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Document 62021CJ0495

Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 19 de janeiro de 2023.
L. GmbH e H. Ltd contra Bundesrepublik Deutschland.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Bundesverwaltungsgericht.
Reenvio prejudicial – Dispositivos médicos – Diretiva 93/42/CEE – Artigo 1.°, n.° 2, alínea a) – Definição – Artigo 1.°, n.° 5, alínea c) – Âmbito de aplicação – Medicamentos para uso humano – Diretiva 2001/83/CE – Artigo 1.°, ponto 2 – Definição do conceito de “medicamento” – Artigo 2.°, n.° 2 – Quadro jurídico aplicável – Classificação como “dispositivo médico” ou como “medicamento”.
Processos apensos C-495/21 e C-496/21.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:34

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

19 de janeiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Dispositivos médicos — Diretiva 93/42/CEE — Artigo 1.o, n.o 2, alínea a) — Definição — Artigo 1.o, n.o 5, alínea c) — Âmbito de aplicação — Medicamentos para uso humano — Diretiva 2001/83/CE — Artigo 1.o, ponto 2 — Definição do conceito de “medicamento” — Artigo 2.o, n.o 2 — Quadro jurídico aplicável — Classificação como “dispositivo médico” ou como “medicamento”»

Nos processos apensos C‑495/21 e C‑496/21,

que têm por objeto dois pedidos de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgericht Köln (Tribunal Administrativo de Colónia, Alemanha), por Decisão de 20 de maio de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de agosto de 2021, no processo

L. GmbH (C‑495/21)

H. Ltd (C‑496/21)

contra

Bundesrepublik Deustschland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: M. L. Arastey Sahún, presidente de secção, N. Wahl (relator) e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 13 de julho de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação da L. GmbH, por E. Rudl‑Truxa, Rechtsanwältin,

em representação da H. Ltd, por P. von Czettritz, Rechtsanwalt,

em representação da Bundesrepublik Deutschland, por P. Kothe e K. Moritz Feilke, Rechtsanwälte,

em representação do Governo helénico, por A. Dimitrakopoulou e V. Karra, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por E. Feola, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por A. C. Becker, L. Haasbeek, E. Sanfrutos Cano e A. Sipos, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos (JO 1993, L 169, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2007/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007 (JO 2007, L 247, p. 21) (a seguir «Diretiva 93/42»), bem como do artigo 1.o, ponto 2, alínea a), e do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO 2001, L 311, p. 67), conforme alterada pela Diretiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004 (JO 2004, L 136, p. 34) (a seguir «Diretiva 2001/83»).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem, respetivamente, a L. GmbH e a H. Ltd., sociedades de direito alemão, à Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha), representada pelo Bundesinstitut für Arzneimittel und Medizinprodukte (Instituto Federal dos Medicamentos e dos Dispositivos Médicos, Alemanha) (a seguir «BfArM»), a respeito da determinação do âmbito de aplicação das normas do direito da União relativas aos dispositivos médicos e aos medicamentos para uso humano.

Quadro jurídico

3

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1.

Dispositivo médico: qualquer instrumento, aparelho, equipamento, software, material ou outro artigo, utilizado isoladamente ou em combinação, incluindo o software destinado pelo seu fabricante a ser utilizado especificamente para fins de diagnóstico e/ou terapêuticos e que seja necessário para o bom funcionamento do dispositivo médico, destinado pelo fabricante a ser utilizado em seres humanos para efeitos de:

diagnóstico, prevenção, controlo, tratamento ou atenuação de uma doença,

diagnóstico, controlo, tratamento, atenuação ou compensação de uma lesão ou de uma deficiência,

estudo, substituição ou alteração da anatomia ou de um processo fisiológico,

controlo da conceção,

cujo principal efeito pretendido no corpo humano não seja alcançado por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, embora a sua função possa ser apoiada por esses meios[.]»

4

O artigo 1.o, n.o 5, alínea c), desta diretiva, prevê:

«A presente diretiva não se aplica:

[…]

c)

Aos medicamentos abrangidos pela Diretiva 2001/83/CE. Para decidir se um determinado produto se rege por essa diretiva ou pela presente diretiva, deve tomar‑se especialmente em conta o principal modo de ação desse produto.»

5

O artigo 3.o da Diretiva 93/42, sob a epígrafe «Requisitos essenciais», enuncia:

«Os dispositivos devem observar os requisitos essenciais constantes do anexo I que lhes são aplicáveis atendendo à respetiva finalidade.

Sempre que exista um risco relevante, os dispositivos que sejam igualmente máquinas na aceção da alínea a) do artigo 2.o da Diretiva 2006/42/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006, relativa às máquinas [que altera a Diretiva 95/16/CE (JO 2006, L 157, p. 24),], devem obedecer igualmente aos requisitos essenciais em matéria de saúde e segurança enunciados no anexo I dessa diretiva, na medida em que esses requisitos essenciais em matéria de saúde e segurança sejam mais específicos do que os requisitos essenciais enunciados no anexo I da presente diretiva.»

6

O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/42 dispõe:

«Os Estados‑Membros não obstarão à colocação no mercado e entrada em serviço no respetivo território de dispositivos com a marcação CE, prevista no artigo 17.o, que indica que esses dispositivos foram objeto de uma avaliação de conformidade de acordo com o disposto no artigo 11.o»

7

O artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 2001/83 tem a seguinte redação:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

2)

Medicamento:

a)

Toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças em seres humanos; ou

b)

Toda a substância ou associação de substâncias que possa ser utilizada ou administrada em seres humanos com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas ao exercer uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, ou a estabelecer um diagnóstico médico.»

8

O artigo 2.o, n.o 2, desta diretiva enuncia:

«Em caso de dúvida, se, tendo em conta a globalidade das suas características, um produto corresponder simultaneamente à definição do medicamento e à definição de um produto regido por outras disposições legislativas comunitárias, aplicam‑se as outras disposições da presente diretiva.»

9

Nos termos do considerando 7 da Diretiva 2004/27:

«Convém, designadamente à luz dos progressos científicos e técnicos, clarificar as definições e o âmbito de aplicação da Diretiva 2001/83/CE, por forma a assegurar um nível elevado de exigências de qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos para uso humano. Para ter em conta, por um lado, a emergência das novas terapêuticas e, por outro, o número crescente de produtos ditos “de fronteira” entre o setor dos medicamentos e os outros setores, há que alterar a definição de medicamento de modo a evitar que subsistam quaisquer dúvidas relativamente à legislação aplicável quando um produto corresponda integralmente à definição de medicamento mas possa também ser abrangido pela definição de outros produtos regulamentados. A referida definição deveria especificar o tipo de ação que o medicamento pode exercer nas funções fisiológicas. Esta enumeração de ações permitirá ainda abranger medicamentos utilizados na terapia génica, os medicamentos radiofarmacêuticos e certos medicamentos destinados a uso tópico. Por conseguinte, consideradas as características da legislação farmacêutica, é necessário prever a sua aplicação. Com o mesmo objetivo de clarificar situações, caso um determinado produto corresponda à definição de medicamento, mas possa também estar abrangido pela definição de outros produtos regulamentados, torna‑se necessário, em caso de dúvida e tendo em vista a segurança jurídica, declarar explicitamente quais as disposições que devem ser respeitadas. Caso um produto corresponda claramente à definição de outras categorias de produtos, em especial no que se refere aos géneros alimentícios, complementos alimentares, dispositivos médicos, biocidas ou cosméticos, a presente diretiva não se aplica. É igualmente conveniente melhorar a coerência da terminologia relativa à legislação farmacêutica.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑495/21

10

A L. produz diferentes substâncias farmacêuticas e, particularmente, gotas nasais. Desde 2011, na sequência da recusa das autoridades alemãs competentes de as autorizar como «medicamento», com o fundamento de que a sua eficácia terapêutica não tinha sido suficientemente demonstrada, distribui essas gotas como «dispositivos médicos».

11

Por outro lado, L. coloca igualmente no mercado as gotas nasais em causa no processo principal como «dispositivo médico» contendo, designadamente, a mesma substância ativa que as gotas nasais mencionadas no número anterior. Segundo o folheto informativo destas gotas nasais, «[a] preparação é indicada em caso de irritações da mucosa nasal causadas por rinite viral» e «trata a mucosa nasal irritada e apoia a sua regeneração durante as constipações». Esta preparação é apresentada como «tratamento de apoio nas constipações» e como «tratamento nas constipações».

12

A documentação técnica de janeiro de 2011, apresentada em apoio da classificação do produto como «dispositivo médico de classe I», indica que a referida preparação gera uma ação físico‑química na mucosa nasal e causa uma selagem da camada celular superior do epitélio nasal e redução da secreção nasal. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o produto em causa tem um segundo efeito físico‑químico, que impede a secagem da mucosa nasal através de um depósito na mesma comparável a uma película elástica, favorecendo assim a sua regeneração.

13

Por decisão de 16 de janeiro de 2014, o BfArM declarou que o produto em causa devia ser sujeito a autorização prévia como «medicamento». Considerou que o referido produto correspondia simultaneamente à definição do conceito de «medicamento por função», uma vez que a ação principal pretendida era obtida por um meio de ação farmacológica, e à definição do conceito de «medicamento por apresentação». Por decisão de 14 de outubro de 2014, o BfArM indeferiu a reclamação apresentada contra esta decisão.

Processo C‑496/21

14

A H. é uma empresa farmacêutica que comercializa um spray nasal denominado «N.» como «dispositivo médico», na Alemanha e no território de vários outros Estados‑Membros da União Europeia. Este spray contém 50 miligramas (mg) de um extrato vegetal liofilizado. Segundo as indicações dispostas na embalagem do referido spray nasal, o produto em causa destina‑se à «limpeza e drenagem das cavidades nasais obstruídas por muco e secreções» e deve permitir o alívio dos sintomas em caso de congestão nasal. No folheto informativo do referido spray nasal, sob o título «Precauções a tomar», indica‑se não conduzir automóveis nem utilizar máquinas nas primeiras duas horas após a aplicação. Na versão em língua inglesa das informações sobre o produto, precisa‑se que a sua utilização tem como efeito uma drenagem intensiva de secreções, que pode durar até duas horas, razão pela qual é desaconselhado participar ativamente na circulação rodoviária e utilizar máquinas durante esse período.

15

Por decisão de 20 de junho de 2013, o BfArM declarou que o referido produto devia ser sujeito a autorização prévia como «medicamento». Segundo o BfArM, trata‑se de um «medicamento por função», uma vez que o efeito pretendido é obtido pela interação das saponinas triterpenos com componentes de membrana e, portanto, por uma ação farmacológica. O efeito irritante das saponinas sobre a membrana mucosa desencadeia uma hiper‑reflexão reflexiva. Além disso, a H. não demonstrou que se trata de um efeito meramente físico. Em concentrações mais elevadas, o produto N. pode provocar lesões nas membranas celulares. Dado que o fabricante do mesmo produto destaca a finalidade médica da preparação em causa, a saber, o alívio dos sintomas associados a uma rinossinusite, esta constitui, igualmente, um «medicamento por apresentação». Por decisão de 22 de agosto de 2014, o BfArM indeferiu a reclamação apresentada desta decisão.

Processos C‑495/21 e C‑496/21

16

A L. e a H. interpuseram recurso das decisões de 20 de junho de 2013 e de 16 de janeiro de 2014, tendo‑lhes sido negado provimento. O Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein‑Westfalen (Tribunal Administrativo Regional Superior do Land da Renânia do Norte‑Vestefália, Alemanha) negou igualmente provimento aos recursos que a L. e a H. interpuseram seguidamente.

17

Esse órgão jurisdicional constatou que os produtos em causa eram apresentados como «medicamentos». Sublinhou, a este respeito, que, embora os folhetos informativos dos referidos produtos os apresentassem como «dispositivos médicos», os mesmos eram igualmente apresentados como produtos que tratam as irritações da mucosa nasal, respetivamente, como tratamento da rinite viral no processo C‑495/21 e como tratamento da rinossinusite no processo C‑496/21, que aliviam os sintomas, levando o consumidor, normalmente informado e atento, a considerar que os mesmos produtos possuem a eficácia geralmente associada aos medicamentos. Além disso, no processo C‑496/21, o referido órgão jurisdicional sublinhou que a reivindicação da «distribuição exclusiva pelas farmácias», bem como a indicação, na versão em língua inglesa do sítio Internet do produtor em causa, de uma eficácia clinicamente demonstrada no tratamento das rinossinusites, eram suscetíveis de reforçar a impressão do consumidor de que se trata de um medicamento.

18

O mesmo órgão jurisdicional rejeitou assim os argumentos invocados pelas recorrentes nos processos principais, segundo os quais, por um lado, o conceito de «medicamento por apresentação» não é aplicável aos dispositivos médicos e, por outro, há que tomar em consideração o principal modo de ação do produto em causa unicamente para efeitos da apreciação do conceito de «dispositivo médico» e, consequentemente, que excluir a aplicação do quadro jurídico resultante da Diretiva 2001/83. A este respeito, o Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein‑Westfalen (Tribunal Administrativo Regional Superior do Land da Renânia do Norte‑Vestefália) salientou que, no estado atual dos conhecimentos científicos, era impossível demonstrar um modo de ação não farmacológico dos produtos em causa. Estes últimos não preenchem, pois, os requisitos exigidos para a qualificação de «dispositivo médico».

19

As recorrentes nos processos principais interpuseram recurso de Revision para o Bundesverwaltungsgericht (Supremo Tribunal Administrativo Federal, Alemanha), órgão jurisdicional de reenvio.

20

Este último tem dúvidas quanto aos âmbitos de aplicação, respetivamente, da Diretiva 93/42, relativa aos dispositivos médicos, e da Diretiva 2001/83, relativa aos medicamentos para uso humano, na falta de estudos científicos que demonstrem o modo de ação não farmacológico dos produtos em causa.

21

Assim, as questões do órgão jurisdicional de reenvio resultam, por um lado, da falta de estudos científicos suscetíveis de provar ou excluir o recurso a uma ação farmacológica (ou imunológica ou metabólica) e, por outro, do facto de que a exclusão recíproca, segundo a qual a definição do conceito de «medicamento por função» exclui a de «dispositivo médico», para o qual deve ser demonstrada a falta de recurso a um meio farmacológico (ou imunológico ou metabólico), parece não ter nenhuma consequência em presença de um «medicamento por apresentação».

22

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio considera que devem ser clarificados vários aspetos, concretamente, primeiro, o conceito de «meio farmacológico», referido no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42, segundo, o modo como deve ser qualificado um produto para o qual não é possível determinar se a ação principal pretendida é obtida por meios farmacológicos, terceiro, as condições que permitem considerar que um produto colocado no mercado como «dispositivo médico» pode ser qualificado de «medicamento por apresentação», na aceção do artigo 1.o, ponto 2, alínea a), da Diretiva 2001/83, e, quarto, a questão de saber se a regra da aplicação prioritária da Diretiva 2001/83 a produtos que correspondam simultaneamente à definição do conceito de «medicamento» e à definição de um produto regido por outra legislação da União, prevista no artigo 2.o, n.o 2, da referida Diretiva 2001/83, se aplica igualmente aos «medicamentos por apresentação».

23

No que respeita especificamente à questão de saber se a regra da aplicação prioritária da Diretiva 2001/83 também se aplica aos «medicamentos por apresentação», o órgão jurisdicional de reenvio indica que só os «medicamentos funcionais» possuem características que permitem demonstrar a qualidade de «medicamento». Em seu entender, aos «medicamentos por apresentação», para os quais tais características não são mais do que reivindicadas, podem ser aplicadas regras que correspondam mais às características próprias do produto em causa, ainda que estas se integrem noutro regime jurídico. Se esta abordagem devesse ser adotada, a Diretiva 93/42, relativa aos dispositivos médicos poderia ser aplicada a um produto que cumpra simultaneamente a definição do conceito de «medicamento por apresentação» e a do conceito de «dispositivo médico».

24

Nestas circunstâncias, o Bundesverwaltungsgericht (Supremo Tribunal Administrativo Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas em termos idênticos nos processos C‑495/21 e C‑496/21:

«1)

Pode o principal efeito pretendido de uma substância ser também farmacológico, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42/CEE, quando não se baseia num modo de ação mediado por recetores e a substância também não é absorvida pelo corpo humano, mas antes permanece à superfície das membranas mucosas e aí reage? Quais os critérios a seguir em tais casos para diferenciar os meios farmacológicos e os não farmacológicos, em especial os meios físico‑químicos?

2)

Pode um produto ser considerado como dispositivo médico (material) na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42/CEE, quando o seu modo de ação, de acordo com o estado atual da ciência, permanece em aberto e, por conseguinte, não é possível determinar de forma definitiva se o principal efeito pretendido é obtido por via farmacológica ou por via físico‑química?

3)

Deve, em tal caso, a classificação do produto como medicamento ou como dispositivo médico ser feita com base numa apreciação global também das suas outras propriedades e de todas as outras circunstâncias, ou deve o produto, quando se destina à prevenção, tratamento ou alívio de doenças, ser considerado um medicamento por apresentação, na aceção do artigo 1.o, [ponto] 2, alínea a), da Diretiva 2001/83/CE, independentemente de ser ou não invocado um efeito terapêutico específico?

4)

Aplica‑se também nesse caso o primado do regime legal dos medicamentos por força do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83/CE?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à quarta questão

25

Com a sua quarta questão, que deve ser analisada em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que se aplica não só aos «medicamentos funcionais», referidos no artigo 1.o, ponto 2, alínea b), desta diretiva, mas também aos «medicamentos por apresentação», referidos no artigo 1.o, ponto 2, alínea a), da referida diretiva.

26

A título preliminar, importa sublinhar que o artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 dispõe, em substância, que esta diretiva se aplica aos medicamentos para uso humano destinados a serem colocados no mercado dos Estados‑Membros e fabricados industrialmente.

27

Deste modo, o âmbito de aplicação da Diretiva 2001/83 está limitado aos produtos que são medicamentos fabricados industrialmente, excluindo os produtos que não correspondam a uma das definições de «medicamento» que figuram, respetivamente, no artigo 1.o, ponto 2, alínea a), desta diretiva, a saber, os «medicamentos por apresentação», e no artigo 1.o, ponto 2, alínea b), da referida diretiva, a saber, os «medicamentos funcionais» (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2014, Octapharma France, C‑512/12, EU:C:2014:149, n.o 30).

28

Ora, em primeiro lugar, a redação do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83, na medida em que refere expressamente o «medicamento», não permite proceder a uma distinção entre as duas definições do conceito de «medicamento» adotadas, respetivamente, na alínea a) e na alínea b) do artigo 1.o, ponto 2, da referida diretiva, exceto se infringir a própria letra da disposição.

29

Em segundo lugar, uma exclusão dos «medicamentos por apresentação» da aplicação prioritária do regime jurídico aplicável aos medicamentos é incompatível com a intenção expressa pelo legislador, que, através da obrigação prevista no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83, pretendeu conciliar os imperativos da segurança jurídica dos operadores económicos com a exigência de qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos para uso humano.

30

Com efeito, a Diretiva 2004/27, que introduziu esta disposição na Diretiva 2001/83, prevê, no considerando 7, que convém «clarificar as definições e o âmbito de aplicação da Diretiva 2001/83[…], por forma a assegurar um nível elevado de exigências de qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos para uso humano» e que «[p]ara ter em conta, por um lado, a emergência das novas terapêuticas e, por outro, o número crescente de produtos ditos “de fronteira” entre o setor dos medicamentos e os outros setores, há que alterar a definição de medicamento de modo a evitar que subsistam quaisquer dúvidas relativamente à legislação aplicável quando um produto corresponda integralmente à definição de medicamento mas possa também ser abrangido pela definição de outros produtos regulamentados».

31

A este respeito, importa, no entanto, sublinhar que o referido considerando 7 precisa igualmente que, «[c]aso um produto corresponda claramente à definição de outras categorias de produtos, em especial no que se refere aos géneros alimentícios, complementos alimentares, dispositivos médicos, biocidas ou cosméticos, a [Diretiva 2004/27] não se aplica».

32

No entanto, tal exceção, em conformidade com a redação do referido considerando 7, está condicionada pelo caráter evidente do preenchimento dos requisitos previstos noutra definição, como a Comissão Europeia sustentou na audiência, segundo a qual o legislador não pretendeu de modo algum pôr em causa a regra da aplicação prioritária da Diretiva 2001/83.

33

Ora, no caso em apreço, o caráter evidente do preenchimento dos requisitos do conceito de «dispositivo médico» parece não estar preenchido, o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

34

Assim, a um produto que corresponda à definição do conceito de «medicamento», referido no artigo 1.o, ponto 2, alíneas a) ou b), da Diretiva 2001/83, deve ser aplicado o regime jurídico estabelecido por esta diretiva e, consequentemente, o referido produto não pode ser qualificado de «dispositivo médico», na aceção da Diretiva 93/42 (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2013, Laboratoires Lyocentre, C‑109/12, EU:C:2013:626, n.o 41).

35

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que se aplica não só aos «medicamentos funcionais», referidos no artigo 1.o, ponto 2, alínea b), desta diretiva mas também aos «medicamentos por apresentação», referidos no artigo 1.o, ponto 2, alínea a), da mesma diretiva.

Quanto à segunda e terceira questões

36

Com a segunda e terceira questões, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 e o artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 2001/83 devem ser interpretados no sentido de que, quando o principal modo de ação de um produto não está cientificamente comprovado, esse produto pode corresponder à definição do conceito de «dispositivo médico», na aceção da Diretiva 93/42, ou à de «medicamento por função» ou de «medicamento por apresentação», na aceção da Diretiva 2001/83.

37

Em primeiro lugar, há que salientar que resulta do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 que uma substância só pode ser qualificada de «dispositivo médico» quando o principal efeito pretendido no corpo humano não seja alcançado por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2013, Laboratoires Lyocentre, C‑109/12, EU:C:2013:626, n.o 44).

38

A este respeito, importa sublinhar que os artigos 3.o e 4.o da referida diretiva impõem ao fabricante que pretenda comercializar um produto como «dispositivo médico» que demonstre o preenchimento desse requisito.

39

Esta abordagem é também corroborada pela sistemática geral da Diretiva 93/42, a qual não prevê o mesmo nível de proteção do consumidor previsto pela Diretiva 2001/83. Esta divergência é justificada pela exigência negativa imposta aos dispositivos médicos no sentido de que o efeito principal pretendido não seja alcançado por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42. A presunção de menor perigosidade desses produtos justifica que sejam postas em circulação mercadorias com base numa declaração, contrariamente ao regime jurídico aplicável aos medicamentos, funcionais ou por apresentação, para os quais o artigo 6.o da Diretiva 2001/83 exige a emissão prévia de uma autorização de introdução no mercado.

40

Em segundo lugar, o artigo 1.o, n.o 5, alínea c), da Diretiva 93/42 impõe mais precisamente às autoridades competentes que tomem «especialmente» em conta o principal modo de ação do produto em causa. Ora, tal formulação não pode ser interpretada no sentido de que permite que as autoridades nacionais tomem em conta outros critérios, uma vez que decorre do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), desta diretiva que o modo de ação de qualquer «dispositivo médico» deve necessariamente não ser farmacológico, imunológico ou metabólico.

41

Por conseguinte, na falta de conhecimento científico que permita demonstrar que o principal efeito pretendido no corpo não é alcançado por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 não permite qualificar um produto de «dispositivo médico».

42

Em terceiro lugar, no que respeita à qualificação de «medicamento por função», na aceção do artigo 1.o, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2001/83, importa salientar que, segundo jurisprudência constante, contrariamente ao conceito de «medicamento por apresentação», na aceção do artigo 1.o, ponto 2, alínea a), desta diretiva, cuja interpretação extensiva tem por objeto preservar os consumidores dos produtos que não tenham a eficácia que estes teriam o direito de esperar, o conceito de «medicamento por função» visa englobar os produtos cujas propriedades farmacológicas foram cientificamente comprovadas (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2012, Chemische Fabrik Kreussler, C‑308/11, EU:C:2012:548, n.o 30 e jurisprudência referida).

43

Além disso, no que respeita à determinação de um produto como «medicamento por função», na aceção da Diretiva 2001/83, recorde‑se que as autoridades nacionais, atuando sob fiscalização jurisdicional, devem decidir, caso a caso, atendendo ao conjunto das características do produto em causa, designadamente a sua composição, as suas propriedades farmacológicas, imunológicas ou metabólicas tais como podem ser determinadas no estado atual do conhecimento científico, os seus modos de utilização, a amplitude da sua difusão, o conhecimento que dele tenham os consumidores e os riscos que a sua utilização possa originar (Acórdão de 15 de janeiro de 2009, Hecht‑Pharma, C‑140/07, EU:C:2009:5, n.o 39).

44

Todavia, na falta de conhecimentos científicos disponíveis, um produto não pode corresponder à definição do conceito de «medicamento por função», o qual, em conformidade com o artigo 1.o, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2001/83, requer uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica.

45

Em quarto lugar, no que respeita à qualificação de «medicamento por apresentação», na aceção do artigo 1.o, ponto 2, alínea a), da Diretiva 2001/83, importa recordar que um produto é «apresentad[o] como possuindo propriedades curativas ou preventivas», na aceção da Diretiva 2001/83, quando seja «descrito» ou «recomendado» expressamente como tal, eventualmente através de rótulos, de folhetos informativos ou de uma apresentação oral.

46

Um produto é igualmente «apresentad[o] como possuindo propriedades curativas ou preventivas» sempre que parecer, de modo implícito mas certo, aos olhos de um consumidor medianamente avisado, que o referido produto deve, dada a sua apresentação, ter as mencionadas propriedades (Acórdão de 15 de novembro de 2007, Comissão/Alemanha, C‑319/05, EU:C:2007:678, n.o 46 e jurisprudência referida).

47

A este respeito, é necessário ter em consideração a atitude de um consumidor medianamente avisado, a quem a forma dada a um produto pode inspirar uma confiança especial, do tipo da que normalmente inspiram os medicamentos, tendo em conta as garantias que o seu fabrico e a sua comercialização envolvem. Embora a forma externa dada ao referido produto possa constituir um indício sério a favor da sua qualificação de medicamento por apresentação, deve entender‑se que esta forma abrange não apenas a do próprio produto mas também a do seu acondicionamento, que pode levar, por razões de política comercial, a que o produto se assemelhe a um medicamento (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2007, Comissão/Alemanha, C‑319/05, EU:C:2007:678, n.os 44, 46 e 47 e jurisprudência referida).

48

Assim, os elementos evocados pelo órgão jurisdicional de reenvio, como a apresentação do produto em causa como possuindo propriedades curativas ou suscetíveis de atenuar uma doença, as referências às interações medicamentosas e aos efeitos indesejáveis, bem como uma distribuição exclusiva em farmácia, são elementos que, considerados no seu conjunto, são suscetíveis de apresentar os produtos em causa, aos olhos de um consumidor medianamente avisado, como tendo as propriedades de um medicamento, o que caberá, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

49

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 e o artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 2001/83 devem ser interpretados no sentido de que, quando o principal modo de ação de um produto não está cientificamente comprovado, esse produto não pode corresponder à definição de «dispositivo médico», na aceção da Diretiva 93/42, nem à de «medicamento por função», na aceção da Diretiva 2001/83. Cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais apreciar, caso a caso, se estão preenchidos os requisitos relativos à definição do conceito de «medicamento por apresentação», na aceção desta última diretiva.

Quanto à primeira questão

50

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 deve ser interpretado no sentido de que o principal efeito pretendido de uma substância pode ser «farmacológico», ficando assim fora do âmbito de aplicação desta diretiva, nas situações em que o modo de ação em causa não se baseia num ato mediado por recetores e a substância em causa também não é absorvida pelo corpo humano, mas permanece à superfície deste último, por exemplo, ao nível das mucosas.

51

Tendo em conta as respostas dadas à segunda a quarta questões prejudiciais, não há que responder à primeira questão prejudicial.

Quanto às despesas

52

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pela Diretiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004,

deve ser interpretado no sentido de que:

se aplica não só aos «medicamentos funcionais», referidos no artigo 1.o, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2001/83, conforme alterada, mas também aos «medicamentos por apresentação», referidos no artigo 1.o, ponto 2, alínea a), da mesma diretiva.

 

2)

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos, conforme alterada pela Diretiva 2007/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, e o artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 2001/83/CE, conforme alterada pela Diretiva 2004/27,

devem ser interpretados no sentido de que:

quando o principal modo de ação de um produto não está cientificamente comprovado, esse produto não pode corresponder à definição de «dispositivo médico», na aceção da Diretiva 93/42, conforme alterada pela Diretiva 2007/47, nem à de «medicamento por função», na aceção da Diretiva 2001/83, conforme alterada pela Diretiva 2004/27. Cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais apreciar, caso a caso, se estão preenchidos os requisitos relativos à definição do conceito de «medicamento por apresentação», na aceção desta última diretiva.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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