudiciais, há que ter em conta, além da mera redação e do objetivo do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, o contexto desta disposição e todos os objetivos prosseguidos pelo referido regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.o 44 e jurisprudência referida).

    56

    Estes objetivos refletem‑se nos princípios subjacentes à cooperação judiciária em matéria civil na União, como os da livre circulação de decisões nesta matéria, da previsibilidade dos órgãos jurisdicionais competentes e, por conseguinte, da segurança jurídica para os particulares, da boa administração da justiça, da redução ao máximo possível do risco de processos concorrentes, e da confiança recíproca na justiça (v., neste sentido, Acórdãos de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.o 49, e de 19 de dezembro de 2013, Nipponka Insurance, C‑452/12, EU:C:2013:858, n.o 36).

    57

    Há que acrescentar que a confiança recíproca na administração da justiça no seio da União, na qual, segundo o considerando 16 do Regulamento n.o 44/2001, se baseiam as regras por si previstas em matéria de reconhecimento de decisões judiciais, não abrange as decisões tomadas por tribunais arbitrais nem as decisões judiciais que reproduzem os seus termos.

    58

    Daqui decorre que uma sentença arbitral só pode produzir efeitos ao abrigo do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, através de um acórdão que reproduz os seus termos, se tal não prejudicar o direito à ação garantido no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (v., neste sentido, Acórdão de 25 de maio de 2016, Meroni, C‑559/14, EU:C:2016:349, n.o 44) e permitir atingir os objetivos da livre circulação de decisões em matéria civil e da confiança recíproca na justiça no seio da União em condições pelo menos tão favoráveis como as que resultam da aplicação desse regulamento (v., por analogia, Acórdãos de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.o 55, e de 19 de dezembro de 2013, Nipponka Insurance, C‑452/12, EU:C:2013:858, n.o 38).

    59

    No caso em apreço, importa salientar que o conteúdo da sentença arbitral em causa no processo principal não podia ter sido objeto de uma decisão judicial abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001 sem que duas regras fundamentais deste regulamento, respeitantes, por um lado, ao efeito relativo de uma cláusula compromissória inserida num contrato de seguro e, por outro, à litispendência, fossem violadas.

    60

    Com efeito, no que respeita, por um lado, ao efeito relativo de uma cláusula compromissória inserida num contrato de seguro, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma cláusula atributiva de jurisdição acordada entre um segurador e um tomador de seguro não pode ser oposta ao lesado de um dano segurado que, nos casos em que o direito nacional o permita, pretender intentar diretamente, com fundamento em responsabilidade extracontratual, uma ação contra o segurador perante o órgão jurisdicional do lugar onde o facto danoso ocorreu ou perante o tribunal do seu domicílio (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2017, Assens Havn, C‑368/16, EU:C:2017:546, n.os 31 e 40).

    61

    Daqui resulta que, sob pena de violação deste direito das vítimas, um órgão jurisdicional diferente do que já foi chamado a conhecer da ação direta não se deve declarar competente com fundamento na referida cláusula compromissória, e tal com vista a garantir o objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 44/2001, concretamente, a proteção das vítimas de um dano perante a seguradora em causa (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2017, Assens Havn, C‑368/16, EU:C:2017:546, n.os 36 e 41).

    62

    Ora, este objetivo de proteção das vítimas de danos ficaria comprometido se um acórdão que reproduz os termos de uma sentença arbitral, na qual um tribunal arbitral se declarou competente com fundamento na referida cláusula compromissória, inserida no contrato de seguro em causa, pudesse ser considerado uma «decisão proferida entre as mesmas partes no Estado‑Membro requerido», na aceção do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001.

    63

    Com efeito, como ilustram as circunstâncias do litígio no processo principal, admitir que tal acórdão pudesse obstar ao reconhecimento de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro na sequência de uma ação diretamente intentada pelo lesado seria suscetível de privar este último da reparação efetiva do dano que sofreu.

    64

    Por outro lado, no que respeita à litispendência, resulta da decisão de reenvio que, quando foi iniciado o processo de arbitragem, ou seja, em 16 de janeiro de 2012, já estava pendente uma ação nos órgãos jurisdicionais espanhóis entre, nomeadamente, o Estado espanhol e o London P&I Club.

    65

    Além disso, dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, resulta que as ações cíveis intentadas perante os órgãos jurisdicionais espanhóis tinham sido notificadas ao London P&I Club no mês de junho de 2011 e que o Reino de Espanha foi convidado, pelo árbitro único, a participar no processo de arbitragem instaurado pelo London P&I Club em Londres.

    66

    Ora, uma vez que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 tem por objeto «ações […] entre as mesmas partes», sem exigir uma participação efetiva nos processos em questão, há que considerar que as mesmas partes estavam envolvidas nos processos referidos no n.o 64 do presente acórdão (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Merck, C‑231/16, EU:C:2017:771, n.os 31 e 32).

    67

    Por último, estes processos tinham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, concretamente, a eventual responsabilização do London P&I Club perante o Estado espanhol, ao abrigo do contrato de seguro celebrado entre o London P&I Club e os proprietários do Prestige, pelos danos causados pelo naufrágio deste último.

    68

    A este respeito, interpretando o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001, o Tribunal de Justiça declarou que uma ação que vise obter a declaração de que o demandado é responsável por um prejuízo e a sua condenação no pagamento de uma indemnização tem o mesmo pedido e a mesma causa de pedir que uma ação declarativa negativa desse demandado destinada a obter uma declaração no sentido de que o mesmo não é responsável pelo referido prejuízo (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de dezembro de 2013, Nipponka Insurance, C‑452/12, EU:C:2013:858, n.o 42, e de 20 de dezembro de 2017, Schlömp, C‑467/16, EU:C:2017:993, n.o 51). Ora, no caso em apreço, enquanto as ações cíveis intentadas em Espanha tinham nomeadamente por objeto a responsabilização do London P&I Club, o processo de arbitragem iniciado por este em Londres tinha por objeto a obtenção de uma declaração no sentido da inexistência dessa mesma responsabilidade.

    69

    Essas circunstâncias correspondem a uma situação de litispendência na qual, em conformidade com o artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001, o tribunal a que a ação foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar e, quando essa competência estiver estabelecida, declara‑se incompetente em favor daquele.

    70

    Ora, como foi sublinhado no n.o 56 do presente acórdão, a redução ao máximo do risco de processos concorrentes que é prosseguida por esta disposição é um dos objetivos e princípios subjacentes à cooperação judiciária em matéria civil na União.

    71

    Incumbe ao órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se para proferir um acórdão que reproduza os termos de uma sentença arbitral verificar o respeito das disposições e dos objetivos fundamentais do Regulamento n.o 44/2001 para prevenir que estes sejam contornados, como acontece no caso em que um processo arbitral é concluído em violação concomitante do efeito relativo de uma cláusula compromissória inserida num contrato de seguro e das regras em matéria de litispendência previstas no artigo 27.o deste regulamento. Ora, no caso vertente, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça e dos debates na audiência que essa verificação não ocorreu, nem perante a High Court of Justice (England Wales), Queen’s Bench Division (Commercial Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench (Secção Comercial)], nem perante a Court of Appeal (England Wales) (Civil Division) [Tribunal de Recurso (Inglaterra e País de Gales) (Secção Cível)], não tendo aliás nenhum destes dois órgãos jurisdicionais apresentado um pedido de reenvio prejudicial no Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.o TFUE.

    72

    Nestas circunstâncias, um acórdão que reproduz os termos de uma sentença arbitral, como o que está em causa no processo principal, não pode obstar, ao abrigo do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, ao reconhecimento de uma decisão que emana de outro Estado‑Membro.

    73

    Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que um acórdão proferido por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que reproduza os termos de uma sentença arbitral não constitui uma decisão, na aceção desta disposição, quando um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro não podia adotar uma decisão conducente a um resultado equivalente ao da referida sentença arbitral sem violar as disposições e os objetivos fundamentais desse regulamento, em particular o efeito relativo de uma cláusula compromissória inserida no contrato de seguro em causa e as regras em matéria de litispendência que constam do artigo 27.o do mesmo regulamento, sendo que, nesse caso, esse acórdão não é suscetível de impedir, no referido Estado‑Membro, o reconhecimento de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional noutro Estado‑Membro.

    Quanto à terceira questão

    74

    Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se, caso o artigo 34.o, ponto 3, desse regulamento não seja aplicável a um acórdão que reproduz os termos de uma sentença arbitral, o artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que permite recusar o reconhecimento ou a execução de uma decisão de outro Estado‑Membro por ser contrária à ordem pública, com o fundamento de essa decisão violar o caso julgado do referido acórdão.

    75

    A este respeito, decorre da resposta às duas primeiras questões que, no caso em apreço, a inaplicabilidade do artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001 ao acórdão referido no n.o 29 do presente acórdão resulta do facto de o processo arbitral que deu origem à sentença que este acórdão confirmou ter sido concluído em violação das regras relativas à litispendência previstas no artigo 27.o deste regulamento e do efeito relativo de uma cláusula compromissória inserida no contrato de seguro em causa.

    76

    Nestas circunstâncias, não se pode considerar que a alegada violação desse acórdão pelo Despacho de Execução de 1 de março de 2019, referido no n.o 34 do presente acórdão, proferido num processo que o próprio acórdão em causa não teve em conta, possa constituir uma violação da ordem pública no Reino Unido.

    77

    Em todo o caso, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, o artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser objeto de interpretação estrita, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos objetivos fundamentais deste regulamento. Por conseguinte, só deve ser usado em casos excecionais (Acórdão de 25 de maio de 2016, Meroni, C‑559/14, EU:C:2016:349, n.o 38 e jurisprudência referida).

    78

    Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que o recurso ao conceito de «ordem pública» está excluído quando estiver em causa um problema de compatibilidade de uma decisão estrangeira com uma decisão nacional (Acórdão de 4 de fevereiro de 1988, Hoffmann, 145/86, EU:C:1988:61, n.o 21).

    79

    Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 77 das suas conclusões e como observou o Governo francês, o legislador da União pretendeu regular exaustivamente a questão do caso julgado de uma decisão anteriormente proferida e, em particular, a questão do caráter inconciliável da decisão a reconhecer com essa decisão anterior através do artigo 34.o, pontos 3 e 4, do Regulamento n.o 44/2001, excluindo assim a possibilidade de recorrer, a este respeito, à exceção de ordem pública visada no artigo 34.o, ponto 1, desse regulamento.

    80

    Em face do exposto, há que responder à terceira questão que o artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, caso o artigo 34.o, ponto 3, desse regulamento não seja aplicável a um acórdão que reproduz os termos de uma sentença arbitral, o reconhecimento ou a execução de uma decisão de outro Estado‑Membro não pode ser recusado por ser contrário à ordem pública com o fundamento de a decisão em causa violar o caso julgado do referido acórdão.

    Quanto às despesas

    81

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 34.o, ponto 3, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um acórdão proferido por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que reproduza os termos de uma sentença arbitral não constitui uma decisão, na aceção desta disposição, quando um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro não podia adotar uma decisão conducente a um resultado equivalente ao da referida sentença arbitral sem violar as disposições e os objetivos fundamentais desse regulamento, em particular o efeito relativo de uma cláusula compromissória inserida no contrato de seguro em causa e as regras em matéria de litispendência que constam do artigo 27.o do mesmo regulamento, sendo que, nesse caso, esse acórdão não é suscetível de impedir, no referido Estado‑Membro, o reconhecimento de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional noutro Estado‑Membro.

     

    2)

    O artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, caso o artigo 34.o, ponto 3, desse regulamento não seja aplicável a um acórdão que reproduz os termos de uma sentença arbitral, o reconhecimento ou a execução de uma decisão de outro Estado‑Membro não pode ser recusado por ser contrário à ordem pública com o fundamento de a decisão em causa violar o caso julgado do referido acórdão.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: inglês.

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