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Document 62019CC0402

Conclusões do advogado-geral P. Pikamäe apresentadas em 4 de março de 2020.
LM contra Centre public d'action sociale de Seraing.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour du travail de Liège.
Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Diretiva 2008/115/CE — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Progenitor de um filho maior que sofre de uma doença grave — Decisão de regresso — Recurso judicial — Efeito suspensivo de pleno direito — Garantias enquanto se aguarda o regresso — Necessidades de base — Artigos 7.o, 19.o e 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Processo C-402/19.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:155

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 4 de março de 2020 ( 1 )

Processo C‑402/19

LM

contra

Centre public d’action sociale de Seraing

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour du travail de Liège (Tribunal Superior do Trabalho de Liège, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Política de imigração — Regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular — Progenitor de um menor com doença grave que atingiu a maioridade no decurso do processo de recurso relativo ao indeferimento do pedido de autorização de residência — Ordem para abandonar o território — Diretiva 2008/115 — Artigo 13.o — Recurso jurisdicional com efeito suspensivo — Artigo 14.o — Garantias enquanto se aguarda o regresso — Necessidades básicas — Concessão de um apoio social ao progenitor — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 7.o, 24.o e 47.o — Relação de dependência entre o progenitor e o filho gravemente doente»

1. 

A tomada a cargo das necessidades básicas de um nacional de um país terceiro em situação irregular gravemente doente, durante o período de suspensão do afastamento na sequência da interposição de um recurso contra a decisão de regresso, deve ser alargada em proveito do seu progenitor, nacional de um país terceiro cuja presença junto de seu filho foi considerada indispensável por razões médicas?

2. 

Esta é, em substância, a questão submetida ao Tribunal de Justiça, que deverá interpretar as disposições da Diretiva 2008/115 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular ( 2 ), no que respeita à efetividade do recurso interposto contra uma decisão de regresso e às garantias enquanto se aguarda o regresso, lidas à luz, designadamente, do artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

3.

O considerando 12 da Diretiva 2008/115 tem a seguinte redação:

«Deverá ser resolvida a situação dos nacionais de países terceiros que se encontram em situação irregular, mas que ainda não podem ser repatriados. As condições básicas de subsistência dessas pessoas deverão ser definidas de acordo com a lei nacional. […]»

4.

O artigo 3.o, pontos 3 a 5, desta diretiva dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

3)

“Regresso”, o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo:

ao país de origem, ou

a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções, ou

a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceite;

4)

“Decisão de regresso”, uma decisão ou ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso;

5)

“Afastamento”, a execução do dever de regresso, ou seja, o transporte físico para fora do Estado‑Membro»

5.

O artigo 5.o da referida diretiva precisa:

«Na aplicação da presente diretiva, os Estados‑Membros devem ter em devida conta o seguinte:

a)

O interesse superior da criança;

b)

A vida familiar;

[…]»

6.

O artigo 9.o da mesma diretiva prevê, no seu n.o 1, que os Estados‑Membros adiam o afastamento:

«[…]

b)

Durante a suspensão concedida nos termos do n.o 2 do artigo 13.o»

7.

O artigo 13.o da Diretiva 2008/115 enuncia nos seus n.os 1 e 2:

«1.   O nacional de país terceiro em causa deve dispor de vias de recurso efetivo contra as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o, ou da possibilidade de requerer a sua reapreciação, perante uma autoridade judicial ou administrativa competente ou um órgão competente composto por membros imparciais que ofereçam garantias de independência.

2.   A autoridade ou o órgão acima mencionados são competentes para reapreciar as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o, incluindo a possibilidade de suspender temporariamente a sua execução, a menos que a suspensão temporária já seja aplicável ao abrigo da legislação nacional.»

8.

O artigo 14.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

«À exceção da situação prevista nos artigos 16.o e 17.o, os Estados‑Membros asseguram que sejam tidos em conta, tanto quanto possível, os seguintes princípios em relação aos nacionais de países terceiros durante o prazo para a partida voluntária concedido nos termos do artigo 7.o e durante os períodos de adiamento do afastamento previstos no artigo 9.o:

a)

A manutenção da unidade familiar com os membros da família presentes no seu território;

b)

A prestação de cuidados de saúde urgentes e o tratamento básico de doenças;

c)

A concessão de acesso ao sistema de ensino básico aos menores, consoante a duração da sua permanência;

d)

A consideração das necessidades específicas das pessoas vulneráveis.»

B.   Direito belga

9.

O artigo 57.o, n.o 2, da Loi organique du 8 juillet 1976 des centres publics d’action sociale (Lei Orgânica dos Centros Públicos de Ação Social, de 8 de julho de 1976, Moniteur belge de 5 de agosto de 1976, p. 9876), prevê:

«Em derrogação das outras disposições da presente lei, a missão do centro público de ação social limita‑se:

1.o

À concessão da assistência médica urgente aos estrangeiros que permaneçam ilegalmente no Reino;

[…]»

II. Litígio no processo principal e questão prejudicial

10.

Em 20 de agosto de 2012, LM apresentou, em seu nome e em nome de R., sua filha então menor, pedidos de autorização de residência por razões de saúde, fundamentados no facto de esta padecer de várias doenças graves.

11.

Esse pedido foi declarado admissível em 6 de março de 2013 e LM beneficiou, assim, do apoio social a cargo do Centre public d’action sociale de Seraing (Centro Público de Ação Social de Seraing, a seguir «CPAS»).

12.

Três decisões de indeferimento dos pedidos de autorização de residência apresentados por LM foram a seguir adotadas e posteriormente revogadas pela autoridade competente. Em 8 de fevereiro de 2016, uma quarta decisão de indeferimento desses pedidos foi adotada. Além disso, esta decisão era acompanhada de uma ordem para abandonar o território belga.

13.

Em 25 de março de 2016, LM interpôs um recurso de anulação e de suspensão da última decisão de indeferimento e da ordem para abandonar o território no Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica).

14.

O CPAS retirou a LM o benefício do apoio social a contar de 26 de março de 2016, data do termo do prazo de partida voluntária que lhe tinha sido concedido, dado que o interessado era elegível, tendo em conta o caráter irregular da sua permanência no território belga, apenas para a assistência médica urgente, que lhe foi concedida a partir de 22 de março de 2016.

15.

Na sequência de um pedido de medidas provisórias apresentado no Tribunal du travail de Liège (Tribunal do Trabalho de Liège, Bélgica), contra a decisão que retirou o benefício do apoio social, o pagamento deste foi restabelecido.

16.

Com duas Decisões de 16 de maio de 2017, o CPAS retirou, de novo, o benefício do apoio social a LM a contar de 11 de abril de 2017, com fundamento no facto de a sua filha ter atingido a maioridade nessa data. Desde 11 de abril de 2017, a filha do recorrente no processo principal recebe um apoio social equivalente à taxa isolada do rendimento de integração, acrescido das prestações familiares devido à sua deficiência.

17.

LM interpôs recurso das Decisões do CPAS de 16 de maio de 2017 junto do Tribunal du travail de Liège (Tribunal do Trabalho de Liège). Por Sentença de 16 de abril de 2018, esse órgão jurisdicional considerou que a retirada do apoio social tinha fundamento legal a contar da data em que R tinha atingido a maioridade, uma vez que o recorrente não se encontrava, ele próprio, num estado de saúde que justificasse afastar a lei belga.

18.

Em 22 de maio de 2018, LM interpôs recurso dessa sentença para o órgão jurisdicional de reenvio.

19.

Esse órgão jurisdicional sublinha que resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») que as relações entre pais e filhos adultos podem ser protegidas pelo direito à vida familiar quando é demonstrada a existência de elementos suplementares de dependência entre eles. O órgão jurisdicional de reenvio declara que a degradação previsível do estado de saúde de R, em caso de regresso ao seu país de origem, parece corresponder em todos os pontos ao nível de gravidade exigido para considerar que o seu afastamento a exporia a tratos desumanos ou degradantes. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, atendendo a esse estado de saúde, a presença de seu pai junto a ela permanece tão indispensável como quando era menor.

20.

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, embora a recusa em conceder um apoio social a LM não possa constituir, enquanto tal, uma violação desse direito, não é menos verdade que essa recusa é de natureza a privar LM dos meios necessários para manter a sua ajuda e presença física junto a R.

21.

Nessas circunstâncias, a cour du travail de Liège (Tribunal Superior do Trabalho de Liège, Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«O artigo 57.o, [n.o]2, primeiro parágrafo, 1.o, da Lei Orgânica Belga dos Centros Públicos de Ação Social, de 8 de julho de 1976, é contrário aos artigos 5.o e 13.o da Diretiva [2008/115], lidos à luz dos artigos 19.o, n.o 2, e 47.o da [Carta], bem como do artigo 14.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva e dos artigos 7.o e 12.o da [Carta], conforme interpretados pelo Acórdão Abdida de 18 de dezembro de 2014 do Tribunal de Justiça (C‑562/13, [EU:C:2014:2453]):

primo, na medida em que tem como consequência privar um estrangeiro nacional de um Estado terceiro, em situação de residência ilegal no território de um Estado‑Membro, da tomada a cargo, na medida do possível, das suas necessidades de base na pendência do recurso de anulação e de suspensão por ele interposto, em seu nome pessoal e na sua qualidade de representante de sua filha, então ainda menor, de uma decisão em que lhes foi ordenado que abandonassem o território de um Estado‑Membro;

quando, secundo, por um lado, a referida criança, hoje maior, sofre de uma doença grave, a execução dessa decisão é suscetível de expor a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde e, por outro, a presença desse progenitor junto do seu filho maior é considerada indispensável pela equipa médica devido à sua vulnerabilidade decorrente do seu estado de saúde (crises de drepanocitose recidivantes e necessidade de uma intervenção cirúrgica para evitar a paralisia)?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

22.

Foram apresentadas observações pelos Governos belga e neerlandês, bem como pela Comissão Europeia.

IV. Análise

A.   Quanto à admissibilidade da questão prejudicial

23.

Em primeiro lugar, o Governo belga sustenta que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, na medida em que tem por objeto a compatibilidade de uma norma de direito nacional com diversas disposições da Diretiva 2008/115 e da Carta, quando não existe nenhum elemento de conexão entre a situação do recorrente e o direito da União, uma vez que esta última situação não está abrangida nem pelo artigo 14.o dessa diretiva nem pelo artigo 19.o da Carta.

24.

Embora a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio tenha sido formulada para que, na verdade, o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a compatibilidade entre uma disposição de direito nacional e o direito da União, o que não é da sua competência no âmbito do processo prejudicial, resulta de jurisprudência constante que cabe ao Tribunal de Justiça, em tal situação, fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os elementos de interpretação do direito da União que lhe permitirão decidir da compatibilidade de uma norma de direito interno com o direito da União ( 3 ).

25.

Por outro lado, há que salientar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio visa, principalmente, determinar se a situação do recorrente no processo principal está ou não abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 14.o da Diretiva 2008/115. Assim, a argumentação do Governo belga sobre a inaplicabilidade desta disposição, e, mais genericamente, a falta de qualquer ligação com o direito da União, está indissociavelmente ligada à resposta a dar à referida questão quanto ao mérito e não pode, por conseguinte, conduzir à inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial ( 4 ).

26.

Em segundo lugar, importa salientar que o Governo belga precisou, nas suas observações, que um título de residência, com a duração de um ano renovável, acabou por ser concedido a LM e à sua filha em 17 de maio de 2019, não extraindo o referido Governo nenhuma consequência desta situação quanto à admissibilidade da questão prejudicial.

27.

Segundo jurisprudência constante, resulta simultaneamente dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe que esteja efetivamente pendente um litígio nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual estes são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão do Tribunal de Justiça proferido a título prejudicial. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve verificar, mesmo oficiosamente, a persistência do litígio no processo principal ( 5 ).

28.

No presente caso, importa sublinhar que o pedido de decisão prejudicial emana de um órgão jurisdicional social que conhece de um recurso contra as decisões do CPAS que retiram ao recorrente no processo principal o benefício do apoio social a contar de 11 de abril de 2017, data da maioridade da sua filha. Nenhum elemento dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça permite considerar que a regularização da permanência de LM e de sua filha produziu efeitos antes de 17 de maio de 2019, data de emissão de um título de residência aos interessados, e foi acompanhada de um reconhecimento retroativo dos direitos sociais de LM a contar de 11 de abril de 2017, materializado pelo pagamento retroativo de prestações para o período compreendido entre as duas datas acima referidas.

29.

Por conseguinte, é possível considerar que subsiste assim um objeto do litígio no processo principal, neste caso, o reconhecimento da qualidade de LM enquanto beneficiário do apoio social a contar de 11 de abril de 2017, sobre o qual o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a pronunciar‑se e que uma resposta do Tribunal de Justiça à questão submetida continua a ser útil para a resolução desse litígio ( 6 ). Portanto, há que responder ao pedido de decisão prejudicial.

30.

Em terceiro lugar, é pacífico que o órgão jurisdicional de reenvio formulou, na mesma decisão, questões prejudiciais dirigidas ao Tribunal de Justiça, mas também à Cour constitutionnelle belga (Tribunal Constitucional, Bélgica) com vista a apreciar a compatibilidade da legislação belga em causa no processo principal com a Constituição belga, tendo a pergunta dirigida ao órgão jurisdicional nacional caráter prioritário nos termos da decisão de reenvio. Afigura‑se, assim, que o reconhecimento do caráter inconstitucional da referida legislação seria de natureza a privar de objeto o presente processo. Impõe‑se constatar que, até esta fase do processo, nenhuma decisão foi proferida pela Cour constitutionnelle belga (Tribunal Constitucional).

B.   Quanto à questão prejudicial

31.

Uma primeira leitura da questão prejudicial submetida ao Tribunal de Justiça revela que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a compatibilidade de uma disposição nacional tendo em conta as condições em que um nacional de um país terceiro pode beneficiar das garantias que lhe são reconhecidas pelo direito da União enquanto se aguarda o regresso, neste caso, com o artigo 14.o da Diretiva 2008/115, e, mais especificamente, da tomada a cargo das suas necessidades básicas durante o período de apreciação do recurso interposto, em seu nome pessoal e no de sua filha, então ainda menor, contra uma decisão que lhes ordena que abandonem o território de um Estado‑Membro.

32.

A determinação do alcance exato do pedido de decisão prejudicial, relativamente complexo na sua formulação, impõe, no entanto, que sejam tidas em conta todas as disposições do direito da União nele referidas, a saber, os artigos 5.o, 13.o e 14.o da Diretiva 2008/115 e os artigos 7.o, 12.o, 19.o e 47.o da Carta, bem como o Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453), do Tribunal de Justiça igualmente referido.

33.

Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, por um lado, que deve ser reconhecido um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto por um nacional de um país terceiro contra uma decisão de regresso cuja execução é suscetível de expor este último a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde e, por outro, que deve ser assegurada a esse nacional de um país terceiro deve beneficiar de uma tomada a cargo das suas necessidades básicas durante o período de adiamento do seu afastamento na sequência da interposição do referido recurso.

34.

Afigura‑se, assim, que a problemática relativa às garantias enquanto se aguarda o regresso definidas no artigo 14.o da Diretiva 2008/115 está indissoluvelmente ligada à problemática referente ao direito a um recurso efetivo contra a decisão de regresso previsto no artigo 13.o desta diretiva, baseando‑se essa ligação no teor do artigo 9.o, n.o 1, alínea b), da diretiva, segundo o qual os Estados‑Membros adiam o afastamento durante a suspensão concedida nos termos do n.o 2 do artigo 13.o da mesma diretiva.

35.

A resposta à questão submetida ao Tribunal de Justiça implica, portanto, determinar previamente se deve ser reconhecido um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto pelo pai de uma criança gravemente doente contra uma decisão de regresso, cuja execução é suscetível de expor essa criança a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde, quando for demonstrado que a sua presença junto de seu filho é indispensável ( 7 ).

1. Quanto ao reconhecimento de um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto contra a decisão de regresso pelo pai de uma criança gravemente doente

36.

Antes de examinar os fundamentos jurídicos possíveis para o reconhecimento de tal efeito, há que analisar as observações, quanto ao mérito, do Governo belga relacionadas com esta questão.

a) Quanto às observações do Governo belga

37.

Em primeiro lugar, uma interpretação das observações do Governo belga, de tipo literal, deixa transparecer a vontade deste último de demonstrar a plena conformidade da legislação nacional com o direito da União.

38.

Por um lado, é alegado que o artigo 57.o, n.o 2, da Lei Orgânica de 8 de julho de 1976, tal como interpretado pela Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional), não entra em contradição com os objetivos da Diretiva 2008/115, uma vez que esse tribunal prevê a tomada em consideração da situação familiar específica de um filho, menor ou maior, para a determinação da concessão de um apoio social ao interessado.

39.

Por outro lado, é indicado que os procedimentos internos asseguram um recurso efetivo na aceção do direito da União, o que a Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional) reconheceu num Acórdão de 18 de julho de 2019, dado que um recurso de extrema urgência, suspensivo de pleno direito, contra as medidas de afastamento ou de repulsão é, designadamente, interposto para o Conselho do Contencioso dos Estrangeiros.

40.

Esta argumentação do Governo belga apela, da minha parte, às seguintes considerações.

41.

Antes de mais, saliento que resulta claramente das observações do referido Governo que, em direito nacional, o progenitor em situação irregular de um filho menor ou maior não pode reivindicar, a título pessoal, um apoio social que não seja a assistência médica urgente. Ora, é precisamente sobre a conformidade dessa legislação com o direito da União que o Tribunal de Justiça é questionado pelo órgão jurisdicional de reenvio atendo em conta a situação de um pai de uma criança gravemente doente que interpôs recurso, em seu nome pessoal e no do seu filho, contra as decisões de regresso que lhes dizem respeito.

42.

Em seguida, no que respeita às referências às decisões da Cour constitutionnelle belga (Tribunal Constitucional), é jurisprudência constante que o artigo 267.o TFUE confere aos órgãos jurisdicionais nacionais a mais ampla faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões que exigem uma interpretação ou uma apreciação da validade das disposições do direito da União necessárias para a resolução do litígio que lhes é submetido. O Tribunal de Justiça concluiu que uma norma de direito nacional, ao abrigo da qual os órgãos jurisdicionais que não decidem em última instância estão vinculados pelas apreciações do órgão jurisdicional superior, não pode privar esses órgãos jurisdicionais da faculdade de lhe submeter questões de interpretação do direito da União relativo a essas apreciações jurídicas. Com efeito, o Tribunal de Justiça considerou que o órgão jurisdicional que não decide em última instância, como o órgão jurisdicional de reenvio, deve poder submeter‑lhe as questões que o preocupam, se considerar que a apreciação jurídica feita pelo tribunal de grau superior o pode levar a proferir uma decisão contrária ao direito da União ( 8 ).

43.

Por último, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, não nos compete, no âmbito do processo prejudicial, interpretar o direito nacional para determinar, no caso concreto, o estado preciso do direito processual belga no domínio dos recursos interpostos por migrantes enquanto se aguarda o afastamento.

44.

Há que recordar que o processo de reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.o TFUE, se baseia, segundo jurisprudência constante, numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, estando este último apenas habilitado a pronunciar‑se sobre a interpretação ou a validade dos atos da União a que se refere esse artigo. Neste âmbito, não cabe ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a interpretação das disposições do direito nacional nem declarar se a interpretação que delas faz o órgão jurisdicional nacional é correta ( 9 ).

45.

Cabe exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional, que conhece do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, apreciar, atendendo às especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder julgar como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação de uma norma do direito da União, estas beneficiam de uma presunção de pertinência e o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se ( 10 ).

46.

Em segundo lugar, pode deduzir‑se das observações do Governo belga a existência de uma argumentação relativa ao âmbito rationae temporis do artigo 13.o da Diretiva 2008/115.

47.

Assim, o Governo belga alega ( 11 ) que resulta do Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453), que a garantia de efetividade do recurso deve ser assegurada no momento do afastamento, isto é, quando da execução da decisão de regresso e observa que LM não foi, precisamente, sujeito a nenhuma medida de execução coerciva da decisão de regresso que lhe diga respeito. Esta abordagem levaria a adiar a aplicação do princípio da proteção jurisdicional efetiva da adoção da decisão de regresso para o momento em que o afastamento é iminente e, consequentemente, a aplicação das garantias enquanto se aguarda o regresso previstas no artigo 14.o da Diretiva 2008/115 para lá da interposição do recurso da decisão de regresso.

48.

Tal argumentação não pode ser acolhida, na medida em que procede de uma interpretação errada do Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453), e do mecanismo instituído pela Diretiva 2008/115 para assegurar uma política eficaz de afastamento e de repatriamento no respeito integral dos direitos fundamentais e da dignidade das pessoas em causa. Impõe‑se constatar que o Governo belga se limitou a realçar o uso do termo «execução» no dispositivo do referido acórdão, não tendo, assim, em conta o raciocínio do Tribunal de Justiça que conduziu à solução contida no dispositivo e as precisões fornecidas em seguida.

49.

A questão submetida ao Tribunal de Justiça era, designadamente, a da interpretação do artigo 13.o da Diretiva 2008/115, interpretado à luz do artigo 47.o da Carta, para efeitos de determinação das «características do recurso que deve poder ser interposto de uma decisão de regresso», na aceção do artigo 3.o, ponto 4, dessa diretiva, ou seja, um ato administrativo que declara ilegal a permanência do migrante em causa e estabelece uma obrigação de regresso idêntica à que foi imposta a LM em 8 de fevereiro de 2016. O Tribunal de Justiça indicou que «a efetividade do recurso interposto da decisão de regresso», cuja execução é suscetível de expor o nacional de um país terceiro em causa a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde, exige que esse nacional de um país terceiro disponha de um recurso com efeito suspensivo, a fim de garantir que «a decisão de regresso» não seja executada antes que uma autoridade competente tenha podido examinar a alegada violação do artigo 5.o da Diretiva 2008/115, lido à luz do artigo 19.o, n.o 2, da Carta ( 12 ).

50.

O Tribunal de Justiça precisou a sua jurisprudência no Acórdão Gnandi ( 13 ), reiterando a obrigação de prever, em certos casos, um recurso suspensivo de pleno direito contra a decisão de regresso, mas acrescentando também que o mesmo se aplicava «por maioria de razão, a uma eventual decisão de afastamento na aceção do artigo 8.o, n.o 3, [da Diretiva 2008/115]». Resulta da fundamentação do referido acórdão que a adoção de uma decisão de afastamento é perspetivada como uma situação incerta e adicional, para a qual é suscetível de ser reconhecido um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto pelo nacional do país terceiro em causa.

51.

Essa abordagem explica‑se pelo facto de, por um lado, em conformidade com o teor do artigo 8.o, n.o 3, da Diretiva 2008/115, a adoção de uma decisão de afastamento apresentar um caráter hipotético, ao contrário da decisão de regresso prevista no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva e, por outro, esta última decisão poder, atendendo à sua natureza jurídica conforme definida no artigo 3.o, n.o 4, da referida diretiva, conduzir, enquanto tal, ao afastamento do nacional do país terceiro em causa. O artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 confere ao referido nacional de um país terceiro um direito de recurso efetivo contra as decisões relacionadas com o regresso, elas próprias definidas no artigo 12.o, n.o 1, desta diretiva como sendo as decisões de regresso e, «se tiverem sido emitidas», as decisões de proibição de entrada e as decisões de afastamento.

52.

Importa sublinhar que a garantia de efetividade do recurso, prevista no artigo 13.o suprarreferido, lido à luz do artigo 47.o da Carta, implica, por definição, a adoção de um ato cuja legalidade pode ser contestada perante um órgão jurisdicional. Ora, resulta de uma leitura conjugada dos artigos 6.o, 8.o, do artigo 12.o, n.o 1, e do artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 que esse ato pode ser constituído apenas pela decisão de regresso.

53.

Afigura‑se, assim, que a argumentação do Governo belga, segundo a qual, por força do direito da União, um recurso suspensivo de pleno direito só deve ser concedido a partir do momento em que o afastamento é iminente e não logo que a decisão de regresso seja adotada, viola a economia geral da Diretiva 2008/115 e deve, por conseguinte, ser rejeitada.

b) Quanto ao quadro jurídico de análise

54.

Embora o órgão jurisdicional de reenvio convide o Tribunal de Justiça a ter em consideração o direito ao respeito pela vida familiar, tal como resulta do artigo 7.o da Carta e do artigo 8.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), há que salientar que a Comissão se refere a outro fundamento jurídico para concluir pela necessidade de um reconhecimento de um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto pelo recorrente principal.

55.

A Comissão propõe, em substância, que seja aplicado um raciocínio por analogia com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à concessão a um nacional de um país terceiro, com fundamento nos artigos 20.o e 21.o TFUE, de um direito de residência derivado no território da União, para não privar de qualquer efeito útil o direito de residência de um menor, que goza do estatuto de cidadão da União, em caso de afastamento desse nacional de um país terceiro, progenitor do menor. Consequentemente, há que reconhecer ao recurso interposto pelo recorrente principal um efeito suspensivo para não privar de efeito útil a suspensão da execução da decisão de regresso de que beneficia a sua filha, em conformidade com o Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453).

56.

O Tribunal de Justiça considerou efetivamente que deve ser atribuído um direito de residência a um nacional de um país terceiro, membro da família do referido cidadão, sob pena de o efeito útil da cidadania da União ser posto em causa, se, em consequência de tal recusa, esse cidadão fosse, de facto, obrigado a abandonar o território da União, considerado no seu todo, privando‑o, desse modo, do gozo efetivo do essencial dos direitos conferidos por esse estatuto. O Tribunal de Justiça deixou claro que a finalidade e a justificação dos referidos direitos derivados, que não são direitos próprios dos referidos nacionais de países terceiros, assentam na constatação de que a recusa do seu reconhecimento pode atentar, designadamente, contra a liberdade de circulação do cidadão da União ( 14 ).

57.

Afigura‑se, assim, que a jurisprudência invocada pela Comissão se inscreve num contexto jurídico e factual claramente diferente, como reconhece a própria Comissão, do presente processo, que é caracterizado pelo facto de o recorrente no processo principal e a sua filha serem ambos nacionais de um país terceiro em situação irregular e são objeto de uma decisão de regresso, o que me parece obstar a uma pura aplicação por analogia dessa jurisprudência.

58.

Saliento, porém, que os conceitos de proteção da vida familiar, mas também de interesse superior da criança são expressamente utilizados pelo Tribunal de Justiça como parâmetros de interpretação de diferentes normas do direito da União, no âmbito do direito primário ou secundário, que podem servir de base à concessão a um nacional de um país terceiro de um direito de residência derivado no território da União ou garantir a efetividade do direito ao reagrupamento familiar dos nacionais de países terceiros que residam legalmente no território dos Estados‑Membros ( 15 ).

59.

Essas considerações específicas do Tribunal de Justiça relativas ao artigo 7.o da Carta, lido em conjugação com o seu artigo 24.o, podem, em contrapartida, ser transpostas no âmbito do presente processo para efeitos de determinação de um fundamento jurídico para o reconhecimento de um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto pelo recorrente no processo principal, pai de uma criança gravemente doente, contra a decisão de regresso que lhe diz respeito.

c) Quanto ao reconhecimento de um efeito suspensivo ao abrigo do respeito pela vida familiar

60.

No que respeita às características do recurso que deve poder ser interposto contra uma decisão de regresso como a que está em causa no processo principal, resulta do artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, lido em conjugação com o seu artigo 12.o, n.o 1 ( 16 ), que um nacional de um país terceiro deve dispor de uma via de recurso efetiva contra uma decisão de regresso tomada a seu respeito ( 17 ).

61.

O artigo 13.o, n.o 2, desta diretiva prevê, por sua vez, que a autoridade ou o órgão competente para decidir do recurso pode suspender temporariamente a execução da decisão de regresso, a menos que a suspensão temporária já seja aplicável ao abrigo da legislação nacional. Daqui decorre que a referida diretiva não impõe que o recurso previsto no seu artigo 13.o, n.o 1, tenha necessariamente um efeito suspensivo ( 18 ).

62.

No entanto, importa sublinhar que a interpretação das disposições da Diretiva 2008/115 deve ser efetuada, como recorda o seu considerando 2, com pleno respeito pelos direitos fundamentais e a dignidade das pessoas em causa ( 19 ).

63.

As características do recurso previsto no artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 devem, portanto, ser determinadas em conformidade, por um lado, com o artigo 47.o da Carta que constitui uma reafirmação do princípio da proteção jurisdicional efetiva e nos termos do qual qualquer pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a um recurso efetivo perante um tribunal no respeito das condições previstas no referido artigo e, por outro, com o artigo 7.o da Carta que reconhece o direito ao respeito pela vida familiar ( 20 ).

64.

O artigo 7.o da Carta deve, por sua vez, ser lido em conjugação com a obrigação de atender ao interesse superior da criança, reconhecido pelo artigo 24.o, n.o 2, da referida Carta, e tendo em conta o direito fundamental da criança à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem‑estar e o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com os seus progenitores, cujo respeito se confunde incontestavelmente com o interesse superior da criança ( 21 ). A exigência de uma interpretação da Diretiva 2008/115 à luz do artigo 7.o e do artigo 24.o da Carta induz‑se, aliás, dos próprios termos do artigo 5.o, alíneas a) e b), desta diretiva, que impõe que os Estados‑Membros tenham em devida conta, na aplicação da referida diretiva, o interesse superior da criança e a vida familiar ( 22 ).

65.

Conforme resulta das Anotações relativas à Carta ( 23 ), nos termos do artigo 52.o, n.o 3, deste ato, os direitos garantidos pelo seu artigo 7.o têm um sentido e um âmbito iguais aos dos direitos garantidos pelo artigo 8.o da CEDH, conforme interpretado pela jurisprudência do TEDH ( 24 ).

66.

A este respeito, o Governo belga alega, nas suas observações, que, chamado a pronunciar‑se sobre a compatibilidade com o artigo 13.o conjugado com o artigo 8.o da CEDH do regime excecional previsto para os recursos dos despachos de condução à fronteira da Guiana (região e departamento ultramarino francês), o TEDH indicou, no Acórdão De Souza Ribeiro c. França ( 25 ), que, «tratando‑se de afastamentos de estrangeiros contestados com base numa alegada ofensa à vida privada e familiar, a efetividade não requer que os interessados disponham de um recurso suspensivo de pleno direito». No caso de uma alegada ofensa à vida privada e familiar, o critério da efetividade não requer, portanto, que os interessados disponham de um recurso suspensivo de pleno direito, contrariamente aos casos de afastamentos contestados com base num risco de tratos desumanos ou degradantes contrários ao artigo 3.o da CEDH ( 26 ).

67.

Esta única referência ao acórdão em causa do TEDH não traduz a diversidade da sua jurisprudência em matéria que combina imigração com proteção da vida familiar ( 27 ). Além disso, impõe‑se constatar que as circunstâncias que caracterizam o processo que deu origem ao acórdão suprarreferido diferem sensivelmente das do presente pedido de decisão prejudicial, o que torna essa referência jurisprudencial desprovida de pertinência no presente caso. Com efeito, o processo em questão dizia respeito a um indivíduo maior aquando da apresentação do pedido de medidas provisórias/suspensão da medida de afastamento e da interposição do recurso quanto ao mérito, que residia com a sua família na Guiana e mantinha relações com os seus familiares, que não revelavam nenhuma situação particular a não ser laços afetivos normais. Mais, o interessado pôde regressar à Guiana algum tempo após a sua expulsão e obter um título de residência.

68.

Importa sublinhar que a problemática jurídica suscitada pelo presente pedido de decisão prejudicial é referente à possibilidade de reconhecer um efeito suspensivo de pleno direito a um recurso interposto contra uma decisão de regresso, na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2008/115, o que implica, a meu ver, apreciar a situação familiar do recorrente no processo principal e uma eventual violação do direito ao respeito pela vida familiar na data em que interpôs o referido recurso.

69.

Resulta da decisão de reenvio que, em 25 de março de 2016, o recorrente no processo principal interpôs, em seu nome pessoal e na sua qualidade de representante legal da sua filha menor, então com cerca de 17 anos de idade, um recurso contra a decisão de indeferimento do pedido de autorização de residência, acompanhada de uma ordem para abandonar o território ( 28 ), uma vez que os dois interessados residiam na Bélgica desde 8 de abril de 2012 e viviam, desde essa data, sob o mesmo teto. Esta situação caracteriza incontestavelmente a existência de uma «vida familiar», tal como exigida pelo TEDH na sua jurisprudência relativa ao artigo 8.o da CEDH, observando‑se que o referido conceito pode englobar a relação entre um filho legítimo ou natural e o seu pai, independentemente da presença ou não da mãe no lar, e que a proteção que esta disposição garante se estende a todos os membros da família ( 29 ).

70.

Nos processos que combinam vida familiar com imigração, que têm por objeto, designadamente, a questão da expulsão de estrangeiros, incluindo em situação irregular, o TEDH procede a uma ponderação dos interesses em presença, a saber, o interesse pessoal dos indivíduos em causa em ter uma vida familiar num determinado território e o interesse geral prosseguido pelo Estado, neste caso, o controlo da imigração. Os fatores tidos em consideração são a medida em que há efetivamente entrave à vida familiar, a dimensão dos laços que as pessoas interessadas têm no Estado contratante em causa, a questão de saber se existe ou não obstáculos intransponíveis a que a família viva no país de origem do estrangeiro em causa e a de saber se existem elementos tocantes ao controlo da imigração ou considerações de ordem pública que pesem a favor de uma exclusão ( 30 ).

71.

Quando estão em causa crianças, o TEDH considera que há que ter em conta o superior interesse destas. Sobre este ponto em particular, o TEDH recorda que a ideia de que o interesse superior das crianças deve prevalecer em todas as decisões que lhes dizem respeito é objeto de um amplo consenso, nomeadamente em direito internacional. É certo que esse interesse não é determinante por si só, mas deve, indubitavelmente, ser‑lhe concedido um peso importante. É assim que, nos processos de reagrupamento familiar, o TEDH presta especial atenção à situação dos menores em causa, em especial à sua idade, à sua situação no ou nos países em causa e ao seu grau de dependência em relação aos seus progenitores ( 31 ).

72.

A este respeito, saliento que é o mesmo conceito de relação de dependência que é utilizado pelo Tribunal de Justiça para fundamentar um direito de residência derivado no território da União de um nacional de um país terceiro quando esse direito lhe é conferido por um membro da sua família que goza do estatuto de cidadão da União ao abrigo do artigo 20.o TFUE. Com efeito, o Tribunal de Justiça considera que a recusa em atribuir o direito de residência a um nacional de um país terceiro só é suscetível de pôr em causa o efeito útil da cidadania da União se entre esse nacional de um país terceiro e o cidadão da União, membro da sua família, existir uma relação de dependência tal que conduziria a que este último fosse obrigado a acompanhar o nacional de um país terceiro em causa e a abandonar o território da União, considerado no seu todo ( 32 ).

73.

No âmbito desta apreciação, as autoridades competentes devem ter em conta o direito ao respeito pela vida familiar, como enunciado no artigo 7.o da Carta, devendo este artigo ser lido em conjugação com a obrigação de atender ao interesse superior da criança, reconhecido no artigo 24.o, n.o 2, da Carta. A declaração de uma relação de dependência deve assentar na tomada em consideração, no interesse superior da criança em causa, de todas as circunstâncias do caso em apreço, nomeadamente, da sua idade, do seu desenvolvimento físico e emocional, do grau da sua relação afetiva tanto com o progenitor cidadão da União como com o progenitor nacional de um país terceiro e do risco que a separação deste último acarretaria para o equilíbrio dessa criança. Assim, o facto de o progenitor, nacional de um país terceiro, coabitar com o menor, cidadão da União, é um dos elementos pertinentes a tomar em consideração para determinar a existência de uma relação de dependência entre eles, sem, no entanto, ser uma condição necessária da mesma ( 33 ).

74.

Como foi anteriormente mencionado, estas considerações podem ser transpostas no âmbito da problemática de uma eventual violação do direito ao respeito pela vida familiar, apreciado de forma conjugada com o interesse superior da criança, do nacional de um país terceiro, progenitor de uma criança gravemente doente, na hipótese de um afastamento do referido nacional de um país terceiro.

75.

No presente caso, parece‑me que o dossiê submetido ao Tribunal de Justiça revela uma verdadeira relação de dependência entre o recorrente no processo principal e a sua filha, o que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

76.

Com efeito, resulta da decisão de reenvio que a filha de LM padece, por um lado, de drepanocitose grave, patologia complexa que pode conduzir a qualquer momento a uma crise dolorosa que pode complicar‑se e ser fatal, já tendo sido necessárias várias hospitalizações da interessada em episódios críticos e, por outro, de uma importante cifose que necessita de uma intervenção cirúrgica, sob pena de paralisia. Esta situação levou o recorrente no processo principal a deixar o Congo acompanhado da sua filha e a apresentar às autoridades belgas competentes, em 20 de agosto de 2012, um pedido de autorização de residência com fundamento no estado de saúde desta.

77.

Uma vez que o núcleo familiar é composto apenas pelo recorrente e pela sua filha, este primeiro representava, quando da interposição do recurso, e continua a representar uma presença física indispensável para a acompanhar durante as suas diferentes hospitalização e para o cumprimento do tratamento médico, bem como um apoio afetivo para ajudar psiquicamente a sua filha a ultrapassar as diferentes provações por ela sofridas devido às afeções de que padece. Importa sublinhar que o corpo clínico indicou claramente que a filha do recorrente no processo principal «necessita de ser acompanhada por um progenitor que viva com ela e de forma definitiva, devido ao seu estado de saúde (crises de drepanocitose recidivantes)».

78.

Neste contexto, o afastamento do nacional de um país terceiro em causa, pai de uma criança gravemente doente que beneficia de um efeito suspensivo de pleno direito do recurso interposto contra a decisão de regresso, cuja execução seria suscetível de a expor a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde, é de natureza a violar, de maneira grave e irreparável, a proteção da vida familiar consagrada no artigo 7.o da Carta, lido em conjugação com a obrigação de atender ao interesse superior da criança, reconhecido pelo artigo 24.o, n.o 2, da Carta. O regresso forçado de LM ao Congo levaria a privar a sua filha atingida por doenças graves da sua presença a seu lado, porém considerada indispensável pelo corpo clínico, em violação do direito fundamental de uma criança à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem‑estar e do direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com os seus progenitores, enunciados nos n.os 1 e 3 do mesmo artigo 24.o

79.

A efetividade do recurso interposto contra uma decisão de regresso cuja execução é suscetível de conduzir à situação suprarreferida exige, nestas circunstâncias, que esse nacional de um país terceiro disponha de um recurso com efeito suspensivo, a fim de garantir que a decisão de regresso não seja executada antes de uma acusação de violação do artigo 5.o da Diretiva 2008/115, lido à luz dos artigos 7.o e 24.o da Carta, poder ser apreciada por uma autoridade competente ( 34 ). O mesmo se aplica, a fortiori, a uma eventual decisão de afastamento na aceção do artigo 8.o, n.o 3, desta diretiva ( 35 ).

80.

Uma interpretação contrária resultaria, a meu ver, numa violação dos direitos fundamentais enunciados nas referidas disposições da Carta, à qual o artigo 6.o, n.o 1, TUE reconhece o mesmo valor jurídico que os Tratados e cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça. Há que recordar que incumbe aos Estados‑Membros não só interpretar o seu direito nacional em conformidade com o direito da União, mas também providenciar no sentido de não se basearem numa interpretação de uma disposição de direito derivado que entre em conflito com os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União ( 36 ).

81.

Observo, quanto ao restante, que a mesma conclusão se impõe, a meu ver, no caso de ser tida em conta a maioridade da filha do recorrente atingida em 11 de abril de 2017 e de dever ser efetuada uma análise que tenha em consideração a existência de uma relação familiar entre um progenitor e um filho adulto.

82.

Importa salientar que, no que concerne à jurisprudência do TEDH em matéria de imigração, este último admitiu num determinado número de processos relativos a jovens adultos que ainda não tinham fundado a sua própria família que as suas ligações com os seus pais e outros membros da sua família próxima constituíam igualmente «vida familiar» ( 37 ). Esse órgão jurisdicional indicou que não existe «vida familiar» entre pais e filhos adultos a não ser que seja provada a existência de elementos suplementares de dependência, para além dos vínculos afetivos normais ( 38 ).

83.

No âmbito da sua apreciação, acima referida, da existência de uma relação estável enquanto requisito para o reconhecimento de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE a favor de nacionais de países terceiros, o Tribunal de Justiça faz igualmente uma distinção entre os menores e os indivíduos adultos, os quais conseguem, em princípio, levar uma existência independente dos membros da sua família. Consequentemente, o Tribunal de Justiça considera que o reconhecimento, entre dois adultos, membros de uma mesma família, de uma relação de dependência de natureza a criar esse direito, só é possível em casos excecionais, nos quais, tendo em conta todas circunstâncias relevantes, a pessoa em causa não pode, de forma alguma, ser separada do membro da sua família do qual depende ( 39 ).

84.

Parece‑me que, ainda aqui, estas considerações podem ser transpostas no âmbito do presente processo e que o dossiê submetido ao Tribunal de Justiça permite considerar que se está perante um caso excecional. Os factos apurados sobre a situação médica da filha do recorrente no processo principal e as suas consequências sobre a natureza da relação que estas duas pessoas mantêm levam‑me a concluir pela existência tanto de uma vida familiar digna de proteção, que vai além dos vínculos afetivos normais, como de uma relação de dependência tal que a filha adulta não pode, de forma alguma, ser separada do seu pai, do qual depende, segundo as próprias conclusões do corpo clínico.

2. Quanto à tomada a cargo das necessidades básicas do progenitor de um filho gravemente doente assegurada enquanto se aguarda o afastamento

85.

É pacífico que, a fim de evitar um vazio jurídico para essas pessoas, a Comissão tinha inicialmente proposto fornecer um nível mínimo de condições de permanência para os nacionais de países terceiros em situação irregular enquanto se aguarda o afastamento, fazendo referência a uma série de condições, que iam além dos simples cuidados de saúde urgentes e das necessidades básicas, já enunciadas na Diretiva 2003/9/CE do Conselho, de 27 de janeiro de 2003, que estabelece normas mínimas em matéria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados‑Membros ( 40 ).

86.

Impõe‑se constatar que o texto final da Diretiva 2008/115 já não faz referência à Diretiva 2003/9 e isso na sequência das inquietações suscitadas durante o processo legislativo a propósito do facto de essa referência poder ser entendida como «sobre classificação» da situação dos migrantes em situação irregular e, portanto, enviar uma mensagem política inadequada. O artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 limita‑se a mencionar que «os Estados‑Membros asseguram que sejam tidos em conta, tanto quanto possível, [certos] princípios» enquanto o considerando 12 sublinha que as condições básicas de subsistência dos migrantes enquanto se aguarda o afastamento «deverão ser definidas de acordo com a lei nacional».

87.

Procedendo a uma interpretação conjugada dinâmica dos artigos 9.o e 14.o da Diretiva 2008/115, atendendo à economia geral desta última, o Tribunal de Justiça reconheceu, desde logo, no Acórdão Abdida ( 41 ) um amplo alcance ao artigo 9.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva, prevendo o adiamento do afastamento enquanto dura o efeito suspensivo concedido em conformidade com o artigo 13.o, n.o 2, da referida diretiva, ao considerar que a primeiro disposição referida devia abranger «todas as situações» em que um Estado‑Membro é obrigado a suspender a execução de uma decisão de regresso na sequência da interposição de um recurso desta decisão. Em seguida, o Tribunal de Justiça deduziu daí que os Estados‑Membros estão «obrigados» a oferecer a um nacional de um país terceiro, que padece de uma doença grave e que interpôs recurso de uma decisão de regresso, cuja execução é suscetível de o expor a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde, as garantias enquanto se aguarda o regresso instituídas no artigo 14.o da Diretiva 2008/115.

88.

O Tribunal de Justiça precisou que, nas circunstâncias particulares suprarreferidas, o Estado‑Membro em causa está obrigado, em aplicação do artigo 14.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2008/115, a cobrir, na medida do possível, as necessidades básicas de um nacional de um país terceiro que padece de uma doença grave, enquanto se aguarda a apreciação do recurso por ele interposto contra uma decisão de regresso, quando este nacional de um país terceiro não dispuser de meios para prover às suas necessidades, sendo a fundamentação desta obrigação a de garantir um efeito real à prestação de cuidados de saúde urgentes e ao tratamento básico de doenças, previstos no artigo acima referido ( 42 ).

89.

Afigura‑se assim que, no termo de um raciocínio dedutivo baseado no disposto nos artigos 9.o e 14.o da Diretiva 2008/115, o Tribunal de Justiça considerou que o reconhecimento do efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto contra a decisão de regresso tinha como consequência obrigatória o benefício das garantias de regresso para o seu autor, uma vez que a tomada a cargo das necessidades básicas é necessária a fim de não privar de efeito real a garantia específica ligada ao estado de saúde degradado do migrante em causa.

90.

Neste contexto, o reconhecimento prévio de um efeito suspensivo de pleno direito ao recurso interposto pelo recorrente no processo principal contra a decisão de regresso que lhe diz respeito parece‑me levar necessariamente à conclusão de que o Estado‑Membro em causa está obrigado a oferecer ao interessado as garantias enquanto se aguarda o regresso instituídas no artigo 14.o da Diretiva 2008/115 ( 43 ). No que respeita à tomada a cargo, pelo Estado‑Membro em causa, na medida do possível, das necessidades básicas de LM, há que questionar se a lógica em que o Tribunal de Justiça se baseou para impor a referida tomada a cargo em proveito de uma pessoa gravemente doente pode ser aplicada ao progenitor de quem esta última depende.

91.

A este respeito, entre a lista de princípios referidos no artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, constam a manutenção da unidade familiar com os membros da família presentes no território e a consideração das necessidades específicas das pessoas vulneráveis, cuja aplicação efetiva gera igualmente, a meu ver, uma exigência concomitante de tomada a cargo das necessidades básicas do recorrente no processo principal.

92.

Independentemente de a filha do recorrente no processo principal ter atingido a maioridade em 11 de abril de 2017, parece‑me, efetivamente, que a sua situação médica particularmente grave e a existência correlativa de uma relação de dependência mantida com o seu pai são de natureza a justificar a conclusão de que tanto a manutenção da unidade familiar com os membros da família presentes no território como a consideração das necessidades específicas das pessoas vulneráveis, categoria a que pertence a criança gravemente doente, poderiam ser privadas de efeito real se não fossem acompanhadas da tomada a cargo das necessidades básicas do referido recorrente, de modo a permitir‑lhe alimentar‑se, vestir‑se e alojar‑se ( 44 ).

93.

Com efeito, como se pode conceber, na prática, a manutenção de uma unidade familiar e a consideração das necessidades específicas de uma filho em situação de dependência resultante de uma doença grave, se não for de todo tida em conta a situação material de um dos dois únicos membros dessa unidade que é suposto trazer diariamente um apoio indispensável a essa pessoa? Por outras palavras, a satisfação das necessidades elementares do recorrente no processo principal constitui uma forma de pré‑requisito para a aplicação efetiva das garantias enquanto se aguarda o regresso previstas no artigo 14.o, n.o 1, alíneas a) e d), da Diretiva 2008/115, que deve ser interpretado à luz do artigo 7.o da Carta.

94.

Além disso, retomando diretamente o mesmo raciocínio que foi seguido no Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453), há que considerar, em meu entender, que a garantia da prestação de cuidados de saúde urgentes e do tratamento básico de doenças, prevista no artigo 14.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2008/115 e da qual beneficia a filha gravemente doente do recorrente no processo principal durante o período de suspensão do afastamento, na sequência da interposição de um recurso com efeito suspensivo contra a decisão de regresso, poderia ser privada de efeito real se não fosse acompanhada da tomada a cargo das necessidades básicas do seu pai, nacional de um país terceiro, que beneficia da mesma suspensão e cuja presença junto da filha foi julgada indispensável por razões médicas ( 45 ).

95.

Importa, porém, sublinhar que, no que respeita à obrigação de tomada a cargo, pelos Estados‑Membros, das necessidades básicas do nacional de um país terceiro em situação irregular e enquanto se aguarda o afastamento, o Tribunal de Justiça introduziu duas matizes no referido acórdão.

96.

A primeira é que essa satisfação está condicionada à existência da incapacidade do migrante em causa prover ele próprio às suas necessidades ( 46 ), o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar no presente caso, podendo o Tribunal de Justiça, porém, fornecer indicações sobre os elementos a ter em consideração no âmbito desse exame.

97.

A questão essencial é, evidentemente, a de saber se o interessado ainda dispõe de uma fonte de rendimentos e, ao que parece, uma resposta negativa deve ser deduzida da decisão de reenvio. É, assim, ponto assente que, desde 11 de abril de 2017, o recorrente no processo principal deixou de beneficiar de um apoio social financeiro equivalente ao rendimento de integração calculado no montante atribuído às pessoas que vivem com um filho menor a cargo e que o apoio social concedido ao interessado se limita, desde essa data, a uma assistência médica urgente.

98.

Há que verificar igualmente o possível acesso do recorrente no processo principal ao mercado de trabalho regular no território belga. A este respeito, embora o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2009/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de junho de 2009, que estabelece normas mínimas sobre sanções e medidas contra os empregadores de nacionais de países terceiros em situação irregular ( 47 ), preveja que os Estados‑Membros proíbem o emprego de nacionais de países terceiros em situação irregular, o n.o 3 do referido artigo enuncia que os «Estados‑Membros podem decidir não aplicar a proibição a que se refere o n.o 1 aos nacionais de países terceiros em situação irregular cujo afastamento tenha sido protelado e que estejam autorizados a trabalhar de acordo com o direito nacional» ( 48 ). Acresce que a questão do acesso ao emprego pelo recorrente no processo principal não se limita à sua dimensão jurídica, mas deve ser apreciada in concreto, atendendo à qualidade de cuidador do interessado e da disponibilidade que essa situação requer.

99.

A segunda matiz corresponde à indicação explícita pelo Tribunal de Justiça de que cabe aos Estados‑Membros determinar a forma como será assegurada a satisfação das necessidades básicas do nacional de um país terceiro em causa ( 49 ).

100.

Esta precisão recorda a margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros pela Diretiva 2008/115, no que diz respeito às necessidades básicas dos migrantes enquanto se aguarda um afastamento, pelo menos quanto à maneira como podem ser satisfeitas as referidas necessidades. Há que deduzir daí, em meu entender, que a conclusão segundo a qual o Estado‑Membro em causa é obrigado a assegurar, na medida do possível, a tomada a cargo das necessidades básicas do recorrente no processo principal, admitindo que este seja incapaz de prover ele próprio às suas necessidades, não significa necessariamente que o interessado deva beneficiar de um subsídio sob a forma de uma prestação pecuniária, como o reivindicado perante o órgão jurisdicional de reenvio.

101.

Saliento, a este respeito, que o Governo belga alega, nas suas observações, que a filha do recorrente no processo principal recebe um apoio social adaptado cuja taxa tem em conta a presença do seu progenitor junto dela. A decisão de reenvio diz‑nos que a jovem recebe, desde a sua maioridade, um apoio social equivalente à taxa «isolada» do rendimento de integração acrescida das prestações familiares a que tem direito devido à sua incapacidade.

102.

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se, nestas circunstâncias, a satisfação das necessidades básicas do recorrente no processo principal, que coabita com a filha, é efetiva, permitindo assim, em caso afirmativo, concluir pela conformidade da legislação belga com o direito da União ( 50 ).

V. Conclusão

103.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma à Cour du travail de Liège (Tribunal Superior do Trabalho de Liège, Bélgica):

Os artigos 5.o e 13.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, lidos à luz dos artigos 7.o, 24.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como o artigo 9.o e o artigo 14.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva, lidos em conjugação com os artigos 7.o e 24.o da referida Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional:

que não confere um efeito suspensivo a um recurso interposto contra uma decisão de regresso e/ou de afastamento por um nacional de um país terceiro, pai de uma criança que padece de uma doença grave e que beneficia do efeito suspensivo de pleno direito do recurso interposto contra a decisão acima referida que lhe diz respeito, cuja execução seria suscetível de o expor a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde, quando existe uma relação de dependência entre o pai e o seu filho menor ou maior, e

que não prevê a tomada a cargo, na medida do possível, das necessidades básicas do referido nacional de um país terceiro, a fim de garantir que sejam efetivamente assegurados, por um lado, a manutenção da unidade familiar com os membros da família presentes no seu território e a tomada a cargo das necessidades específicas das pessoas vulneráveis e, por outro, os cuidados de saúde urgentes e o tratamento básico de doenças que afetam o filho menor ou maior do referido nacional de um país terceiro, durante o período em que o Estado‑Membro é obrigado a adiar o afastamento do mesmo nacional de um país terceiro na sequência da interposição desse recurso, a não ser que o referido nacional de um país terceiro possa ele próprio fazer face às suas necessidades.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2008, L 348, p. 98.

( 3 ) V., neste sentido, Acórdão de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi (C‑337/13, EU:C:2014:328, n.o 18).

( 4 ) Acórdão de 17 de janeiro de 2019, KPMG Baltics (C‑639/17, EU:C:2019:31, n.o 11 e jurisprudência referida).

( 5 ) Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 31).

( 6 ) V., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2017, Chavez‑Vilchez e o. (C‑133/15, EU:C:2017:354, n.o 51).

( 7 ) Não posso, a este respeito, partilhar da interpretação dada ao alcance da questão prejudicial pelo Governo neerlandês nas suas observações, uma vez que este último considera que a questão do reconhecimento de um efeito suspensivo não se coloca, dado que os termos da decisão de reenvio demonstram que esse reconhecimento estava adquirido. As referências expressas ao artigo 13.o da Diretiva 2008/115, uma vez que respeitam à efetividade do recurso facultado aos dos migrantes pelo artigo 47.o da Carta, que constitui uma reafirmação do princípio da proteção jurisdicional efetiva, e pelo Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453), contradizem essa interpretação, demonstrando o teor do referido acórdão a necessidade de uma apreciação prévia da questão do reconhecimento do efeito suspensivo do recurso para a resolução da questão do benefício das garantias de regresso e da cobertura das necessidades básicas do nacional de um país terceiro em causa.

( 8 ) V. Acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.os 41 e 42 e jurisprudência referida).

( 9 ) V. Acórdão de 22 de maio de 2014, Érsekcsanádi Mezőgazdasági (C‑56/13, EU:C:2014:352, n.o 53 e jurisprudência referida).

( 10 ) V. Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 26 e jurisprudência referida).

( 11 ) V. n.o 65 das observações.

( 12 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 50).

( 13 ) Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 56).

( 14 ) Acórdão de 8 de maio de 2018, K.A. e o. (Reagrupamento familiar na Bélgica) (C‑82/16, EU:C:2018:308, n.os 50 e 51 e jurisprudência referida).

( 15 ) V. Acórdãos de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín (C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 66); de 8 de maio de 2018, K.A. e o. (Reagrupamento familial na Bélgica) (C‑82/16, EU:C:2018:308, n.o 71); de 4 de março de 2010, Chakroun (C‑578/08, EU:C:2010:117, n.o 44); e de 6 de dezembro de 2012, O. e S. (C‑356/11 e C‑357/11, EU:C:2012:776, n.os 75 a 80), as duas últimas referências no que respeita à Diretiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar (JO 2003, L 251, p. 12).

( 16 ) O artigo 12.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 enuncia o seguinte: «As decisões de regresso e, se tiverem sido emitidas, as decisões de proibição de entrada e as decisões de afastamento são emitidas por escrito e contêm as razões de facto e de direito que as fundamentam, bem como informações acerca das vias jurídicas de recurso disponíveis. As informações sobre as razões de facto podem ser limitadas caso o direito interno permita uma restrição ao direito de informação, nomeadamente para salvaguardar a segurança nacional, a defesa, a segurança pública e a prevenção, investigação, deteção e repressão de infrações penais.»

( 17 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 43).

( 18 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 44).

( 19 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 42).

( 20 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 45).

( 21 ) V., neste sentido, Acórdãos de 6 de dezembro de 2012, O. e S. (C‑356/11 e C‑357/11, EU:C:2012:776, n.o 76); e de 5 de outubro de 2010, McB. (C‑400/10 PPU, EU:C:2010:582, n.o 60). Saliento que o texto do artigo 24.o, n.o 3, da Carta menciona «ambos» os progenitores, na medida em que esta disposição visa, designadamente, a hipótese do conflito parental que pode conduzir a uma deslocação ilícita da criança e à separação forçada de um dos progenitores. Ainda assim, o referido texto parece‑me baseado na consideração geral segundo a qual o equilíbrio e o desenvolvimento da criança implica que esta cresça no meio familiar, ao lado dos pais e não seja separada destes últimos contra a sua vontade. A componente essencial da vida familiar é o direito de viver juntos para que as relações familiares possam desenvolver‑se normalmente e os membros da família possam estar juntos [TEDH, 13 de junho de 1979, Marckx c. Bélgica, CE:ECHR:1979:0613JUD000683374, § 31, e TEDH, 24 de março de 1988, Olsson c. Suécia (n.o 1), CE:ECHR:1988:0324JUD001046583, § 59].

( 22 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de dezembro de 2012, O. e S. (C‑356/11 e C‑357/11, EU:C:2012:776, n.o 80).

( 23 ) JO 2007, C 303, p. 17.

( 24 ) V., neste sentido, Acórdãos de 26 de março de 2019, SM (Menor colocado sob kafala argelina) (C‑129/18, EU:C:2019:248, n.o 65), e de 15 de novembro de 2011, Dereci e o. (C‑256/11, EU:C:2011:734, n.o 70).

( 25 ) TEDH, 13 de dezembro de 2012, De Souza Ribeiro c. França, CE:ECHR:2012:1213JUD002268907, § 83.

( 26 ) É, a meu ver, incontestável que a situação de LM, relativamente ao qual nenhum elemento dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça permite considerar que está gravemente doente, não está abrangida pelo artigo 19.o, n.o 2, da Carta, segundo o qual ninguém pode ser afastado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes. Esta disposição, à luz da qual o Tribunal de Justiça interpretou o artigo 5.o da Diretiva 2008/115 para fundamentar a solução acolhida no Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453), e que é igualmente mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio na questão prejudicial, é, no presente caso, irrelevante.

( 27 ) Saliento que o TEDH declarou, nomeadamente, que a separação dos membros de uma família pode causar‑lhes danos irreversíveis, que comportam um risco de violação do artigo 8.o da CEDH, que deve ser evitado com a indicação de uma medida provisória ao abrigo do artigo 39.o do regulamento do referido tribunal (v. TEDH, 6 de julho de 2010, Neulinger e Shuruk c. Suíça; e 28 de junho de 2011, Nunez c. Noruega, CE:ECHR:2011:0628JUD005559709).

( 28 ) Importa salientar que, atendendo à inexistência de efeito suspensivo no direito belga ligado ao recurso interposto contra a decisão de regresso, o recorrente no processo principal era suscetível de ser objeto de uma medida de afastamento desde 25 de março de 2016, data do termo do prazo de 30 dias para a partida voluntária associada à ordem para abandonar o território belga, acompanhando esta última a decisão de recusa de emissão de um título de residência datada de 9 de fevereiro de 2016, notificada em 25 de fevereiro do mesmo ano. O facto de a filha do recorrente no processo principal ter atingido a maioridade em 11 de abril de 2017, ou seja, no decurso do processo de apreciação do recurso da decisão de regresso (que, aliás, não tinha conduzido a uma decisão à data da decisão de reenvio) e do processo relativo ao contencioso sobre o benefício do apoio social ao referido recorrente, é, a meu ver, indiferente.

( 29 ) TEDH, 3 de outubro de 2014, Jeunesse c. Países Baixos, CE:ECHR:2014:1003JUD001273810, § 117.

( 30 ) V., designadamente, TEDH, 3 de outubro de 2014, Jeunesse c. Países Baixos, CE:ECHR:2014:1003JUD001273810, § 107.

( 31 ) TEDH, 3 de outubro de 2014, Jeunesse c. Países Baixos, CE:ECHR:2014:1003JUD001273810, §§ 109 e 118.

( 32 ) Acórdão de 8 de maio de 2018, K.A. e o. (Reagrupamento familiar na Bélgica) (C‑82/16, EU:C:2018:308, n.o 52).

( 33 ) Acórdão de 8 de maio de 2018, K.A. e o. (Reagrupamento familiar na Bélgica) (C‑82/16, EU:C:2018:308, n.os 71 a 73).

( 34 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 50).

( 35 ) Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 56).

( 36 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de dezembro de 2012, O. e S. (C‑356/11 e C‑357/11, EU:C:2012:776, n.os 77 e 78).

( 37 ) TEDH, 23 de junho de 2008, Maslov c. Áustria, CE:ECHR:2008:0623JUD000163803, § 62 e jurisprudência referida.

( 38 ) TEDH, 30 de junho de 2015, A.S c. Suíça, CE:ECHR:2015:0630JUD003935013, § 49; e TEDH, 23 de outubro de 2018, Levakovic c. Dinamarca, CE:ECHR:2018:1023JUD000784114, §§ 35 e 44.

( 39 ) Acórdão de 8 de maio de 2018, K.A. e o. (Reagrupamento familiar na Bélgica) (C‑82/16, EU:C:2018:308, n.o 65).

( 40 ) JO 2003, L 31, p. 18.

( 41 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 54 a 58).

( 42 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 59 e 60).

( 43 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 58).

( 44 ) As necessidades básicas de saúde são tidas em conta no artigo 14.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2008/115.

( 45 ) Por uma questão de completude, indico que uma interpretação do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115, lido à luz dos artigos 1.o, 2.o e 3.o da Carta, que consagram o respeito pela dignidade humana e pelos direitos à vida e à integridade do ser humano, bem como do artigo 4.o da Carta, relativo à proibição dos tratos desumanos ou degradantes, poderia também ser de natureza a justificar a obrigação de tomada a cargo das necessidades de base do requerente principal pelo Estado‑Membro em causa. Esta hipótese foi, com justeza, apresentada pelo Advogado‑Geral Y. Bot nas suas Conclusões no processo Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2167, n.os 147, 148, 154 e 155), para as quais se remete em razão da plena concordância de opinião sobre esse ponto.

( 46 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 59).

( 47 ) JO 2009, L 168, p. 24.

( 48 ) É referido, na decisão de reenvio (p. 22) que, embora tenha um diploma e uma experiência profissional não negligenciável, LM, que ainda está em idade de trabalhar, se vê excluído do mercado de trabalho devido à sua atual situação irregular, sem mais precisões. Esta indicação não leva em conta, por definição, o facto de o afastamento de LM dever ser adiado na sequência do efeito suspensivo do seu recurso.

( 49 ) V. Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 61).

( 50 ) Por último, observo que o órgão jurisdicional de reenvio referiu, na sua questão prejudicial, o artigo 12.o da Carta, referência que resulta manifestamente de um erro material como demonstra a leitura da página 25 da decisão de reenvio que faz claramente referência à proibição de qualquer discriminação em razão da idade, prevista no artigo 21.o da Carta. Importa, de qualquer modo, constatar que o órgão jurisdicional de reenvio não forneceu nenhuma indicação de natureza a permitir considerar, no caso em apreço, um tratamento diferenciado de situações objetivamente comparáveis.

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