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Document 52018DC0246

RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU, AO CONSELHO E AO COMITÉ ECONÓMICO E SOCIAL EUROPEU sobre a aplicação da Diretiva do Conselho relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (85/374/EEC)

COM/2018/246 final

Bruxelas, 7.5.2018

COM(2018) 246 final

RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU, AO CONSELHO E AO COMITÉ ECONÓMICO E SOCIAL EUROPEU

sobre a aplicação da Diretiva do Conselho relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (85/374/EEC)

{SWD(2018) 157 final}
{SWD(2018) 158 final}


1.Introdução

A diretiva em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos 1 (a seguir, «diretiva») garante, há mais de três décadas, que os produtores assumam a responsabilidade pelo fabrico de produtos defeituosos perante os consumidores. Aquando da sua adoção em 1985, a diretiva foi um instrumento corajoso e moderno que exigiu adaptações significativas dos códigos civis dos Estados-Membros.

A diretiva constituiu um dos primeiros atos legislativos da UE expressamente destinados a proteger os consumidores. Introduziu o conceito de responsabilidade objetiva segundo o qual os produtores são responsáveis pelos produtos defeituosos, independentemente de o defeito ser ou não doloso. A diretiva visa igualmente contribuir para o crescimento económico através da criação de um contexto estável e jurídico de igualdade da concorrência, que permita às empresas colocarem produtos inovadores no mercado.

A diretiva complementa a legislação da UE relativa à segurança dos produtos e a designada «Nova Abordagem» adotada neste domínio. Introduzida ao mesmo tempo que a diretiva, a «Nova Abordagem» tem por objetivo evitar a ocorrência de acidentes, estabelecendo regras comuns em matéria de segurança 2 que asseguram o bom funcionamento do mercado único de bens, e reduzir a carga administrativa. Quando apesar de tudo ocorre um acidente, a diretiva serve de «rede de segurança».

A realidade de 2018 não é igual a 1985. A UE e as suas regras no domínio da segurança dos produtos evoluíram, bem como a economia e as tecnologias. Muitos produtos disponíveis hoje têm características que eram consideradas ficção científica na década de 1980. Os desafios que enfrentamos atualmente, e que serão ainda mais relevantes no futuro, incluem — para citar apenas alguns exemplos — a digitalização, a «Internet das Coisas», a inteligência artificial e a cibersegurança.

O crescimento exponencial da capacidade computacional, a disponibilidade dos dados e os progressos realizados no domínio dos algoritmos estão a tornar sobretudo a inteligência artificial (IA) numa das principais tecnologias do século XXI. A Comissão adotou a Comunicação «Maximizar os benefícios da inteligência artificial» 3 para garantir uma resposta política coerente e capaz igualmente de responder aos desafios jurídicos. A segurança dos produtos e a responsabilidade — em caso de dano — constituem um aspeto essencial ao procurar encontrar uma resposta política que permita às sociedades europeias, empresas e aos consumidores beneficiar da inteligência artificial.

Dado que a diretiva nunca foi avaliada desde a sua entrada em vigor e tendo em conta estes recentes desenvolvimentos tecnológicos, a Comissão procedeu à sua avaliação a fim de aferir o seu desempenho. A avaliação teve em conta os recentes desenvolvimentos tecnológicos e analisou especificamente se a diretiva: i) continua a ser eficaz na concretização dos seus objetivos iniciais; ii) é eficiente; iii) é coerente com as regras pertinentes da UE; iv) continua a ser relevante dando resposta à recente evolução tecnológica; e v) se a legislação da UE em matéria de responsabilidade pelos produtos continua a ser um valor acrescentado para as empresas e as pessoas lesadas 4 .

A avaliação também analisou se a diretiva na sua forma atual ainda cumpre os seus objetivos. Garante uma resposta adequada aos desafios dos dispositivos cada vez mais autónomos e da cibersegurança? É capaz de assegurar a sustentabilidade e a transição para uma economia circular? A diretiva desencoraja desnecessariamente os produtores de colocarem produtos inovadores no mercado? Ou, ao invés, dissuade os fabricantes de colocarem produtos defeituosos e perigosos no mercado? Continua a proteger as pessoas lesadas num mundo em mutação?

A avaliação revelou que, apesar de os produtos serem muito mais complexos hoje do que em 1985, a diretiva em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos continua a ser um instrumento adequado.

No entanto, é necessário clarificar a compreensão jurídica de certos conceitos (como produto, produtor, defeito, dano e ónus da prova) e considerar atentamente certos produtos, como os produtos farmacêuticos, que se podem revelar um desafio para a eficácia da diretiva.

Além disso, no que se refere às novas tecnologias digitais, uma primeira análise sobre a forma como afetam o funcionamento da diretiva suscitou várias questões. À luz destas conclusões, a Comissão procederá a uma ampla consulta com vista a alcançar um entendimento comum com todas as partes interessadas. O objetivo consiste em elaborar orientações detalhadas sobre a forma de aplicar a diretiva hoje. Além disso, avaliará até que ponto as tecnologias digitais emergentes podem ser adequadamente abordadas na diretiva vigente. As orientações e a avaliação ajudar-nos-ão a preparar a adoção de um quadro de responsabilidade pelos produtos adequado à revolução industrial digital.

O nosso objetivo é assegurar que: i) a UE continue a dispor de um regime em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos que promova a inovação; ii) os produtos colocados no mercado da UE sejam seguros 5 ; e iii) as pessoas que sofram danos devido a produtos defeituosos possam reclamar uma indemnização em caso de acidente. Somos responsáveis tanto pelas empresas como pelas pessoas que sofrem um prejuízo. Esta responsabilidade é a nossa bússola. É preciso navegar entre as próximas mudanças tecnológicas de forma cuidadosa e sensata para não perdermos essa referência.

2.Principais características da diretiva:

A diretiva é aplicável a todos os produtos móveis, mesmo quando integrados noutro produto móvel, e inclui especificamente a eletricidade. Além disso, introduz a noção de responsabilidade objetiva dos produtores 6 . Em consonância com a legislação da UE em matéria de segurança 7 , os produtores são responsáveis pelos seus produtos. Se um produto estiver defeituoso e provocar danos pessoais ou danos materiais superiores a 500 EUR a um bem utilizado essencialmente para uso ou consumo privado, os produtores são considerados responsáveis mesmo que não exista dolo. Um produto é considerado defeituoso quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar 8 .

Exemplo — Ao conduzir um veículo automóvel, um condutor teve de evitar um obstáculo imprevisto. Forçado a desviar-se para fora da estrada, o veículo foi sujeito a fortes vibrações. Os sensores do veículo associaram as vibrações a um acidente e ativaram as almofadas de ar. Uma das almofadas atingiu o condutor no pescoço, comprimiu a artéria e provocou um AVC. Os tribunais procuraram determinar se o produtor calculou corretamente o risco de um disfuncionamento dos sensores. A queixa foi rejeitada por duas instâncias, mas a decisão foi anulada a um nível superior. O processo foi finalmente resolvido por via extrajudicial.

A responsabilidade objetiva constitui um instrumento poderoso de proteção das pessoas lesadas. No entanto, há um certo número de circunstâncias em que a diretiva autoriza os produtores a correr certos riscos calculados ao colocarem produtos inovadores no mercado. O produtor não é responsável se puder provar que: i) o defeito não existia no momento em que o produto foi posto em circulação; ii) o defeito resulta de uma conformidade com regulamentos emitidos por autoridades públicas; ou iii) o estado dos conhecimentos técnicos no momento da colocação do produto no mercado não permitia detetar o defeito. Os Estados-Membros têm a possibilidade de obter uma derrogação a esta última isenção.

Exemplo — Uma pessoa ficou gravemente ferida quando os travões dianteiros do motociclo em segunda mão que conduzia bloquearam inesperadamente e foi projetada do veículo. O motociclo estava em bom estado de manutenção, tinha pouca quilometragem e apenas dois anos de utilização. O queixoso ganhou o processo na primeira instância. Um recurso interposto pelo produtor foi indeferido porque, segundo o Tribunal, o queixoso não tinha de provar a existência de um defeito de conceção ou fabrico específico para se constatar a existência de defeito, nem tinha de demonstrar a causa do defeito constatado. O requerente apenas tinha de demonstrar que o defeito existia no momento do acidente e o nexo de causalidade entre o defeito e o acidente. Os elementos de prova periciais permitiram ao Tribunal determinar que os travões do motociclo em causa teriam nesse momento um defeito. Uma vez que essa suscetibilidade não foi observada noutros motociclos do mesmo modelo, o Tribunal inferiu que os travões em causa eram defeituosos, e o queixoso conseguiu provar as suas alegações.

A partir do dia em que tenham conhecimento do defeito, os lesados dispõem de três anos para reclamar o pagamento de uma indemnização. Decorridos 10 anos após o produto ter sido colocado em circulação, deixa de ser possível apresentar queixa. Para corroborar a queixa, as pessoas que tenham sofrido ferimentos têm de provar os danos sofridos, o defeito e o nexo causal entre o defeito e os danos.

3.Aplicação da diretiva

A diretiva exige que a Comissão apresente ao Conselho e ao Parlamento um relatório sobre a sua execução 9 , com uma periodicidade de cinco anos. O presente relatório é o quinto apresentado, sendo complementado por uma avaliação.

A Comissão não recebeu nenhuma queixa nem iniciou nenhum processo por infração durante o período de referência de 2011-2017. No entanto, a diretiva não abrange nem harmoniza todos os aspetos da responsabilidade pelos produtos. São possíveis diferentes abordagens nacionais, nomeadamente em matéria de pagamento de indemnizações ou prova dos danos sofridos. Estes aspetos são decididos pelos Estados-Membros. Os Estados-Membros podem também manter ou introduzir outros instrumentos nacionais para a responsabilidade dos produtores com base na existência de dolo.

Cinco Estados-Membros adotaram a derrogação respeitante ao risco de desenvolvimento prevista no artigo 15.º, n.º 1, alínea b), da diretiva, segundo a qual o produtor é responsável mesmo que prove que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação do produto em circulação não lhe permitia detetar a existência do defeito. Dois Estados-Membros aplicam esta derrogação a todos os setores 10 , dois excluem em particular os produtos farmacêuticos 11 e um exclui os produtos do corpo humano 12 .

Os resultados da avaliação sugerem que a maioria das queixas relativas à responsabilidade pelos produtos entre 2000 e 2016 foi efetivamente resolvida por via extrajudicial. 46 % dos casos foram resolvidos por negociação direta, 32 % nos tribunais, 15 % através de mecanismos alternativos de resolução de litígios e 7 % por outros meios, nomeadamente através das seguradoras das partes responsáveis pelo acidente 13 . O estudo externo solicitado no âmbito da avaliação identificou 798 queixas, de 2000 a 2016, relacionadas com as regras da responsabilidade decorrente dos produtos 14 . É, no entanto, provável que o número real de casos seja superior e que nem todos tenham sido registados nas bases de dados públicas e privadas consultadas. Os produtos mais relevantes são as matérias-primas (21,2 % dos casos), os produtos farmacêuticos (16,1 %), os veículos (15,2 %) e as máquinas (12,4 %). Os tipos de danos identificados estão relacionados com as características de cada produto 15 .

4. Jurisprudência do Tribunal de Justiça no período de 2011-2017

Embora o número de processos em tribunal a nível nacional e os setores envolvidos não sugiram uma prevalência de um setor específico, a situação é diferente se examinarmos as questões submetidas ao Tribunal de Justiça da União Europeia. Os quatro acórdãos do Tribunal durante o período de referência têm como objeto os dispositivos médicos e os produtos farmacêuticos, indicando a possível existência de problemas específicos na aplicação da diretiva aos produtos de saúde.

Num caso em que uma cama hospitalar queimou um paciente durante uma cirurgia, o Tribunal confirmou que a diretiva se aplica apenas aos produtores e não aos prestadores de serviços que utilizam produtos constatados como defeituosos 16 . No entanto, a diretiva não impede os Estados-Membros de impor uma responsabilidade objetiva aos prestadores de serviços, desde que tal não limite de nenhuma forma a responsabilidade objetiva dos produtores pelos seus produtos tal como prevista na diretiva.

A maior dificuldade em receber uma indemnização por danos resulta do facto de o ónus da prova recair sobre o lesado, que tem de demonstrar o nexo causal entre o defeito do produto e o dano. O Tribunal facilitou consideravelmente este procedimento, aceitando as regras nacionais que ajudam o lesado a estabelecer essa prova, desde que o ónus da prova continue a competir ao lesado como previsto na diretiva. Por exemplo, o Tribunal declarou que as regras nacionais que concedem aos consumidores o direito de exigir ao fabricante de um produto que lhes forneça informações sobre os seus efeitos adversos podem ser aceites, uma vez que não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da diretiva 17 . Essas regras permitem mais facilmente ao lesado estabelecer a responsabilidade do produtor. Além disso, o Tribunal admitiu regras probatórias nacionais nos termos das quais um tribunal nacional considere que certos elementos de prova factuais constituem indícios graves, específicos e consistentes de um defeito de um produto e constituem o nexo de causalidade com o dano, mesmo que não haja provas científicas conclusivas na matéria 18 . Em especial, no caso de efeitos secundários adversos de produtos farmacêuticos, em que os elementos de prova são muitas vezes inconclusivos, esta medida pode ajudar as pessoas que tenham sofrido um prejuízo a obter reparação. O Tribunal indicou igualmente que os produtos de um mesmo grupo ou da mesma série de produção com um defeito potencial podem ser considerados defeituosos, sem a necessidade de estabelecer o defeito para cada produto individual 19 . Os custos da operação necessária para eliminar os produtos potencialmente defeituosos também são considerados dano na aceção da diretiva 20 .

Exemplo: Degradação progressiva dos estimuladores cardíacos. Um produtor de estimuladores cardíacos («pacemakers») informou os médicos de que uma componente utilizada para selar hermeticamente esses estimuladores poderia sofrer uma degradação progressiva. Esse defeito poderia ter como consequência o esgotamento antecipado da pilha, provocando a perda de telemetria e/ou perda da estimulação cardíaca sem aviso prévio. O fabricante recomendou a substituição dos estimuladores cardíacos em causa e declarou que fabricaria novos estimuladores que seriam disponibilizados gratuitamente. Dois pacientes receberam os novos estimuladores gratuitos. Os estimuladores cardíacos defeituosos foram destruídos sem uma análise mais aprofundada. A companhia de seguros exigiu também uma indemnização ao produtor ao abrigo da diretiva pelo custo da operação de substituição dos estimuladores cardíacos, como dano sofrido.

5.Avaliação da diretiva

A avaliação da Comissão baseia-se num estudo externo, cujas conclusões são analisadas no documento de trabalho dos serviços da Comissão 21 que acompanha o presente relatório. A avaliação analisou: i) se a diretiva ainda cumpre os seus objetivos iniciais de garantir a responsabilidade dos produtores, o correto funcionamento do mercado único e a proteção e compensação das pessoas lesadas; e ii) se mantém a sua eficácia, eficiência, coerência, relevância e o valor acrescentado da UE.

5.1.Eficácia

A maioria das partes interessadas tem conhecimento de que o produtor é responsável pelos defeitos dos seus produtos. Em geral, a indústria está satisfeita com a diretiva como meio de assegurar a responsabilidade pelos produtos defeituosos. Em contrapartida, as organizações representativas dos consumidores criticam a dificuldade para os lesados de provar o nexo de causalidade entre o defeito e o dano, em particular, porque têm de adiantar o pagamento dos custos dessa prova e porque se encontram em desvantagem em termos de informação técnica sobre o produto. A avaliação considera que esta questão representa a maior dificuldade para os consumidores que procuram obter uma compensação. No entanto, esta exigência não pode ser eliminada. O limiar de 500 EUR e os prazos para a apresentação das queixas (em especial para certos produtos, como os produtos farmacêuticos) também limitam o número de casos em que os consumidores podem reclamar uma indemnização.

De um modo geral, podemos considerar que a diretiva contribui para um equilíbrio razoável entre a proteção dos lesados e a garantia de uma concorrência leal no mercado único. No entanto, alguns conceitos da diretiva requerem maior orientação e/ou clarificação, uma vez que põem em causa a sua eficácia. Em especial, um entendimento comum mais adequado das noções de «produto», «dano» e «defeito» e uma maior clarificação do estabelecimento do ónus da prova tornariam a aplicação da diretiva mais eficaz.

No que diz respeito às novas tecnologias, a falta de informação sobre processos judiciais específicos, queixas dos consumidores ou experiência prática relevante das partes interessadas não permite alcançar nenhuma conclusão definitiva 22 . Tendo em conta as características das novas tecnologias (nomeadamente a sua complexidade e autonomia), parece evidente que a Comissão terá de continuar a acompanhar as perguntas que continuem sem resposta. Algumas dessas características podem pôr em causa a capacidade do atual quadro de responsabilidade decorrente dos produtos para garantir a reparação eficaz dos consumidores e a estabilidade do investimento necessária às empresas. Outros aspetos podem, pelo contrário, ser adequadamente abordados pela atual diretiva. A Comissão analisará atentamente os potenciais desafios no seguimento do presente relatório.

5.2.Eficiência

A diretiva procura assegurar o equilíbrio entre os interesses das pessoas lesadas e os interesses dos produtores. Os custos correspondem a uma solução de compromisso: o benefício das pessoas lesadas representa o custo suportado pelos produtores, e vice-versa. O principal custo para os produtores decorre da responsabilidade objetiva. Para os consumidores, os custos estão relacionados com o ónus da prova, o limiar de 500 EUR e o cumprimento dos prazos. Os conceitos são simples, mas a sua aplicação pode revelar-se complicada.

Em geral, a diretiva é considerada um instrumento eficiente que proporciona um quadro jurídico estável para o mercado único e para harmonizar a proteção dos consumidores. No entanto, o equilíbrio entre os custos e benefícios que resultam da diretiva não é uniforme em todos os Estados-Membros e setores, ou tipos de produto, para os lesados. O grau de complexidade de um produto determina o custo da prova de um defeito. Para os produtos farmacêuticos, por exemplo, os custos podem não ser repartidos equitativamente entre os produtores e as pessoas lesadas. Existem ainda outros fatores que são importantes ao determinar a eficácia da diretiva. Um fator em particular, que representa o maior encargo administrativo, é o custo e duração do processo judicial. Estes aspetos variam consideravelmente de um Estado-Membro para outro e têm um efeito mais direto nas pessoas lesadas do que nos produtores. Contudo, uma vez que não se trata de um encargo imposto pela própria diretiva, não foi identificada qualquer simplificação específica possível a este respeito.

5.3.Coerência

A diretiva não existe num vácuo legislativo e não pode ser considerada isoladamente. É parte integrante de um quadro jurídico da UE que foi adotado para assegurar o bom funcionamento do mercado único, promover a inovação e o crescimento através de normas de segurança tecnologicamente neutras e proteger a segurança e o bem-estar dos consumidores.

A avaliação concluiu que a diretiva é coerente com as regras gerais pertinentes da UE. Essas regras abrangem a legislação vigente e proposta da UE em matéria de defesa do consumidor, no domínio da responsabilidade contratual, bem como a legislação sobre a resolução de litígios 23 . Mais importante ainda, a diretiva é coerente com as regras da UE em matéria de segurança dos produtos, como previstas nas regras harmonizadas de segurança dos produtos da UE 24 e na diretiva relativa à segurança geral dos produtos 25 . As regras da UE em matéria de segurança dos produtos estabelecem os níveis de segurança mínimos que os produtos colocados no mercado da UE devem satisfazer. Representam, por sua vez, os níveis de segurança para esses produtos que o lesado tem o direito de exigir nos termos da diretiva. Os produtores estão igualmente isentos de qualquer responsabilidade, se puderem provar que o defeito é devido à conformidade com essas regras. Uma vez que as mudanças tecnológicas exigirão alterações correspondentes na legislação da UE, é importante manter esta coerência com as regras gerais 26 .

5.4.Relevância

A diretiva conseguiu resistir a três décadas de inovações técnicas. Os objetivos iniciais, a saber, garantir a responsabilidade dos produtores, a proteção dos consumidores e uma concorrência não falseada mantêm a sua relevância. No entanto, no que se refere aos novos desenvolvimentos tecnológicos, as partes interessadas manifestaram a sua preocupação quanto à relevância dos conceitos utilizados na diretiva, tal como atualmente enunciados. Certas questões carecem de resposta, nomeadamente a distinção entre produtos e serviços (por exemplo, na «Internet das Coisas», onde os produtos e serviços interagem), a extensão dos danos cobertos (atualmente limitada aos danos materiais) e a noção de «defeito».

É também necessária uma análise específica, por exemplo, sobre os produtos farmacêuticos, devido à sua complexidade, e os produtos renovados, tendo em conta a sua natureza alterada, que pode suscitar problemas distinguindo-os de outras categorias de produtos.

A resposta a estas questões requer mais investigação e uma resposta clara que ofereça segurança jurídica aos produtores e consumidores.

5.5.Valor acrescentado da UE

A diretiva é parte integrante das regras do mercado único da UE. Os seus benefícios são incontestáveis. A diretiva prevê uma proteção uniforme dos consumidores, funcionando como uma «rede de segurança» que complementa a legislação da UE sobre a segurança dos produtos. A diretiva também estabelece um delicado equilíbrio entre inovação e proteção, que apenas pode ser alcançado a nível da UE, para evitar a fragmentação do mercado interno e distorções na concorrência.

A revogação da diretiva conduziria à fragmentação e a diferentes níveis de proteção do consumidor, na medida em que os tribunais nacionais só aplicariam a regulamentação, legislação contratual ou legislação em matéria de responsabilidade civil nacionais. É de salientar, contudo, que a diretiva coexiste com os instrumentos nacionais e que, por conseguinte, são ainda possíveis abordagens nacionais diferentes.

6.Conclusão: Quarta revolução industrial: Uma abordagem prática em matéria de responsabilidade

Os problemas que enfrentamos hoje são, em certa medida, diferentes daqueles que tivemos de superar no mundo essencialmente analógico de 1985. Sofremos atualmente outra revolução tecnológica. A economia e os próprios produtos tornam-se, cada vez mais, digitais, interligados, autónomos e inteligentes. Precisamos de uma resposta global e coerente para estes desafios, como delineado na iniciativa «Inteligência Artificial» 27 .

A diretiva tem, até agora, abrangido uma vasta gama de produtos e desenvolvimentos tecnológicos. Em princípio, constitui um instrumento útil para proteger as pessoas lesadas e garantir a concorrência no mercado único, harmonizando as regras para os lesados e as empresas nos aspetos que abarca. Este é um domínio em que as regras adotadas a nível da UE representam um claro valor acrescentado. Dispor de regras a nível da UE em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos é um valor incontestável.

Tal não significa que a diretiva é perfeita.

A sua eficácia está entravada por certas noções (como «produto», «produtor», «defeito» e «dano», ou o ónus da prova) que poderiam ser mais eficazes na prática. A avaliação mostrou igualmente que, em certos casos, os custos não são distribuídos de forma equitativa entre os consumidores e os produtores. Esta afirmação é particularmente verdadeira nos casos em que o ónus da prova é complexo, como sucede com algumas tecnologias digitais emergentes ou produtos farmacêuticos.

Para manter a sua relevância no futuro, a diretiva beneficiaria de uma maior clarificação que permitisse dar resposta às questões suscitadas. A diretiva abrange uma vasta gama de produtos e possíveis cenários. Novas orientações podem ajudar a tornar estes conceitos mais eficazes e ajudar a manter a sua relevância.

O nosso objetivo é continuar a assegurar um justo equilíbrio entre os interesses dos consumidores e dos produtores relativamente a todos os produtos:

Alguns dos conceitos que pareciam claros em 1985, como «produto» e «produtor» ou «defeito» e «dano», tornaram-se hoje mais opacos. A indústria encontra-se cada vez mais dispersa por múltiplos intervenientes e integrada em cadeias de valor mundiais, com uma forte componente de serviços 28 . Os produtos podem, cada vez mais, ser alterados, adaptados e renovados sem controlo do produtor. Apresentam igualmente níveis crescentes de autonomia. Os modelos de negócio emergentes põem em causa os mercados tradicionais. O impacto destes desenvolvimentos sobre as questões da responsabilidade pelos produtos exige uma reflexão mais aprofundada. Em última instância, um produtor deve ser responsável pelo produto que põe em circulação e as pessoas lesadas devem provar que o dano foi causado por um determinado defeito. Tanto os produtores como os consumidores precisam de saber o que podem legitimamente esperar dos produtos em termos de segurança, através de um quadro normativo claro no domínio da segurança.

Inversamente, o desenvolvimento de um mercado único forte de produtos e serviços de cibersegurança será dificultado por problemas na assunção dos prejuízos por parte das empresas e cadeias de abastecimento, e pela incapacidade para superar estes problemas, como salientado pela Comissão na sua Comunicação «Resiliência, dissuasão e defesa: reforçar a cibersegurança na UE» 29 . Mais uma vez, os consumidores e as empresas precisam de conhecer os níveis de segurança que podem legitimamente esperar, bem como as entidades a quem podem recorrer caso uma falha na cibersegurança resulte num dano material.

Dificuldades transfronteiras recentes, de larga escala, que afetaram um grande número de consumidores em toda a UE, como o escândalo «Dieselgate», tiveram um impacto negativo na confiança dos consumidores no mercado único. No seu «Novo Quadro para os Consumidores», a Comissão propõe, entre outras medidas, a modernização dos sistemas de reparação e permite que os consumidores conheçam mais facilmente os seus direitos 30 . Para garantir que o mercado único cumpre as suas plenas potencialidades, precisamos de garantir aos consumidores que os seus direitos serão respeitados.

Outros aspetos mais abrangentes exigem a mesma atenção, em particular no contexto de uma economia mais sustentável em que os produtos são renovados, reparados e reutilizados. Quem será o fabricante desses produtos, por exemplo, no caso de reparação, reutilização e renovação? Igualmente, será o facto de todos os acórdãos prejudiciais do Tribunal de Justiça respeitarem a produtos farmacêuticos e dispositivos médicos indicativo de características específicas neste setor?

A Comissão criou um grupo de peritos no domínio da responsabilidade para explorar detalhadamente o efeito destes desenvolvimentos. O grupo tem duas configurações. Uma é composta por representantes dos Estados-Membros, da indústria e de organizações representativas dos consumidores, da sociedade civil e do meio académico: este grupo assistirá a Comissão na sua interpretação, aplicação e eventual atualização da diretiva, incluindo à luz da evolução da jurisprudência nacional e da UE, bem como as implicações das tecnologias novas e emergentes e quaisquer outros desenvolvimentos no domínio da responsabilidade pelos produtos. Outra configuração, composta unicamente por peritos académicos e profissionais independentes, irá avaliar se o regime geral da responsabilidade é adequado para facilitar a adoção das novas tecnologias, promovendo a estabilidade do investimento e a confiança dos consumidores 31 .

No que se refere à Comissão, pretendemos garantir um quadro favorável e fiável em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos, que promova a inovação, a criação de emprego e o crescimento, protegendo simultaneamente os consumidores e a segurança do público em geral. Em meados de 2019, emitiremos orientações sobre a diretiva, bem como um relatório sobre as implicações mais vastas, e eventuais lacunas e orientações, dos quadros da responsabilidade e segurança no domínio da IA, da «Internet das Coisas» e da robótica. Se necessário, a Comissão atualizará certos aspetos da diretiva, nomeadamente as noções de «defeito», «dano», «produto» e «produtor». No entanto, o princípio geral da responsabilidade objetiva será plenamente salvaguardado.

Um quadro normativo no domínio da segurança coerente e tecnologicamente neutro deverá permitir evitar, na medida do possível, a ocorrência de acidentes. Todavia, caso ocorra um acidente, o nosso quadro em matéria de responsabilidade assegurará que as pessoas lesadas sejam devidamente compensadas.

(1)      Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, http://data.europa.eu/eli/dir/1985/374/oj .
(2)      Atualmente, este «tipo de legislação» abrange a grande maioria dos produtos disponíveis nos mercados da UE, sendo regularmente atualizada para acompanhar a evolução tecnológica.
(3)      Comunicação da Comissão «Maximizar os benefícios da inteligência artificial para a Europa» [COM(2018) 237].
(4)      Documento de trabalho dos serviços da Comissão, Avaliação da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, [SWD(2018)157].
(5)      Em complemento da legislação já existente sobre os produtos.
(6)      A noção de «produtor» inclui o fabricante de um produto acabado, o produtor de uma matéria-prima ou o fabricante de uma parte componente, e qualquer pessoa que se apresente como produtor pela aposição sobre o produto do seu nome, marca comercial ou qualquer outro sinal distintivo (artigo 3.º da diretiva).
(7)      Ao abrigo da legislação da UE em matéria de segurança, o fabricante é sempre responsável por assegurar que o produto cumpre os requisitos da legislação pertinente da UE, mesmo que seja obrigatória a avaliação da conformidade por terceiros.
(8)      Esta abordagem tem em conta todas as circunstâncias, incluindo a apresentação do produto, a utilização que se pode razoavelmente esperar do produto e o momento em que o produto foi colocado em circulação. O artigo 6.º da diretiva estabelece que um produto não pode ser considerado defeituoso pelo simples facto de ser colocado posteriormente em circulação um produto mais aperfeiçoado.
(9)      COM(95) 617 final, COM(2000) 893 final, COM(2006) 496 final e COM(2011) 547 final. Os relatórios anteriores registaram um aumento dos processos relacionados com a diretiva. Registaram, igualmente, um consenso geral sobre a necessidade de dispor de um quadro em matéria de responsabilidade pelos produtos a nível da UE. No entanto, alguns debates sobre certos conceitos utilizados na diretiva, por exemplo, sobre o ónus da prova, podem ser considerados antigos. A Comissão não considerou necessário alterar a diretiva, exceto para alargar o seu âmbito de aplicação pela Diretiva 1999/34/CE.
(10)      A Finlândia e o Luxemburgo.
(11)      O Código Civil húngaro estabelece que o produtor de qualquer produto farmacêutico é responsável mesmo que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento em que o produto foi colocado em circulação não permitisse detetar a existência do defeito. Do mesmo modo, o Decreto Legislativo Real espanhol n.º 1/2007, de 16 de novembro de 2007, afirma que os produtores de medicamentos, alimentos ou géneros alimentícios destinados ao consumo humano não podem invocar a derrogação prevista no artigo 15.º, n.º 7, alínea b), da diretiva.
(12)      A França.
(13)      Estas percentagens baseiam-se nas respostas à consulta pública e correspondem aos valores médios dos 28 Estados-Membros.
(14)      Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos.
(15)      Os resultados baseiam-se na análise de 547 casos de acordo com a Nomenclatura Combinada.
(16)      Acórdão de 21 de dezembro de 2011, processo C-495/10.
(17)      Acórdão de 20 de novembro de 2014, processo C-310/13.
(18)      Acórdão de 21 de junho de 2017, processo C-621/15.
(19)      Acórdão de 5 de março de 2015, processos apensos C-503/13 e C-504/13.
(20)      Ibidem.
(21)      Ver documento de trabalho dos serviços da Comissão SWD(2018)157 sobre a avaliação da diretiva.
(22)      O estudo externo em que se baseou a avaliação só pôde identificar um único processo judicial cuja matéria estaria especificamente relacionada com as novas tecnologias digitais. O processo dizia respeito a uma unidade de armazenamento de dados na Bulgária. (processo búlgaro n.º 20942/2012)
(23)      Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho; Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas; Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos digitais, COM/2015/0634 final. Proposta alterada de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certos aspetos que dizem respeito a contratos de vendas em linha de bens e outras vendas à distância de bens, que altera o Regulamento (CE) n.º 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2009/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, COM/2017/0637 final.
(24)      Por exemplo, a Diretiva 2006/42/CE relativa às máquinas, a Diretiva 2009/48/CE relativa à segurança dos brinquedos, o Regulamento (UE) n.º 305/2011 que estabelece condições harmonizadas para a comercialização dos produtos de construção e que revoga a Diretiva 89/106/CEE do Conselho, a Diretiva 2013/53/UE relativa às embarcações de recreio e às motas de água e que revoga a Diretiva 94/25/CE, a Diretiva 2014/29/UE relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes à disponibilização no mercado de recipientes sob pressão simples, a Diretiva 2014/33/UE relativa à harmonização da legislação dos Estados-Membros respeitante a ascensores e componentes de segurança para ascensores, a Diretiva 2014/35/UE relativa à disponibilização no mercado de material elétrico destinado a ser utilizado dentro de certos limites de tensão, a Diretiva 2014/53/UE respeitante à disponibilização de equipamentos de rádio no mercado e que revoga a Diretiva 1999/5/CE, o Regulamento (UE) 2017/745 relativo aos dispositivos médicos, que altera a Diretiva 2001/83/CE, o Regulamento (CE) n.º 178/2002 e o Regulamento (CE) n.º 1223/2009 e que revoga as Diretivas 90/385/CEE e 93/42/CEE, o Regulamento (UE) 2017/746 relativo aos dispositivos médicos para diagnóstico in vitro e que revoga a Diretiva 98/79/CE e a Decisão 2010/227/UE da Comissão.
(25)      Diretiva 2001/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à segurança geral dos produtos. As regras da UE no domínio dos transportes atribuem aos fabricantes ou operadores a responsabilidade de manter as condições de segurança dos veículos, aviões e navios.
(26)      A avaliação da Diretiva «Máquinas» já concluiu que as novas tecnologias digitais não são especificamente abordadas nos requisitos essenciais de saúde e de segurança da diretiva. Importa, pois, analisar atentamente se a cláusula relativa ao risco de desenvolvimento e respetiva possibilidade de derrogação resultam numa fragmentação do quadro regulamentar, o que poderia ser problemático para a implantação da IA.
(27)      Comunicação da Comissão «Maximizar os benefícios da inteligência artificial para a Europa» [COM(2018)237].
(28)      Um outro aspeto a ter em conta é a venda direta em linha, a partir de países terceiros.
(29)      COM(2017) 450 final.
(30)      COM(2018)183, COM(2018)184 e COM(2018)185.
(31)      O documento de trabalho dos serviços da Comissão sobre a responsabilidade no domínio das tecnologias digitais emergentes [SWD(2018)137] já destaca algumas das questões a debater por esta configuração.
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