EUR-Lex Access to European Union law

Back to EUR-Lex homepage

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62021CC0556

Conclusões do advogado-geral J. Richard de la Tour apresentadas em 17 de novembro de 2022.
Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid contra E.N. e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Raad van State.
Reenvio prejudicial — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Artigo 27.o — Recurso de uma decisão de transferência relativa a um requerente de asilo — Artigo 29.o — Prazo de transferência — Suspensão desse prazo em sede de recurso — Medida provisória requerida pela administração.
Processo C-556/21.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:901

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 17 de novembro de 2022 ( 1 )

Processo C‑556/21

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid

sendo intervenientes

E.N.,

S.S.,

J.Y.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Política de asilo — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Critérios e mecanismos de determinação — Recurso de uma decisão de transferência relativa a um requerente de asilo — Prazo de transferência — Suspensão do prazo para efetuar a transferência»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial diz respeito à interpretação do artigo 27.o, n.o 3, e do artigo 29.o do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida ( 2 ).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de litígios que opõem E.N., S.S. e J.Y., requerentes de proteção internacional, ao Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança, Países Baixos) (a seguir «Secretário de Estado»), sobre as decisões deste último de indeferir liminarmente os seus pedidos de proteção internacional e de os transferir para outros Estados‑Membros. Essas decisões foram anuladas pelos órgãos jurisdicionais de primeira instância competentes. O Secretário de Estado interpôs recurso dessas sentenças e requereu, nomeadamente, a título de providências cautelares, que o prazo de transferência desses requerentes de proteção internacional fosse suspenso, o que foi concedido.

3.

O presente processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de prestar esclarecimentos quanto às modalidades de contagem do prazo de que dispõe o Estado‑Membro requerente para transferir o requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável.

4.

Este processo apresenta uma conexão com o processo pendente Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Prazo de transferência — Tráfico de seres humanos) (C‑338/21), no qual se suscita a questão de saber se o prazo de transferência previsto no artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III (a seguir «prazo de transferência») é suspenso quando, a pessoa em causa apresenta, paralelamente ao seu pedido de proteção internacional, um pedido de revisão da decisão que recusa a emissão do título de residência temporária previsto no artigo 8.o da Diretiva 2004/81/CE ( 3 ).

5.

Apesar de, em ambos os processos, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos) ter dúvidas sobre as consequências da suspensão da execução da decisão de transferência na contagem do próprio prazo de transferência, as questões específicas suscitadas são diferentes. É esse o motivo pelo qual os referidos processos são objeto de conclusões distintas, apresentadas no mesmo dia.

6.

Nas presentes conclusões, no termo da minha análise, irei propor ao Tribunal de Justiça que declare que o artigo 27.o, n.o 3, e o artigo 29.o do Regulamento Dublim III devem ser interpretados no sentido de que, na medida em que o Estado‑Membro requerente optou por aplicar o artigo 27.o, n.o 3, alínea c), desse regulamento e uma vez que o requerente de proteção internacional não requereu a suspensão da execução da decisão de transferência ao abrigo dessa disposição, o órgão jurisdicional de recurso não pode decretar, na pendência do processo e a pedido da autoridade competente desse Estado‑Membro, uma providência cautelar que tenha por efeito suspender o prazo de transferência.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

7.

Nos termos do seu artigo 1.o, o Regulamento Dublim III estabelece os critérios e os mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida. Os considerandos 4, 5 e 19 deste regulamento dispõem a este respeito:

«(4)

As conclusões [do Conselho Europeu, na sua reunião especial] de Tampere [em 15 e 16 de outubro de 1999,] precisaram […] que o [Sistema Europeu Comum de Asilo] deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

(5)

Este método deverá basear se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

[…]

(19)

A fim de garantir a proteção efetiva dos direitos das pessoas em causa, deverão ser previstas garantias legais e o direito efetivo de recurso contra as decisões de transferência para o Estado‑Membro responsável, nos termos, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra essas decisões deverá abranger a análise da aplicação do presente regulamento e da situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido.»

8.

O artigo 27.o, n.os 3 e 4, do Regulamento Dublim III dispõe:

«3.   Para efeitos de recursos ou de pedidos de revisão de decisões de transferência, os Estados‑Membros devem prever na sua legislação nacional que:

a)

O recurso ou o pedido de revisão confira à pessoa em causa o direito de permanecer no Estado‑Membro em causa enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão; ou

b)

A transferência seja automaticamente suspensa e que essa suspensão termine após um período razoável, durante o qual um órgão jurisdicional, após exame minucioso e rigoroso, deve tomar uma decisão sobre o efeito suspensivo de um recurso ou de um pedido de revisão; ou

c)

A pessoa em causa tenha a possibilidade de dentro de um prazo razoável requerer junto do órgão jurisdicional a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do recurso ou do pedido de revisão. Os Estados‑Membros devem garantir a possibilidade de uma via de recurso, suspendendo o processo de transferência até que seja adotada a decisão sobre o primeiro pedido de suspensão. A decisão sobre a suspensão ou não da execução da decisão de transferência deve ser tomada num prazo razoável, mas que não ponha em causa o exame minucioso e rigoroso do pedido de suspensão. As decisões de não suspensão da execução da decisão de transferência devem ser fundamentadas.

4.   Os Estados‑Membros podem prever que as autoridades competentes possam decidir, a título oficioso, suspender a execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão.»

9.

O artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, e n.o 2, desse regulamento tem a seguinte redação:

«1.   A transferência do requerente […] do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

[…]

2.   Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.»

B.   Direito neerlandês

10.

O artigo 8:81, n.o 1, da Algemene wet bestuursrecht (Lei Geral Administrativa) ( 4 ), de 4 de junho de 1992, dispõe:

«Se uma decisão é objeto de recurso perante o tribunal administrativo ou se, antes da eventual interposição de tal recurso perante o tribunal administrativo, apresentado pedido de revisão […], o juiz das medidas providências cautelares do órgão jurisdicional administrativo que é ou pode vir a ser competente no processo principal pode adotar, mediante requerimento de parte, providências cautelares em caso de urgência, tendo em conta os interesses em causa.»

11.

Nos termos do artigo 8:108, n.o 1, desta lei:

«Salvo disposição em contrário do presente título, os títulos 8.1 a 8.3 são aplicáveis, mutatis mutandis, ao recurso […]»

III. Factos do litígio no processo principal e questão prejudicial

12.

Em 12 de julho e 7 de outubro de 2019, e em 22 de novembro de 2020, E.N., S.S. e J.Y. apresentaram, respetivamente, um pedido de proteção internacional nos Países Baixos. O Secretário de Estado pediu às autoridades de outros Estados‑Membros que os tomassem ou retomassem a cargo. Em 27 de outubro e 20 de novembro de 2019, e em 19 de janeiro de 2021, essas autoridades aceitaram, expressa ou tacitamente, esses pedidos de tomada ou retomada a cargo.

13.

Em 9 de janeiro e 8 de fevereiro de 2020 e em 16 de fevereiro de 2021, o Secretário de Estado indeferiu liminarmente os pedidos de proteção internacional pelo facto de as autoridades de outros Estados‑Membros serem responsáveis pela análise desses pedidos e de E.N., S.S. bem como J.Y. deverem ser transferidos para essas autoridades. E.N., S.S. e J.Y. interpuseram recursos de anulação dessas decisões. Das declarações dos interessados na audiência resulta que não requereram a suspensão da execução das referidas decisões enquanto se aguardava o resultado dos recursos ( 5 ).

14.

Em 25 de fevereiro e 16 de setembro de 2020 ( 6 ), e em 1 de abril de 2021, os órgãos jurisdicionais de primeira instância anularam as decisões de indeferimento liminar dos pedidos de proteção internacional e as decisões de transferência e ordenaram ao Secretário de Estado que adotasse novas decisões sobre os pedidos de proteção internacional apresentados por E.N., S.S. e J.Y.

15.

O Secretário de Estado interpôs recurso dessas sentenças no Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) e fez acompanhar esses recursos de pedidos de providências cautelares para, por um lado, não ter de tomar uma nova decisão sobre os pedidos de proteção internacional antes da decisão do recurso e, por outro, o prazo de transferência ser suspenso. O órgão jurisdicional de reenvio deferiu esses pedidos em 17 de março e 16 de novembro de 2020, e em 28 de maio de 2021.

16.

O órgão jurisdicional de reenvio precisa que deve verificar se o prazo de transferência expirou e se, assim, o Reino dos Países Baixos se tornou responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados por E.N., S.S. e J.Y., se se considerar que o artigo 27.o, n.o 3, e o artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III se opõem a que seja deferido, em sede de recurso, um pedido de providências cautelares do Secretário de Estado para suspender o prazo de transferência.

17.

O referido órgão jurisdicional recorda que o Reino dos Países Baixos escolheu aplicar o artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III, por força do qual a pessoa em causa tem o direito de, num prazo razoável, requerer junto do órgão jurisdicional a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do seu recurso ou revisão.

18.

O órgão jurisdicional de reenvio considera que a solução segundo a qual os artigos 27.o e 29.o do Regulamento Dublim III se opõem a que, em sede de recurso, seja deferido um pedido de providência cautelar do Secretário de Estado destinado a suspender o prazo de transferência pode ser justificada, por um lado, pela definição do conceito de «pessoa em causa» na aceção do artigo 27.o, n.o 3, alínea c), desse regulamento e, por outro, pelo objetivo de determinação rápida do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

19.

No entanto, realça vários elementos que justificam a conclusão de que o referido regulamento não se opõe a que seja deferido, em sede de recurso, um pedido de providência cautelar do Secretário de Estado destinado a suspender o prazo de transferência.

20.

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio infere do Acórdão de 26 de setembro de 2018, Staatssecretaris van Veiligheid en justitie (Efeito suspensivo do recurso) ( 7 ), que, embora uma diretiva preveja uma obrigação de assegurar a existência de um recurso jurisdicional efetivo em primeira instância, essa obrigação não impede que se preveja um processo em segunda instância ou em sede de recurso.

21.

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio alega que, embora um dos objetivos do Regulamento Dublim III seja determinar rapidamente o Estado‑Membro responsável pelo pedido de proteção internacional, deve ser garantido um recurso jurisdicional efetivo das decisões de transferência para o Estado‑Membro responsável. A pessoa em causa poderia, a esse título, preferir uma proteção jurídica adicional a uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável.

22.

Segundo o referido órgão jurisdicional, essa interpretação destinar‑se‑ia a evitar duas situações indesejáveis, a saber, por um lado, que a pessoa em causa seja transferida para o Estado‑Membro responsável, na pendência do recurso, para seguidamente ser reenviada para o Estado‑Membro requerente caso seja dado provimento ao recurso ou, por outro, que a pessoa em causa não possa ser transferida para o Estado‑Membro responsável e que o prazo de transferência expire em sede de recurso, de modo que o pedido de proteção internacional deva ser tratado pelo Estado‑Membro requerente, ainda que tenha sido negado provimento ao recurso da pessoa em causa.

23.

Em terceiro lugar, o referido órgão jurisdicional admite que o Secretário de Estado também pode requerer, em sede de recurso, a suspensão do prazo de transferência. Uma solução oposta poderia privar o Secretário de Estado de qualquer possibilidade concreta de interpor recurso, na medida em que o prazo de transferência nem sempre é suficiente para permitir ao órgão jurisdicional decidir no processo em causa.

24.

Neste contexto, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 27.o, n.o 3, e 29.o do Regulamento [Dublim III] ser interpretados no sentido de que não se opõem a que, no caso de o ordenamento jurídico do Estado‑Membro prever uma segunda instância para processos como os ora em apreço, o tribunal que conhece do recurso decrete, [na pendência] do processo, a pedido da autoridade competente do Estado‑Membro, [uma providência cautelar] que tenha por efeito suspender o prazo de transferência?»

25.

E.N., S.S. e J.Y., os Governos neerlandês e alemão, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas.

26.

Numa audiência comum com o processo pendente C‑338/21, realizada em 14 de julho de 2022, E.N., S.S. e J.Y., o Governo neerlandês e a Comissão foram ouvidos e convidados, designadamente, a responder às questões para resposta oral formuladas pelo Tribunal de Justiça.

IV. Análise

27.

Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça, se os artigos 27.o, n.o 3, e o artigo 29, n.o 1, do Regulamento Dublim III devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma prática nacional segundo a qual, no caso de o ordenamento jurídico do Estado‑Membro prever uma segunda instância no âmbito dos recursos das decisões de transferência ou dos pedidos de revisão dessas decisões, previstos no referido artigo 27.o, n.o 3, o tribunal que conhece do recurso pode decretar, na pendência do processo, a pedido da autoridade competente do Estado‑Membro, uma providência cautelar que tenha por efeito suspender o prazo de transferência.

28.

Para responder às questões do órgão jurisdicional de reenvio, importa, antes de mais, recordar que o Regulamento Dublim III não prevê, enquanto tal, a possibilidade de o órgão jurisdicional nacional suspender o prazo de seis meses de que dispõe o Estado‑Membro requerente para efetuar a transferência do requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável.

29.

O artigo 27.o, n.o 3, desse regulamento prevê, em contrapartida, a possibilidade de um órgão jurisdicional nacional suspender a execução da decisão de transferência seja a título oficioso ( 8 ), seja a pedido da pessoa em causa ( 9 ). É esta suspensão que influencia a contagem do prazo de transferência.

30.

Com efeito, nos termos do artigo 29.o, n.o 1, do referido regulamento, o prazo de transferência começa a correr, em princípio, a contar da aceitação por outro Estado‑Membro do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa. Porém, se a pessoa em causa interpôs um recurso ou um pedido de revisão da decisão de transferência, esse prazo começa a correr a contar da decisão final sobre esse recurso ou essa revisão quando tenha sido conferido o efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3, do mesmo regulamento.

31.

Esta última disposição prevê três modalidades que permitem suspender a execução da decisão de transferência. Os Estados‑Membros devem prever, em primeiro lugar, que o recurso dessa decisão confira à pessoa em causa o direito de permanecer no Estado‑Membro que adotou a referida decisão enquanto se aguarda o resultado do recurso ( 10 ), o que tem por efeito que a transferência não pode ser efetuada, ou, em segundo lugar, que, na sequência da interposição de um recurso da decisão de transferência, a transferência seja automaticamente suspensa por um período razoável durante o qual um órgão jurisdicional deve tomar uma decisão sobre o efeito suspensivo desse recurso ( 11 ), ou, em terceiro lugar, que a pessoa em causa tenha a possibilidade de requerer a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do recurso dessa decisão ( 12 ). Da articulação entre o artigo 27.o, n.o 3, e o artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III resulta que só quando a suspensão da execução da decisão de transferência tenha sido concedida segundo uma das três modalidades previstas no artigo 27.o, n.o 3, desse regulamento é que o início do prazo de transferência poderá ser adiado ao abrigo do artigo 29.o, n.o 1, do referido regulamento.

32.

Ora, importa salientar que, por um lado, o artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III não prevê que a autoridade competente do Estado‑Membro requerente possa pedir a suspensão da execução da decisão de transferência e, por outro, o Reino dos Países Baixos optou por aplicar, de entre as três modalidades alternativas dessa suspensão previstas nessa disposição, aquela segundo a qual o requerente de proteção internacional pode interpor um recurso para obter tal suspensão ( 13 ).

33.

Por conseguinte, o sistema neerlandês, como está em causa no processo principal, prevê que, após a anulação de uma decisão de transferência em primeira instância, a autoridade administrativa competente pode requerer ao juiz das providências cautelares do tribunal que conhece do recurso que declare que aquela não tem de tomar nova decisão sobre o pedido de proteção internacional enquanto se aguarda o resultado de recurso, e que declare que o prazo de transferência é suspenso até que o referido tribunal decida o recurso, e isto mesmo que o requerente de proteção internacional não tenha pedido a suspensão da execução da decisão de transferência em primeira instância, ou que essa suspensão não lhe tenha sido concedida.

34.

Assim, há que determinar se, na medida em que o Reino dos Países Baixos optou por aplicar o artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III e o requerente de proteção internacional não pediu a suspensão da execução da decisão de transferência em primeira instância, o artigo 27.o, n.o 3, e o artigo 29.o, n.o 1, desse regulamento se opõem a essa prática jurídica.

35.

Para este efeito, recordo que as disposições enunciadas no artigo 27.o, n.o 3, e artigo 29.o do Regulamento Dublim III têm uma finalidade específica.

36.

Em primeiro lugar, os procedimentos de tomada e de retomada a cargo dos requerentes de proteção internacional devem ser conduzidos respeitando uma série de prazos imperativos, entre os quais figura o prazo de seis meses de que dispõe o Estado‑Membro requerente para transferir a pessoa em causa para o Estado‑Membro responsável ao abrigo do artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III ( 14 ).

37.

Esses prazos contribuem, de forma determinante, para a realização do objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional, referido no considerando 5 desse regulamento, garantindo que os procedimentos de tomada e retomada a cargo sejam executados sem demora injustificada ( 15 ).

38.

Em segundo lugar, aquando da adoção do artigo 27.o, n.o 3, do referido regulamento, o legislador da União pretendeu reforçar as garantias processuais reconhecidas ao requerente de proteção internacional ( 16 ) e, mais especificamente, a proteção jurisdicional de que beneficia em conformidade com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais ( 17 ).

39.

Por outras palavras, é para conferir uma proteção jurisdicional suficiente à pessoa em causa que o artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III lhe dá a possibilidade de conseguir que as autoridades competentes do Estado‑Membro requerente não possam proceder à sua transferência para outro Estado‑Membro.

40.

Como o Tribunal de Justiça decidiu no Acórdão de 29 de janeiro de 2009, Petrosian ( 18 ), resulta da articulação entre esses objetivos que, para conciliar a garantia de uma proteção jurisdicional efetiva das pessoas em causa com o cumprimento dos prazos imperativos impostos aos Estados‑Membros, é necessário que a contagem do prazo de transferência possa ser adiada até ser proferida a decisão judicial que se pronuncia sobre o mérito desse procedimento e que já não é suscetível de impedir a execução da decisão de transferência.

41.

É, desde então, jurisprudência constante que o legislador da União não quis sacrificar a proteção jurisdicional dos requerentes de proteção internacional em prol da exigência de celeridade no tratamento do seu pedido ( 19 ).

42.

À luz dos elementos que precedem, considero oportuno recordar que o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional não pode ser prejudicado pelo adiamento da contagem do prazo de transferência, quando a execução da decisão de transferência tenha sido suspensa nas condições previstas no artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III, para garantir uma proteção jurisdicional suficiente ao requerente de proteção internacional. Por conseguinte, as vias de recurso das decisões de transferência e a possibilidade de ordenar a suspensão da execução dessas decisões, que leva à suspensão do prazo de transferência, destinam‑se a beneficiar exclusivamente o requerente.

43.

Assim, considero que a suspensão da execução da decisão de transferência pelo órgão jurisdicional que conhece do recurso, a pedido da autoridade competente do Estado‑Membro requerente, não permite garantir aos requerentes de proteção internacional uma proteção jurisdicional efetiva.

44.

Com efeito, no processo principal, E.N., S.S. e J.Y. tinham, em primeira instância, obtido a anulação da decisão de transferência sem ter requerido a suspensão da execução da mesma.

45.

A este respeito podem ser feitas duas observações.

46.

No que se refere, por um lado, à anulação da decisão de transferência, recordo que a suspensão da execução da decisão de transferência ao abrigo do artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III, não sendo necessariamente automática, está intrinsecamente ligada à existência de um recurso dessa decisão. É precisamente porque existe uma decisão de transferência que a sua execução pode ser suspensa para que o requerente de proteção internacional possa contestar utilmente essa decisão.

47.

Além disso, qualquer adiamento da contagem do prazo de seis meses previsto para efetuar a transferência só pode ser justificado pelo interesse da pessoa em causa em que a legalidade da decisão de transferência seja clarificada pelas autoridades judiciais ( 20 ).

48.

Assim, uma vez que as decisões de transferência foram anuladas pelos órgãos jurisdicionais de primeira instância, E.N., S.S. e J.Y. já não correm o risco de serem transferidos para o Estado‑Membro responsável durante a apreciação do recurso. Não existe nenhum risco de prejudicar a proteção jurisdicional destes últimos, que poderão permanecer no território do Estado‑Membro requerente e defender validamente os seus direitos perante o órgão jurisdicional que conhece do recurso.

49.

Por outro lado, no que respeita à inexistência de efeito suspensivo do recurso, o Tribunal de Justiça já declarou que, ao adotar o artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III, o legislador da União reconheceu que os Estados‑Membros podiam decidir que a interposição de um recurso de uma decisão de transferência não basta, por si só, para suspender a execução da decisão de transferência, que pode, por conseguinte, ter lugar sem esperar a análise desse recurso, desde que a suspensão não tenha sido requerida ou o pedido de suspensão tenha sido indeferido ( 21 ).

50.

Ora, resulta das declarações dos advogados na audiência que, no âmbito dos recursos, em primeira instância, das decisões de transferência adotadas contra eles, E.N., J.Y. e S.S., não tinham requerido que esses recursos tivessem efeito suspensivo ( 22 ).

51.

Nesta medida, é possível inferir que E.N., J.Y. e S.S. preferiram a celeridade no tratamento do seu pedido de proteção internacional e que a suspensão da execução das decisões de transferência, requerida em sede de recurso pelo Secretário de Estado, responde sobretudo ao interesse desta autoridade administrativa em manter as decisões de transferência que foram anuladas em primeira instância e de ver suspensa a execução das referidas decisões de transferência, e, consequentemente, adiada a contagem do prazo de transferência.

52.

Constato, com efeito, que decorre do pedido de decisão prejudicial que as providências cautelares, deferidas em sede de recurso e requeridas pela autoridade nacional competente, visam essencialmente evitar que o prazo de transferência expire antes da análise do recurso. Assim, essas providências são decretadas unicamente em benefício da referida autoridade.

53.

Por conseguinte, como o Governo neerlandês precisou na audiência, na medida em que o recurso interposto, em primeira instância, por um requerente de proteção internacional não é acompanhado de providências cautelares que suspendam a execução da decisão de transferência, nada impede as autoridades nacionais competentes de transferir um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável na pendência do processo em primeira instância ( 23 ).

54.

É verdade que este cenário poderia levar o Estado‑Membro requerente a transferir um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro que tenha aceitado tomá‑lo ou retomá‑lo a cargo, mesmo que a decisão de transferência seja, em seguida, anulada pelos órgãos jurisdicionais competentes do Estado‑Membro requerente.

55.

Saliento, no entanto, que o artigo 29.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III prevê, nessa situação, que «o Estado‑Membro que efetuou a transferência é obrigado a retomar imediatamente essa pessoa a cargo» ( 24 ).

56.

Assim, uma vez que o Estado‑Membro requerente optou por aplicar o artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III, e que a pessoa em causa não requereu a suspensão da execução da decisão de transferência em primeira instância, nenhum obstáculo à execução dessa decisão justificaria a necessidade de suspender, consequentemente, o prazo de transferência.

57.

Daqui concluo que não existe nenhuma razão para que o Estado‑Membro requerente não respeite o prazo de seis meses fixado no artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, a partir do momento em que o Estado‑Membro responsável aceitou o pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, se essa pessoa não requereu, em primeira instância, a suspensão da execução da decisão de transferência.

58.

Por conseguinte, o recurso interposto pelas autoridades nacionais competentes não pode ter por efeito a suspensão da execução da decisão de transferência, que só pode ser requerida pela pessoa em causa, nem a suspensão do prazo de transferência.

59.

A situação seria diferente se E.N., J.Y. e S.S. tivessem requerido e obtido a suspensão da execução da decisão de transferência em primeira instância. Com efeito, em caso de recurso com efeito suspensivo, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar, essa decisão de suspensão seria mantida até à decisão do tribunal que conhece do recurso e até à decisão final do mesmo, independentemente do número de instâncias previsto pelo direito nacional. Só nesta hipótese é que o prazo de transferência poderia começar a correr a partir do momento em que o recurso da decisão de transferência ou a revisão dessa decisão deixe de ter efeito suspensivo.

60.

Essa interpretação é corroborada pelo artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III, que prevê que um requerente de proteção internacional pode pedir a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto se aguarda «o resultado do recurso ou da revisão», e pelo artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, desse regulamento, que prevê que o prazo de transferência começa a correr a contar da «decisão final sobre o recurso ou revisão», quando a execução da decisão de transferência foi suspensa nos termos desse artigo 27.o, n.o 3.

61.

Atendendo a estes elementos, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que, na medida em que o Estado‑Membro requerente optou por aplicar o artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III e uma vez que o requerente de proteção internacional não pediu a suspensão da execução da decisão de transferência ao abrigo dessa disposição, o tribunal que conhece do recurso não pode decretar, na pendência do processo e a pedido unicamente da autoridade competente desse Estado‑Membro, uma providência cautelar que tenha por efeito suspender o prazo de transferência.

V. Conclusão

62.

Tendo em conta todas as considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos) do seguinte modo:

O artigo 27.o, n.o 3, e o artigo 29.o do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida,

devem ser interpretados no sentido de que:

na medida em que o Estado‑Membro requerente optou por aplicar o artigo 27.o, n.o 3, alínea c), desse regulamento, e uma vez que o requerente de proteção internacional não requereu a suspensão da execução da decisão de transferência ao abrigo dessa disposição, opõem‑se a que o tribunal que conhece do recurso não pode decretar, na pendência do processo e a pedido unicamente da autoridade competente desse Estado‑Membro, uma providência cautelar que tenha por efeito suspender o prazo de transferência previsto no artigo 29.o, n.o 1, do referido regulamento.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III».

( 3 ) Diretiva do Conselho de 29 de abril de 2004 relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objeto de uma ação de auxílio à imigração ilegal, e que cooperem com as autoridades competentes (JO 2004, L 261, p. 19).

( 4 ) Stb. 1992, n.o 315.

( 5 ) S.S. tinha requerido a suspensão da execução da decisão de transferência tomada contra si, mas, posteriormente, retirou esse pedido, de modo não foi efetivamente suspensa a execução de qualquer decisão de transferência.

( 6 ) Na decisão proferida no processo relativo a S.S., que também é parte no processo pendente C‑338/21, o órgão jurisdicional de primeira instância decidiu que já tinha expirado o prazo de que o Reino dos Países Baixos dispunha para proceder à transferência dessa pessoa.

( 7 ) C‑180/17, EU:C:2018:775.

( 8 ) Nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alíneas a) e b), do Regulamento Dublim III.

( 9 ) Nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III.

( 10 ) Nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea a), do Regulamento Dublim III.

( 11 ) Nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento Dublim III.

( 12 ) Nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III.

( 13 ) Nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento Dublim III.

( 14 ) V. Acórdão de 13 de novembro de 2018, X e X (C‑47/17 e C 48/17, EU:C:2018:900, n.o 57).

( 15 ) V. Acórdão de 13 de novembro de 2018, X e X (C‑47/17 e C 48/17, EU:C:2018:900, n.o 69).

( 16 ) V., a este respeito, Acórdão de 7 de junho de 2016, Ghezelbash (C‑63/15, EU:C:2016:409), n.o 57). V., também, Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou um apátrida [COM(2008) 820 final], apresentada pela Comissão em 3 de dezembro de 2008, designadamente o n.o 3, pp. 6, 8 e 12.

( 17 ) V., a este respeito, Acórdão de 31 de maio de 2018, Hassan (C‑647/16, EU:C:2018:368, n.os 57 e 58).

( 18 ) C‑19/08, EU:C:2009:41. Este acórdão diz respeito à interpretação do Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1), que o Regulamento Dublim III revogou (v. artigo 48.o deste regulamento).

( 19 ) V. Acórdão de 14 de janeiro de 2021, The International Protection Appeals Tribunal e o. (C‑322/19 e C‑385/19, EU:C:2021:11, n.o 88 e jurisprudência referida).

( 20 ) V. Conclusões do advogado‑geral P. Pikamäe nos processos apensos Bundesrepublik Deutschland (Suspensão administrativa da decisão de transferência) (C‑245/21 e C‑248/21, EU:C:2022:433, n.o 58).

( 21 ) V. Acórdão de 7 de junho de 2016, Ghezelbash (C‑63/15, EU:C:2016:409, n.o 59).

( 22 ) V. nota de pé de página 5 das presentes conclusões.

( 23 ) Com exceção de S.S., que também é parte no processo C‑338/21. Com efeito, a suspensão da execução da decisão de transferência foi‑lhe concedida no âmbito de um pedido de revisão da decisão de recusa do título de residência temporária previsto no artigo 8.o da Diretiva 2004/81.

( 24 ) Embora reconheça, à semelhança da advogada‑geral E. Sharpston nas suas Conclusões no processo Shiri (C‑201/16, EU:C:2017:579, nota de pé de página 47), que essa disposição deve ser vista como a exceção e não como a regra.

Top