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Document 62009CC0173

Conclusões do advogado-geral Cruz Villalón apresentadas em 10 de Junho de 2010.
Georgi Ivanov Elchinov contra Natsionalna zdravnoosiguritelna kasa.
Pedido de decisão prejudicial: Administrativen sad Sofia-grad - Bulgária.
Segurança social - Livre prestação de serviços - Seguro de doença - Cuidados hospitalares dispensados noutro Estado-Membro - Autorização prévia - Condições de aplicação do artigo 22.º, n.º 2, segundo parágrafo, do Regulamento (CEE) n.º 1408/71 - Modalidades de reembolso ao segurado das despesas hospitalares incorridas noutro Estado-Membro - Obrigação para um órgão jurisdicional inferior de acatar as instruções de um órgão jurisdicional superior.
Processo C-173/09.

Colectânea de Jurisprudência 2010 I-08889

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2010:336

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 10 de Junho de 2010 1(1)

Processo C‑173/09

Georgi Ivanov Elchinov

contra

Natsionalna zdravnoosiguritelna kasa

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Sofia grad (Bulgária)]

«Obrigação de um tribunal de grau inferior seguir as instruções dadas por uma instância superior – Autonomia processual – Caso julgado – Reexame da jurisprudência Rheinmühlen I – Livre prestação de serviços – Artigo 56.° TFUE – Segurança social – Artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 – Cuidados médicos que exigem hospitalização – Compatibilidade de um regime de autorização prévia com o direito da União – Presunção de um vínculo entre a impossibilidade material de prestar um serviço previsto na lei e a recusa de reembolso do custo da prestação recebida noutro Estado‑Membro – Conceito de cuidado médico eficaz – Legislação aplicável ao reembolso da prestação recebida noutro Estado‑Membro»





1.        O presente processo suscita importantes e delicadas questões, tanto de direito processual como substantivo. Por um lado, o Administrativen sad Sofia grad (Tribunal Administrativo de Sófia) questiona o Tribunal de Justiça sobre se o direito da União se opõe a que um tribunal hierarquicamente inferior dê cumprimento à decisão do seu Supremo Tribunal quando baixam os autos, no caso de ter sérias dúvidas sobre a conformidade da decisão com esse ordenamento. Por outro lado, coloca pormenorizadamente a questão da cobertura das despesas efectuadas num centro médico de outro Estado‑Membro, resultantes da impossibilidade material de tratar o paciente na Bulgária, onde existe alternativa de tratamento, mas menos eficaz e simultaneamente com consequências mais gravosas para a sua saúde.

2.        Observa‑se desde logo que ambas as questões encontram resposta na jurisprudência do Tribunal de Justiça. No entanto, algumas mudanças importantes ocorridas nos últimos anos justificam que questões como estas se voltem a colocar. O aparecimento relativamente recente de uma importante jurisprudência sobre a relação entre a justiça comunitária e os tribunais nacionais (Köbler, Kühne & Heitz, Comissão/Itália) (2), entre outros) pode explicar que o Tribunal Administrativo de Sófia questione a vigência da doutrina contida num acórdão do Tribunal de Justiça, Rheinmühlen I (3), proferido em 1974. Do mesmo modo, a adesão à União de novos Estados com diferentes sistemas de saúde, tanto no que respeita à organização como à respectiva capacidade financeira, suscita dúvidas sobre a aplicabilidade de uma jurisprudência, que entretanto analisaremos, originada e desenvolvida anteriormente à ampliação.

3.        As referidas mudanças nas circunstâncias de facto e na jurisprudência da União explicam que a Grande Secção do Tribunal de Justiça seja chamada a decidir o presente processo.

I –    Enquadramento jurídico

A –    Direito comunitário

Artigo 267.° TFUE

«O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) sobre a interpretação dos Tratados;

b) sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos e organismos da União;

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados‑Membros, esse órgão, pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada num processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar‑se‑á com a maior brevidade possível.»

Artigo 56.° TFUE

«No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas para os nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado‑Membro que não seja o do destinatário da prestação.»

4.        O direito derivado aplicável a este processo confina‑se, sobretudo, ao artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 (4), que contém as normas relativas aos cuidados de saúde prestados num Estado‑Membro diferente daquele em cuja segurança social o trabalhador se encontra inscrito, nos seguinte termos:

«Artigo 22.°

1. O trabalhador que preencha as condições exigidas pela legislação do Estado competente para ter direito às prestações, tendo em conta, quando necessário, o disposto no artigo 18.° e:

[…]

c) Que seja autorizado pela instituição competente a deslocar‑se ao território de outro Estado‑Membro a fim de nele receber tratamentos adequados ao seu estado, terá direito:

i) às prestações em espécie concedidas, por conta da instituição competente, pela instituição do lugar de estada ou de residência, nos termos da legislação aplicada por esta instituição, como se nela estivesse inscrito, sendo, no entanto, o período de concessão das prestações regulado pela legislação do Estado competente;

ii) às prestações pecuniárias concedidas pela instituição competente nos termos da legislação por ela aplicada. Todavia, por acordo entre a instituição competente e a instituição do lugar de estada ou de residência, essas prestações podem ser concedidas pela última instituição por conta da primeira, em conformidade com as disposições da legislação do Estado competente.

1a. A Comissão Administrativa estabelecerá a lista das prestações em espécie que, para que possam ser pagas durante uma estada noutro Estado‑Membro, exijam, por razões práticas, um acordo prévio entre a pessoa em questão e a instituição que presta os cuidados.

2. A autorização exigida nos termos do n.° 1, alínea b), apenas pode ser recusada se se considerar que a deslocação do interessado é susceptível de comprometer o seu estado de saúde ou a aplicação do tratamento médico.

A autorização exigida nos termos do n.° 1, alínea c), não pode ser recusada quando os tratamentos em causa figurarem entre as prestações previstas pela legislação do Estado‑Membro em cujo território reside o interessado e se os mesmos tratamentos não puderem, tendo em conta o seu estado actual de saúde e a evolução provável da doença, ser‑lhe dispensados no prazo normalmente necessário para obter o tratamento em causa no Estado‑Membro de residência.

[…]»

B –    Direito nacional

5.        O artigo 224.° do Administrativno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Administrativo (a seguir «APK») determina as consequências dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo da República da Bulgária para o tribunal a quo, nos seguintes termos:

«Artigo 224.°

As indicações do Supremo Tribunal Administrativo relativas à interpretação e aplicação da lei vinculam [o tribunal a quo] na reapreciação do processo.»

6.        A Lei do Seguro de Doença, no seu artigo 36.°, n.° 1, estabelece que os beneficiários inscritos no seguro obrigatório só têm direito «ao reembolso parcial ou total das despesas realizadas com a assistência médica no estrangeiro se tiverem obtido a autorização prévia da Caixa Nacional do Seguro de Doença [a seguir ‘a Caixa’] para o efeito».

7.        A assistência médica abrangida pelo seguro obrigatório está prevista no artigo 45.° da citada Lei, no termos do qual

«Artigo 45.°

(1) A Caixa Nacional de Doença paga as seguintes classes de cuidados de saúde:

[…]

3.      Cuidados médicos em meio hospitalar ou fora dele para diagnóstico e tratamento de doenças;

[…]

5.      Cuidados de emergência médica;

(2)      […] Os cuidados médicos previstos no n.° 1, com excepção dos previstos no n.° 10, constituem o pacote básico financiado pelo orçamento da [Caixa]. O pacote básico é definido por Regulamento do Ministro da Saúde.»

8.        O regulamento mencionado na Lei é o n.° 40 de 2004, que estabelece o pacote básico das prestações de cuidados de saúde abrangidas pela garantia de financiamento pela Caixa, em cujo artigo único se dispõe que «o pacote básico de cuidados de saúde inclui prestações cujo tipo e âmbito estão definidos nos anexos 1 a 10.»

9.        O anexo 5 daquele Regulamento contém a «lista das prestações de saúde», onde se incluem as seguintes:

«133. Tratamento cirúrgico do glaucoma

134.      Cirurgia do olho com laser ou crioterapia

135.      Cirurgia da região ocular

136.      Outras operações do globo ocular

[…]

258.      Tratamentos radiológicos de alta tecnologia de doenças oncológicas ou não oncológicas.»

II – Os factos

10.      A Georgi Ivanov Elchinov, residente na Bulgária e beneficiário do seguro de doença da Caixa Nacional de Doença desse país, foi diagnosticada uma doença maligna do foro oncológico no olho direito. Foi‑lhe prescrito, pelo seu médico, um tratamento através da aplicação de placas radioactivas ou através de uma terapia protónica.

11.      Em 9 de Março de 2007, apresentou, ao abrigo do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, um pedido de emissão do modelo de autorização E 112 (documento que autoriza um tratamento médico no estrangeiro) àquela Caixa, para ser submetido ao tratamento prescrito numa clínica especializada em doenças oftalmológicas em Berlim, por conta do seu seguro de doença búlgaro. O pedido baseava‑se na impossibilidade de prestação do tratamento prescrito no país de residência, onde o tratamento possível para a referida patologia consiste na ablação completa do olho (enuclação).

12.      Atenta a gravidade do seu estado de saúde e antes de a referida Caixa ter respondido ao pedido, em 15 de Março submeteu‑se ao tratamento na clínica alemã. Decorridas algumas semanas e após ter recebido um parecer do Ministério da Saúde confirmando que o tratamento prescrito não era realizado na Bulgária, em 18 de Abril a Caixa decidiu recusar o pedido.

13.      Desta decisão foi interposto recurso contencioso para o Tribunal Administrativo de Sófia que, em 13 de Agosto do mesmo ano, proferiu acórdão que deu provimento ao recurso, anulando a decisão recorrida, e remeteu o processo à Caixa ordenando a emissão do modelo E 112 e condenando‑a nas custas. Na fundamentação do acórdão rejeita‑se a interpretação dada pela Caixa ao artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 concluindo‑se que o tratamento prescrito se encontrava previsto na legislação búlgara. Segundo o Tribunal Administrativo de Sófia, o facto de o tratamento estar legalmente previsto e não poder ser ministrado na República da Bulgária, é suficiente para justificar a aplicação do referido preceito pelo que devia ter sido concedida a autorização para fazer o tratamento fora do país.

14.      A Caixa interpôs recurso deste acórdão para o Varchoven administrativen Sad (Supremo Tribunal Administrativo). Por acórdão de 4 de Abril de 2008, este revogou o acórdão do Tribunal Administrativo de Sófia e remeteu o processo para reapreciação por outra secção do Tribunal a quo. O Supremo Tribunal considerou incorrecta a interpretação do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 feita pela primeira instância, pois a impossibilidade de ministrar o tratamento controvertido na Bulgária, apesar de previsto na legislação nacional, gera a presunção de que não figura entre as prestações legalmente exigíveis.

15.      No decurso da «reapreciação» do processo pelo Tribunal Administrativo de Sófia, G. Elchinov requereu que fosse submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de decisão prejudicial.

III – A questão prejudicial e o processo no Tribunal de Justiça

16.      Em 14 de Maio de 2009 deu entrada no Tribunal de Justiça o pedido de decisão prejudicial do Tribunal Administrativo de Sófia, articulado nas seguintes questões:

«1)      O artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, […], deve ser interpretado no sentido de que, quando o tratamento concreto para o qual é solicitada a emissão do modelo E 112 não puder ser [ministrado] numa instituição de saúde búlgara, deve presumir‑se que esse tratamento não é financiado pelo orçamento da Caixa Nacional de Doença (NZOK) ou do Ministério da Saúde, e inversamente, que quando este tratamento é financiado pelo orçamento da NZOK ou do Ministério da Saúde, deve presumir‑se que o tratamento pode ser ministrado numa instituição de saúde búlgara?

2)      A expressão [«os mesmos tratamentos não puderem ser dispensados no [...] Estado‑Membro de residência»], constante do artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, deve ser interpretada no sentido de que abrange os casos em que o tratamento existente no território em que o beneficiário reside é um tipo de tratamento muito menos eficaz e muito mais radical do que o que existe noutro Estado‑Membro, ou apenas os casos em que o interessado não pode ser atempadamente tratado?

3)      Tendo em conta o princípio da autonomia processual, o tribunal nacional está obrigado a acatar as indicações vinculativas que lhe foram dadas por uma instância superior que revogou a sua decisão anterior e lhe remeteu o processo para reapreciação, quando existam fundamentos para se pensar que essas indicações estão em contradição com o direito comunitário?

4)      Quando o tratamento em causa não puder ser prestado no território do Estado‑Membro em que o beneficiário reside, para que este Estado‑Membro seja obrigado a autorizar o tratamento noutro Estado‑Membro nos termos do artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, é suficiente que o tipo de tratamento em causa esteja incluído nas prestações previstas na legislação do primeiro, mesmo que essa legislação não mencione expressamente o método concreto de tratamento?

5)      Os artigos 49.° CE e 22.° do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 opõem‑se a uma disposição nacional, como a do artigo 36.°, n.° 1, da Lei do Seguro de Doença, nos termos do qual os beneficiários obrigatórios só têm direito ao reembolso parcial ou total das despesas de saúde efectuadas no estrangeiro quando tiverem obtido uma autorização prévia para esse efeito?

6)      O tribunal nacional deve obrigar a entidade competente do Estado em que o beneficiário da caixa de doença reside a emitir o documento necessário para a realização de um tratamento no estrangeiro (Modelo E 112) quando a recusa de emissão desse documento for considerada ilegal, se o pedido de emissão do documento tiver sido apresentado antes da realização do tratamento no estrangeiro e o tratamento já tiver sido ministrado no momento em que foi proferida a decisão judicial?

7)      Em caso de resposta afirmativa à questão anterior e se o tribunal considerar ilegal a recusa de autorização de um tratamento no estrangeiro, como devem as despesas efectuadas pelo beneficiário da caixa de doença com o tratamento ser‑lhe reembolsadas?

a)      directamente pelo Estado em que está inscrito como beneficiário do seguro de doença, ou pelo Estado em que foi efectuado o tratamento, mediante a apresentação da autorização para realização de um tratamento no estrangeiro?

b)      em que medida, se o montante das comparticipações previstas pela lei do Estado da residência for diferente do das comparticipações previstas na lei do Estado em que o tratamento foi realizado, ao abrigo do artigo 49.° CE, que proíbe as restrições à livre prestação de serviços?»

17.      No prazo indicado pelo artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, apresentaram observações, além do recorrente no processo principal, os Governos da Bulgária, República Checa, Espanha, Finlândia, Grécia e Reino Unido, bem como a Comissão. Como nenhuma das partes no processo principal nem esses Estados nem a Comissão requereram a realização de audiência, terminada a fase escrita, passou‑se à apresentação das presentes conclusões.

IV – Sobre o carácter vinculativo das indicações do Supremo Tribunal Administrativo

18.      A terceira das sete perguntas formuladas pelo órgão jurisdicional de reenvio distancia‑se consideravelmente das restantes, colocando uma questão de ordem processual, distinta das questões de mérito. Uma eventual resposta positiva a esta pergunta levará, pelas razões que se passam a expor, à inadmissibilidade das restantes questões prejudiciais. Por tal motivo, começaremos por abordar este aspecto processual.

19.      Com efeito, a terceira questão incide sobre a conformidade de uma disposição da lei processual búlgara com o direito da União e com a jurisprudência do Tribunal de Justiça existente a este respeito. O que se pretende saber, em concreto, é se um tribunal búlgaro é obrigado a aplicar uma norma nacional que, tal como o artigo 224.° APK, o obriga a acatar as indicações vinculativas que lhe tenham sido dadas por uma instância superior que revogou a sua decisão anterior e lhe remeteu o processo para apreciação, quando existam fundamentos para se pensar que essas indicações estão em contradição com o direito da União. Assim sendo, o tribunal de reenvio pede, como veremos em seguida, uma análise da jurisprudência proferida pelo Tribunal de Justiça no processo Rheinmühlen I em 1974 e, concretamente, a respectiva aplicação a um sistema processual como o do contencioso administrativo búlgaro. É verdade que o facto de nos últimos trinta e seis anos se ter verificado uma importante evolução no que respeita à aplicação do direito comunitário por parte dos tribunais nacionais faz com que nos interroguemos sobre a questão colocada pelo tribunal de reenvio, isto é, que interpretação deve ser dada actualmente à doutrina contida no acórdão Rheinmühlen I.

A –    A jurisprudência Rheinmühlen I, respectivo contexto e aplicabilidade a este processo

20.      No já referido acórdão Rheinmühlen I, o Tribunal de Justiça declarou que «uma regra de direito nacional, que vincule os órgãos jurisdicionais que não decidem em última instância às decisões de um órgão jurisdicional superior, não poderá retirar àqueles órgãos a faculdade de submeterem ao Tribunal de Justiça questões de interpretação do direito comunitário a que aquelas decisões se referem» (5). Este entendimento constituía um apoio essencial à força normativa do direito comunitário possibilitando, desde então, que este se impusesse perante o acórdão de um tribunal superior cujo entendimento vinculava a primeira instância. Embora apenas refira expressamente a faculdade de o tribunal de primeira instância submeter a questão prejudicial, tem por objectivo a possibilidade de não serem tomados em consideração os ditames do acórdão do tribunal superior. A única excepção admitida pelo Tribunal de Justiça dizia respeito à hipótese de o tribunal inferior submeter uma questão prejudicial «materialmente idêntica à já submetida pelo tribunal superior» (6).

21.       O acórdão Rheinmühlen I adoptava assim uma espécie de controlo descentralizado do direito comunitário, não no que respeita a normas legais mas a decisões judiciais. Na verdade, os juízes de primeira instância cujas decisões eram revogadas por um tribunal superior podiam, invocando esta doutrina nos processos que lhes eram devolvidos para reapreciação, ignorar a revogação, quando esta, no seu entender, violasse o direito comunitário. Assim, em caso de conflito entre a autonomia processual nacional e essa nova possibilidade de afirmar o primado do direito europeu prevalecia a segunda (7).

22.      Uma aplicação automática desta doutrina levaria a responder negativamente a esta terceira pergunta, passando‑se, assim, a responder às restantes. Acontece que o acórdão Rheinmühlen I assenta em circunstâncias processuais e históricas completamente diferentes das que envolvem o caso presente. Uma abordagem unilateral e centrada unicamente no primado corre o risco de ignorar essa mudança.

B –    Os tribunais nacionais de última instância e a redefinição do seu papel na aplicação do direito da União, bem como a respectiva responsabilidade daí decorrente.

23.      O crescente desenvolvimento do direito da União, acompanhado da atribuição aos tribunais nacionais da responsabilidade na interpretação e aplicação da respectiva legislação, converteu as instâncias superiores dos Estados‑Membros nas traves mestras da cooperação judicial entre o Tribunal de Justiça e os seus homólogos nacionais. Acrescendo que, apesar das sucessivas alterações dos Tratados constitutivos, não existe nem se vislumbra que venha a ser adoptada a possibilidade de recorrer directamente das decisões dos tribunais nacionais para o Tribunal de Justiça, é evidente que as instâncias superiores dos Estados‑Membros são determinantes na fiscalização de uma correcta aplicação do direito da União. Estes poderes foram atribuídos aos tribunais nacionais superiores num contexto no qual se incrementou simultaneamente o seu dever de zelar por uma correcta aplicação desse ordenamento e também o de tutelar os direitos por ele conferidos aos cidadãos.

24.      É neste sentido que, em meu entender, deve ser interpretado o acórdão Köbler (8), ao declarar a responsabilidade patrimonial dos Estados‑Membros pelas decisões judiciais, inclusivamente naqueles onde não se encontravam previstos quaisquer mecanismos de ressarcimento face aos tribunais (9). Paralelamente, o Tribunal de Justiça, instado pela Comissão, no processo Comissão/Itália quebrou a persistente resistência de ambos em interpor e fundamentar, respectivamente, acções de incumprimento contra os Estados‑Membros com fundamento em decisões dos tribunais nacionais (10). Tanto no acórdão Köbler como no acórdão Comissão/Itália, o Tribunal de Justiça tinha em vista os tribunais de última instância, identificando‑os como os agentes máximos com a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir o direito da União (11). Ainda assim, é especialmente relevante o facto de esses tribunais terem ou não submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, bem como os termos em que se tenha aplicado, no caso concreto, a jurisprudência CILFIT (12).

25.      Posto isto, é necessário dizer que os Estados‑Membros previram garantias para evitar que os tribunais de última instância, nas respectivas decisões, não façam tábua rasa da intervenção do Tribunal de Justiça. Os tribunais constitucionais de vários Estados‑Membros regulamentaram neste sentido, embora com diferentes intensidades, os recursos directos para a salvaguarda de direitos fundamentais, inicialmente na República Federal da Alemanha (13), posteriormente na Áustria (14) e em Espanha (15), e mais recentemente na República Checa (16) e na Eslováquia (17). Assim, em alguns Estados‑Membros a responsabilidade crescente que recai sobre os tribunais de última instância não só é controlada pelo Tribunal de Justiça, mas também pelos respectivos Tribunais Constitucionais, que, cada vez mais, interiorizam o direito da União para o incorporarem nos seus critérios de constitucionalidade.

26.      Finalmente, salientamos outro desenvolvimento jurisprudencial que, à primeira vista, parece desviar‑se da orientação apontada mas que é igualmente coerente com esta evolução. No acórdão Kühne & Heitz (18), o Tribunal de Justiça declarou que não é obrigatório o reexame de um acto administrativo nacional confirmado por acórdão proferido em última instância cuja interpretação do direito da União se venha a demonstrar errada em consequência de uma decisão posterior do Tribunal de Justiça. Deste modo se dá prevalência ao princípio da União da segurança jurídica, que protege o caso julgado do acórdão nacional (19). O acórdão proferido no processo Kapferer deu mais um passo neste sentido, aplicando esta orientação a uma decisão judicial transitada em julgado proferida por uma instância inferior (20). Neste último caso, o Tribunal de Justiça não podia ser mais claro ao dizer que «o direito [da União] não obriga um órgão jurisdicional nacional a não aplicar as regras processuais internas que confiram força de caso julgado a uma decisão, mesmo que isso permitisse reparar uma violação do direito comunitário por parte da decisão em causa» (21). O decurso do tempo mais não fez que confirmar esta jurisprudência, como aconteceu nos processos i.21, Kempter e Fallimento Olimpiclub (22). Esta orientação apenas sofre uma excepção quando a norma europeia cujo primado se invoque tenha sido adoptada no exercício de uma competência exclusiva da União (23).

27.      Em suma, esta jurisprudência demonstra como os princípios da União da segurança jurídica e da autonomia institucional podem condicionar, quando for caso disso, a concretização do primado do direito da União. Embora possa parecer contraditória com a doutrina resultante de acórdãos como o Köbler e o Comissão/Itália, não é mais do que a outra face da mesma moeda. À medida que os tribunais de última instância começam a ser directamente responsabilizados pelas respectivas decisões contrárias ao direito da União, é menos premente o sacrifício da segurança jurídica e a autonomia processual nacional para garantir a eficácia deste ordenamento. Em particular, não parece ser necessária a possibilidade de não observar a hierarquia jurisdicional interna a fim de preservar a eficácia do direito da União, uma vez que, entre outras coisas, o titular dos direitos conferidos pelo direito comunitário tem agora a possibilidade de se socorrer de uma acção de responsabilidade por danos causados por decisões judiciais erradas (Köbler); e, se o seu direito interno o permitir, também terá à sua disposição a revogação oficiosa do acto confirmado pelo acórdão ilegal (Kühne & Heitz). Também a acção por incumprimento pode agora servir de tutela à parte que tenha sido prejudicada pela errada interpretação do direito comunitário feita por um tribunal superior (Comissão/Itália), sobretudo nos casos em que os Estados‑Membros prevêem recursos extraordinários de revisão para revogar acórdãos transitados em julgado que são declarados ilegais pelo Tribunal de Justiça no âmbito de um incumprimento (24).

28.      A partir do momento em que um tribunal nacional de última instância pode responder perante os litigantes por força das soluções previstas pelo direito da União, deixa de fazer sentido que os tribunais hierarquicamente inferiores obrigados a aplicar a decisão proferida por um tribunal superior eventualmente contrária ao direito da União mas transitada em julgado mantenham a faculdade de não observância daquela, mesmo nos casos não permitidos pelo direito interno. Na minha opinião, a autonomia processual dos Estados‑Membros, designadamente em áreas tão sensíveis como as que referimos, recupera a sua razão de ser quando a efectividade do direito da União começa decididamente a estar protegida por outros meios.

29.      Neste sentido, não podemos deixar de referir o aumento do volume de trabalho no Tribunal de Justiça. O elevado número de questões prejudiciais que chegam a esta instituição, bem como a criação de processos urgentes que exigem resposta em prazos muito curtos, tornam porventura mais imperiosa a necessidade de partilha de competências com os tribunais nacionais. O surgimento de soluções europeias perante os tribunais nacionais, como aconteceu com a responsabilidade patrimonial dos Estados ou com os princípios da efectividade e da equivalência, fortalece e fomenta a colaboração entre o Tribunal de Justiça e os seus homólogos nacionais. Por outro lado, o aumento do número de Estados‑Membros, a que acresce o contacto cada vez mais frequente e directo do cidadão com o ordenamento europeu, tornam cada vez menos realista a pretensão da competência exclusiva do Tribunal de Justiça para interpretar validamente o direito da União (25). Neste sentido, o acórdão Rheinmühlen I, fruto de determinada época e de determinado contexto, pode, eventual e paradoxalmente, acabar por dificultar mais do que salvaguardar a efectividade desse ordenamento. Tanto que, no caso sub iudice, o recorrente tem à sua disposição diversos meios processuais perante os tribunais nacionais e que, além disso, se encontram garantidos pelo direito da União.

30.      O presente processo põe em relevo o facto de uma pretensão como a do recorrente dispor actualmente de meios processuais efectivos e alternativos aos propugnados pelo acórdão Rheinmühlen I. Assim sendo, se depois de o processo baixar do Supremo Tribunal Administrativo ao Tribunal Administrativo de Sófia, este julgasse improcedente o recurso, o recorrente teria possibilidade de intentar uma acção de responsabilidade contra o Estado‑Membro por violação da do direito da União. No decurso desse processo, o tribunal nacional competente poderá submeter uma questão prejudicial para o Tribunal de Justiça declarar se existe erro manifesto a referida decisão viola efectivamente o direito da União (26). Caso se confirme a infracção, o órgão jurisdicional de reenvio proferirá acórdão definitivo e determinará a indemnização do recorrente, em moldes semelhantes aos do acórdão Rheinmühlen I. Por último, no caso de os tribunais nacionais não apreciarem efectivamente a acção de responsabilidade, resta a alternativa da acção por incumprimento, a intentar pela Comissão mediante denúncia do particular (27).

31.      Contrariamente ao que sucedia na década de setenta do século passado, o ordenamento comunitário alcançou actualmente um grau de maturidade que lhe permite salvaguardar a sua efectividade prática perante os tribunais nacionais com uma influência muito menor na autonomia jurisdicional interna do que aquela que indubitavelmente resulta do acórdão Rheinmühlen I. Assim, parece agora necessário um reexame da referida jurisprudência.

32.      Face ao exposto, tenho que reconhecer que a proposta que apresento ao Tribunal de Justiça não tem qualquer dificuldade. Privar os tribunais das competências derivadas da doutrina Rheinmühlen I pode impedi‑los de dar uma solução imediata aos litigantes, forçando o recurso a uma acção de indemnização de tramitação longa e dispendiosa, que pode vir a ter um desfecho desfavorável. Contratempos que serão, todavia, similares aos que podem ocorrer num litígio do foro exclusivo do direito interno, perante uma decisão errada e prejudicial proferida por um tribunal de última instância na aplicação do direito nacional. Nestas circunstâncias, um litigante numa situação alheia ao direito da União será obrigado a seguir a via da responsabilidade, em termos semelhantes aos de G. Elchinov no momento de exigir os direitos que lhe são atribuídos pela União. Reconhecendo o Tribunal de Justiça que as exigências decorrentes do princípio do primado podem ser eventualmente ceder face ao princípio da segurança jurídica, a solução proposta não só me parece mais coerente com a jurisprudência actual, mas também com a estrutura judicial interna de cada Estado‑Membro, cujos sistema e equilíbrio não devem ser desnecessariamente alterados.

33.      Poderá ainda assim contrapor‑se que, nos termos da jurisprudência comunitária, o princípio do primado só pode sofrer uma excepção quando um acórdão nacional transite em julgado, o que se verificava nos processos Kühne & Heitz ou Kapferer, mas não nos presentes autos. Argumento que, no entanto, apenas faz sentido se consideramos o conceito de caso julgado em termos muito formais, o que não é compatível com a perspectiva do Tribunal de Justiça na sua mais recente jurisprudência. Resulta dos acórdãos anteriormente citados, tanto nos processos Kühne & Heitz, como nos Kapferer, Willy Kempter, i‑21, Germany e Arcor, Lucchini e, mais recentemente, no processo Fallimento Olimpiclub, que o Tribunal de Justiça faz depender das circunstâncias concretas de cada caso a valoração do caso julgado de uma decisão judicial interna. Tal como referiu o advogado‑geral J. Mazák nas suas conclusões no processo Fallimento Olimpiclub já referido, esta jurisprudência reflecte a necessidade de uma ponderação casuística das circunstâncias específicas de facto e de direito (28). É precisamente uma tal abordagem, considerando as peculiaridades de âmbito nacional, que a doutrina Rheinmühlen I não permite. Podendo levar o juiz de primeira instância a não aplicar uma decisão directamente vinculativa de um tribunal superior, o acórdão Rheinmühlen I não deixa qualquer margem de manobra a factores como sejam a estabilidade das relações jurídicas, a força de caso julgado dos acórdãos ou a segurança jurídica (29). Assim, a apreciação do caso julgado nos termos de um ordenamento nacional, bem como a respectiva relação com o ordenamento da União, obriga a uma análise pormenorizada que tenha simultaneamente em conta a autonomia processual de cada Estado.

34.      Voltando ao caso em análise, temos que um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo búlgaro não admite qualquer recurso, podendo este, todavia, devolver os autos ao tribunal de primeira instância para reapreciação, a qual apenas incide sobre nova apreciação da matéria de facto. Não resta, assim, qualquer dúvida de que o acórdão do tribunal superior pôs fim ao litígio no que respeita à matéria de direito, que não pode voltar a ser objecto de discussão, nem mesmo pela via extraordinária de recurso para o Tribunal Constitucional (30). Além disso, e como se depreende de opiniões avalizadas a este respeito, a valoração jurídica do caso por parte do Supremo Tribunal vincula‑o futuramente no caso de novo recurso da decisão da primeira instância (31). Assim, pode dizer‑se que, desde que, em 2008, o Supremo Tribunal proferiu aquele acórdão, este gozava de força de caso julgado material, embora não formal. O seu teor é inalterável, e o direito processual búlgaro confere às valorações jurídicas ali contidas a estabilidade própria de uma decisão transitada. Concluindo, entendo que basta que uma decisão como a aqui analisada não possa ser objecto de recurso no que respeita à matéria de direito, para que se considere existir uma especial protecção da estabilidade jurídica.

35.      Por último, poderá eventualmente alegar‑se que a presente proposta não é coerente com a solução para a qual pendeu o Tribunal de Justiça no processo Cartesio (32). No entanto, há que ter em conta que essa decisão, não só incide sobre um problema diferente como a fase processual a que diz respeito não é a mesma do caso sub iudice. É sabido que o acórdão Cartesio matizou os termos do acórdão Rheinmühlen II (33) no que respeita à possibilidade de impugnar a decisão de reenvio (34). Esta decisão, recorde‑se, tomada poucas semanas depois do acórdão Reinmühlen I e no âmbito do mesmo litígio nacional, declarou que o artigo 267.° TFUE (antigo 177.° EEC) não se opõe a que as decisões de um órgão de primeira instância de submeter um pedido prejudicial «continuem a estar sujeitas às vias normais de recurso previstas pelo direito nacional». Em sentido contrário, embora citando a jurisprudência Rheinmühlen, o acórdão Cartesio matizou esse resultado ao afirmar que a competência, conferida pelo artigo 267.° TFUE para submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça «seria posta em causa se, ao alterar a decisão de reenvio prejudicial, anulando‑a e ordenando ao órgão jurisdicional que a proferiu que prossiga a tramitação processual entretanto suspensa, o órgão jurisdicional de recurso pudesse impedir o órgão jurisdicional de reenvio de exercer a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 234.° CE» (35). Prosseguindo a respectiva fundamentação, o acórdão acaba por declarar que cabe ao órgão jurisdicional que ordena o reenvio «retirar as consequências de uma decisão proferida em sede de recurso da decisão que ordena o reenvio prejudicial e, em particular, determinar se deve manter, alterar ou retirar o seu pedido de decisão prejudicial.» (36)

36.      Antes de mais, parece evidente que a problemática da recorribilidade da decisão de reenvio e suas eventuais consequências diz respeito a questões peculiares e distintas das que se suscitam no caso em análise. O quadro de referência de cada um dos casos é substancialmente diferente, na medida em que o acórdão Cartesio se refere ao que poderíamos chamar a fase ascendente de um litígio, isto é, ao normal desenvolvimento do processo, desde que se inicia na primeira instância até finalizar mediante um acórdão irrecorrível. Pelo contrário, o presente caso diz respeito a uma eventual fase descendente de um litígio, ou seja, ao momento final da lide, que ocorre quando se profere uma sentença definitiva e o processo baixa à primeira instância a fim de dar cumprimento a uma decisão em matéria de direito cujos termos não podem ser postos em causa.

37.      A conclusão proposta não significa que ao acórdão Rheinmühlen I seja retirada toda a razão de ser. Bem pelo contrário, na minha opinião, esta jurisprudência manterá a sua vigência quando, no decurso da fase ascendente de um litígio, as circunstâncias levem um tribunal de primeira instância a não aplicar as indicações de um tribunal superior. O caso paradigmático é o do recurso de uma decisão de reenvio, tal como acontece no acórdão Cartesio. Nesse caso justifica‑se o apelo à jurisprudência Rheinmühlen I e não é por acaso que o acórdão Cartesio no seu n.° 94, a cita e transcreve. Numa tal hipótese, na fase ascendente de um litígio ao qual é aplicável o direito da União, o acórdão Rheinmühlen I dá ao juiz de primeira instância um instrumento que a jurisprudência do Tribunal de Justiça protege especialmente nesse momento (37).

38.      Consequentemente, e com os fundamentos expostos, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que o direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que a um tribunal de primeira instância, como, no caso sub iudice, o Tribunal Administrativo de Sófia, no decurso de um processo em que já proferiu uma primeira decisão, depois de esse processo baixar para reapreciação, seja obrigado pelo ordenamento interno nacional a aplicar as indicações contidas no acórdão proferido por um tribunal superior no âmbito do mesmo processo.

39.      Caso o Tribunal de Justiça opte por esta via, deixarão de ter qualquer utilidade as restantes questões prejudiciais relativas ao mérito, já que todas pressupõem que o órgão jurisdicional de reenvio não teria que seguir necessariamente o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo búlgaro. Com efeito, aplicando a respectiva jurisprudência, o Tribunal de Justiça deveria declarar inadmissíveis essas questões (38).

40.      No entanto, no caso de o Tribunal de Justiça não vir a compartilhar desta proposta, há que analisar as seis perguntas restantes, relativas ao mérito, as quais, como ficou dito, dizem respeito, aos cuidados médicos prestados ao recorrente no estrangeiro.

V –    Sobre o mérito

41.      Para dar uma resposta útil, é necessário, uma vez mais, reordenar as questões submetidas pelo Tribunal Administrativo de Sófia. Em primeiro lugar, analisar‑se‑á a compatibilidade do sistema búlgaro de autorização prévia para tratamentos médicos no estrangeiro com os Tratados e com o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71. Em segundo lugar, verificar‑se‑á o cumprimento das condições previstas no referido artigo 22.°, focando o grau de precisão da legislação búlgara no que respeita ao reembolso do tratamento, as consequências da impossibilidade material de o efectuar na Bulgária, bem como a existência de um tratamento alternativo, embora menos eficaz e de consequências mais gravosas para o paciente. Em terceiro lugar, considerar‑se‑á o regime aplicável no caso de o recorrente preencher as condições previstas para o reembolso do tratamento efectuado na Alemanha. Por último, será necessário pronunciar‑se sobre os poderes do juiz nacional para, se for esse o caso, declarar que o recorrente tem direito ao mencionado reembolso.

A –    Sobre a autorização prévia como condição para o reembolso das despesas com cuidados de saúde no estrangeiro (quinta questão)

42.      Na quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio apresenta as dúvidas suscitadas sobre a compatibilidade de um regime de autorização prévia para um tratamento médico noutro Estado‑Membro com o direito da União. Dado que o recorrente se submeteu ao tratamento na Alemanha depois de ter pedido a autorização, mas antes de esta lhe ser concedida, é necessário saber se um regime como o previsto no artigo 36.° da Lei do Seguro de Doença búlgara é compatível com o artigo 56.° TFUE e com o Regulamento n.° 1408/71.

43.      Os Estados que apresentaram observações adoptaram uma posição parcialmente coincidente. Por um lado, todos concordam em afirmar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça permite aos Estados instituir regimes de autorização prévia no caso de prestação, noutro Estado‑Membro, de um tratamento médico que exija internamento. No entanto, enquanto Espanha e a Bulgária defendem que o regime búlgaro, ao excluir taxativamente qualquer possibilidade de reembolso se não tiver sido pedida a autorização, não contraria o direito da União, tanto a Comissão como os governos da República Checa e de Polónia chegam a uma conclusão oposta.

44.      A resposta a esta questão resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

45.      Nos acórdãos Decker e Kohl (39), o Tribunal de Justiça declarou que uma legislação nacional que «faz depender de autorização prévia o reembolso das despesas nesse [outro] Estado e que recusa esse reembolso aos beneficiários que não estejam munidos dessa autorização» constitui um obstáculo à livre prestação de serviços, na medida em que «desencoraja os segurados de se dirigirem aos prestadores de serviços médicos estabelecidos noutro Estado‑Membro» (40). Analisadas as justificações, o Tribunal de Justiça concluiu que o regime de autorização prévia não se integrava no âmbito da excepção de saúde pública prevista nos artigos 52.° e 62.° TFUE nem numa razão imperiosa de interesse geral.

46.      Esta importante consideração, que confirmava uma evolução já perceptível nos acórdãos Pierik (41), continha duas especificidades igualmente importantes. Por um lado, e na esteira das conclusões do advogado‑geral G. Tesauro (42), confirma que o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 deve ser interpretado em conformidade com os Tratados, sendo estes aplicáveis quando não for possível invocar esse regulamento (43). Por outro lado, e em consequência do exposto, esclarecia‑se que os serviços de saúde, tanto públicos como privados, são actividades económicas totalmente sujeitas às normas comunitárias relativas à livre circulação (44).

47.      Todavia, há que ter em conta que ambos os acórdãos se referem a prestações que não exigiam hospitalização, mas sim tratamentos ambulatórios cuja organização e custo não são comparáveis aos daqueles que exigem internamento num centro médico. E foi justamente esta última consideração que levou o Tribunal de Justiça, nos acórdãos Smits‑Peerbooms e Müller‑Fauré (45), proferidos pouco depois dos referidos Decker e Kohl, a declarar que, «comparativamente com as prestações médicas fornecidas pelos médicos nos seus consultórios ou no domicílio do doente, as prestações médicas dispensadas num estabelecimento hospitalar inscrevem‑se num quadro que apresenta especificidades incontestáveis» (46). Seguidamente, o Tribunal de Justiça concretizou tais especificidades e faz referência à indispensável planificação requerida por este tipo de centros, a qual importa que se conheça «o número de infra‑estruturas hospitalares, a sua repartição geográfica, a sua organização e os equipamentos de que dispõem, ou ainda a natureza dos serviços médicos que estão em condições de oferecer» (47). Pelas razões apontadas, o Tribunal de Justiça declarou que o direito da União não se opõe «em princípio» a um sistema de autorização prévia exigível a quem pretenda receber tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro (48).

48.      Também no acórdão Vanbraekel (49) o Tribunal de Justiça chegou à mesma conclusão, acrescentando aqui, porém, um novo elemento às decisões anteriores: quando um pedido seja indeferido, o indeferimento não impede o requerente, uma vez declarado que esse indeferimento é contrário ao artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, de exigir o reembolso garantido pela referida norma (50). Nestas circunstâncias, o beneficiário tem o direito de ser directamente reembolsado pela instituição em que está inscrito no país de residência.

49.      Em face do exposto, uma norma como a do artigo 36.°, n.° 1, da Lei do Seguro de Doença búlgara deve aplicar‑se em conformidade com a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça aos artigos 56.° TFUE e 22.° do Regulamento n.° 1408/71. Isto implica que a exigência de uma autorização prévia para receber tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro não é, «em princípio», incompatível com as normas da União. Isso não significa, porém, como se deduz dos acórdãos Smits‑Peerbrooms e Müller‑Fauré, que a norma búlgara acima referida não suscite quaisquer dúvidas. Se o regime adoptado pelo ordenamento búlgaro fosse rigoroso ao ponto de impossibilitar ou tornar menos atractiva a livre prestação de serviços, a jurisprudência citada obrigaria a julgá‑lo incompatível com o direito da União.

50.      Do teor da norma em questão, embora relativamente ambígua, não parece resultar essa incompatibilidade.

51.      Com efeito, o referido artigo 36.°, n.° 1, garante o direito de qualquer pessoa sujeita a seguro obrigatório «ao reembolso total ou parcial das despesas realizadas com a prestação de cuidados de saúde no estrangeiro se tiverem obtido a autorização prévia [da Caixa] para o efeito.» É certo que a norma poderia interpretar‑se, como alegam a Comissão e G. Elchinov, como uma proibição taxativa de qualquer reembolso, a priori ou a posteriori, caso não tenha sido requerida a autorização. No entanto, a redacção pode apontar no sentido de uma interpretação mais matizada: a norma também pode significar que só há reembolso quando a autorização seja previamente concedida, por estarem preenchidas as condições previstas no artigo 22.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71. Assim, se considerarmos que essa norma emana do artigo 22.° desse regulamento, também deve ela ser interpretada no sentido de que, uma vez considerada ilegal a recusa da autorização, pela própria instituição competente ou por decisão judicial, a autorização deixará de ser necessária.

52.      A interpretação das normas nacionais compete ao órgão jurisdicional de reenvio e não ao Tribunal de Justiça. No entanto, a este cabe proporcionar àquele todos os elementos necessários para que a legislação nacional seja correctamente aplicada em consonância com o direito da União. Nestas circunstâncias, considero que o artigo 56.° TFUE e o artigo 22.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma norma como o artigo 36.°, n.° 1, da Lei do Seguro de Doença búlgara, na medida em que esta institui um regime de autorização prévia para a obtenção de tratamentos hospitalares noutro Estado‑Membro, desde que não impeça o requerente de reclamar posteriormente o reembolso quando a recusa do respectivo pedido seja considerada ilegal pela própria instituição competente ou por decisão judicial.

B –    Sobre o cumprimento das condições previstas no artigo 22.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71

53.      O órgão jurisdicional de reenvio colocou diversas questões a respeito da interpretação a dar ao n.° 2 do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, que estabelece as condições cujo preenchimento é necessário à obtenção da autorização para receber tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro. A resposta às mesmas também já se encontra na jurisprudência do Tribunal de Justiça, a qual se baseia exclusivamente no referido regulamento, recorrendo‑se ao TFUE apenas como parâmetro interpretativo.

1.      Sobre a inclusão do tratamento nas prestações previstas na legislação do Estado‑Membro em que reside o beneficiário (quarta questão)

54.      O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas também sobre o alcance do artigo 22.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71, quando dispõe, no seu segundo parágrafo, que a autorização para receber tratamento noutro Estado‑Membro «não pode ser recusada quando o tratamento prescrito figurar entre as prestações previstas na legislação do Estado‑Membro em cujo território reside o beneficiário». Estas dúvidas provêm do facto de o legislador búlgaro ter optado por uma lista taxativa dos tratamentos financiados pelo seguro de que é beneficiário G. Elchinov, na qual não é explicitado o método concreto de tratamento que lhe foi prescrito.

55.      Uma vez mais os Estados‑Membros adoptam posições divergentes a este respeito, embora todos concordem em reivindicar a respectiva competência para determinar as prestações específicas a que têm acesso os beneficiários da segurança social. Partindo desta posição, os Governos da República Checa e da Finlândia salientam que não deve ser considerado discriminatório um sistema de lista como o adoptado na Bulgária. Por sua vez, o Reino de Espanha insiste na necessidade de que as categorias sejam suficientemente específicas de modo a não gerar insegurança jurídica. O Governo da Polónia defende uma interpretação restritiva do já referido artigo 22.°, n.° 2, enquanto o Governo da Grécia, bem como a Comissão, optam por uma leitura mais generosa dessa norma, defendendo que a legislação búlgara deve ser aplicada de modo a não prejudicar quem recebe o tratamento.

56.      Nos já referidos acórdãos Smits‑Peerbooms e Müller‑Fauré, bem como nos proferidos nos processos Inizan e Watts (51), ficou bem patente a preocupação do Tribunal de Justiça com a forma como alguns dos Estados‑Membros aplicavam o regime de autorização prévia para a obtenção de um tratamento noutro Estado‑Membro. Sobre este ponto em particular, das decisões insistem em que um regime de autorização administrativa prévia não pode legitimar um comportamento discriminatório das autoridades nacionais que torne ineficazes as normas comunitárias. Partindo deste pressuposto, o Tribunal de Justiça declara que um sistema de autorização administrativa prévia como aquele que é necessário para receber tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro «deve, de qualquer forma, ser fundamentado em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, de modo a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais a fim de este não ser utilizado arbitrariamente» (52).

57.      No processo Smits‑Peerbooms, a norma neerlandesa analisada não instituía uma lista de prestações, mas sim uma regra geral que previa o financiamento dos cuidados médicos que correspondessem ao que era «habitual no âmbito profissional». O Tribunal de Justiça declarou que uma disposição tão ambígua gerava o risco de se privilegiar efectivamente os prestadores de cuidados de saúde nacionais em relação aos estabelecidos noutros Estados‑Membros (53). O acórdão Watts salientou igualmente a dificuldade de compatibilizar com o direito comunitário um regime que, como o britânico, não especificava critérios de concessão ou de recusa da autorização prévia para tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro (54).

58.      Contrariamente ao que acontece nestes últimos casos, o sistema búlgaro optou por um regime de lista que contém exaustiva e exclusivamente os tratamentos cujas despesas são reembolsadas pelo seguro obrigatório. Por tal motivo, as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio não dizem respeito a um sistema discricionário, mas a um regime que se pretende objectivo, transparente e não discriminatório, mas que suscita dúvidas quanto à respectiva interpretação.

59.      Com efeito, o anexo 5 do Regulamento n.° 40 de aplicação da Lei do Seguro de Doença contém a «lista das prestações de cuidados de saúde» abrangidas pela garantia de financiamento do seguro obrigatório, onde se incluem os «tratamentos cirúrgicos do glaucoma», «cirurgia do olho com laser ou crioterapia», «cirurgia da região ocular», «do globo ocular», bem como o tratamento «radiológico de alta tecnologia de doenças oncológicas ou não oncológicas». Dentro deste grupo de tratamento da região ocular, o tribunal de reenvio coloca‑nos a questão de saber se o tratamento de um tumor através de terapia protónica, seguido da extirpação do tumor, é uma prestação que integra algum dos casos enumerados no anexo 5.

60.      Como afirmou correctamente a Comissão, um regime nacional de listas taxativas que, todavia, opta, em alguns casos, por uma descrição mais abrangente dos tratamentos, tem que ser coerente e, na definição desses tratamentos, adoptar uma interpretação consequente em face do respectivo teor. Por outras palavras, se o regime búlgaro pretende definir de forma taxativa e específica todo e qualquer tratamento abrangido pelo seguro obrigatório, a inclusão de uma prestação descrita em termos genéricos, como os «tratamentos radiológicos de alta tecnologia de doenças oncológicas ou não oncológicas», prevista no ponto 258 do anexo 5 do Regulamento de aplicação, não pode admitir uma interpretação que a esvazie do respectivo conteúdo. Isto não quer dizer que esse ponto tenha de ser objecto de interpretação lata, como sugere o Governo grego. Bem pelo contrário, deve ser interpretado em consonância com o fim último, tanto da legislação búlgara como do direito da União. No que diz respeito à competência do Tribunal de Justiça na interpretação deste, deduz‑se que o referido ponto 258, para que esteja em conformidade com os princípios da objectividade, transparência e não discriminação, tantas vezes enunciados na nossa jurisprudência, deve ser entendido nos termos aqui sugeridos.

61.      De igual modo, um tal entendimento deve fundamentar‑se em parâmetros técnicos que, embora não sejam jurídicos, devem integrar a valoração jurídica imposta pelo ordenamento da União. Tal como salienta a Comissão nas respectivas observações, o acórdão Smits‑Peerbooms especifica que, para apurar se um determinado tratamento está «suficientemente testado e validado» na prática médica, as autoridades nacionais devem tomar em consideração todos os elementos relevantes disponíveis, entre os quais, designadamente, a literatura e os estudos científicos existentes, assim como as opiniões avalizadas de especialistas (55).

62.      No caso em apreço, não se trata de avaliar se estamos perante um tratamento «suficientemente testado e validado», como exigia a legislação neerlandesa no processo Smits‑Peerbooms, mas sim perante um tratamento «de alta tecnologia». Logicamente, a concretização deste termo corresponde exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio, o qual deverá, no entanto, pautar‑se pelos critérios anteriormente definidos pela jurisprudência. Assim, a citada doutrina do Tribunal de Justiça, deve levar esse órgão jurisdicional, na análise que faça no sentido de saber de um determinado tratamento é ou não de alta tecnologia, a realizar uma avaliação prudente, pois há técnicas que, pelo seu grau de complexidade podem não ser correntes na prática médica. A fronteira entre um tratamento «de alta tecnologia» habitual e outro que não o é pode ser estabelecida utilizando como critério o respectivo carácter experimental. Deste modo, se o tratamento prescrito requeresse o emprego de técnicas de «alta tecnologia», estas apenas seriam abrangidas pelo artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 caso não tivessem um carácter experimental. Em consonância com a jurisprudência Smits‑Peerbooms, a definição dessa fronteira deverá tomar em consideração todos os elementos relevantes disponíveis, entre os quais, designadamente, a literatura e os estudos científicos existentes, assim como as opiniões avalizadas de especialistas.

63.      Com base nestes critérios hermenêuticos, compete ao tribunal de reenvio apurar o âmbito específico das normas em questão. Também lhe competirá o juízo fáctico respeitante ao carácter experimental ou não experimental do tratamento de alta tecnologia empregue no caso concreto. Avaliação que, todavia, tem de estar em consonância com as directrizes europeias aqui indicadas; o que leva a propor que o artigo 22.°, n.° 2 do Regulamento n.° 1408/71, seja interpretado no sentido de que não se opõe a um regime como o que se encontra previsto no anexo 5 do Regulamento n.° 40 de 2004, desde que este permita saber, com base em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, quais os tratamentos que abrange. Quando a legislação nacional opere com um sistema de lista da qual seja parte integrante um determinado tratamento previsto de forma genérica com alusão a práticas de «alta tecnologia», o tribunal de reenvio, para evitar esvaziar de conteúdo o direito concedido pelo artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, deverá avaliar se o tratamento prestado tem ou não carácter experimental à luz dos elementos relevantes disponíveis, entre eles, designadamente, a literatura e os estudos científicos existentes, assim como as opiniões avalizadas de especialistas.

2.      Sobre a presunção de não cobertura no caso de o tratamento não ser financiado pelos orçamentos do sistema de segurança social (primeira questão)

64.      Nesta primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o direito da União está em conformidade com uma presunção de que, no caso de um tratamento previsto na legislação nacional não ser financiado pelos orçamentos do sistema de segurança social, não está abrangido pelo sistema. Aflora‑se aqui um elemento importante, ainda não analisado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, e que diz respeito à insuficiência de meios para prestar os tratamentos médicos garantidos e a respectiva conciliação com o principio da livre prestação de serviços.

65.      Com excepção da Bulgária e do Reino Unido, todos os Estados que apresentaram observações neste processo, bem como a Comissão, estão de acordo em que a referida presunção não se pode fundamentar no artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71. Entendem que semelhante interpretação esvaziaria de conteúdo o direito de qualquer paciente a receber tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro, sendo a respectiva autoridade nacional (e os fundos disponíveis) responsável pela aplicação efectiva do regulamento. Contrariamente, a Bulgária e o Reino Unido defendem a coerência da presunção com os recursos disponíveis em cada Estado, o que beneficia ou prejudica todos os pacientes de igual modo, quer queiram ou não socorrer‑se da livre circulação.

66.      Do conjunto de questões submetidas no âmbito do presente processo, é esta a única que ainda não encontra uma solução concreta na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Todavia, a resposta a dar‑lhe pode fazer‑se derivar tanto dos acórdãos já referidos como da jurisprudência sobre a livre prestação de serviços.

67.      Na verdade é doutrina assente neste Tribunal que o artigo 56.° TFUE se opõe à aplicação de toda e qualquer legislação nacional que leve a uma maior dificuldade nas prestações de serviços entre Estados‑Membros face às prestações internas de um Estado‑Membro (56). O Regulamento n.° 1408/71, que tem por finalidade a concretização das liberdades de circulação no âmbito da segurança social, prossegue essa mesma finalidade, pelo que se opõe a qualquer interpretação do seu artigo 22.° que se possa traduzir num favorecimento dos prestadores do Estado de residência em relação aos de outros Estados‑Membros (57). Partindo deste pressuposto, é necessária uma análise atenta de qualquer prática ou norma interna que, directa ou indirectamente, favoreça os prestadores de serviços nacionais face aos de outros Estados‑Membros. A presunção estabelecida pelo Supremo Tribunal Administrativo búlgaro, no que respeita à aplicação do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, não pode deixar de se considerar uma limitação evidente neste sentido.

68.      Ora, pese embora o carácter restritivo desta interpretação, é necessário apurar se essa presunção admite alguma margem de discricionariedade que permita avalizá‑lo nos termos do referido regulamento. Neste sentido, a Bulgária limitou‑se a reafirmar que o tratamento prescrito não se encontra previsto na sua respectiva legislação, sem pôr em causa o carácter potencialmente lesivo da presunção. Por outro lado, o Reino Unido argumentou que a terapia protónica, devido à sua complexidade e elevado custo, justifica a interpretação do Supremo Tribunal Administrativo búlgaro. Essa leitura dá como assente que, a autorização dos utentes a acederem a tratamentos tão avançados quanto dispendiosos noutro Estado‑Membro constituiria uma ameaça à integridade financeira dos sistemas de segurança social.

69.      Estes argumentos não logram convencer.

70.      Em primeiro lugar, importa salientar que uma tal presunção não se encontra expressamente prevista, nem no artigo 22.°, nem em qualquer outro preceito do Regulamento n.° 1408/71, Trata‑se, assim, de uma excepção a um direito conferido, de forma clara e taxativa, pelo ordenamento da União. Se se acrescentar, como acima exposto no n.° 67 destas conclusões, que tal medida favorece os prestadores de serviços búlgaros relativamente aos de outros Estados‑Membros, deve descartar‑se a priori qualquer interpretação de que decorra uma presunção como a que ora se debate.

71.      Em segundo lugar, não tem também grande peso o argumento de que uma presunção deste género não salvaguarda a integridade financeira da Caixa. Há que ter em conta que, tal como alegam todos os Estados‑Membros que apresentaram observações neste processo, compete‑lhes a eles determinar quais os tratamentos cuja cobertura inclui a autorização para serem recebidos noutro Estado‑Membro (58). Isto significa que lhes compete definir de forma objectiva, transparente e não discriminatória quais as prestações abrangidas pelos respectivos sistemas de segurança social. Se o orçamento de um Estado‑Membro não lhe permite custear as despesas decorrentes de um tratamento como a terapia protónica, cabe à respectiva legislação não o incluir na lista de prestações cobertas. No caso sub iudice, se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que o tratamento prescrito está previsto na legislação búlgara (o que parece resultar dos relatórios periciais emitidos por instituições nacionais), a possibilidade de o mesmo ser prestado noutro Estado‑Membro depende de uma decisão adoptada livremente pelas autoridades búlgaras. De modo algum estaria o direito da União a ampliar os tratamentos abrangidos pelo sistema nacional de segurança social.

72.      Em terceiro lugar, há que mencionar um argumento de eficácia. Pelo simples facto de passar a integrar a União, um sistema como o búlgaro, cuja lista de prestações abrangidas pela garantia de financiamento pela Caixa se considera bastante avançada, beneficia dos conhecimentos e das tecnologias dos outros Estados‑Membros que disponham dos meios técnicos a que a Bulgária aspira. Se um Estado‑Membro pretende estar na vanguarda em termos de cuidados médicos (o que evidentemente requer o seu tempo), o direito da União permite que os respectivos cidadãos recebam noutro Estado‑Membro os tratamentos que aquele almeja colocar à sua disposição internamente, sem que tenha ainda condições de o fazer. Além disso, sempre que o Estado preveja um determinado tratamento na sua legislação nacional, a pretensão de impedir que o mesmo seja prestado ao utente nacional noutro Estado‑Membro, não só viola as normas que regulamentam o mercado interno, como contribui para fragmentar um sector como o da saúde, onde é essencial a colaboração e a partilha de meios, conhecimentos e competências profissionais. O ponto de vista sustentado pelo governo búlgaro não só mina a eficácia interna do sistema perante o cidadão do respectivo Estado, mas também o conjunto do sector sanitário europeu, cujo funcionamento em comum potencia a efectividade, qualidade e conhecimentos dos serviços de saúde de cada Estado‑Membro.

73.      Em face do anteriormente exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que o artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 1408/71 seja interpretado no sentido de não permitir uma presunção de que não é reembolsável pelo sistema de segurança social um tratamento que, embora constante da legislação nacional, não é financiado pelas verbas orçamentais desse sistema.

3.      Sobre a possibilidade da prestação de um tratamento alternativo no país de residência, ainda que muito menos eficaz e muito mais radical (segunda questão)

74.      Na sua segunda questão, o tribunal de reenvio coloca uma dúvida relativa à interpretação do segundo requisito contido no artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 1408/71, nos termos do qual, a autoridade competente é obrigada a emitir a autorização quando, «tendo em conta o seu estado actual de saúde e a evolução provável da doença, não possa receber o tratamento prescrito no prazo normalmente necessário para o obter no Estado‑Membro em que reside». Pergunta‑se ao Tribunal de Justiça se este preceito permite que um Estado‑Membro recuse a concessão da autorização quando, no seu território, disponha de tratamento equivalente, embora menos eficaz e mais radical. Em concreto, é necessário avaliar se a ablação completa do olho é um tratamento equivalente à terapia protónica.

75.      Uma vez mais, temos uma divisão no que respeita às posições dos diversos Estados que apresentaram observações. Por um lado, a República Checa, a Polónia, a Finlândia, a Grécia, bem como a Comissão, defendem uma abordagem flexível, que considere casuisticamente as circunstâncias de cada paciente no momento de saber se estão disponíveis meios alternativos no Estado de residência e em prazos razoáveis. Por outro lado, a Bulgária, a Espanha e o Reino Unido assumem uma interpretação estrita do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, alegando que a autorização apenas deve ser concedida quando nenhum dos tratamentos disponíveis, designadamente os alternativos, possa ser oportunamente ministrado no Estado de residência.

76.      Para já, recordemos que o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre esta questão no acórdão Pierik, declarando que «desde o momento em que a instituição competente reconhece a necessidade e eficácia do tratamento prescrito para a doença», preenche‑se a referida condição do Regulamento n.° 1408/71 (59). É certo que este acórdão foi rectificado posteriormente pelo legislador comunitário, ao introduzir uma dimensão temporal no artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, desse regulamento (60). No entanto, a jurisprudência do Tribunal de Justiça, especialmente a partir dos reiteradamente citados acórdãos Smits‑Peerbooms e Müller‑Fauré, tornou a reduzir, tal como havia feito no acórdão Pierik, o âmbito do elemento temporal.

77.      Na verdade, nas referidas decisões, o Tribunal de Justiça, embora num caso em que é directamente aplicável o artigo 56.° TFUE e não o Regulamento n.° 1408/71, declarou que a autoridade nacional apenas pode recusar a autorização para receber um tratamento noutro Estado‑Membro «quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser oportunamente dispensado num estabelecimento com o qual a caixa de seguro de doença do segurado celebrou um convénio» (61). Esta orientação foi reiterada nos processos Inizan (62) e Watts, (63) que preconizam a aplicabilidade do Regulamento n.° 1408/71, estabelecendo‑se assim uma equiparação jurisprudencial entre a interpretação do Tratado e a do direito secundário. Conclui‑se, assim, que só a existência de tratamentos nacionais com um grau significativo de equivalência pode justificar uma recusa da autorização para que o mesmo seja efectuado noutro Estado‑Membro.

78.      Para apreciar esse grau de equivalência, o Tribunal de Justiça fixou nesses acórdãos os critérios a seguir. Assim, para apurar se um tratamento médico que apresenta o mesmo grau de eficácia para o paciente pode ser prestado em tempo oportuno no Estado‑Membro de residência, a instituição competente é obrigada a tomar em consideração «o conjunto das circunstâncias que caracterizam cada caso concreto, tendo devidamente em conta não apenas a situação médica do paciente no momento em que a autorização é solicitada e, sendo caso disso, o grau de dor ou a natureza da deficiência deste último, que possa, por exemplo, tornar impossível ou excessivamente difícil o exercício de uma actividade profissional, mas igualmente os seus antecedentes» (64).

79.      Compete, assim, ao órgão jurisdicional de reenvio aplicar estes critérios ao caso em análise. Recapitulando, o tribunal deverá, em primeiro lugar, apurar se o tratamento prescrito pode ser prestado em tempo oportuno no Estado de residência. Assim não acontecendo, deverá considerar a possibilidade de serem dispensados tratamentos paralelos no referido Estado, os quais, no caso sub iudice e pelo que se depreende do processo, se reduzem a um único: a ablação completa do olho. Nestas circunstâncias e à luz dos critérios constantes dos referidos acórdãos Smits‑Peerbooms e seguintes, esse tribunal avaliará o grau de equivalência do tratamento alternativo.

80.      Em face do exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão declarando que o artigo 22.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 1408/71 deve ser interpretado no sentido de apenas poder ser recusada a autorização para receber um tratamento noutro Estado‑Membro quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser dispensado em tempo oportuno num estabelecimento com o qual a caixa de seguro de doença do segurado tenha celebrado um convénio.

C –    Sobre o reembolso das despesas do beneficiário (sétima questão)

81.      Na sétima questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta como devem ser reembolsadas as despesas do beneficiário do seguro de doença no caso de a recusa de autorização de ser considerada ilegal.

82.      Neste ponto, tanto G. Elchinov como os Estados que apresentaram observações como a Comissão estão de acordo em defender a aplicabilidade da jurisprudência constante dos acórdãos Vanbraekel, Inizan e Watts.

83.      Efectivamente, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça já referida, quando a instituição competente recuse um pedido de autorização fundamentando‑se no artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 e a recusa venha a ser considerada ilegal pela própria instituição ou através de decisão judicial, o beneficiário «tem o direito de ser directamente reembolsado pela instituição competente num montante equivalente ao que normalmente seria tomado a cargo caso a autorização tivesse sido devidamente concedida desde o início» (65). Assim e nos termos já expostos nos n.os 48 a 52 destas conclusões, o recorrente tem direito a pedir directamente o reembolso, sem necessidade de qualquer autorização, no caso de a legalidade das suas pretensões ter sido confirmada por uma autoridade nacional.

84.      No que respeita ao montante a reembolsar, também o Tribunal de Justiça tem afirmado reiteradamente que o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 não tem por objectivo regulamentar as despesas motivadas por ocasião de tratamentos efectuados noutro Estado‑Membro (66). No entanto, para este mesmo Tribunal, o montante do reembolso é uma questão que se enquadra no âmbito de aplicação dos Tratados, concretamente do artigo 56.° TFUE. Para este efeito, no citado acórdão Vanbraekel, foi declarado que o facto de um beneficiário da segurança social auferir de um nível de protecção menos vantajoso quando recebe tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro do que quando recebe o mesmo tratamento no Estado‑Membro de inscrição, «é susceptível de desencorajar, ou mesmo impedir, esse beneficiário de se dirigir aos prestadores de serviços médicos estabelecidos noutros Estados‑Membros e constituir, tanto para esse beneficiário como para os prestadores, um obstáculo à livre prestação de serviços» (67). Consequentemente, por força do artigo 56.° TFUE, o Estado de residência é obrigado a reembolsar as despesas decorrentes de tratamentos hospitalares efectuados noutro Estado‑Membro, de acordo com as normas e tabelas em vigor (do Estado de residência ou do Estado de tratamento) que sejam mais vantajosas para o beneficiário (68).

85.      Este resultado é notoriamente diferente daquele que se obtém quando se recebe um tratamento hospitalar noutro Estado‑Membro à margem do procedimento previsto no artigo 22.°, n.° 2 do Regulamento n.° 1408/71. Nestas hipóteses, os segurados só têm o direito à cobertura garantida pelo regime do seguro de doença do Estado‑Membro de inscrição (69). Não é este, todavia, o caso de G. Elchinov, pois utilizou o procedimento do referido artigo 22.°, o mesmo que agora invoca perante os tribunais búlgaros.

86.      Proponho então ao Tribunal de Justiça que responda à sétima questão prejudicial declarando que o artigo 22.°, n.° 2 do Regulamento n.° 1408/71 não tem por objectivo regulamentar as despesas motivadas por ocasião de tratamentos efectuados noutro Estado‑Membro. No entanto, o artigo 56.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do caso presente, é obrigado a reembolsar as despesas decorrentes de tratamentos hospitalares efectuados noutro Estado‑Membro, segundo as normas e tabelas em vigor que sejam mais vantajosas para o beneficiário.

D –     Sobre a competência do tribunal nacional para garantir os direitos previstos no artigo 22.°, n.° 1, alínea c) do Regulamento n.° 1408/71 (sexta questão)

87.      Por fim, o órgão jurisdicional de reenvio apresenta as suas dúvidas sobre o procedimento a seguir uma vez declarada ilegal a recusa da autorização a G. Elchinov. Concretamente, tribunal pretende saber se, no caso de a decisão ser favorável ao recorrente, pode obrigar a administração a emitir a autorização.

88.      Antes de mais, é necessário recordar novamente que o Tribunal de Justiça declara, no acórdão Vanbraekel, que o beneficiário a quem seja reconhecido o direito a obter a autorização a posteriori, «tem o direito de ser directamente reembolsado pela instituição competente» no montante que lhe corresponda (70). Ou seja, o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, interpretado à luz do artigo 56.° TFUE, permite ao tribunal de reenvio exigir não só a autorização mas também directamente o montante devido, a fim de reconstituir a situação jurídica controvertida.

89.      No entanto, e tal como salientaram o governo grego e a Comissão, essa questão é da competência do juiz nacional e deve ser resolvida através da tramitação processual prevista na sua legislação interna (71). Por esta se deve pautar o tribunal de reenvio desde que a forma de execução da decisão eventualmente proferida respeite os princípios da União da efectividade e da equivalência. Ora, se o direito interno confere poderes ao referido órgão para exigir a emissão de uma autorização como a que está aqui em causa, seria estranho que não os conferisse para exigir o montante a reembolsar pela Caixa. Nesse caso, caberia ao tribunal nacional avaliar, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, se essa diferença de tratamento está em conformidade com o princípio da efectividade (72).

90.      Em consequência, proponho ao Tribunal de Justiça que, sendo esse o caso, responda à sexta questão prejudicial declarando que compete ao órgão jurisdicional de reenvio, de acordo com o princípio da União da autonomia institucional, determinar os meios processuais adequados previstos no ordenamento nacional que garantam a execução da sentença de primeira instância. Para isso deve aplicar o direito nacional em conformidade com os princípios da União da efectividade e equivalência.

VI – Conclusão

91.      Em face do exposto e seguindo a ordem empregue nestas conclusões, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Tribunal Administrativo de Sófia declarando:

«O direito da União deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que a um tribunal de primeira instância, como neste caso o Tribunal Administrativo de Sófia, num processo em que já tenha proferido uma primeira sentença e tendo baixado os autos na sequência de um recurso, esteja vinculado pelo seu ordenamento interno a aplicar as indicações constantes do acórdão proferido por um tribunal superior nesse mesmo processo.»

92.      No caso de o Tribunal de Justiça não compartilhar desta opinião no que respeita à terceira questão prejudicial, proponho que responda às restantes da seguinte forma:

«1)       O artigo 56.° TFUE e o artigo 22.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma norma como o artigo 36.°, n.° 1, da Lei do Seguro de Doença búlgara, na medida em que institui um regime de autorização prévia para a obtenção de prestações hospitalares noutro Estado‑Membro, desde que não impeça o requerente de reclamar posteriormente o reembolso, caso a recusa do respectivo pedido venha a ser declarada ilegal pela própria instituição competente ou por decisão judicial.

2)       O artigo 22.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71, será interpretado no sentido de que

–      não se opõe a um regime como o previsto no Anexo 5 do Regulamento n.° 40 de 2004, na medida em que este admita, fundamentando‑se em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, o conhecimento dos tratamentos ali contidos. Quando o direito nacional preveja um sistema de lista e um determinado tratamento esteja descrito de forma genérica por referência a métodos de «alta tecnologia», o tribunal de reenvio deve apurar, evitando, assim, esvaziar de conteúdo o direito concedido pelo artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, se o tratamento recebido não tem carácter experimental à luz dos elementos relevantes disponíveis, entre eles, em particular, a literatura e os estudos científicos existentes, bem como as opiniões avalizadas de especialistas.

–      se opõe a uma presunção de que um tratamento previsto na legislação nacional mas não financiado pelo respectivo orçamento não está abrangido pelo sistema de segurança social.

–      a autorização para efectuar um tratamento noutro Estado‑Membro só pode ser recusada quando um tratamento idêntico ou com o mesmo grau de eficácia para o paciente possa ser dispensado em tempo oportuno num estabelecimento com o qual a caixa de seguro de doença do segurado tenha celebrado um convénio.

3)       O artigo 22.°, n.° 2 do Regulamento n.° 1408/71 não tem por objectivo regulamentar as despesas com a prestação de cuidados de saúde de tratamentos efectuados noutro Estado‑Membro. No entanto, o artigo 56.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do caso presente, é obrigado a reembolsar as despesas decorrentes de serviços hospitalares prestados noutro Estado‑Membro, de acordo com as normas e tabelas em vigor que sejam mais vantajosas para o beneficiário.

4)       De acordo com o princípio da União da autonomia institucional, compete ao tribunal de reenvio determinar os meios processuais adequados previstos pelo ordenamento nacional que garantam a execução da sentença de primeira instância. Para isso, deve aplicar o direito nacional em conformidade com os princípios da União da efectividade e da equivalência.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – Acórdãos de 30 de Setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, Colect., p. I‑10239); de 13 de Janeiro de 2004, Kühne & Heitz (C‑453/00, Colect., p. I‑837) e de 9 de Dezembro de 2003, Comissão/Itália (C‑129/00, Colect., p. I‑14637).


3 – Acórdão de 16 de Janeiro de 1974, Rheinmühlen‑Düsseldorf (166/73, Recueil, p. 33, Colect., p. 17).


4 – Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 01 p. 98, modificado em diversas ocasiões).


5 – Acórdão Rheinmühlen, já referido, n.° 4.


6 – Ibid.


7 – Assim tem vindo a ser interpretado o acórdão desde que foi proferido, como resulta dos comentários dessa data de Bebr, G., Europarecht, 1974, p. 354; Winter, A., Common Market Law Revew, 1974, p. 210; Hartley, T., Article 177 EEC: appeals against an order to refer, European Law Review, 1975, p. 48.


8 – Acórdão Köbler, já referido.


9 – A este respeito, v. a análise feita pelo advogado‑geral P. Léger nas suas conclusões no processo Köbler, relativamente à assunção pelos Estados‑Membros da responsabilidade pelos actos dos respectivos tribunais (n.os 77 a 86).


10 – Acórdão de 9 de Dezembro de 2003 (C‑129/00, Colect., p. I‑4637).


11 – Acórdão Köbler, n.os 34 e 35; acórdão Comissão/Itália, n.° 32.


12 – Acórdão de 6 de Outubro de 1982, CILFIT (283/81, Colect., p. 3415). Sobre a aplicação desta jurisprudência no contexto da responsabilidade patrimonial e dos incumprimentos judiciais, v., respectivamente, os acórdãos Köbler, n.° 35, e de 12 de Novembro de 2009, Comissão/Espanha (C‑154/08, ainda não publicado na Colectânea, n.os 64 e 65).


13 – Acórdão do Tribunal Constitucional Federal de 22 de Outubro de 1986, BVerfGE 73, 339, confirmado posteriormente pelo Acórdão de 31 de Maio de 1990, BVerfGE 82, 159.


14 – Acórdão do Tribunal Constitucional de 11 de Dezembro de 1995, B 2300/95 WBl 1996, 24.


15 – Acórdão do Tribunal Constitucional 58/2004, confirmado posteriormente pelo acórdão 194/2006.


16 – Despachos do Tribunal Constitucional de 30 de Junho de 2008, IV. ÚS 154/08 e de 24 de Julho de 2008, III. ÚS 2738/07, posteriormente confirmados pelo acórdão de 8 de Janeiro de 2009, II. ÚS 1009/08.


17 – Despachos do Tribunal Constitucional de 29 de Maio de 2007, III. ÚS 151/07 e de 3 de Julho de 2008, IV ÚS 206/08.


18 – Acórdão já referido.


19 – Todavia, o Tribunal de Justiça declarou que o direito da União não se opõe à revogação da decisão pelo órgão administrativo desde que se verifiquem as quatro condições seguintes: (a) quando dispõe, segundo o direito nacional, do poder de revogação dessa decisão; (b) quando a decisão em causa se converteu em definitiva em consequência de um acórdão de um órgão jurisdicional nacional que decidiu em última instância; (c) quando o referido acórdão, face a jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça, se fundamenta numa interpretação errada do direito comunitário aplicada sem que a este Tribunal tivesse sido submetida uma questão prejudicial nas condições previstas no artigo 234.°, n.° 3, CE e d) quando o interessado se dirigiu ao órgão administrativo imediatamente depois de ter tido conhecimento da referida jurisprudência.


20 – Acórdão de 16 de Março de 2006, Kapferer (C‑234/04, Colect., p. I‑2585).


21 – Ibidem, n.° 21.


22 – Acórdãos de 19 de Setembro de 2006, i‑21 Alemania e Arcor (C‑392/04 e C‑422/04, Colect., p. I‑8559); de 12 de Fevereiro de 2008, Willy Kempter (C‑2/06, Colect., p. I‑411) e de 3 de Setembro de 2009, Fallimento Olimpiclub (C‑2/08, Colect., p. I‑0000).


23 – Acórdão de 18 de Julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, Colect., p. I‑6199).


24 – V. Alemanno, A., La responsabilità dello Stato nei confronti dei privati per le violazioni commesse dai giudici di ultima istanza, en Spitalero, F., Il risarcimento dei danni causati da sentenze definitive, en L’incidenza del Diritto Comunitario e della CEDU sugli atti nazionali definitivi, Giuffrè, Milán, 2009, pp. 65 a 72.


25 – No mesmo sentido, v. as conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Wiener, apresentadas em 10 de Julho de 1997 (C‑338/95, Colect., p. I‑06495, n.os 40 e segs.), bem como as do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Gaston‑Schul, apresentadas em 30 de Junho de 2005 (C‑461/03, Colect., p. I‑10513, n.os 80 a 87).


26 – V., entre outros, os acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (processos apensos C‑6/90 e C‑9/90, Colect., p. I‑5357, n.° 35); de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame (processos apensos C‑46/93 e C‑48/93, Colect., p. I‑1029, n.° 31); de 26 de Março de 1996, British Telecommunications (C‑392/93, Colect., p. I‑1631, n.° 38); de 23 de Maio de 1996, Hedley Lomas (C‑5/94, Colect., p. I‑2553, n.° 24); de 8 de Outubro de 1996), Dillenkofer e o. (processos apensos C‑178/94, C‑179/94 e C‑188/94 a C‑190/94, Colect., p. I‑4845, n.° 20); e de 2 de Abril de 1998, Norbrook Laboratories (C‑127/95, Colect., p. I‑1531, n.° 106).


27 – V., a título de exemplo e em circunstâncias semelhantes às de G. Elchinov, o recente processo Comissão/Espanha (C‑211/08, pendente de acórdão), uma acção por incumprimento que surgiu em consequência da denúncia de um cidadão francês, o Sr. Chollet, residente em Espanha e inscrito no regime de segurança social espanhol. Depois de ter sido hospitalizado em França, a instituição competente espanhola recusou o seu pedido de reembolso de parte das despesas que lhe foi exigida pela instituição do lugar de estadia nos termos da lei francesa (o chamado «ticket modérateur»), dando assim origem à denúncia que levou a essa acção.


28 – Conclusões apresentadas em 24 de Março de 2009, n.° 54.


29 – O Tribunal de Justiça adoptou idêntica perspectiva, centrada nas circunstâncias concretas de cada ordenamento, na sua jurisprudência relativa ao conhecimento oficioso do direito da União. A este respeito, v. os acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, Van Schijndel e van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, Colect., p. I‑4705), Peterbroeck (C‑312/93, Colect., p. I‑4599) e de 25 de Novembro de 2008, Heemskerk e Schaap (C‑455/06, Colect., p. I‑0000).


30 – O Tribunal Constitucional búlgaro (artigo 149.° da Constituição búlgara) não tem competência para apreciar os recursos directos interpostos por particulares para defesa de direitos fundamentais.


31 – К. Пенчев, И. Тодоров, Г. Ангелов и Б. Йорданов, Административнопроцесуален кодекс – Коментар, Първо издание, София 2006, чл. 224, ал. 2.


32 – Acórdão de 16 de Dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, Colect., p. I‑9641).


33 – Acórdão de 12 de Fevereiro de 1974, Rheinmühlen II (146/73, Colect., p. 139).


34 – A este respeito, v. Alonso García, R., Cuestión prejudicial comunitaria y autonomía procesal nacional: a propósito del asunto Cartesio, «Revista Española de Derecho Europeo», núm. 30, 2009, pp. 209‑211 e Barbato, J.‑C., Le droit communautaire et les recours internes exercés contre les ordonnances de renvoi, «Revue Trimestrielle de Droit européen», núm.2, 2009, pp. 280 e segs.


35 – Acórdão Cartesio, já referido, n.° 95.


36 – Ibidem, n.° 96.


37 – Caso distinto é a aplicação da doutrina Rheinmühlen I quando se inicia um novo processo que não esteja abrangido por caso julgado formal de acórdão de tribunal superior. Assim aconteceu no recente processo ERG (acórdão de 9 de Março de 2010, C‑378/08, Colect., p. I‑0000), em que o Tribunal de Justiça invocou o citado acórdão, mas num contexto em que as partes interpuseram novo processo contra actos administrativos diferentes impugnados no processo anteriormente transitado em julgado.


38 – V., entre outros, os acórdãos de 16 de Dezembro de 1981, Foglia (244/80, Colect., p. 3045, n.° 21), de 3 de Fevereiro de 1983, Robards (149/82, Colect., p. 171, n.° 19), e de 16 de Julho de 1992, Meilicke (C‑83/91, Colect., p. I‑4871, n.° 25).


39 – Acórdão de 28 de Abril de 1998 (C‑120/95, Colect., p. I‑1831) e de 28 de Abril de 1998 (C‑158/96, Colect., p. I‑1931).


40 – Acórdão Decker, n.os 35 e 36, e acórdão Kohl, n.os 34 e 35.


41 – Acórdão de 16 de Março de 1978 (117/77, Colect., p. 825) e de 31 de Maio de 1979 (182/78, Colect., p. 1977).


42 – N.os 17 a 24, bem como o n.° 32, das conclusões apresentadas conjuntamente em 16 de Setembro de 1997 nos processos Decker e Kohl, já referidos.


43 – Acórdão Decker, n.os 22 a 25, e acórdão Kohl, n.os 20 a 21.


44 – Acórdão Kohl, n.os 31 a 35. Especificidade já apontada pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 31 de Janeiro de 1984, Luisi e Carbone, 286/82 e 26/83, Colect., p. 377, mas nunca aplicada ao sector da saúde antes do referido acórdão Kohl.


45 – Acórdãos de 12 de Julho de 2001,(C‑157/99, Colect., p. I‑5473) e de 13 de Maio de 2003 (C‑385/99, Colect., p. I‑4509).


46 – Acórdão Smits‑Peerbooms, n.° 76 e acórdão Müller‑Fauré, n.° 77.


47 – Ibidem.


48 – Acórdão Smits‑Peerbooms, n.° 82 e acórdão Müller‑Fauré, n.° 83.


49 – Acórdão de 12 de Julho de 2001 (C‑368/98, Colect., p. I‑5363).


50 – Acórdão Vanbraekel, n.° 34. No mesmo sentido, v. também o acórdão de 18 de Março de 2004, Leichtle (C‑8/02, Colect., p. I‑2641, n.° 55), bem como as conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer nesse processo, n.° 41.


51 – Acórdãos de 23 de Outubro de 2003 (C‑56/01, Colect., p. I‑12403) e de 16 de Maio de 2006 (C‑372/04, Colect., p. I‑4325).


52 – Acórdão Smits‑Peerbooms, n.° 90; acórdão Müller‑Fauré, n.° 85; acórdão Inizan, n.° 57 e acórdão Watts, n.° 116.


53 – Acórdão Smits‑Peerbooms, n.° 96.


54 – Acórdão Watts, n.° 118.


55 – Acórdão Smits‑Peerbooms, n.° 98.


56 – Acórdãos de 5 de Outubro de 1994, Comissão/França (C‑381/93, Colect., p. I‑5145, n.° 17; Kohll, n.° 33, Smits e Peerbooms, n.° 61; Watts, n.° 94.


57 – V. os primeiro e segundo considerandos do Regulamento n.° 1408/71.


58 – V., entre outros, os acórdãos Decker, n.os 21 a 24; Kohl, n.os 17 a 20; Smits‑Peerbooms, n.os 53 a 58; Vanbraekel, n.os 40 a 44; Müller‑Fauré, n.os 38 a 43; Inizan, n.os 16 a 18 e Watts, n.os 90 a 92.


59 – Acórdãos Pierik II, já referidos, n.° 13.


60 – Regulamento (CEE) n.° 2793/81 do Conselho, de 17 de Setembro de 1981, que modifica o Regulamento n.° 1408/71, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, e o Regulamento n.° 574/72, que estabelece as modalidades de aplicação do Regulamento n.° 1408/71 (JO L 275, p. 1).


61 – Acórdão Smits Peerbooms, n.° 103 e acórdão Müller‑Fauré, n.° 89.


62 – Acórdão já referido, n.° 45.


63 – Acórdão já referido, n.° 61.


64 – Acórdão Smits Peerbooms, n.° 104; acórdão Müller‑Fauré, n.° 90; acórdão Inizan, n.° 46 e acórdão Watts, n.° 62.


65 – Acórdão Vanbraekel, já referido, n.° 34.


66 – Acórdão Vanbraekel, n.° 36.


67 – Acórdão Vanbraekel, n.° 45.


68 – Nas palavras do próprio Tribunal: «o artigo 22.° […] tem por objectivo conferir o direito às prestações em espécie concedidas, por conta da instituição competente, pela instituição do lugar de estada, de acordo com as disposições da legislação do Estado‑Membro onde as prestações são concedidas, como se o segurado estivesse inscrito nesta última instituição. A aplicabilidade do artigo 22.° […] não exclui que o interessado possa paralelamente dispor, ao abrigo do artigo 49.° CE, do direito de beneficiar de cuidados de saúde noutro Estado‑Membro em condições de assunção de custos diferentes das previstas no artigo 22.°» (acórdão Watts, n.° 48).


69 – Acórdão Müller‑Fauré, n.° 106. Sobre as diferenças do regime de reembolso em função da norma aplicável, v. as conclusões do advogado‑geral G. Tesauro nos processos Decker e Kohl, n.os 26 a 34.


70 – Acórdão Vanbraekel, n.° 34.


71 – Entre outros, os acórdãos de 21 de Fevereiro de 1991, Zuckerfabrik Süderdithmarschen e Zuckerfabrik Soest (C‑143/88 e C‑92/89, Colect., p. I‑415, n.os 26 e 27); de 9 de Novembro de 1995, Atlanta Fruchthandelsgesellschaft e o. (I) (C‑465/93, Colect., p. I‑3761, n.° 39); de 6 de Dezembro de 2005, ABNA e o. (C‑453/03, C‑11/04, C‑12/04 e C‑194/04, Colect., p. I‑10423, n.° 104); de 16 de Maio de 2000, Preston e o. (C‑78/98, Colect., p. I‑3201, n.° 31); de 7 de Janeiro de 2004, Wells (C‑201/02, Colect., p. I‑723, n.° 67), e de 13 de Março de 2007, Unibet (C‑432/05, Colect., p. I‑2271, n.° 79).


72 – V., entre outros, os acórdãos de 12 de Novembro de 1981, Birke/Comissão e Conselho (543/79, Colect., p. 2669, n.° 28) e Bruckner/Comissão e Conselho (799/79, Colect., p. 2697, n.° 19); de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93,Colect., p. I‑1029, n.° 66); de 14 de Setembro de 1999, Comissão/AssiDomän Kraft Products e o. (C‑310/97 P, Colect., p. I‑5363, n.° 59); e Köbler, n.° 57.

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