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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62014CJ0486

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 29 de junho de 2016.
Processo penal contra Piotr Kossowski.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hanseatisches Oberlandesgericht Hamburg.
Reenvio prejudicial — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigos 54.° e 55.°, n.° 1, alínea a) — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.° — Princípio ne bis in idem — Admissibilidade de procedimentos criminais contra um arguido num Estado‑Membro após o arquivamento pelo Ministério Público, noutro Estado‑Membro, de um processo penal iniciado sem instrução exaustiva — Não apreciação do mérito do processo.
Processo C-486/14.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2016:483

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

29 de junho de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigos 54.° e 55.°, n.o 1, alínea a) — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Admissibilidade de procedimentos criminais contra um arguido num Estado‑Membro após o arquivamento pelo Ministério Público, noutro Estado‑Membro, de um processo penal iniciado sem instrução exaustiva — Não apreciação do mérito do processo»

No processo C‑486/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Hanseatisches Oberlandesgericht Hamburg (Tribunal Regional Superior de Hamburgo, Alemanha), por decisão de 23 de outubro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de novembro de 2014, no processo penal contra

Piotr Kossowski,

sendo interveniente:

Generalstaatsanwaltschaft Hamburg,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, L. Bay Larsen, J. L. da Cruz Vilaça e F. Biltgen, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet, J. Malenovský, E. Levits, J.‑C. Bonichot, A. Prechal (relatora), C. Vajda, S. Rodin e K. Jürimäe, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 29 de setembro de 2015,

vistas as observações apresentadas:

em representação de P. Kossowski, por I. Vogel, Rechtsanwältin,

em representação do Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, por L. von Selle e C. Rinio, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por F. X. Bréchot, D. Colas e C. David, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. Bulterman e M. de Ree, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, J. Sawicka e M. Szwarc, na qualidade de agentes,

em representação do Governo do Reino Unido, por L. Christie, na qualidade de agente, assistido por J. Holmes, barrister,

em representação do Governo suíço, por R. Balzaretti, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de dezembro de 2015,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 54.° e 55.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen (Luxemburgo), em 19 de junho de 1990, e entrada em vigor em 26 de março de 1995 (JO 2000, L 239, p. 19, a seguir «CAAS»), bem como do artigo 50.o e do artigo 52.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado na Alemanha contra Piotr Kossowski (a seguir «arguido»), acusado de ter cometido, em 2 de outubro de 2005, atos qualificados de extorsão com ameaça de violência no território desse Estado‑Membro.

Quadro jurídico

Direito da União

Carta

3

O artigo 50.o da Carta, sob a epígrafe «Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito», tem a seguinte redação:

«Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.»

CAAS

4

A CAAS foi celebrada com vista a assegurar a aplicação do Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen, em 14 de junho de 1985 (JO 2000, L 239, p. 13).

5

Os artigos 54.° e 55.° da CAAS figuram no título III, capítulo 3, da mesma, intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem». O artigo 54.o da CAAS estabelece:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

6

O artigo 55.o da CAAS dispõe:

«1.   Uma parte contratante pode, no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, declarar que não está vinculada pelo artigo 54.o num ou mais dos seguintes casos:

a)

Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido, no todo, ou em parte, no seu território; neste último caso, esta exceção não é, todavia, aplicável se estes factos ocorreram em parte no território da parte contratante em que a sentença foi proferida;

[...]

4.   As exceções que foram objeto de uma declaração nos termos do n.o 1 não são aplicáveis quando a parte contratante em causa tenha, pelos mesmos factos, solicitado o procedimento judicial a outra parte contratante ou concedido a extradição da pessoa em causa.»

7

Ao ratificar a CAAS, a República Federal da Alemanha formulou a seguinte reserva em relação ao artigo 54.o da CAAS, nos termos do artigo 55.o, n.o 1, da mesma (BGB1. 1994 II, p. 631):

«A República Federal da Alemanha não fica vinculada pelo artigo 54.o da [CAAS]

a)

Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido, no todo, ou em parte, no seu território [...]»

Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União

8

A CAAS foi integrada no direito da União pelo Protocolo (n.o 2) que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia, anexo ao Tratado da União Europeia, na sua versão anterior ao Tratado de Lisboa, e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (JO 1997, C 340, p. 93), a título de «acervo de Schengen», conforme definido no anexo desse protocolo. Este último autorizou treze Estados‑Membros a instaurarem entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação do acervo de Schengen.

Protocolo (n.o 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia

9

O Protocolo (n.o 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (JO 2010, C 83, p. 290), anexo ao Tratado de Lisboa, autorizou 25 Estados‑Membros, no quadro jurídico e institucional da União, a instaurarem entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo acervo de Schengen. Assim, nos termos do artigo 2.o deste protocolo:

«O acervo de Schengen é aplicável aos Estados‑Membros a que se refere o artigo 1.o, sem prejuízo do disposto no artigo 3.o do Ato de Adesão de 16 de abril de 2003 e no artigo 4.o do Ato de Adesão de 25 de abril de 2005. O Conselho substitui o Comité Executivo criado pelos acordos de Schengen.»

Direito polaco

10

O artigo 327.o do Kodeks postępowania karnego (Código de Processo Penal) prevê, no seu § 2:

«Um processo de inquérito dirigido contra uma pessoa suspeita da prática de um crime e que terminou pela não acusação definitiva do suspeito só pode vir a ser reaberto por despacho do Ministério Público [...] caso se descubram novos elementos de facto ou de prova essenciais, desconhecidos na pendência do processo anterior. [...]»

11

O artigo 328.o deste código dispõe:

«1.   O Procurador‑Geral pode anular um despacho definitivo de não acusação proferido no fim do inquérito dirigido contra uma pessoa caso constate que o despacho de não acusação era ilegal […]

2.   Decorridos seis meses a contar da data em que o despacho de acusação se tornou definitivo, o Procurador‑Geral só pode anular ou alterar o despacho ou a sua fundamentação em benefício do suspeito da prática do crime.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

Resulta da decisão de reenvio que o Staatsanwaltschaft Hamburg (Ministério Público de Hamburgo, Alemanha) acusa o arguido de ter cometido, em Hamburgo (Alemanha), em 2 de outubro de 2005, atos que, no Direito Penal alemão, são qualificados de extorsão com ameaça de violência. Nessa ocasião, o arguido utilizou a viatura da vítima em causa no processo principal para abandonar o local. Foi aberto um inquérito contra o arguido em Hamburgo.

13

Em 20 de outubro de 2005, durante uma fiscalização rodoviária, as autoridades polacas apreenderam a viatura conduzida pelo arguido em Kołobrzeg (Polónia) e detiveram‑no para execução na Polónia de uma pena de prisão que lhe tinha sido aplicada no âmbito de outro processo. Após a realização de buscas no veículo conduzido pelo arguido, o Prokuratura rejonowa w Kołobrzegu (Ministério Público do círculo de Kołobrzeg, Polónia) abriu também um inquérito contra P. Kossowski relativo à acusação da prática do crime de extorsão com ameaça de violência, nos termos do artigo 282.o do Código Penal polaco, pelos factos praticados em Hamburgo em 2 de outubro de 2005.

14

No âmbito da entreajuda judiciária, o Prokuratura okręgowa w Koszalinie (Ministério Público da região de Koszalin, Polónia) dirigiu ao Ministério Público de Hamburgo um pedido de envio de cópias do inquérito. Essas cópias foram enviadas no mês de agosto de 2006.

15

No mês de dezembro de 2006, o Ministério Público do círculo de Kołobrzeg transmitiu ao Ministério Público de Hamburgo a sua decisão, de 22 de dezembro de 2006, de arquivamento do processo penal relativo ao arguido por falta de indícios suficientes.

16

É ponto assente que essa decisão se fundou no facto de o arguido se ter recusado a prestar depoimento e de a vítima em causa no processo principal e uma testemunha indireta residirem na Alemanha, pelo que não tinha sido possível ouvi‑las no decurso do inquérito, nem confirmar as declarações, em parte imprecisas e contraditórias, da vítima.

17

O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que, nos termos da informação sobre as vias de recurso anexada ao despacho de arquivamento, as partes interessadas tinham direito a interpor recurso do mesmo num prazo de sete dias a contar da notificação dessa mesma decisão. A vítima em causa no processo principal não parece ter interposto um tal recurso.

18

Em 24 de julho de 2009, o Ministério Público de Hamburgo emitiu um mandado de captura europeu contra o arguido, depois de ter obtido, em 9 de janeiro de 2006, um mandado de captura do Amtsgericht Hamburg (Tribunal de Comarca de Hamburgo, Alemanha) contra o arguido. Por ofício de 4 de setembro de 2009, a República Federal da Alemanha pediu a entrega do arguido à República da Polónia. Por decisão do sąd okręgowy w Koszalinie (Tribunal Regional de Koszalin, Polónia) de 17 de setembro de 2009, a execução do mandado de detenção europeu foi recusada tendo em conta a decisão de arquivamento do processo penal do Ministério Público do círculo de Kołobrzeg, qualificada por este órgão jurisdicional de definitiva, na aceção do Código de Processo Penal.

19

Em 7 de fevereiro de 2014, o arguido, que continuava a ser procurado na Alemanha, foi detido em Berlim (Alemanha). O Ministério Público de Hamburgo proferiu contra si um despacho de acusação em 17 de março de 2014. O Landgericht Hamburg (Tribunal Regional de Hamburgo, Alemanha) recusou dar início à fase de julgamento, fundamentando a sua decisão na extinção da ação penal, na aceção do artigo 54.o da CAAS, pela decisão do Ministério Público do círculo de Kołobrzeg que pôs termo ao procedimento criminal. Consequentemente, em 4 de abril de 2014, revogou o mandado de captura contra o arguido pelo que este, que estava preso preventivamente, foi libertado.

20

Chamado a pronunciar‑se em sede de recurso, interposto pelo Ministério Público de Hamburgo, sobre esta decisão, o órgão jurisdicional de reenvio considera assente, com base no direito alemão aplicável, que existem suspeitas suficientemente fundadas para justificar o início da fase de julgamento no Landgericht Hamburg (Tribunal Regional de Hamburgo) e que a acusação deveria ser admitida, a não ser que a tal se opusesse o princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o CAAS e no artigo 50.o da Carta.

21

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se a reserva formulada pela República Federal da Alemanha ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, alínea a), da CAAS é ainda válida. Sendo esse o caso, o princípio ne bis in idem não seria aplicável ao caso em apreço, uma vez que os factos imputados ao arguido foram cometidos no território alemão e as autoridades alemãs não pediram às autoridades polacas, nos termos do artigo 55.o, n.o 4, da CAAS, para perseguirem criminalmente o arguido.

22

Caso a referida reserva não seja válida, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se, uma vez que os factos investigados na Alemanha e na Polónia são os mesmos, sobre se, em razão da decisão do Ministério Público do círculo de Kołobrzeg, o arguido pode ser considerado «definitivamente julgado», na aceção do artigo 54.o da CAAS, ou «absolvido [...] por sentença transitada em julgado», na aceção do artigo 50.o da Carta. Considera que o processo principal se distingue do que deu origem ao acórdão de 5 de junho de 2014, M (C‑398/12, EU:C:2014:1057), em razão na inexistência de uma instrução exaustiva anterior à decisão de 22 de dezembro de 2006 que pôs termo aos procedimentos criminais. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta dúvidas relativamente à questão de saber se a natureza definitiva de uma tal decisão está sujeita à execução de certas obrigações através das quais é aplicada uma sanção ao comportamento ilícito.

23

Nestas condições, o Hanseatisches Oberlandesgericht Hamburg (Tribunal Regional Superior de Hamburgo, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

As reservas formuladas, nos termos do artigo 55.o, n.o 1, alínea a), da [CAAS], pelas partes contratantes no momento da ratificação [da CAAS] — nomeadamente a reserva [relativa ao artigo 54.o da CAAS] — mantêm‑se em vigor após a integração do acervo de Schengen no sistema jurídico da União através do [Protocolo (n.o 2) que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia], que foi mantido pelo [Protocolo (n.o 19) que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia]? Estas exceções constituem restrições proporcionais ao artigo 50.o da Carta, no sentido do artigo 52.o, n.o 1, da mesma?

2)

Em caso de resposta negativa: O [princípio ne bis in idem], previsto no artigo 54.o da CAAS e no artigo 50.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe ao exercício da ação penal num Estado‑Membro — a República Federal da Alemanha —, contra um arguido cujo processo foi arquivado pelo Ministério Público noutro Estado‑Membro — a República da Polónia — sem a fixação de obrigações [a título de sanções] e sem que tivesse sido levado a cabo uma [instrução] exaustiva, por razões de facto, i. e., por não haver suspeitas fundadas da prática de um crime e porque o processo só pode ser reaberto em caso de conhecimento de factos supervenientes relevantes, que, concretamente não se verificam?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

24

Resulta da decisão de reenvio que o pedido de decisão prejudicial se baseia no artigo 267.o TFUE, enquanto as questões submetidas respeitam à CAAS, Convenção que se enquadra no título VI do Tratado UE, na sua versão anterior ao Tratado de Lisboa.

25

A este respeito, é ponto assente que o regime previsto no artigo 267.o TFUE é aplicável à competência prejudicial do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 35.o UE, por sua vez aplicável até 1 de dezembro de 2014, sob reserva das condições previstas nesta última disposição (acórdão de 27 de maio de 2014, Spasic, C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586, n.o 43).

26

A República Federal da Alemanha fez uma declaração, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, UE, pela qual aceitou a competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar de acordo com as modalidades previstas no n.o 3, alínea b), deste artigo, como resulta da informação relativa à data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 1 de maio de 1999 (JO 1999, L 114, p. 56).

27

Nestas condições, o facto de a decisão de reenvio não mencionar o artigo 35.o UE, mas sim o artigo 267.o TFUE, não pode, por si só, acarretar a incompetência do Tribunal para responder às questões submetidas pelo Hanseatisches Oberlandesgericht Hamburg (Tribunal Regional Superior de Hamburgo) (v., neste sentido, acórdão de 27 de maio de 2014, Spasic, C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586, n.o 45).

28

Decorre das considerações precedentes que o Tribunal é competente para responder às questões submetidas.

Quanto às questões prejudiciais

29

Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, em primeiro lugar, se a declaração feita pela República Federal da Alemanha ao abrigo do artigo 55.o, n.o 1, alínea a), da CAAS é ainda válida e, em segundo lugar, em caso de resposta negativa à primeira questão, se o arguido foi definitivamente julgado, na aceção do artigo 54.o da CAAS e do artigo 50.o da Carta, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.

30

Uma vez que a questão da eventual aplicabilidade da exceção à regra ne bis in idem constante do artigo 55.o, n.o 1, alínea a), da CAAS apenas se coloca se, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, uma pessoa tiver sido «definitivamente julgada», no sentido do artigo 54.o da CAAS, sendo então a referida regra aplicável, há que começar por responder à segunda questão.

Quanto à segunda questão

31

Antes de mais, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou, no n.o 35 do acórdão de 5 de junho de 2014, M (C‑398/12, EU:C:2014:1057), que estando o direito de não ser julgado ou punido penalmente duas vezes pela mesma infração previsto tanto no artigo 54.o da CAAS como no artigo 50.o da Carta, o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado à luz deste último artigo.

32

Assim, há que considerar que, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da CAAS, lido à luz do artigo 50.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que uma decisão do Ministério Público de arquivamento dos procedimentos criminais e que encerra, em termos definitivos, sem prejuízo da sua reabertura ou da sua anulação, o inquérito instaurado contra uma pessoa sem que tenham sido aplicadas sanções pode ser qualificada de decisão definitiva, no sentido daqueles artigos, quando o referido processo foi encerrado sem que tivesse sido realizada uma instrução exaustiva.

33

Como resulta dos termos do artigo 54.o da CAAS, ninguém pode ser submetido a uma ação judicial intentada num Estado contratante pelos mesmos factos pelos quais já foi «definitivamente julgado» num outro Estado contratante.

34

Para que se possa considerar que uma pessoa foi «definitivamente julgada» pelos factos que lhe são imputados, no sentido daquela disposição, importa, em primeiro lugar, que a ação penal tenha ficado definitivamente extinta (v, neste sentido, acórdão de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.o 31 e jurisprudência referida).

35

A apreciação desta primeira condição deve ser feita com base no ordenamento jurídico do Estado contratante que proferiu a decisão penal em causa. Com efeito, uma decisão que, segundo o ordenamento jurídico do Estado contratante que instaurou uma ação penal contra uma pessoa, não extingue definitivamente a ação penal a nível nacional não pode, em princípio, ter por efeito obstar processualmente a que sejam eventualmente instauradas ou prosseguidas ações penais, pelos mesmos factos, contra essa pessoa noutro Estado contratante (v., neste sentido, acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Turanský, C‑491/07, EU:C:2008:768, n.o 36, e de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.os 32 e 36).

36

No processo principal, resulta da decisão de reenvio que, no ordenamento jurídico polaco, a decisão do Ministério Público do círculo de Kołobrzeg que pôs termo aos procedimentos criminais extinguiu definitivamente a ação penal na Polónia.

37

Por outro lado, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que nem a possibilidade, prevista no artigo 327.o, § 2, do Código de Processo Penal, de reabertura da instrução judicial quando surgem elementos de facto ou de prova essenciais, que não eram conhecidos na pendência do processo anterior, nem a possibilidade de o procurador‑geral anular, com base no artigo 328.o desse código, uma decisão definitiva de não acusação quando constate a ilicitude dessa não acusação são suscetíveis de pôr em causa, no ordenamento jurídico polaco, a natureza definitiva da extinção ação penal.

38

Quanto às circunstâncias segundo as quais, por um lado, a decisão em causa no processo principal foi tomada pelo Ministério Público do círculo de Kołobrzeg, agindo nessa qualidade, e, por outro, não foi executada qualquer sanção, não são as mesmas determinantes para apreciar se esta decisão põe fim, em termos definitivos, à ação penal.

39

Com efeito, o artigo 54.o da CAAS é também aplicável a decisões emanadas de uma autoridade chamada a participar na administração da justiça penal na ordem jurídica nacional em causa, como o Ministério Público do círculo de Kołobrzeg, pondo definitivamente termo aos procedimentos criminais num Estado‑Membro, ainda que sejam adotadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e não tenham a forma de uma sentença (v., neste sentido, acórdão de 11 de fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge, C‑187/01 e C‑385/01, EU:C:2003:87, n.os 28 e 38).

40

No que respeita à inexistência de uma sanção, há que observar que o artigo 54.o da CAAS apenas em caso de condenação prevê a condição de que a sanção tenha sido cumprida, esteja a ser atualmente executada ou que já não possa ser executada segundo as normas do Estado contratante de origem.

41

Por conseguinte, a menção de uma sanção não deve ser interpretada como sujeitando a aplicação do artigo 54.o da CAAS a uma condição adicional, fora da hipótese de uma condenação.

42

A fim de determinar se uma decisão como a que está em causa no processo principal constitui uma decisão pela qual alguém foi definitivamente julgado, na aceção do artigo 54.o da CAAS, importa assegurar, em segundo lugar, que esta decisão foi proferida na sequência de uma apreciação de mérito do processo (v., neste sentido, acórdãos de 10 de março de 2005, Miraglia, C‑469/03, EU:C:2005:156, n.o 30, e de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.o 28).

43

Para esse fim, importa atender ao objetivo prosseguido pela regulamentação de que o artigo 54.o da CAAS faz parte, bem como ao seu contexto (v., neste sentido, acórdão de 16 de outubro de 2014, Welmory, C‑605/12, EU:C:2014:2298, n.o 41 e jurisprudência referida).

44

A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o princípio ne bis in idem enunciado neste artigo visa, por um lado, evitar que, no espaço de liberdade, segurança e justiça, uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada possa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, ser perseguida pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes, a fim de garantir a segurança jurídica através do respeito das decisões dos órgãos públicos transitadas em julgado, na falta de harmonização ou de aproximação das legislações penais dos Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdãos de 28 de setembro de 2006, Gasparini e o., C‑467/04, EU:C:2006:610, n.o 27; de 22 de dezembro de 2008, Turanský, C‑491/07, EU:C:2008:768, n.o 41; e de 27 de maio de 2014, Spasic, C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586, n.o 77).

45

Por outro lado, contudo, embora o artigo 54.o da CAAS tenha por objetivo garantir que uma pessoa, que foi condenada e cumpriu a sua pena, ou, sendo esse o caso, foi definitivamente absolvida num Estado contratante, pode deslocar‑se no interior do espaço Schengen sem recear ser objeto de ações penais, pelos mesmos factos, noutro Estado contratante, esta disposição não tem por objetivo proteger um suspeito contra a eventualidade de vir a ser objeto de investigações sucessivas, pelos mesmos factos, em vários Estados contratantes (acórdão de 22 de dezembro de 2008, Turanský, C‑491/07, EU:C:2008:768, n.o 44).

46

Com efeito, a este respeito, há que interpretar o artigo 54.o da CAAS à luz do artigo 3.o, n.o 2, TUE, segundo o qual a União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que é assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria, nomeadamente, de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno.

47

Por conseguinte, a interpretação da natureza definitiva, na aceção do artigo 54.o da CAAS, de uma decisão penal de um Estado‑Membro deve ser feita não apenas à luz da necessidade de garantir a livre circulação de pessoas mas também de promover a prevenção da criminalidade e de lutar contra esse fenómeno no espaço de liberdade, segurança e justiça.

48

Atendendo às considerações precedentes, uma decisão que ponha termo a procedimentos criminais, como a que está em causa no processo principal, que foi adotada apesar de o Ministério Público não ter prosseguido com o exercício da ação penal apenas pelo motivo de o arguido ter recusado prestar declarações e a vítima e uma testemunha indireta residirem na Alemanha, pelo que não tinha sido possível ouvi‑las no decurso do inquérito, nem confirmar as declarações, em parte imprecisas e contraditórias, da vítima, sem que se tenha realizado qualquer outra diligência de instrução mais exaustiva com vista a recolher e examinar elementos de prova, não constitui uma decisão que tenha sido precedida de uma apreciação relativa ao mérito.

49

Com efeito, a aplicação do artigo 54.o da CAAS a uma tal decisão teria por efeito dificultar, ou mesmo impossibilitar, qualquer hipótese concreta de punir o comportamento ilícito imputado ao arguido nos Estados‑Membros em causa. Por um lado, a referida decisão de arquivamento terá sido adotada pelas autoridades judiciárias de um Estado‑Membro sem qualquer apreciação exaustiva do comportamento ilícito imputado ao arguido. Por outro lado, a abertura de um processo penal pelos mesmos factos num outro Estado‑Membro ficaria comprometida. Uma consequência desta natureza iria manifestamente contra a própria finalidade do artigo 3.o, n.o 2, TUE (v., neste sentido, acórdão de 10 de março de 2005, Miraglia, C‑469/03, EU:C:2005:156, n.os 33 e 34).

50

Por último, como o Tribunal de Justiça já salientou, o artigo 54.o da CAAS implica necessariamente a existência de uma confiança mútua dos Estados contratantes nos respetivos sistemas de justiça penal e que cada um dos referidos Estados aceite a aplicação do direito penal em vigor nos outros Estados contratantes, ainda que a aplicação do seu próprio direito nacional conduzisse a uma solução diferente (acórdão de 11 de dezembro de 2008, Bourquain, C‑297/07, EU:C:2008:708, n.o 37 e jurisprudência referida).

51

Esta confiança mútua implica que as autoridades competentes em causa do segundo Estado contratante aceitem uma decisão definitiva que foi proferida no território do primeiro Estado contratante nos termos em que foi comunicada a essas autoridades.

52

Contudo, a referida confiança mútua apenas pode prosperar se o segundo Estado contratante estiver em condições de assegurar, com base nos documentos comunicados pelo primeiro Estado contratante, que a decisão em causa tomada pelas autoridades competentes desse primeiro Estado constitui efetivamente uma decisão definitiva que contém uma apreciação sobre o mérito do processo.

53

Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral nos n.os 74 a 78 e 84 das suas conclusões, uma decisão do Ministério Público que põe termo aos procedimentos criminais e encerra o inquérito, como a que está em causa no processo principal, não pode ser considerada como tendo sido proferida na sequência de uma apreciação sobre o mérito do processo e, assim, não pode ser qualificada de decisão definitiva, na aceção do artigo 54.o da CAAS, quando resulta da própria fundamentação desta decisão que não houve uma instrução exaustiva, sem a qual a confiança mútua entre os Estados‑Membros pode ser posta em causa. A este respeito, a não audição da vítima e de uma eventual testemunha constitui um indício de que, no caso, não houve uma instrução exaustiva.

54

Tendo em conta o exposto, há que responder à segunda questão que o princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da CAAS, lido à luz do artigo 50.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que uma decisão do Ministério Público que põe fim aos procedimentos criminais e encerra, em termos definitivos, sem prejuízo da sua reabertura ou da sua anulação, o inquérito instaurado contra uma pessoa sem que tenham sido aplicadas sanções não pode ser qualificada de decisão definitiva, no sentido daqueles artigos, quando resulta da fundamentação desta decisão que o referido processo foi encerrado sem que se tivesse realizado uma instrução exaustiva, constituindo a não audição da vítima e de uma eventual testemunha indício da inexistência dessa instrução.

Quanto à primeira questão

55

Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não há que responder à primeira questão.

Quanto às despesas

56

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen (Luxemburgo), em 19 de junho de 1990, lido à luz do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que uma decisão do Ministério Público que põe fim aos procedimentos criminais e encerra, em termos definitivos, sem prejuízo da sua reabertura ou da sua anulação, o inquérito instaurado contra uma pessoa sem que tenham sido aplicadas sanções não pode ser qualificada de decisão definitiva, no sentido daqueles artigos, quando resulta da fundamentação desta decisão que o referido processo foi encerrado sem que se tivesse realizado uma instrução exaustiva, constituindo a não audição da vítima e de uma eventual testemunha indício da inexistência dessa instrução.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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