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Document 62021CJ0663

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 6 de julho de 2023.
    Bundesamt für Fremdenwesen und Asyl contra AA.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof.
    Reenvio prejudicial — Diretiva 2011/95/UE — Normas relativas às condições de concessão do estatuto de refugiado ou do estatuto conferido pela proteção subsidiária — Artigo 14.°, n.° 4, alínea b) — Revogação do estatuto de refugiado — Nacional de um país terceiro condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave — Perigo para a comunidade — Fiscalização da proporcionalidade — Diretiva 2008/115/UE — Regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular — Adiamento do afastamento.
    Processo C-663/21.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:540

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    6 de julho de 2023 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Diretiva 2011/95/UE — Normas relativas às condições de concessão do estatuto de refugiado ou do estatuto conferido pela proteção subsidiária — Artigo 14.o, n.o 4, alínea b) — Revogação do estatuto de refugiado — Nacional de um país terceiro condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave — Perigo para a comunidade — Fiscalização da proporcionalidade — Diretiva 2008/115/UE — Regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular — Adiamento do afastamento»

    No processo C‑663/21,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), por Decisão de 20 de outubro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de novembro de 2021, no processo

    Bundesamt für Fremdenwesen und Asyl

    contra

    AA,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, P. G. Xuereb, T. von Danwitz e A. Kumin, juízes,

    advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

    secretária: M. Krausenböck, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 10 de novembro de 2022,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação do Governo Austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e V.‑S. Strasser, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo Belga, por M. Jacobs, A. Van Baelen e M. Van Regemorter, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo Checo, por A. Edelmannová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo Alemão, por J. Möller e A. Hoeschet, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo Neerlandês, por M. K. Bulterman, M. H. S. Gijzen e C. S. Schillemans, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por A. Azéma, B. Eggers, L. Grønfeldt e A. Katsimerou, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de fevereiro de 2023,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9), bem como da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98), e, particularmente, do seu artigo 5.o

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe AA, nacional de um país terceiro, ao Bundesamt für Fremdenwesen und Asyl (Serviço Federal de Estrangeiros e Asilo, Áustria) (a seguir «Serviço») a respeito da decisão adotada por este último de lhe retirar o estatuto de refugiado, de recusar conceder‑lhe o estatuto conferido pela proteção subsidiária ou um título de residência por motivos dignos de serem tidos em conta, de tomar a seu respeito uma decisão de regresso com proibição de residência e de fixar um prazo de partida voluntária.

    Quadro jurídico

    Direito internacional

    3

    A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»).

    4

    O artigo 33.o desta convenção dispõe:

    «1.   Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.

    2.   Contudo, o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado que haja razões sérias para considerar perigo para a segurança do país onde se encontra, ou que, tendo sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país.»

    Diretiva 2008/115

    5

    O artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/115 prevê:

    «Os Estados‑Membros podem decidir não aplicar a presente diretiva aos nacionais de países terceiros que:

    a)

    Sejam objeto de recusa de entrada nos termos do artigo 13.o do [Regulamento (CE) n.o 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO 2006, L 105, p. 1)], ou sejam detidos ou intercetados pelas autoridades competentes quando da passagem ilícita das fronteiras externas terrestres, marítimas ou aéreas de um Estado‑Membro e não tenham posteriormente obtido autorização ou o direito de permanência nesse Estado‑Membro;

    b)

    Estejam obrigados a regressar por força de condenação penal ou em consequência desta, nos termos do direito interno, ou sejam objeto de processo de extradição.»

    6

    O artigo 3.o, n.o 3, da referida diretiva tem a seguinte redação:

    «Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

    […]

    3.

    “Regresso”: o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo:

    ao país de origem, ou

    a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções, ou

    a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceite».

    7

    O artigo 5.o da referida diretiva dispõe:

    «Na aplicação da presente diretiva, os Estados‑Membros devem ter em devida conta o seguinte:

    a)

    O interesse superior da criança;

    b)

    A vida familiar;

    c)

    O estado de saúde do nacional de país terceiro em causa;

    e respeitar o princípio da não repulsão.»

    8

    O artigo 6.o, n.o 1, da mesma diretiva dispõe:

    «Sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados‑Membros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.»

    9

    O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 tem a seguinte redação:

    «Os Estados‑Membros tomam todas as medidas necessárias para executar a decisão de regresso se não tiver sido concedido qualquer prazo para a partida voluntária […] ou se a obrigação de regresso não tiver sido cumprida dentro do prazo para a partida voluntária concedido […]»

    10

    O artigo 9.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva tem a seguinte redação:

    «Os Estados‑Membros adiam o afastamento nos seguintes casos:

    a)

    O afastamento representa uma violação do princípio da não repulsão […]».

    Diretiva 2011/95

    11

    O considerando 16 da Diretiva 2011/95 tem a seguinte redação:

    «A presente diretiva respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos, nomeadamente, pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir, “Carta”]. Em especial, a presente diretiva procura assegurar o respeito integral da dignidade humana e o direito de asilo dos requerentes de asilo e dos membros da sua família acompanhantes, e promover a aplicação dos artigos 1.o, 7.o, 11.o, 14.o, 15.o, 16.o, 18.o, 21.o, 24.o, 34.o e 35.o da Carta, e, por conseguinte, deverá ser aplicada em conformidade.»

    12

    O artigo 2.o, alínea d), desta diretiva precisa:

    «Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

    […]

    d)

    “Refugiado”, o nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a um determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país, ou o apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o artigo 12.o».

    13

    O artigo 14.o, n.o 4, da referida diretiva dispõe:

    «Os Estados‑Membros podem revogar, suprimir ou recusar renovar o estatuto concedido a um refugiado por uma entidade governamental, administrativa, judicial ou parajudicial, quando:

    a)

    Haja motivos razoáveis para considerar que representa um perigo para a segurança do Estado‑Membro em que se encontra;

    b)

    Tendo sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave, represente um perigo para a comunidade desse Estado‑Membro.»

    14

    O artigo 21.o, n.o 2, da mesma diretiva tem a seguinte redação:

    «Nos casos em que as obrigações internacionais mencionadas no n.o 1 não o proíbam, os Estados‑Membros podem repelir um refugiado, formalmente reconhecido ou não, quando:

    a)

    Haja motivos razoáveis para considerar que representa um perigo para a segurança do Estado‑Membro em que se encontra; ou

    b)

    Tendo sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave, represente um perigo para a comunidade desse Estado‑Membro.»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    15

    AA entrou ilegalmente na Áustria em 10 de dezembro de 2014 e apresentou, no mesmo dia, um pedido de proteção internacional. Por Decisão do Serviço de 22 de dezembro de 2015, foi‑lhe concedido o estatuto de refugiado.

    16

    Em 22 de março de 2018, AA foi condenado numa pena privativa de liberdade de um ano e três meses, bem como numa pena de 180 dias de multa por ter cometido os crimes de ameaça perigosa, de danos à propriedade, de atividades ilegais com estupefacientes e de tráfico de estupefacientes. Em 14 de janeiro de 2019, AA foi condenado numa pena privativa de liberdade de três meses, por ter cometido os crimes de ofensas corporais e de ameaça perigosa. Em 11 de março de 2019, foi condenado numa pena privativa de liberdade de seis meses por ter cometido os crimes de tentativa de ofensas corporais. Estas penas privativas de liberdade foram convertidas em penas com execução suspensa.

    17

    Em 13 de agosto de 2019, AA foi condenado numa multa por comportamento agressivo para com um agente encarregado da vigilância pública.

    18

    Por Decisão de 24 de setembro de 2019, o Serviço revogou o estatuto de refugiado de AA, recusou conceder‑lhe o estatuto conferido pela proteção subsidiária ou um título de residência por motivos dignos de serem tidos em conta, adotou uma decisão de regresso acompanhada de uma proibição de permanência a seu respeito e fixou um prazo de partida voluntária, declarando que o seu afastamento não era autorizado.

    19

    AA interpôs recurso da Decisão do Serviço de 24 de setembro de 2019 para o Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal, Áustria). Em seguida, declarou que desistia desse recurso na parte relativa ao dispositivo dessa decisão que declarava a ilicitude do seu afastamento.

    20

    Em 16 de junho e 8 de outubro de 2020, AA foi condenado em penas privativas de liberdade de quatro e de cinco meses por crimes de ofensas corporais e de ameaça perigosa, sem que as suspensões anteriormente decretadas tenham sido revogadas.

    21

    Por Acórdão de 28 de maio de 2021, o Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal) anulou as partes contestadas da Decisão do Serviço de 24 de setembro de 2019. Este órgão jurisdicional declarou que AA tinha sido condenado em última instância por ter cometido um crime particularmente grave e que constituía um perigo para a comunidade. No entanto, considerou que havia que proceder a uma ponderação entre os interesses do Estado‑Membro de asilo e os do nacional de um país terceiro em causa em beneficiar de proteção internacional, tendo em conta o alcance e a natureza das medidas a que este estaria exposto em caso de revogação dessa proteção. Ora, uma vez que AA ficaria exposto, em caso de regresso ao seu país de origem, a um risco de tortura ou de morte, o referido órgão jurisdicional considerou que os seus interesses prevaleciam sobre os da República da Áustria.

    22

    O Serviço interpôs recurso de Revision deste acórdão para o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

    23

    Esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre se é necessário, após ter sido constatado que o nacional de um país terceiro em causa foi condenado definitivamente por ter cometido um crime grave e que constitui um perigo para a comunidade, proceder, para efeitos da aplicação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95, a uma ponderação dos interesses, tomando em consideração as consequências de um eventual regresso desse nacional de um país terceiro ao seu país de origem.

    24

    Além disso, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à compatibilidade da adoção de uma decisão de regresso com a Diretiva 2008/115 nos casos em que a proteção internacional foi retirada, mas em que já está demonstrado que o afastamento para o país de origem é ilícito. Com efeito, nessa situação, a residência de um nacional de um país terceiro seria tolerada na Áustria, mesmo que essa residência não fosse regular e que esse nacional de um país terceiro não fosse objeto de uma decisão de regresso efetivo.

    25

    Nestas circunstâncias, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1.

    Para apreciar se o estatuto de beneficiário de asilo anteriormente concedido a um refugiado pela autoridade competente pode ser revogado pelo motivo previsto no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da [Diretiva 2011/95], deve ser feita uma ponderação de interesses como critério autónomo de modo que, para a revogação, é necessário que o interesse público a favor do regresso forçado prevaleça sobre o interesse do refugiado em manter a proteção do Estado de refúgio, devendo a gravidade do crime e o risco potencial para a comunidade ser confrontados com o interesse do estrangeiro na proteção — tendo em conta a extensão e a natureza das medidas de que está ameaçado?

    2.

    As disposições da [Diretiva 2008/115], em especial os artigos 5.o, 6.o, 8.o e 9.o, opõem‑se a uma situação jurídica nacional em que é retirado o direito de permanência como refugiado a um nacional de um Estado terceiro por revogação do seu estatuto de beneficiário de asilo, mesmo quando, no momento da tomada da decisão de regresso, se verifica que a condução à fronteira não é permitida em virtude da proibição de repulsão por tempo indeterminado, determinada com força vinculativa?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    26

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação desta disposição está subordinada a um requisito que exige que se estabeleça, no termo de uma ponderação, que o interesse público ligado ao regresso do nacional de país terceiro em causa ao seu país de origem prevalece sobre o interesse desse nacional de um país terceiro na manutenção da proteção internacional, tendo em conta o alcance e a natureza das medidas a que este poderia ser exposto em caso de regresso ao seu país de origem.

    27

    O artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 prevê que os Estados‑Membros podem revogar o estatuto concedido a um refugiado quando este, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave, represente um perigo para a comunidade do Estado‑Membro onde se encontra.

    28

    Decorre dos n.os 27 a 42 do acórdão hoje proferido, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Refugiado que cometeu um crime grave) (C‑8/22), que a aplicação deste artigo 14.o, n.o 4, alínea b), está subordinada ao preenchimento de dois requisitos distintos, nomeadamente, por um lado, o nacional de um país terceiro em causa ter sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave e, por outro, ter sido demonstrado que esse nacional constitui um perigo para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra.

    29

    Por conseguinte, embora as questões submetidas no presente processo não digam respeito ao primeiro desses requisitos, há que salientar que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, como salientou o advogado‑geral no n.o 51 das suas conclusões, verificar se esse requisito está preenchido, garantindo que pelo menos uma das infrações penais pelas quais AA foi condenado em última instância deve ser qualificada de «crime particularmente grave», na aceção do referido artigo 14.o, n.o 4, alínea b).

    30

    A este respeito, importa sublinhar que resulta dos n.os 23 a 47 do acórdão hoje proferido, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Crime particularmente grave) (C‑402/22), que constitui um «crime particularmente grave», na aceção desta disposição, um crime que, atendendo aos seus traços específicos, apresenta uma gravidade excecional, na medida em que faz parte dos crimes que mais atentam contra a ordem jurídica da comunidade em causa. Para apreciar se um crime pelo qual um nacional de um país terceiro foi condenado em última instância apresenta tal grau de gravidade, há que ter em conta, nomeadamente, a pena prevista e a pena aplicada a esse crime, a natureza deste, eventuais circunstâncias agravantes ou atenuantes, o caráter doloso ou não do referido crime, a natureza e a extensão dos danos causados pelo mesmo crime, bem como o procedimento aplicado para o reprimir.

    31

    Em particular, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 39 desse acórdão, que a aplicação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 só pode ser justificada em caso de condenação em última instância por um crime que, considerado isoladamente, está abrangido pelo conceito de «crime particularmente grave», o que pressupõe que apresenta o grau de gravidade referido no número anterior do presente acórdão, precisando‑se que esse grau de gravidade não pode ser atingido por uma cumulação de infrações distintas, entre as quais nenhuma constitui, enquanto tal, um crime particularmente grave.

    32

    Quanto ao segundo dos requisitos referidos no n.o 28 do presente acórdão, resulta dos n.os 46 a 65 do acórdão hoje proferido, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Refugiado que cometeu um crime grave) (C‑8/22), que uma medida referida no mesmo artigo 14.o, n.o 4, alínea b), só pode ser adotada quando o nacional de um país terceiro em causa constitua um perigo real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da comunidade do Estado‑Membro em que se encontra. No âmbito da apreciação da existência desse perigo, incumbe à autoridade competente proceder a uma avaliação de todas as circunstâncias específicas do caso individual em causa.

    33

    Além disso, como foi salientado nos n.os 66 a 70 do referido acórdão, esta autoridade deve proceder a uma ponderação entre, por um lado, o perigo que o nacional de um país terceiro em causa constitui para um interesse fundamental da comunidade do Estado‑Membro em que se encontra e, por outro, os direitos que devem ser garantidos, em conformidade com a Diretiva 2011/95, às pessoas que preenchem os requisitos materiais do artigo 2.o, alínea d), desta diretiva, com o objetivo de determinar se a adoção de uma medida prevista no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da referida diretiva constitui uma medida proporcionada a esse perigo.

    34

    No caso em apreço, tendo em conta as interrogações expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que determinar se, no âmbito dessa ponderação, o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da mesma diretiva impõe, além disso, que os Estados‑Membros tenham em conta as consequências, para o nacional de um país terceiro em causa ou para a comunidade do Estado‑Membro em que esse nacional de um país terceiro se encontra, de um eventual regresso deste ao seu país de origem.

    35

    A este respeito, há que salientar que as hipóteses previstas no artigo 14.o, n.o 4, da Diretiva 2011/95, em que os Estados‑Membros podem proceder à revogação do estatuto de refugiado, correspondem, em substância, àquelas em que os Estados‑Membros podem proceder à repulsão de um refugiado ao abrigo do artigo 21.o, n.o 2, desta diretiva e do artigo 33.o, n.o 2, da Convenção de Genebra [v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (Revogação do estatuto de refugiado), C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.o 93].

    36

    Contudo, enquanto o artigo 33.o, n.o 2, da Convenção de Genebra priva, em tais hipóteses, o refugiado do benefício do princípio da não repulsão para um país em que a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas, o artigo 21.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 deve, como confirma o considerando 16 da mesma, ser interpretado e aplicado no respeito dos direitos garantidos pela Carta, nomeadamente nos seus artigos 4.o e 19.o, n.o 2, que proíbem em termos absolutos a tortura e as penas e tratos desumanos ou degradantes, seja qual for o comportamento da pessoa em causa, do mesmo modo que o afastamento para um Estado onde exista um risco sério de uma pessoa ser submetida a tais tratos. Por conseguinte, os Estados‑Membros não podem afastar, expulsar ou extraditar um estrangeiro quando existam motivos sérios e fundados para crer que este corra no país de destino um risco sério de ser sujeito a tratos proibidos pelo artigo 4.o e pelo artigo 19.o, n.o 2, da Carta [v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (Revogação do estatuto de refugiado), C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.o 94].

    37

    Assim, quando a repulsão de um refugiado ao abrigo de uma das hipóteses previstas no artigo 14.o, n.o 4, e no artigo 21.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95 o faz correr o risco de que sejam violados os seus direitos fundamentais consagrados no artigo 4.o e no artigo 19.o, n.o 2, da Carta, o Estado‑Membro em causa não pode derrogar o princípio da não repulsão nos termos do artigo 33.o, n.o 2, da Convenção de Genebra [v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (Revogação do estatuto de refugiado), C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.o 95].

    38

    Nestas condições, uma vez que o artigo 14.o, n.o 4, da Diretiva 2011/95 prevê, nas hipóteses aí referidas, a possibilidade de os Estados‑Membros revogarem o estatuto de refugiado, na aceção desta diretiva, ao passo que o artigo 33.o, n.o 2, da Convenção de Genebra permite, por seu turno, a repulsão de um refugiado que se encontre numa dessas hipóteses para um país onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas, o direito da União prevê uma proteção internacional dos refugiados em causa mais ampla do que a garantida pela referida convenção [v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (Revogação do estatuto de refugiado), C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.o 96].

    39

    Daqui resulta que, em conformidade com o direito da União, a autoridade competente pode revogar, em aplicação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95, o estatuto de refugiado concedido a um nacional de um país terceiro, sem, todavia, estar necessariamente autorizada a expulsá‑lo para o seu país de origem.

    40

    Num plano processual, esse afastamento pressupõe, além disso, a adoção de uma decisão de regresso, no respeito das garantias materiais e processuais previstas na Diretiva 2008/115, que prevê, nomeadamente, no seu artigo 5.o, que, quando aplicam esta diretiva, os Estados‑Membros têm de respeitar o princípio da não repulsão.

    41

    Por conseguinte, não se pode considerar que a revogação do estatuto de refugiado, em aplicação do artigo 14.o, n.o 4, da Diretiva 2011/95, implique uma tomada de posição a respeito da questão distinta de saber se essa pessoa pode ser afastada para o seu país de origem (v., neste sentido, Acórdão de 9 de novembro de 2010, B e D, C‑57/09 e C‑101/09, EU:C:2010:661, n.o 110).

    42

    Assim, as consequências, para o nacional de um país terceiro em causa ou para a comunidade do Estado‑Membro em que esse nacional de um país terceiro se encontra, de um eventual regresso deste ao seu país de origem podem ser tomadas em consideração não no momento da adoção da decisão de revogar o estatuto de refugiado, mas sim, sendo caso disso, quando a autoridade competente pretenda adotar uma decisão de regresso em relação ao referido nacional de um país terceiro.

    43

    Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação desta disposição está subordinada à demonstração, pela autoridade competente, de que a revogação do estatuto de refugiado constitui uma medida proporcionada ao perigo que o nacional de país terceiro em causa representa para um interesse fundamental da comunidade do Estado‑Membro em que esse nacional de um país terceiro se encontra. Para este efeito, essa autoridade competente deve proceder a uma ponderação entre esse perigo e os direitos que devem ser garantidos, em conformidade com esta diretiva, às pessoas que preenchem os requisitos materiais do artigo 2.o, alínea d), da referida diretiva, sem que, no entanto, essa autoridade competente esteja obrigada, além disso, a verificar se o interesse público associado ao regresso do referido nacional de um país terceiro ao seu país de origem prevalece sobre o interesse do mesmo nacional de um país terceiro na manutenção da proteção internacional, tendo em conta o alcance e a natureza das medidas a que estaria exposto em caso de regresso ao seu país de origem.

    Quanto à segunda questão

    44

    Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2008/115, especialmente o seu artigo 5.o, deve ser interpretada no sentido de que se opõe à adoção de uma decisão de regresso relativamente a um nacional de um país terceiro quando se demonstre que o afastamento deste para o país de destino previsto está, por força do princípio da não repulsão, excluído por tempo indeterminado.

    45

    Importa sublinhar que, primeiro, sob reserva das exceções previstas no artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/115, esta é aplicável a todos os nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado‑Membro. Por outro lado, uma vez abrangido pelo âmbito de aplicação dessa diretiva, um nacional de um país terceiro deve, em princípio, estar sujeito às normas e aos procedimentos comuns aí previstos com vista ao seu regresso, desde que a sua situação não tenha sido, se for caso disso, regularizada [Acórdão de 22 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), C‑69/21, EU:C:2022:913, n.o 52].

    46

    Nesta perspetiva, resulta, por um lado, do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 que, uma vez estabelecido o caráter irregular da permanência, qualquer nacional de um país terceiro deve, sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5 do referido artigo e no estrito cumprimento dos requisitos fixados no artigo 5.o desta diretiva, ser objeto de uma decisão de regresso, a qual deve identificar, entre os países terceiros referidos no artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 2008/115, aquele para o qual deve ser afastado [Acórdão de 22 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), C‑69/21, EU:C:2022:913, n.o 53].

    47

    A este respeito, importa salientar que se deverá considerar que um nacional de um país terceiro cujo estatuto de refugiado foi revogado está em situação irregular, salvo se lhe tiver sido concedida uma autorização de residência a outro título pelo Estado‑Membro em que se encontra.

    48

    Por outro lado, um Estado‑Membro não pode proceder ao afastamento de um nacional de um país terceiro em situação irregular, ao abrigo do artigo 8.o da Diretiva 2008/115, sem que uma decisão de regresso em relação a esse nacional tenha sido previamente adotada com respeito pelas garantias materiais e processuais que esta diretiva instaura [Acórdão de 22 de novembro 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), C‑69/21, EU:C:2022:913, n.o 54].

    49

    Segundo, o artigo 5.o da Diretiva 2008/115, que constitui uma regra geral que se impõe aos Estados‑Membros desde que estes apliquem esta diretiva, obriga a autoridade nacional competente a respeitar, em todas as fases do procedimento de regresso, o princípio da não repulsão, garantido, enquanto direito fundamental, no artigo 18.o da Carta, lido em conjugação com o artigo 33.o da Convenção de Genebra, bem como no artigo 19.o, n.o 2, da Carta. É o que sucede, nomeadamente, quando essa autoridade pretende, após ter ouvido o interessado, adotar uma decisão de regresso a seu respeito [v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), C‑69/21, EU:C:2022:913, n.o 55].

    50

    Por conseguinte, o artigo 5.o da Diretiva 2008/115 opõe‑se a que um nacional de um país terceiro seja objeto de uma decisão de regresso quando esta decisão vise, como país de destino, um país onde existem motivos sérios e comprovados para crer que, em caso de execução da referida decisão, esse nacional está exposto a um risco real de tratos contrários ao artigo 18.o ou ao artigo 19.o, n.o 2, da Carta [Acórdão de 22 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Canábis terapêutica), C‑69/21, EU:C:2022:913, n.o 56].

    51

    É precisamente esse o caso, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que a autoridade competente prevê o regresso de um nacional de um país terceiro ao seu país de origem, mas já declarou que o princípio da não repulsão obsta a esse regresso.

    52

    Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão que o artigo 5.o da Diretiva 2008/115 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à adoção de uma decisão de regresso relativamente a um nacional de um país terceiro quando se demonstre que o afastamento deste para o país de destino previsto está, por força do princípio da não repulsão, excluído por tempo indeterminado.

    Quanto às despesas

    53

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida,

    deve ser interpretado no sentido de que:

    a aplicação desta disposição está subordinada à demonstração, pela autoridade competente, de que a revogação do estatuto de refugiado constitui uma medida proporcionada ao perigo que o nacional de país terceiro em causa representa para um interesse fundamental da comunidade do Estado‑Membro em que esse nacional de um país terceiro se encontra. Para este efeito, essa autoridade competente deve proceder a uma ponderação entre esse perigo e os direitos que devem ser garantidos, em conformidade com esta diretiva, às pessoas que preenchem os requisitos materiais do artigo 2.o, alínea d), da referida diretiva, sem que, no entanto, essa autoridade competente esteja obrigada, além disso, a verificar se o interesse público associado ao regresso do referido nacional de um país terceiro ao seu país de origem prevalece sobre o interesse do mesmo nacional de um país terceiro na manutenção da proteção internacional, tendo em conta o alcance e a natureza das medidas a que estaria exposto em caso de regresso ao seu país de origem.

     

    2)

    O artigo 5.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular,

    deve ser interpretado no sentido de que:

    se opõe à adoção de uma decisão de regresso relativamente a um nacional de um país terceiro quando se demonstre que o afastamento deste para o país de destino previsto está, por força do princípio da não repulsão, excluído por tempo indeterminado.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: alemão.

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