This document is an excerpt from the EUR-Lex website
Document 62021CJ0726
Judgment of the Court (First Chamber) of 12 October 2023.#Criminal proceedings against GR and Others.#Request for a preliminary ruling from the Županijski sud u Puli-Pola.#Reference for a preliminary ruling – Judicial cooperation in criminal matters – Convention implementing the Schengen Agreement – Article 54 – Charter of Fundamental Rights of the European Union – Article 50 – Principle ne bis in idem – Assessment in the light of the facts contained in the grounds of the judgment – Assessment in the light of the facts examined in the context of a preliminary investigation and omitted from the indictment – Meaning of ‘the same acts’.#Case C-726/21.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 12 de outubro de 2023.
Processo penal contra GR e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Županijski sud u Puli-Pola.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Apreciação à luz dos factos constantes da fundamentação da sentença — Apreciação à luz dos factos examinados no âmbito de um processo de inquérito e omitidos na acusação — Conceito de “mesmos factos”.
Processo C-726/21.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 12 de outubro de 2023.
Processo penal contra GR e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Županijski sud u Puli-Pola.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Apreciação à luz dos factos constantes da fundamentação da sentença — Apreciação à luz dos factos examinados no âmbito de um processo de inquérito e omitidos na acusação — Conceito de “mesmos factos”.
Processo C-726/21.
ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:764
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
12 de outubro de 2023 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Apreciação à luz dos factos constantes da fundamentação da sentença — Apreciação à luz dos factos examinados no âmbito de um processo de inquérito e omitidos na acusação — Conceito de “mesmos factos”»
No processo C‑726/21,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Županijski sud u Puli‑Pola (Tribunal Regional de Pula, Croácia), por Decisão de 24 de novembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de novembro de 2021, no processo penal contra
GR,
HS,
IT,
sendo intervenientes:
Županijsko državno odvjetništvo u Puli‑Pola,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),
composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb (relator), A. Kumin e I. Ziemele, juízes,
advogado‑geral: N. Emiliou,
secretário: M. Longar, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 11 de janeiro de 2023,
vistas as observações apresentadas:
— |
em representação de GR, por J. Grlić, odvjetnik, e B. Wiesinger, Rechtsanwalt, |
— |
em representação de HS, por V. Drenški‑Lasan, odvjetnica, |
— |
em representação da Županijsko državno odvjetništvo u Puli‑Pola, por E. Putigna, odvjetnik, |
— |
em representação do Governo Croata, por G. Vidović Mesarek, na qualidade de agente, |
— |
em representação do Governo Austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e F. Zeder, na qualidade de agentes, |
— |
em representação da Comissão Europeia, por H. Dockry, M. Mataija e M. Wasmeier, na qualidade de agentes, |
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de março de 2023,
profere o presente
Acórdão
1 |
O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 54.o da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em Schengen em 19 de junho de 1990 e que entrou em vigor em 26 de março de 1995 (a seguir «CAAS»), bem como do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). |
2 |
Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra GR, HS, IT pelo facto de estes terem praticado, incitado ou ajudado a praticar, na Croácia, atos qualificados de abuso de confiança no âmbito de operações comerciais. |
Quadro jurídico
Direito da União
CAAS
3 |
A CAAS foi celebrada para assegurar a aplicação do Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de junho de 1985 (JO 2000, L 239, p. 13). |
4 |
O artigo 54.o da CAAS figura no capítulo 3 da mesma convenção, sob a epígrafe «Aplicação do princípio ne bis in idem». Este artigo dispõe: «Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.» |
5 |
Nos termos do artigo 57.o, n.os 1 e 2, da CAAS: «1. Sempre que uma pessoa seja acusada de uma infração por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão. 2. As informações solicitadas serão fornecidas o mais rapidamente possível e serão tomadas em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso.» |
Direito croata
6 |
O artigo 31.o, n.o 2, da Ustav Republike Hrvatske (Constituição da República da Croácia) tem a seguinte redação: «Nenhuma pessoa pode ser novamente julgada nem condenada penalmente por um crime do qual já tenha sido absolvida ou pelo qual tenha sido condenada por decisão judicial transitada em julgado proferida em conformidade com a lei.» |
7 |
O artigo 246.o, n.os 1 e 2, do Kazneni zakon (Código Penal), na redação aplicável às circunstâncias de facto analisadas no processo principal, classifica o abuso de confiança nas operações comerciais como crime de caráter económico. |
8 |
O artigo 12.o, n.o 1, da Zakon o kaznenom postupku (Código de Processo Penal) prevê: «Nenhuma pessoa pode ser novamente condenada penalmente por um crime pelo qual já tenha sido julgada e relativamente ao qual tenha sido proferida uma decisão judicial transitada em julgado.» |
Direito austríaco
9 |
O §190 do Strafprozessordnung (Código de Processo Penal, a seguir «Código de Processo Penal austríaco») prevê: «A Procuradoria abstém‑se de intentar uma ação penal e arquivar o inquérito se: 1. o crime que deu origem ao inquérito não for punível por lei ou se a continuação do processo penal contra o arguido for inadmissível por razões legais; ou se 2. não existir nenhuma base factual para prosseguir a ação penal contra o arguido.» |
10 |
O § 193, n.o 2, do Código de Processo Penal austríaco, dispõe: «A Procuradoria pode prosseguir um inquérito que foi arquivado ao abrigo do § 190 e 191, desde que o procedimento penal não esteja prescrito, e: 1. o arguido tenha sido ouvido por esse crime (§§ 164 e 165) e não tenha sido adotada qualquer medida de coação contra ele, ou que 2. surjam ou se tornem conhecidos factos ou elementos de prova novos que, considerados individual ou conjuntamente com outros resultados do procedimento, sejam suscetíveis de constituir uma base adequada para condenar o arguido ou para agir em aplicação da secção 11.» |
Litígio no processo principal e questão prejudicial
11 |
À data dos factos do processo principal, GR era membro do conselho de administração da Skiper Hoteli d.o.o e da Interco Umag d.o.o., Umag (a seguir «Interco»), que passou a INTER Consulting d.o.o. GR era também sócia da Rezidencija Skiper d.o.o. e detinha participações sociais da Alterius d.o.o. Por sua vez, HS era presidente do conselho de administração da Interco e detinha também participações sociais da Alterius, ao passo que IT efetuava estimativas de valores de bens imóveis. |
12 |
Em 28 de setembro de 2015, a Županijsko državno odvjetništvo u Puli (Procuradoria‑Geral Distrital de Pula, Croácia) (a seguir «Procuradoria de Pula») deduziu acusação contra GR, HS, IT e a Interco (a seguir «acusação croata»). Nesta acusação, por um lado, foi imputada a GR e à Interco a prática de um crime de abuso de confiança na realização de operações comerciais, na aceção do artigo 246.o, n.os 1 e 2, do Código Penal croata, na versão aplicável aos factos do processo principal, tendo, por outro lado, HS e IT sido acusados, respetivamente, da prática dos crimes de incitamento e de auxílio à prática daquele crime. |
13 |
Resulta da acusação croata, conforme foi reproduzida no pedido de decisão prejudicial, que, entre dezembro de 2004 e junho de 2006, GR e HS atuaram com a intenção de que a Interco comprasse bens imóveis situados em várias parcelas de terreno adjacentes no município de Savudrija (Croácia), local previsto pela Skiper Hoteli para aí realizar um projeto imobiliário de alojamentos turísticos. Em seguida, essas mesmas pessoas fizeram com que a Skiper Hoteli comprasse esses bens imóveis a um preço claramente superior ao preço do mercado, para que a Interco beneficiasse de uma vantagem ilícita com prejuízo para a Skiper Hoteli. |
14 |
A acusação croata indica além disso que, entre novembro de 2004 e novembro de 2005, GR e HS também atuaram com o objetivo de que GR e outras sociedades representadas por esta última vendessem à Skiper Hoteli, a um preço claramente mais elevado do que o seu valor real, as participações sociais detidas por GR e por essas outras sociedades na Alterius, sendo a entrada de ativos inicial desta última sociedade constituída por bens imóveis construídos em parcelas de terreno adjacentes situadas no território do município de Savudrija. Para este efeito, GR e HS mandaram realizar, por intermédio da Rezidencija Skiper e com a cumplicidade de IT, uma avaliação em que os bens imóveis em causa foram sobreavaliados. |
15 |
A acusação croata foi confirmada por Decisão de 5 de maio de 2016 da Secção Penal do órgão jurisdicional de reenvio, o Županijski sud u Puli (Tribunal Regional de Pula, Croácia). |
16 |
Relativamente a um processo penal instaurado pelos mesmos factos na Áustria, o órgão jurisdicional de reenvio indica que as autoridades penais austríacas intentaram, efetivamente, ações penais contra dois antigos membros do conselho de administração Hypo‑Alpe‑Adria Bank International AG (a seguir «Hypo Alpe Adria Bank»), que é uma instituição bancária situada na Áustria, bem como contra GR e HS enquanto cúmplices desses dois antigos membros do conselho de administração. Segundo a acusação deduzida pela Staatsanwaltschaft Klagenfurt (Procuradoria de Klagenfurt, Áustria), apresentada no Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt, Áustria), em 9 de janeiro de 2015 (a seguir «acusação austríaca»), os referidos antigos membros do conselho de administração foram acusados da prática de um crime de abuso de confiança, na aceção do Strafgesetzbuch (Código Penal austríaco), por terem aprovado, entre setembro de 2002 e julho de 2005, a concessão de créditos à Rezidencija Skiper e à Skiper Hoteli, num montante total de pelo menos 105 milhões de euros, sem terem respeitado os requisitos relativos a entradas de capitais próprios adequados e ao controlo da utilização dos capitais e sem terem tido em conta, por um lado, a falta de documentação relativa à concretização dos projetos que justificassem a concessão destes créditos e, por outro, a insuficiência tanto dos instrumentos de garantia de pagamento como da capacidade de reembolso das sociedades em causa. Além disso, GR e HS foram acusados de, ao terem solicitado a concessão dos referidos créditos, terem incitado esses antigos membros do conselho de administração à prática do crime imputado ou de para tal terem contribuído. |
17 |
Na sequência de um pedido de HS, a Procuradoria de Klagenfurt confirmou, por ofício de 16 de julho de 2015 dirigido aos seus advogados, que, no que respeita aos processos instaurados contra GR e HS, a acusação austríaca abrangia igualmente a venda de bens imóveis à Skiper Hoteli por intermédio da Alterius por um preço excessivamente elevado e o pagamento duvidoso de despesas de gestão do projeto. |
18 |
Por Sentença do Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt), proferida em 3 de novembro de 2016 (a seguir «sentença austríaca transitada em julgado»), os dois antigos membros do conselho de administração da Hypo Alpe Adria Bank foram declarados parcialmente culpados da prática dos factos que lhes foram imputados e foram condenados por terem aprovado um dos créditos concedidos à Skiper Hoteli, num montante superior a 70 milhões de euros (a seguir «crédito em causa»). Em contrapartida, GR e HS foram absolvidos da acusação contra eles deduzida segundo a qual teriam, respetivamente, incitado ou contribuído para a prática dos crimes imputados aos antigos membros do conselho de administração da Hypo Alpe Adria Bank. Esta sentença transitou em julgado depois de o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) ter negado provimento ao recurso interposto da mesma, em 4 de março de 2019. |
19 |
Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio indica que a Procuradoria de Pula, também chamada a investigar outros crimes relacionados com a Hypo Alpe Adria Bank, pediu por diversas vezes durante o ano de 2014, que a Procuradoria de Klagenfurt verificasse se na Áustria estava a cargo desta última um processo paralelo ao instaurado na Croácia. Tendo em conta as informações prestadas pela Procuradoria de Klagenfurt, idênticas, em substância, às posteriormente expostas no dispositivo da acusação austríaca, a Procuradoria de Pula considerou que os factos examinados pela Procuradoria de Klagenfurt e pelo Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt) não eram juridicamente pertinentes para efeitos da caracterização do crime que era objeto do processo penal principal, não apresentavam nenhuma relação com os factos constantes da acusação croata, pelo que, por conseguinte, não se devia considerar que já tinham sido julgados. |
20 |
O órgão jurisdicional de reenvio refere que, em conformidade com a jurisprudência croata, apenas os factos constantes dos dispositivos dos atos processuais, como os despachos de constituição de arguido, os despachos de não pronúncia, os despachos de acusação e as sentenças, revestem caráter definitivo. Por conseguinte, no âmbito da aplicação do princípio ne bis in idem, só os factos mencionados nos dispositivos destes atos processuais são comparados. |
21 |
Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que pode existir, no que respeita a GR e HS, um «nexo material, espacial e temporal indissociável», entre, por um lado, os factos referidos no dispositivo da acusação croata e, por outro lado, os factos referidos no dispositivo da acusação austríaca, bem como os factos com base nos quais o processo de inquérito foi conduzido pela Procuradoria de Klagenfurt em relação, nomeadamente, a GR e HS, e que foram posteriormente omitidos na acusação austríaca. |
22 |
Antes de mais, no que respeita à existência de uma conexão material entre estes factos, o órgão de jurisdicional de reenvio recorda que a sentença austríaca transitada em julgado absolveu HS da acusação segundo a qual, durante o período compreendido entre o início de 2002 e o início de julho de 2005, através do pedido e da repetida apresentação de pedidos concessão de créditos, HS teria incitado os dois antigos membros do conselho de administração da Hypo Alpe Adria Bank a cometer certos crimes, nomeadamente conceder o crédito em causa, sem documentação suficiente sobre o projeto e sem sobre a previsão da capacidade de reembolso do crédito, ao passo que GR foi absolvido da acusação segundo a qual, no período compreendido entre 9 de agosto de 2003 e o início de julho de 2005, teria contribuído para a prática dos crimes em causa por parte daquelas mesmas pessoas, uma vez que, na qualidade de diretor da Rezidencija Skiper e da Skiper Hoteli, solicitou a concessão de créditos, incluindo o crédito em causa, tendo conduzido as negociações para esse efeito, apresentado documentação relativa ao mesmo e assinado o contrato de crédito, o que deu origem ao prejuízo sofrido pela Hypo Alpe Adria Bank. A este respeito, resulta dos fundamentos da sentença austríaca transitada em julgado que o crédito em causa foi utilizado pela Skiper Hoteli para a aquisição de bens e participações sociais a preços claramente mais elevados do que os de mercado. |
23 |
O órgão jurisdicional de reenvio considera que há que associar estas circunstâncias, reproduzidas no dispositivo e nos fundamentos da sentença austríaca transitada em julgado, com o inquérito conduzido pela Procuradoria de Klagenfurt contra GS, bem como contra HS, relativo a factos diferentes dos que são objeto da acusação austríaca, em relação aos quais, nessa sentença, GS e HS foram absolvidos. Com efeito, uma vez que esses factos eram idênticos aos constantes da acusação croata, a Procuradoria de Klagenfurt averiguou se os bens imóveis e as participações sociais em causa, que foram adquiridos através do crédito em causa, o teriam sido a um preço demasiado elevado aquando da realização do projeto imobiliário previsto pela Skiper Hoteli. |
24 |
Por conseguinte, a Procuradoria de Klagenfurt instaurou um processo de inquérito que incidiu sobre estas circunstâncias, mas encerrou‑o relativamente a GR e HS. Para este efeito, a Procuradoria de Klagenfurt limitou‑se a informar estes últimos, através de notificação, de que fora arquivado o inquérito que corria contra si relativo ao «processo Skiper», instaurado ao abrigo do § 190, ponto 2, do Código de Processo Penal austríaco, pela prática do crime de abuso de confiança previsto no § 153, n.os 1 e 2, do Código Penal austríaco, visto que o mesmo não estava abrangido pela acusação austríaca, por falta de provas, especialmente no que dizia respeito à intenção de causar prejuízo, ou por insuficiência de provas concretas suficientes de um comportamento criminalmente punível. Assim, a Procuradoria de Klagenfurt arquivou este inquérito com base em factos que não estão especificados na sentença austríaca transitada em julgado. |
25 |
Em seguida, no que respeita à existência de um nexo temporal entre os factos referidos no n.o 22 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio considera que as datas em que ocorreram, por um lado, a concessão do crédito em causa e, por outro, os atos praticados na Croácia são parcialmente coincidentes, uma vez que, segundo o dispositivo da sentença austríaca transitada em julgado, o crime, de cuja prática GR e HS foram absolvidos, foi praticado durante o período compreendido entre 2002 e julho de 2005, ao passo que os factos da acusação croata dizem respeito aos anos de 2004 a 2006. Esta sobreposição temporal explica‑se pelo facto de a concessão do crédito em causa ter necessariamente antecedido os atos praticados na Croácia. Com efeito, sem esse crédito, não teria sido possível à Skiper Hoteli adquirir na Croácia os bens imóveis e as participações sociais. |
26 |
Por último, o nexo espacial entre os referidos factos é demonstrado pelo facto de a sentença austríaca transitada em julgado mencionar que o crédito em causa se destinava à aquisição, na Croácia, de bens imóveis e de participações sociais para a realização, também na Croácia, do projeto imobiliário previsto pela Skiper Hoteli. |
27 |
Nestas circunstâncias, o Županijski sud u Puli‑Pola (Tribunal Regional de Pula, Croácia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: «Ao examinar a violação do princípio ne bis in idem é possível comparar apenas as circunstâncias de facto constantes d[o dispositivo d]a acusação [croata], com as principais circunstâncias de facto constantes d[o dispositivo d]a acusação [austríaca], e com o dispositivo da sentença [austríaca transitada em julgado], ou é possível comparar as circunstâncias de facto constantes d[o dispositivo d]a acusação [croata] com as circunstâncias de facto constantes na fundamentação da sentença austríaca transitada em julgado, e com as que foram objeto da investigação conduzida pela Procuradoria de Klagenfurt em relação a várias pessoas, particularmente a GR e HS, e posteriormente omitidas na acusação [austríaca] (circunstâncias de facto essas que não constavam [do dispositivo da acusação] em si)?» |
Quanto à questão prejudicial
Quanto à admissibilidade
28 |
O Governo Austríaco invoca a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial com o fundamento de que a questão submetida é desprovida de pertinência para a resolução do litígio no processo principal e reveste caráter hipotético. |
29 |
Este Governo sustenta que o processo penal na Áustria e o processo que se encontra pendente no órgão jurisdicional de reenvio não dizem respeito aos mesmos factos, na aceção do artigo 54.o da CAAS, independentemente do facto de haver que comparar os respetivos dispositivos da acusação austríaca ou da sentença austríaca transitada em julgado ou que efetuar uma análise mais completa tendo também em conta os fundamentos dessa sentença e, eventualmente, o conteúdo do processo de inquérito que conduziu à referida sentença. |
30 |
Com efeito, resulta de uma comparação do dispositivo da acusação austríaca, por um lado, e do dispositivo da acusação croata, por outro, que os processos penais instaurados na Áustria e na Croácia têm objetos diferentes e dizem respeito a vítimas diferentes. Esta constatação é também confirmada pela comparação da acusação croata com os fundamentos da sentença austríaca transitada em julgado e com os inquéritos da Procuradoria de Klagenfurt noutros processos penais. |
31 |
Mais especificamente, o Governo Austríaco considera que o processo penal instaurado na Áustria tinha por objeto apurar a responsabilidade penal de GR e de HS relacionada com o prejuízo patrimonial sofrido pelo Hypo Alpe Adria Bank devido à concessão de créditos insustentáveis, ao passo que o objeto do processo penal instaurado na Croácia tinha por objeto apurar a responsabilidade penal de GR e de HS no que respeita ao prejuízo patrimonial causado à Skiper Hoteli na sequência da compra, a preços alegadamente excessivos, de bens imóveis e de participações sociais de sociedades detentoras de bens imóveis. Além disso, o processo penal instaurado na Áustria não podia ter incidido sobre os eventuais atos de GR contra a Skiper Hoteli por motivo de incompetência das autoridades austríacas a este respeito, uma vez que GR é uma cidadã e residente croata, sendo a Skiper Hoteli, por sua vez, uma sociedade registada na Croácia. |
32 |
A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 4 de junho de 2020, Kancelaria Medius, C‑495/19, EU:C:2020:431, n.o 21 e jurisprudência referida). |
33 |
Daqui decorre que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 4 de junho de 2020, Kancelaria Medius, C‑495/19, EU:C:2020:431, n.o 22 e jurisprudência referida). |
34 |
Além disso, cabe ao Tribunal de Justiça ter em conta, no quadro da repartição das competências entre os tribunais da União e os tribunais nacionais, o contexto factual e regulamentar em que se inserem as questões prejudiciais, como definido pela decisão de reenvio. Por conseguinte, independentemente de quais sejam as críticas do Governo Austríaco às apreciações factuais do órgão jurisdicional de reenvio, o exame da questão prejudicial deve ser efetuado com base nas mesmas (v., por analogia, Acórdão de 7 de abril de 2022, Caixabank, C‑385/20, EU:C:2022:278, n.o 38 e jurisprudência referida). |
35 |
No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa factual de que não está excluído que pode existir um nexo material, espacial e temporal indissociável, no que respeita a GR e HS, entre os factos referidos no dispositivo da acusação croata, os factos referidos no dispositivo da acusação austríaca e os factos contidos no dispositivo e nos fundamentos da sentença austríaca transitada em julgado, bem como aqueles pelos quais o processo de inquérito foi conduzido pela Procuradoria de Klagenfurt em relação, nomeadamente, a GR e HS, e que foram posteriormente omitidos na acusação austríaca. |
36 |
Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a questão de saber se os factos mencionados nos fundamentos da sentença austríaca transitada em julgado, bem como aqueles relativamente aos quais o inquérito foi conduzido pela Procuradoria de Klagenfurt contra GR e HS, que foram posteriormente omitidos na acusação austríaca, é determinante no âmbito da verificação da existência de um «nexo material, espacial e temporal indissociável» para efeitos da aplicação do artigo 54.o da CAAS. Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial não é hipotético. |
37 |
Resulta do exposto que o pedido de decisão prejudicial é admissível. |
Quanto ao mérito
38 |
Há que começar por recordar que o princípio ne bis in idem constitui um princípio fundamental do direito da União, atualmente consagrado no artigo 50.o da Carta [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis inidem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 64 e jurisprudência referida]. |
39 |
Além disso, este princípio, também consagrado no artigo 54.o da CAAS, resulta das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros. Por conseguinte, há que interpretar o artigo 54.o da CAAS à luz do artigo 50.o da Carta, cujo respeito do conteúdo essencial aquele primeiro artigo assegura [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis inidem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 65]. |
40 |
Assim, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 54.o da CAAS, lido à luz do artigo 50.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito da apreciação do respeito do princípio ne bis in idem, há que tomar em consideração unicamente os factos mencionados no dispositivo da acusação deduzida pelas autoridades competentes de outro Estado‑Membro, bem como no dispositivo da sentença transitada em julgado proferida neste último Estado, ou se há também que ter em conta todos os factos mencionados nos fundamentos dessa sentença, incluindo aqueles sobre os quais incidiu o processo de instrução, mas que não foram incluídos na acusação. |
41 |
Tendo em conta as dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio e expostas nos n.os 20 a 26 do presente acórdão, há que proceder, num primeiro momento, à interpretação dos requisitos enunciados no artigo 54.o da CAAS, antes de, num segundo momento, dar ao órgão jurisdicional de reenvio indicações para efeitos da sua apreciação do litígio no processo principal. |
Quanto ao artigo 54.o da CAAS
42 |
O pedido de decisão prejudicial tem por fundamento o facto de, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, por força da prática judiciária croata, para apreciar se o princípio ne bis in idem é aplicável, os órgãos jurisdicionais croatas só poderem ter em conta os factos que constam dos dispositivos dos atos processuais, como os despachos de constituição de arguido, os despachos de não pronúncia, os despachos de acusação e as sentenças. Ora, o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe uma possibilidade de os factos mencionados nos fundamentos dos atos processuais emanados de outro Estado‑Membro, no caso em apreço a República da Áustria, incluindo aqueles sobre os quais a instrução incidiu mas que não foram incluídos na acusação, poderem levá‑lo a concluir, no âmbito do processo principal, pela existência dos «mesmos factos», na aceção do artigo 54.o da CAAS. |
43 |
Em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, há que ter em conta não apenas os seus termos, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que essa disposição faz parte [Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis in idem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 67]. |
44 |
Conforme resulta dos termos do artigo 54.o da CAAS, ninguém pode ser submetido a uma ação judicial num Estado‑Membro pelos mesmos factos pelos quais já foi definitivamente julgado noutro Estado‑Membro, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em execução ou já não possa ser executada, segundo a legislação deste último Estado. |
45 |
Assim, a aplicação do princípio ne bis in idem está sujeita a um duplo requisito, a saber, por um lado, que haja uma decisão anterior transitada em julgado (requisito «bis») e, por outro, que os mesmos factos sejam abrangidos pela decisão anterior e pelos procedimentos ou decisões posteriores (requisito «idem») (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost, C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 28). |
46 |
A este respeito, há que salientar, antes de mais, que a redação do artigo 54.o da CAAS não prevê nenhum requisito relativo aos elementos a tomar em consideração quando da análise da questão de saber se o processo pendente num órgão jurisdicional de um Estado‑Membro diz respeito aos mesmos factos que aqueles que são relativos a um processo anterior findo por uma decisão transitada em julgado noutro Estado‑Membro. |
47 |
Assim, da redação desta disposição não se pode deduzir que, no âmbito da apreciação da condição «idem», há apenas que ter em conta os factos reproduzidos nos dispositivos dos atos processuais nacionais e que está excluída a tomada em consideração, para efeitos dessa apreciação, dos factos mencionados na fundamentação dos atos processuais de outro Estado‑Membro. |
48 |
Em seguida, esta conclusão é corroborada pelo contexto em que esta disposição se inscreve. |
49 |
Com efeito, primeiro, o artigo 50.o da Carta, à luz do qual o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado, dispõe que ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado nos termos da lei. Portanto, o artigo 50.o da Carta também não contém indicações específicas quanto aos elementos que há que ter em conta no contexto da apreciação do requisito idem, pelo que a tomada em consideração dos factos mencionados na fundamentação dos atos processuais provenientes de outro Estado‑Membro não pode, à partida, ser excluída no contexto dessa apreciação. |
50 |
Segundo, nos termos do artigo 57.o, n.o 1, da CAAS, sempre que uma pessoa seja acusada de uma infração por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão. O n.o 2 desta disposição prevê que as informações solicitadas serão fornecidas o mais rapidamente possível e serão tomadas em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso. |
51 |
A este respeito, o artigo 57.o da CAAS instituiu um quadro de cooperação que permite que as autoridades competentes do segundo Estado‑Membro, com o objetivo de clarificar, por exemplo, a exata natureza de uma decisão proferida no território de um primeiro Estado‑Membro ou ainda os factos precisos que são objeto dessa decisão, peçam informações jurídicas pertinentes às autoridades desse primeiro Estado (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Turanský, C‑491/07, EU:C:2008:768, n.o 37). |
52 |
Há que observar que esta disposição exige que essas informações sejam tomadas em consideração quando da avaliação de uma eventual violação do princípio ne bis in idem. Ora, como o advogado‑geral salientou no n.o 42 das suas conclusões, uma prática judicial nacional que impõe ao órgão jurisdicional nacional que atenda apenas às informações contidas em certas partes específicas de atos processuais, no caso em apreço, nos dispositivos desses atos, com exclusão de qualquer outra informação que esse órgão jurisdicional possa receber das autoridades do Estado‑Membro que foi solicitado para obter informações pertinentes, não permite garantir o efeito útil do artigo 57.o da CAAS. |
53 |
Por conseguinte, ao contrário do que a prática judicial croata parece prever, não se pode impor a um órgão jurisdicional nacional, como o órgão jurisdicional de reenvio, que tome em consideração, no âmbito do exame do princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da CAAS, apenas os factos mencionados nos dispositivos dos atos processuais provenientes de outro Estado‑Membro. |
54 |
Por último, só uma interpretação do artigo 54.o da CAAS segundo a qual o órgão jurisdicional nacional do segundo Estado‑Membro também deve ter em conta os factos mencionados na fundamentação desses atos, bem como qualquer informação pertinente relativa aos factos materiais objeto de um processo penal anterior conduzido no primeiro Estado‑Membro e findo por sentença transitada em julgado, permite fazer prevalecer o objeto e a finalidade desta disposição sobre aspetos processuais e puramente formais, aliás variáveis consoante os Estados‑Membros em causa, e garantir uma aplicação útil deste artigo (v., por analogia, Acórdão de 10 de março de 2005, Miraglia, C‑469/03, EU:C:2005:156, n.o 31). |
55 |
Com efeito, a referida disposição tem por objetivo evitar que, no espaço de liberdade, segurança e justiça, uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada possa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, ser acusada pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes, a fim de garantir a segurança jurídica através do respeito das decisões dos órgãos públicos transitadas em julgado, na falta de harmonização ou de aproximação das legislações penais dos Estados‑Membros (Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski, C‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 44). |
56 |
Ora, o artigo 54.o da CAAS implica necessariamente uma confiança mútua dos Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal e que cada um dos referidos Estados aceite a aplicação do direito penal em vigor nos outros Estados‑Membros, ainda que a aplicação do seu próprio direito nacional conduzisse a uma solução diferente. Esta confiança mútua implica que as autoridades competentes em causa do segundo Estado‑Membro aceitem tomar em consideração as informações jurídicas pertinentes que possam receber do primeiro Estado‑Membro [v., por analogia, Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis inidem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 93]. |
57 |
Contudo, a referida confiança mútua só pode prosperar se o segundo Estado‑Membro estiver em condições de assegurar, com base nos documentos comunicados pelo primeiro Estado‑Membro, que, por um lado, a decisão em causa tomada pelas autoridades competentes desse primeiro Estado constitui efetivamente uma decisão transitada em julgado e, por outro, que os factos objeto dessa decisão podem ser qualificados de «mesmos factos», na aceção do artigo 54.o da CAAS (v., por analogia, Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski, C‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 52). |
58 |
Daqui resulta que há que considerar que, no âmbito da apreciação do respeito do princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da CAAS, o órgão jurisdicional nacional do segundo Estado‑Membro, como o órgão jurisdicional de reenvio, é obrigado a tomar em consideração não apenas os factos mencionados nos dispositivos dos atos processuais comunicados por um primeiro Estado‑Membro, mas também os factos mencionados na fundamentação desses atos, bem como todas as informações pertinentes relativas aos factos materiais objeto de um processo penal anterior conduzido no primeiro Estado‑Membro e findo por uma decisão transitada em julgado. |
Quanto ao requisito «bis» e ao requisito «idem»
59 |
Para dar uma resposta o mais útil possível ao órgão jurisdicional de reenvio, com base nos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe e sem prejuízo das verificações que o órgão jurisdicional terá de realizar, há ainda que apreciar se, no contexto da aplicação do princípio ne bis in idem, existe, no caso concreto, como resulta da jurisprudência recordada no n.o 45 do presente acórdão, por um lado, uma decisão anterior transitada em julgado (requisito «bis») e, por outro, se os mesmos factos são objeto da decisão anterior, bem como dos procedimentos ou decisões posteriores (requisito «idem»). |
60 |
No que respeita ao requisito «bis», para que se possa considerar que uma pessoa foi «definitivamente julgada» a título dos factos que lhe são imputados, na aceção do artigo 54.o da CAAS, importa, em primeiro lugar, que a ação penal tenha sido definitivamente extinta (Acórdão de 29 de junho de 2016, KossowskiC‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 34 e jurisprudência referida). |
61 |
A apreciação deste primeiro requisito deve ser feita com base no ordenamento jurídico do Estado‑Membro que proferiu a decisão penal em causa. Com efeito, uma decisão que, segundo o ordenamento jurídico do Estado‑Membro que instaurou uma ação penal contra uma pessoa, não extinga definitivamente a ação penal a nível nacional, não pode, em princípio, constituir um obstáculo processual à eventual instauração ou prossecução de ações penais contra essa pessoa, pelos mesmos factos, noutro Estado‑Membro (Acórdão de 29 de junho de 2016, KossowskiC‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 35 e jurisprudência referida). |
62 |
No caso em apreço, no que respeita à sentença austríaca transitada em julgado, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, por força do direito austríaco, semelhante decisão reveste força de caso julgado e obsta a um novo processo a título dos mesmos factos, o que o Governo Austríaco não desmentiu nem nas suas observações escritas nem na audiência no Tribunal de Justiça. Daqui decorre que essa sentença extingue definitivamente, neste Estado‑Membro, a ação penal contra GR e HS, tendo estes sido absolvidos das acusações segundo as quais incitaram ou contribuíram para a prática dos crimes imputados aos antigos membros do conselho de administração da Hypo Alpe Adria Bank. |
63 |
Todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, recorrendo, se necessário, ao mecanismo de cooperação previsto no artigo 57.o da CAAS, se é efetivamente esse o efeito da sentença austríaca transitada em julgado. |
64 |
Quanto à decisão da Procuradoria de Klagenfurt de arquivar parcialmente, com base no § 190, ponto 2, do Código de Processo Penal austríaco, por insuficiência de provas, o inquérito instaurado nomeadamente contra GR e HS a título de prevenção de abuso de confiança, há que observar, por um lado, que o pedido de decisão prejudicial não especifica a natureza jurídica dessa decisão. |
65 |
Por outro lado, há que recordar que o artigo 54.o da CAAS, que se destina a evitar que uma pessoa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, seja submetida a uma ação penal no território de vários Estados‑Membros pelos mesmos factos, só pode contribuir de forma útil para a realização completa deste objetivo se também for aplicável a decisões que extingam definitivamente os procedimentos criminais num Estado‑Membro, ainda que as mesmas sejam adotadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e não assumam forma de sentença (Acórdão de 11 de fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge, C‑187/01 e C‑385/01, EU:C:2003:87, n.o 38). |
66 |
A este respeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se essa decisão da Procuradoria de Klagenfurt, adotada com base no § 190, ponto 2, do Código de Processo Penal austríaco, extingue definitivamente a ação penal na Áustria, recorrendo, se necessário, ao mecanismo de cooperação previsto no artigo 57.o da CAAS. |
67 |
Para determinar se uma decisão da Procuradoria de arquivar parcialmente o inquérito por insuficiência de provas, como a que está em causa no processo principal, constitui uma decisão pela qual alguém foi definitivamente julgado, na aceção do artigo 54.o da CAAS, há que assegurar, em segundo lugar, que esta decisão foi proferida na sequência de uma apreciação quanto ao mérito do processo (v., por analogia, Acórdão de 29 de junho de 2016, KossowskiC‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 42 e jurisprudência referida). |
68 |
Para este efeito, o Tribunal de Justiça declarou que se deve considerar que uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado contratante, pela qual um arguido foi definitivamente absolvido por insuficiência de provas, se baseou numa apreciação quanto ao mérito (Acórdão de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.o 29 e jurisprudência referida). |
69 |
No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, na Áustria, GR e HS foram objeto de um inquérito por factos diferentes dos que foram definitivamente objeto da acusação austríaca. A este respeito, como resulta do n.o 24 do presente acórdão, a Procuradoria de Klagenfurt limitou‑se a informar GR e HS do arquivamento do inquérito a seu respeito, relativo ao «processo Skiper», com base no § 190, ponto 2, do Código de Processo Penal austríaco, pelo crime de abuso de confiança referido no § 153, n.o 1, e n.o 2, do Código Penal austríaco, sendo que, por conseguinte, este crime não é visado pela acusação austríaca, devido a insuficiências de provas, especialmente no que diz respeito à intenção de prejudicar, ou devido à inexistência de provas específicas e suficientes de um comportamento criminalmente punível. Assim, a Procuradoria de Klagenfurt encerrou esse inquérito com base em factos que não são especificados no dispositivo da sentença austríaca transitada em julgado. |
70 |
A este respeito, para que se possa considerar que uma decisão da Procuradoria de arquivar parcialmente o inquérito por insuficiência de provas proferida na sequência de um processo de instrução de recolha e exame de diversos elementos de prova foi objeto de uma apreciação quanto ao mérito, é necessário que esta decisão comporte uma apreciação definitiva quanto ao caráter insuficiente dessas provas e exclua qualquer possibilidade de reabertura do processo com base no mesmo conjunto de indícios (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.o 30). No caso em apreço, atendendo à falta de informações de que o Tribunal de Justiça dispõe a este respeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é esse o caso no âmbito do processo principal. |
71 |
No que se refere ao requisito «idem», que deve ser examinado à luz da jurisprudência citada nos n.os 38 e 39 do presente acórdão, decorre dos próprios termos do artigo 50.o da Carta que este proíbe julgar ou punir penalmente a mesma pessoa, mais do que uma vez, pela prática do mesmo crime [Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis in idem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 34 e jurisprudência referida]. |
72 |
A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o critério relevante para apreciar a existência de um mesmo crime, na aceção do artigo 50.o da Carta, é o da identidade dos factos materiais, entendidos no sentido da existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si que levaram à absolvição ou à condenação definitiva da pessoa em causa. Assim, este artigo proíbe a aplicação, para factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para esses fins [Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis inidem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 35 e jurisprudência referida]. |
73 |
Além disso, resulta também da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a qualificação jurídica dos factos no direito nacional e o interesse jurídico protegido não são relevantes para efeitos da verificação da existência do mesmo crime, uma vez que o âmbito da proteção conferida pelo artigo 50.o da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro [Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis inidem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 36 e jurisprudência referida]. |
74 |
A este respeito, há que referir que o requisito «idem» exige que os factos materiais sejam idênticos. Por conseguinte, o princípio ne bis in idem não é aplicável quando os factos em causa não sejam idênticos, mas apenas semelhantes [Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis in idem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 37 e jurisprudência referida]. |
75 |
Com efeito, entende‑se por identidade dos factos materiais um conjunto de circunstâncias concretas que decorrem de acontecimentos que, em substância, são os mesmos, porquanto implicam o mesmo autor e estão indissociavelmente ligados entre si no tempo e no espaço [Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis inidem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 38 e jurisprudência referida]. |
76 |
Em contrapartida, se os factos materiais não formarem um conjunto dessa natureza, o Tribunal de Justiça já declarou que a mera circunstância de a instância chamada a conhecer da segunda ação penal declarar que o presumido autor dos factos agiu com a mesma intenção delituosa não pode ser suficiente para garantir a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si, abrangidas pelo conceito de «mesmos factos» na aceção do artigo 54.o da CAAS (Acórdão de 18 de julho de 2007, Kraaijenbrink, C‑367/05, EU:C:2007:444, n.o 29). |
77 |
No caso em apreço, por um lado, resulta da decisão de reenvio que a acusação croata visa crimes que GR e HS cometeram entre 2004 e 2006. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o inquérito penal de que GR e HS foram objeto na Áustria, que foi arquivado pela Procuradoria de Klagenfurt, tinha por objeto factos materiais ocorridos no período compreendido entre 2002 e julho de 2005 e que são idênticos aos referidos na acusação croata. Assim, este órgão jurisdicional salienta que o referido inquérito dizia parcialmente respeito a factos que são objeto da acusação croata, o que se explica pela circunstância de a concessão do crédito em causa na Áustria ter precedido os atos praticados na Croácia. Com efeito, se esse crédito não tivesse sido obtido, a aquisição na Croácia dos bens imóveis e das participações sociais em causa no processo principal não teria sido possível. |
78 |
Ora, a questão submetida assenta na premissa de que os factos referidos na acusação croata são os mesmos que os que foram objeto da decisão definitiva austríaca, uma vez que também há que tomar em consideração os fundamentos dos atos processuais praticados na Áustria. |
79 |
A este respeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva a este respeito, determinar se os factos objeto da acusação croata são os mesmos que os que foram julgados definitivamente na Áustria. No entanto, o Tribunal de Justiça pode fornecer ao referido órgão jurisdicional elementos de interpretação do direito da União no âmbito da apreciação da identidade dos factos [v., por analogia, Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis in idem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 39 e jurisprudência referida]. |
80 |
A este título, por um lado, resulta do n.o 58 do presente acórdão que o órgão jurisdicional de reenvio é obrigado a tomar em consideração, no âmbito do exame do requisito «idem», não só os factos mencionados nos dispositivos dos atos processuais comunicados por um primeiro Estado‑Membro mas também os factos mencionados na fundamentação desses atos, bem como todas as informações pertinentes relativas aos factos materiais objeto de um processo penal anterior instaurado no primeiro Estado‑Membro e findo por uma decisão transitada em julgado. |
81 |
Por outro lado, o princípio ne bis in idem não pode abranger eventuais crimes que, embora tenham sido cometidos durante o período considerado para efeitos dessa condenação que foi objeto de uma decisão definitivamente transitada em julgado noutro Estado‑Membro, dizem respeito a factos materiais diferentes dos que foram objeto da referida decisão [v. Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e ne bis inidem), C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852, n.o 135 e jurisprudência citada]. |
82 |
A este respeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, com base numa apreciação de todas as circunstâncias pertinentes, se a sentença austríaca transitada em julgado e a eventual decisão definitiva da Procuradoria de Klagenfurt de arquivar o inquérito relativo ao «processo Skiper» incidiram, por um lado, sobre factos constitutivos de um prejuízo patrimonial que GR e HS teriam causado à Skiper Hoteli devido à aquisição de terrenos a preços sobrevalorizados e, por outro, num mesmo período de infração que o abrangido pela acusação croata. |
83 |
Se, no final desta avaliação, tal não seja o caso, este órgão jurisdicional deve constatar que o processo que lhe foi submetido não tem por objeto os mesmos factos que deram origem à sentença austríaca transitada em julgado e à eventual decisão definitiva a Procuradoria de Klagenfurt, pelo que o princípio ne bis in idem, na aceção do artigo 54.o da CAAS, lido à luz do artigo 50.o da Carta, não se opõe a novos procedimentos. |
84 |
Em contrapartida, se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que a sentença austríaca transitada em julgado e a eventual decisão definitiva da Procuradoria de Klagenfurt declararam e puniram ou absolveram GR e HS por factos idênticos aos que são objeto do processo penal croata, esse órgão jurisdicional deve declarar que o processo que lhe foi submetido tem por objeto os mesmos factos que estão na origem dessa sentença transitada em julgado e dessa eventual sentença austríaca transitada em julgado. Este cúmulo de procedimentos e, sendo caso disso, de sanções, seria contrário ao princípio ne bis in idem, na aceção do artigo 54.o da CAAS, lido à luz do artigo 50.o da Carta. |
85 |
Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 54.o da CAAS, lido à luz do artigo 50.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito da apreciação do respeito do princípio ne bis in idem, há que tomar em consideração não apenas os factos mencionados no dispositivo da acusação deduzida pelas autoridades competentes de outro Estado‑Membro, bem como no dispositivo da sentença transitada em julgado proferida neste último Estado, mas também os factos mencionados na fundamentação dessa sentença e aqueles sobre os quais incidiu a instrução mas que não foram incluídos na acusação, bem como todas as informações pertinentes relativas aos factos materiais que foram objeto de um processo penal anterior conduzido nesse outro Estado‑Membro e findo por decisão transitada em julgado. |
Quanto às despesas
86 |
Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara: |
O artigo 54.o da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen em 19 de junho de 1990 e que entrou em vigor em 26 de março de 1995, lido à luz do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, |
deve ser interpretado no sentido de que: |
no âmbito da apreciação do respeito do princípio ne bis in idem , há que tomar em consideração não apenas os factos mencionados no dispositivo da acusação deduzida pelas autoridades competentes de outro Estado‑Membro, bem como no dispositivo da sentença transitada em julgado proferida neste último Estado, mas também os factos mencionados na fundamentação dessa sentença e aqueles sobre os quais incidiu a instrução mas que não foram incluídos na acusação, bem como todas as informações pertinentes relativas aos factos materiais que foram objeto de um processo penal anterior conduzido nesse outro Estado‑Membro e findo por decisão transitada em julgado. |
Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: croata.