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Documento 62017CJ0190

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 31 de maio de 2018.
Lu Zheng contra Ministerio de Economía y Competitividad.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Superior de Justicia de Madrid.
Reenvio prejudicial — Controlos dos montantes em dinheiro líquido que entram ou saem da União Europeia — Regulamento (CE) n.o 1889/2005 — Âmbito de aplicação — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Nacional de um país terceiro que transporta um montante significativo em dinheiro líquido não declarado nas suas bagagens — Dever de declaração relacionado com a saída desse montante do território espanhol — Sanções — Proporcionalidade.
Processo C-190/17.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2018:357

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

31 de maio de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Controlos dos montantes em dinheiro líquido que entram ou saem da União Europeia — Regulamento (CE) n.o 1889/2005 — Âmbito de aplicação — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Nacional de um país terceiro que transporta um montante significativo em dinheiro líquido não declarado nas suas bagagens — Dever de declaração relacionado com a saída desse montante do território espanhol — Sanções — Proporcionalidade»

No processo C‑190/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Superior de Justicia de Madrid (Tribunal Superior de Justiça de Madrid, Espanha), por decisão de 5 de abril de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de abril de 2017, no processo

Lu Zheng

contra

Ministerio de Economía y Competitividad,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta, presidente de secção, C. G. Fernlund (relator), A. Arabadjiev, S. Rodin e E. Regan, juízes,

advogado‑geral: M. Wathelet,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo espanhol, por A. Gavela Llopis, na qualidade de agente,

em representação do Governo belga, por P. Cottin e M. Jacobs, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por K. Boskovits, E. Zisi e A. Dimitrakopoulou, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. Arenas e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1889/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativo ao controlo das somas em dinheiro líquido que entram ou saem da Comunidade (JO 2005, L 309, p. 9).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe L. Zheng ao Ministerio de Economía y Competitividad (Ministério da Economia e da Competitividade, Espanha) a respeito da coima que lhe foi aplicada por incumprimento do dever de declarar, à saída do território espanhol, certos montantes em dinheiro líquido transportados.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 2 e 3 do Regulamento n.o 1889/2005 têm a seguinte redação:

«(2)

A introdução de produtos de atividades ilícitas no sistema financeiro e o seu investimento após branqueamento são prejudiciais a um desenvolvimento económico sólido e sustentável. Assim sendo, a Diretiva 91/308/CEE do Conselho, de 10 de Junho de 1991, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais [(JO 1991, L 166, p. 77)], introduziu um mecanismo comunitário destinado a evitar o branqueamento de dinheiro mediante o controlo das operações realizadas através de instituições de crédito e financeiras e determinados tipos de profissões. Uma vez que existe o risco de a aplicação desse mecanismo vir a provocar o aumento dos movimentos de dinheiro líquido para fins ilícitos, a Diretiva [91/308] deverá ser completada com um sistema de controlo do dinheiro líquido que entra ou sai do território da Comunidade.

(3)

Atualmente, tais sistemas de controlo são aplicados por apenas alguns Estados‑Membros, agindo ao abrigo da legislação nacional. As disparidades da legislação são prejudiciais ao funcionamento correto do mercado interno. Por isso, os elementos básicos devem ser harmonizados a nível comunitário para assegurar um nível de controlo equivalente dos movimentos de dinheiro líquido que atravessa as fronteiras da Comunidade. Todavia, tal harmonização não deve afetar a possibilidade de os Estados‑Membros aplicarem, em conformidade com as atuais disposições do Tratado, controlos nacionais sobre os movimentos de dinheiro líquido no interior da Comunidade.»

4

Nos termos do artigo 1.o deste regulamento:

«1.   «O presente regulamento completa as disposições da Diretiva [91/308] relativa às transações realizadas através de instituições de crédito e financeiras e determinados tipos de profissões, estabelecendo normas harmonizadas para o controlo, exercido pelas autoridades competentes, de dinheiro líquido que entre ou saia da Comunidade.

2.   O presente regulamento não prejudica as medidas nacionais de controlo dos movimentos de dinheiro líquido no interior da Comunidade, desde que essas medidas sejam tomadas em conformidade com o artigo [65.o TFUE].»

5

O artigo 3.o, n.o 1, do referido regulamento dispõe:

«Qualquer pessoa singular que entra ou sai da Comunidade com uma soma de dinheiro líquido igual ou superior a 10000 euros deve declarar a soma transportada às autoridades competentes dos Estados‑Membros através dos quais entra ou sai da Comunidade, de acordo com o presente regulamento. Considera‑se que esse dever não foi cumprido se a informação prestada for incorreta ou incompleta.»

6

O artigo 9.o, n.o 1, deste mesmo regulamento prevê:

«Cada Estado‑Membro definirá as sanções a aplicar nos casos de incumprimento do dever de declaração constante do artigo 3.o Tais sanções deverão ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»

Direito espanhol

7

Resulta das disposições conjugadas do artigo 2.o, n.o 1, alínea v), e do artigo 34.o da Ley 10/2010 de prevención del blanqueo de capitales y de la financiación del terrorismo (Lei 10/2010, relativa à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo), de 28 de abril de 2010 (BOE n.o 103, de 29 de abril de 2010), que as pessoas singulares que entrem ou saiam do território nacional com meios de pagamento em montante igual ou superior a 10000 euros estão obrigadas a apresentar uma declaração prévia com informações exatas sobre o detentor, o proprietário, o destinatário, o montante, a natureza, a proveniência, a utilização pretendida, o itinerário e os meios de transporte dos meios de pagamento.

8

O artigo 35.o, n.o 2, desta lei prevê que a omissão da declaração, quando esta seja exigível, ou a falta de veracidade dos elementos declarados, sempre que possa ser considerada particularmente relevante, determina a retenção, por parte dos funcionários aduaneiros ou dos agentes da Polícia, da totalidade dos meios de pagamentos encontrados, sendo deduzido o montante mínimo de sobrevivência.

9

Em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, alínea a), da Lei 10/2010, a violação do referido dever de declaração constitui uma infração grave, que pode ser punida, nos termos do artigo 57.o, n.o 3, desta lei, com uma coima no montante mínimo de 600 euros e cujo valor máximo pode ascender ao dobro do montante em dinheiro líquido não declarado.

10

Nos termos do artigo 59.o, n.o 3, da referida lei:

«Para determinar a sanção aplicável por violação do dever de declaração previsto no artigo 34.o, são consideradas agravantes as seguintes circunstâncias:

a)

O montante considerável do movimento, considerando‑se como tal o movimento que corresponda ao dobro do limite da declaração;

b)

A falta de prova da origem lícita dos meios de pagamento;

c)

A incoerência entre a atividade desenvolvida pela pessoa em causa e o montante do movimento;

d)

A circunstância de os meios de pagamento serem encontrados num local ou numa situação que demonstre uma clara intenção de os ocultar;

e)

As sanções definitivas que no decurso dos últimos cinco anos tenham sido aplicadas à pessoa em causa por via administrativa a título de um incumprimento do dever de declaração.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11

Em 10 de agosto de 2014, L. Zheng, nacional chinês, registou as suas bagagens no Aeroporto de Grande Canária (Espanha) para um voo com destino a Hong Kong (China), com escalas em Madrid (Espanha) e Amesterdão (Países Baixos).

12

Durante um controlo efetuado aquando da escala no Aeroporto de Madrid‑Barajas, constatou‑se que as bagagens de L. Zheng continham um montante de 92900 euros em dinheiro líquido, que aquele não tinha declarado em violação do dever previsto no artigo 34.o da Lei 10/2010.

13

Este montante foi objeto de apreensão, com exceção de 1000 euros correspondentes ao mínimo de sobrevivência previsto no artigo 35.o, n.o 2, desta lei.

14

Em 15 de abril de 2015, o Secretario General del Tesoro y Política Financiera (secretário‑geral do Tesouro e da Política Financeira, Espanha), tutelado pelo Ministério da Economia e da Competitividade, aplicou uma coima administrativa de 91900 euros a L. Zheng, tendo salientado a título de circunstâncias agravantes o elevado valor do montante não declarado, a falta de prova da origem lícita do montante em dinheiro líquido, a incoerência entre as declarações do visado relativas à sua atividade profissional e o facto de o montante em dinheiro líquido se encontrar num local que demonstrava uma clara intenção de o ocultar.

15

L. Zheng interpôs recurso no órgão jurisdicional de reenvio da decisão que lhe aplicou a coima, tendo pedido ou a sua anulação, ou a aplicação da sanção mínima, ou a aplicação de uma sanção proporcionada à infração cometida. Invoca, a este respeito, a violação do princípio da proporcionalidade.

16

O órgão jurisdicional de reenvio considera, em substância, que, ainda que o montante em dinheiro líquido em causa no processo principal tenha permanecido do território da União Europeia, L. Zheng estava sujeito ao dever de declaração previsto no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1889/2005, uma vez que o visado não podia, antes da sua chegada à China, aceder ao dinheiro por este se encontrar nas suas bagagens registadas no Aeroporto de Grande Canária.

17

A respeito da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao artigo 9.o, n.o 1, deste regulamento no seu Acórdão de 16 de julho de 2015, Chmielewski (C‑255/14, EU:C:2015:475), o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se quanto ao alcance desta disposição e quanto à compatibilidade com esta disposição de certos aspetos da legislação nacional que sanciona o incumprimento do dever de declarar os movimentos em dinheiro líquido.

18

Foi nestas circunstâncias que o Tribunal Superior de Justicia de Madrid (Tribunal Superior de Justiça de Madrid, Espanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 1889/2005] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que, para punir o incumprimento do dever de declaração previsto no artigo 3.o do mesmo regulamento, permite que seja aplicada uma coima cujo montante máximo poderá ser igual ao dobro do valor dos meios de pagamento utilizados?

2)

Deve o artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 1889/2005] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê como circunstâncias agravantes do incumprimento do dever de declaração a falta de prova da origem lícita dos meios de pagamento e a incoerência entre a atividade desenvolvida pela pessoa em causa [e o montante do movimento]?

3)

Em caso de resposta afirmativa às duas questões anteriores, deve o artigo 9.o, n.o 1, do [R]egulamento [n.o 1889/2005] ser interpretado no sentido de que preenche o requisito da proporcionalidade a aplicação de uma sanção económica cujo montante, independentemente do montante do movimento, possa corresponder a até 25% do montante líquido não declarado?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à admissibilidade da primeira questão

19

O Governo espanhol contesta a admissibilidade da primeira questão pelo facto de a coima em causa no processo principal ser inferior ao montante do dinheiro líquido não declarado e, portanto, estar longe de ser o dobro deste montante. Como tal, segundo o Governo espanhol, a resposta a esta questão não é necessária para a solução do litígio no processo principal.

20

A este respeito, importa recordar que compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 24).

21

Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 25).

22

No caso vertente, o Governo espanhol não contesta o facto de a legislação nacional em causa no processo principal permitir a imposição de uma coima que ascenda ao dobro do montante do dinheiro líquido não declarado. Com efeito, como resulta do n.o 9 do presente acórdão, o artigo 57.o, n.o 3, da Lei 10/2010 prevê que qualquer incumprimento do dever de declaração, como o que está em causa no processo principal, pode ser punido com uma coima no valor mínimo de 600 euros e cujo valor máximo pode ascender ao dobro do montante em dinheiro líquido não declarado.

23

Embora seja certo que a coima em causa no processo principal não ascendeu ao montante máximo permitido por esta legislação, não deixa de ser verdade que o montante dessa coima foi fixado através da aplicação da referida legislação, tendo em conta o montante máximo aí previsto.

24

Como tal, não é manifesto que a primeira questão submetida tenha caráter hipotético ou que não esteja relacionada com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal.

25

Nestas circunstâncias, esta questão deve ser declarada admissível.

Quanto à primeira e segunda questões

Observações preliminares

26

A primeira e segunda questões, as quais importa analisar em conjunto, têm por objeto a interpretação do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1889/2005 e mais precisamente a questão de saber se esta disposição se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o incumprimento do dever de declarar os montantes significativos em dinheiro líquido que entram ou saem do território deste Estado pode ser punido com uma coima calculada tendo em conta determinadas circunstâncias agravantes e que pode ascender ao dobro do montante não declarado.

27

A título preliminar, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe, sendo caso disso, ao Tribunal de Justiça reformular as questões que lhe são submetidas. Além disso, o Tribunal de Justiça pode entender ser necessário ter em consideração normas de direito da União às quais o juiz nacional não tenha feito referência no enunciado da sua questão (Acórdão de 13 de outubro de 2016, M. e S., C‑303/15, EU:C:2016:771, n.o 16 e jurisprudência referida).

28

A este respeito, há que salientar que o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que o movimento do montante em dinheiro líquido em causa no processo principal deve ser considerado como estando a sair da União, uma vez que L. Zheng não podia, antes da sua chegada à China, aceder ao dinheiro por este se encontrar na sua bagagem registada no Aeroporto de Grande Canária.

29

Neste contexto, importa recordar que o dever de declaração previsto no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1889/2005 apenas se aplica às pessoas singulares que entrem ou saiam da União com um montante em dinheiro líquido igual ou superior a 10000 euros. Além disso, resulta desta disposição que a declaração prevista por este regulamento deve ser efetuada pela pessoa singular em causa às autoridades competentes do Estado‑Membro através do qual entra ou sai da União.

30

Embora o referido regulamento não defina o conceito de «pessoa singular que entra ou sai» da União, o Tribunal de Justiça já declarou que este conceito não é ambíguo e deve ser entendido no seu sentido usual, ou seja, no sentido de que se refere à deslocação de uma pessoa singular de um local que não faz parte do território da União para um local que faz parte deste território, ou deste último local para um local que não faz parte do referido território (Acórdão de 4 de maio de 2017, El Dakkak e Intercontinental, C‑17/16, EU:C:2017:341, n.os 19 a 21).

31

Daqui decorre que o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1889/2005 deve ser interpretado no sentido de que qualquer pessoa singular que, como L. Zheng, sai fisicamente da União com um montante em dinheiro líquido igual ou superior a 10000 euros é obrigada a declarar o montante transportado às autoridades competentes do Estado‑Membro através do qual sai fisicamente da União.

32

No caso vertente, na medida em que resulta da decisão de reenvio que era suposto que L. Zheng saísse do território da União através do Aeroporto de Amesterdão, este estava obrigado, por força do referido regulamento, a declarar o montante em dinheiro líquido em causa no processo principal, não às autoridades espanholas, mas às autoridades competentes neerlandesas.

33

Contudo, há que considerar que o Regulamento n.o 1889/2005 não se opõe, em princípio, a uma legislação de um Estado‑Membro que imponha outras obrigações de declaração para além das impostas por este regulamento.

34

Com efeito, resulta do considerando 3 e do artigo 1.o, n.o 2, deste regulamento que este não afeta a possibilidade de os Estados‑Membros aplicarem, em conformidade com as disposições do Tratado FUE, e em particular do seu artigo 65.o, controlos nacionais sobre os movimentos de montantes em dinheiro líquido no interior da União.

35

Portanto, há que interpretar a primeira e segunda questões no sentido de que, por seu intermédio, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se os artigos 63.o e 65.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o incumprimento do dever de declarar montantes significativos em dinheiro líquido que entram ou saem do território deste Estado pode ser punido com uma coima calculada tendo em conta certas circunstâncias agravantes e que pode ascender ao dobro do montante não declarado.

Quanto à livre circulação de capitais

36

O artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE dispõe que o artigo 63.o TFUE, o qual, segundo jurisprudência constante, proíbe, em termos gerais, os entraves aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 61 e jurisprudência referida), não prejudica o direito de os Estados‑Membros, nomeadamente, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

37

A este título, as medidas nacionais que limitam a livre circulação de capitais podem ser justificadas pelas razões mencionadas no artigo 65.o TFUE desde que respeitem o princípio da proporcionalidade, o qual exige que sejam adequadas para garantir a realização do objetivo que legitimamente prosseguem e que não ultrapassem o necessário para alcançar esse objetivo (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.os 76, 77 e jurisprudência referida).

38

A este respeito, importa notar que o Tribunal de Justiça já admitiu, de resto, que o combate ao branqueamento de capitais, que está ligado ao objetivo de proteção da ordem pública, constitui um objetivo legítimo suscetível de justificar um entrave às liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (Acórdão de 25 de abril de 2013, Jyske Bank Gibraltar, C‑212/11, EU:C:2013:270, n.o 64 e jurisprudência referida).

39

Acresce que, no que respeita, em particular, ao dever de declaração em causa no processo principal, resulta de jurisprudência assente que a livre circulação de capitais, conforme instituída pelos Tratados, não se opõe a que a exportação de notas esteja dependente de uma declaração prévia (v., neste sentido, Acórdãos de 23 de fevereiro de 1995, Bordessa e o., C‑358/93 e C‑416/93, EU:C:1995:54, n.o 31, e de 14 de dezembro de 1995, Sanz de Lera e o., C‑163/94, C‑165/94 e C‑250/94, EU:C:1995:451, n.o 10).

40

Contudo, o princípio da proporcionalidade impõe‑se não apenas no que diz respeito à determinação dos elementos constitutivos de uma infração mas igualmente no que diz respeito à determinação das regras relativas ao montante das coimas e à apreciação dos elementos que podem entrar em linha de conta para fixar as coimas (v., neste sentido, Acórdão de 9 de fevereiro de 2012, Urbán, C‑210/10, EU:C:2012:64, n.os 53 e 54).

41

Em especial, as medidas administrativas ou repressivas permitidas por uma legislação nacional não devem exceder os limites do que é necessário para a realização dos objetivos legitimamente prosseguidos por essa legislação (v., por analogia, Acórdão de 16 de julho de 2015, Chmielewski, C‑255/14, EU:C:2015:475, n.o 22).

42

Neste contexto, o rigor das sanções deve ser adequado à gravidade das violações que reprimem (v., por analogia, Acórdão de 16 de julho de 2015, Chmielewski, C‑255/14, EU:C:2015:475, n.o 23).

43

A este respeito, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, ainda que, ao abrigo do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1889/2005, os Estados‑Membros disponham de uma margem de apreciação relativamente à escolha das sanções que adotam para assegurar o respeito do dever de declaração previsto no artigo 3.o deste regulamento, uma coima cujo valor corresponde a 60% do montante em dinheiro líquido não declarado, quando este montante for superior a 50000 euros, na qual se incorre em caso de violação deste dever, não se afigura proporcionada tendo em conta a natureza da infração em causa. Com efeito, o Tribunal de Justiça considerou que tal coima ultrapassa os limites do que é necessário para garantir o respeito do referido dever e assegurar a realização dos objetivos prosseguidos pelo referido regulamento, uma vez que a sanção prevista no artigo 9.o não visa sancionar eventuais atividades fraudulentas ou ilícitas, mas unicamente uma violação do referido dever (Acórdão de 16 de julho de 2015, Chmielewski, C‑255/14, EU:C:2015:475, n.os 29 a 31).

44

Ora, no caso vertente, impõe‑se constatar que o artigo 57.o, n.o 3, da Lei 10/2010, tal como o artigo 9.o do Regulamento n.o 1889/2005, não visa sancionar eventuais atividades fraudulentas ou ilícitas, mas sim a violação do referido dever de declaração.

45

Além disso, ainda que tal coima seja calculada tendo em conta determinadas circunstâncias agravantes, desde que estas respeitem o princípio da proporcionalidade, o facto de que o seu valor máximo possa ascender ao dobro do montante em dinheiro líquido não declarado e que, em todo o caso, como no caso vertente, a coima possa ser fixada num valor que corresponde a quase 100% deste montante ultrapassa os limites do que é necessário para garantir o respeito do dever de declaração.

46

Atendendo às considerações precedentes, importa responder à primeira e segunda questões que os artigos 63.o e 65.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o incumprimento do dever de declarar os montantes significativos em dinheiro líquido que entram ou saem do território deste Estado pode ser punido com uma coima que pode ascender até ao dobro do montante não declarado.

Quanto à terceira questão

47

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União pertinente para o caso no processo principal deve ser interpretado no sentido de que a aplicação de uma coima que, independentemente do montante objeto do movimento de dinheiro, possa ascender até 25% do montante líquido não declarado preenche o requisito da proporcionalidade.

48

A este respeito, embora as questões que têm por objeto o direito da União gozem de uma presunção de pertinência, como recordado nos n.os 20 e 21 do presente acórdão, resulta de jurisprudência constante que a necessidade de obter uma interpretação do direito da União que seja útil para o órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as situações factuais em que assentam essas questões. Além disso, a decisão de reenvio deve indicar as razões precisas que levaram o juiz nacional a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (Acórdão de 14 de junho de 2017, Online Games e o., C‑685/15, EU:C:2017:452, n.o 43 e jurisprudência referida).

49

No caso vertente, resulta da decisão de reenvio que a sanção económica a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere na sua terceira questão prejudicial não corresponde à que foi aplicada ao recorrente no processo principal e, para além do mais, nem parece existir, como tal, na ordem jurídica espanhola. Em todo o caso, nenhum elemento dos autos à disposição do Tribunal de Justiça atesta a existência de tal sanção.

50

Há, portanto, que declarar esta questão inadmissível, uma vez que a função confiada ao Tribunal de Justiça, no âmbito do artigo 267.o TFUE, é contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros, e não emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas (Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 42 e jurisprudência referida).

Quanto às despesas

51

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

Os artigos 63.o e 65.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o incumprimento do dever de declarar os montantes significativos em dinheiro líquido que entram ou saem do território deste Estado pode ser punido com uma coima que pode ascender até ao dobro do montante não declarado.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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