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Document 62021CC0383

Conclusões do advogado-geral Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 9 de junho de 2022.
Sambre & Biesme SCRL e Commune de Farciennes contra Société wallonne du logement (SWL).
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Conseil d'État (Belgique).
Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2014/24/UE — Adjudicação do contrato sem iniciar um processo de concurso público — Contratos públicos adjudicados entre entidades no setor público — Artigo 12.o, n.o 3 — Contratos públicos adjudicados in house — Conceito de “controlo análogo” — Requisitos — Representação de todas as autoridades adjudicantes participantes — Artigo 12.o, n.o 4 — Contrato entre autoridades adjudicantes que prosseguem objetivos comuns de interesse público — Conceito de “cooperação” — Requisitos — Não transposição nos prazos fixados — Efeito direto.
Processos apensos C-383/21 e C-384/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:456

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 9 de junho de 2022 ( 1 )

Processos apensos C‑383/21 e C‑384/21

Société de logement de service public (SLSP) «Sambre & Biesme» SCRL (C‑383/21)

Commune de Farciennes (C‑384/21)

contra

Société wallonne du logement

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2014/24/UE — Contratos públicos — Serviços, obras e promoção de obras — Adjudicação in house — Entidade in house controlada conjuntamente por diversas autoridades adjudicantes — Aplicabilidade da diretiva»

1.

Na Bélgica, uma empresa pública de habitação e um município decidiram celebrar uma convenção‑quadro relativa à contratação. Nos termos dessa convenção‑quadro, um contrato de assistência técnica para a construção de habitações e um contrato dos serviços de inventário do amianto não seriam adjudicados por concurso, sendo atribuídos diretamente a uma terceira entidade, também pública.

2.

A autoridade encarregada pelo Governo da Valónia de supervisionar as atividades das empresas públicas de habitação anulou a convenção acima referida, por considerar que, no caso concreto, as condições para a adjudicação direta dos contratos não estavam preenchidas.

3.

Cada um dos signatários da convenção contestou a sua anulação, uma vez que, em seu entender, a adjudicação direta era compatível com a Diretiva 2014/24/UE ( 2 ). O litígio chegou à mais alta instância jurisdicional da Bélgica no âmbito do ordenamento do contencioso administrativo, que submete ao Tribunal de Justiça dois pedidos de decisão prejudicial.

I. Quadro jurídico. Diretiva 2014/24

4.

Nos termos do considerando 31 dessa diretiva:

«Existe uma considerável insegurança jurídica quanto a saber em que medida os contratos celebrados entre entidades do setor público deverão estar sujeitos às regras da contratação pública. A jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça da União Europeia é interpretada de forma diferente pelos Estados‑Membros e mesmo pelas autoridades adjudicantes. Por conseguinte, é necessário clarificar em que casos os contratos celebrados dentro do setor público não estão sujeitos à aplicação das regras da contratação pública.

Essa clarificação deverá pautar‑se pelos princípios definidos na jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça da União Europeia. O simples facto de ambas as partes num acordo serem autoridades públicas não exclui, por si só, a aplicação das regras acima referidas. Contudo, a aplicação das regras da contratação pública não deverá interferir na liberdade das autoridades públicas para desempenharem as suas missões de serviço público utilizando os seus próprios recursos, o que inclui a possibilidade de cooperação com outras autoridades públicas.

[…]»

5.

O considerando 33 enuncia:

«As autoridades adjudicantes deverão poder optar por prestar conjuntamente os seus serviços públicos por meio de cooperação, sem serem obrigadas a utilizar qualquer forma jurídica especial. Essa cooperação poderá abranger todos os tipos de atividades relacionados com o desempenho de serviços e responsabilidades atribuídos às autoridades participantes ou por elas assumidos, como por exemplo missões obrigatórias ou voluntárias das autoridades locais ou regionais ou serviços confiados por direito público a organismos específicos. Os serviços prestados pelas diferentes autoridades participantes não têm de ser necessariamente idênticos, podendo ser também complementares.

Os contratos de prestação conjunta de serviços públicos não deverão ficar sujeitos à aplicação das regras estabelecidas na presente diretiva se forem celebrados exclusivamente entre autoridades adjudicantes, se a implementação dessa cooperação se pautar unicamente por considerações relativas ao interesse público e se nenhum prestador de serviços privado ficar em posição de vantagem em relação aos seus concorrentes.

Para preencher essas condições, a cooperação deverá basear‑se num conceito de cooperação. Tal cooperação não requer que todas as autoridades participantes assumam a execução das principais obrigações contratuais, conquanto sejam assumidos compromissos de contribuir para a execução em cooperação do serviço público em causa. Além disso, a implementação da cooperação, incluindo as eventuais transferências financeiras entre as autoridades adjudicantes participantes, deverá pautar‑se unicamente por considerações relativas ao interesse público.»

6.

O artigo 12.o («Contratos públicos entre entidades no setor público») tem a seguinte redação:

«1.   Um contrato público adjudicado por uma autoridade adjudicante a outra pessoa coletiva de direito privado ou público fica excluído do âmbito da presente diretiva quando estiverem preenchidas todas as seguintes condições:

a)

A autoridade adjudicante exerce sobre a pessoa coletiva em causa um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços;

b)

Mais de 80% das atividades da pessoa coletiva controlada são realizadas no desempenho de funções que lhe foram confiadas pela autoridade adjudicante que a controla ou por outras pessoas coletivas controladas pela referida autoridade adjudicante; e

c)

Não há participação direta de capital privado na pessoa coletiva controlada, com exceção das formas de participação de capital privado sem poderes de controlo e sem bloqueio exigidas pelas disposições legislativas nacionais, em conformidade com os Tratados, e que não exercem influência decisiva na pessoa coletiva controlada.

[…]

3.   Uma autoridade adjudicante que não exerce controlo sobre uma pessoa coletiva de direito público ou privado na aceção do n.o 1 pode, no entanto, adjudicar um contrato público sem aplicar a presente diretiva a essa pessoa coletiva quando estiverem preenchidas todas as seguintes condições:

a)

A autoridade adjudicante, conjuntamente com outras autoridades adjudicantes, exerce sobre a pessoa coletiva em causa um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços;

b)

Mais de 80 % das atividades da pessoa coletiva em causa são realizadas no desempenho de funções que lhe foram confiadas pelas autoridades adjudicantes que a controlam ou por outras pessoas coletivas controladas pelas mesmas autoridades adjudicantes;

[…]

Para efeitos da alínea a) do primeiro parágrafo, considera‑se que as autoridades adjudicantes exercem conjuntamente um controlo sobre uma pessoa coletiva quando estiverem preenchidas todas as seguintes condições:

i)

os órgãos de decisão da pessoa coletiva controlada são compostos por representantes de todas as autoridades adjudicantes participantes. Várias ou todas as autoridades adjudicantes participantes podem fazer‑se representar por representantes individuais,

ii)

essas autoridades adjudicantes podem exercer conjuntamente uma influência decisiva sobre os objetivos estratégicos e as decisões relevantes da pessoa coletiva controlada,

iii)

a pessoa coletiva controlada não persegue quaisquer interesses contrários aos interesses das autoridades adjudicantes que a controlam.

4.   Um contrato celebrado exclusivamente entre duas ou mais autoridades adjudicantes não releva do âmbito de aplicação da presente diretiva quando estiverem preenchidas todas as seguintes condições:

a)

O contrato estabelece ou executa uma cooperação entre as autoridades adjudicantes participantes, a fim de assegurar que os serviços públicos que lhes cabe executar sejam prestados com o propósito de alcançar os objetivos que têm em comum;

b)

A execução da referida cooperação é unicamente regida por considerações de interesse público; e

c)

As autoridades adjudicantes participantes exercem no mercado livre menos de 20 % das atividades abrangidas pela cooperação.

[…]»

II. Matéria de facto, processos e questões prejudiciais

7.

A Société de logement de service public Sambre & Biesme ( 3 ) é uma entidade pública sob a forma jurídica de sociedade cooperativa de responsabilidade limitada. Os seus acionistas principais são os municípios de Farciennes e de Aiseau‑Presles. Insere‑se na rede das sociedades de habitação de serviço público da Valónia (Bélgica).

8.

Em 2015, a SLSP Sambre e Biesme e o município de Farciennes decidiram construir um «bairro ecológico» em Farciennes, com cerca de 150 habitações, públicas e privadas. Tendo em conta a dimensão do projeto, as partes solicitaram a assistência da Intercommunale pour la gestion et la réalisation d’études techniques et économiques ( 4 ), entidade que assume igualmente a forma jurídica de sociedade cooperativa de responsabilidade limitada.

9.

A IGRETEC é composta exclusivamente por pessoas coletivas de direito público. Em 2016 contava, entre os seus sócios, com mais de 70 municípios (designadamente o município de Farciennes) e mais de 50 «autoridades públicas» de outra natureza. Os municípios detinham 5054351 participações sociais com direito de voto e as outras autoridades públicas dispunham de 17126 participações sociais análogas.

10.

Os estatutos da IGRETEC reservam aos municípios a maioria dos votos e a presidência dos diferentes órgãos de gestão. As decisões destes órgãos são tomadas por maioria dos votos dos sócios municipais.

11.

À época dos factos, um membro da Assembleia Municipal de Farciennes, que era também administrador da SLSP Sambre e Biesme, fazia parte do conselho de administração da IGRETEC.

12.

Em 29 de outubro de 2015, a SLSP Sambre e Biesme decidiu adquirir apenas uma participação social da IGRETEC, no montante de 6,20 euros, para beneficiar dos seus serviços. Assim, obteve a qualidade de sócio da sociedade intermunicipal, apesar de a sua participação ser meramente simbólica ( 5 ).

13.

Em janeiro de 2017, o município de Farciennes e a SLSP Sambre e Biesme elaboraram um projeto de convenção‑quadro para determinar os seus respetivos direitos e deveres na conceção e execução do bairro ecológico em Farciennes. A convenção continha as seguintes cláusulas:

Nos termos do seu artigo 1.o, as partes decidiram adjudicar conjuntamente contratos públicos de serviços, de obras e de promoção de obras, e designar o município de Farciennes para atuar na qualidade de autoridade adjudicante em seu nome e para tomar, por si só, qualquer decisão relativa à adjudicação dos contratos.

Nos termos do seu artigo 5.o ( 6 ), «as partes acordam que o município de Farciennes celebra com a IGRETEC […] uma convenção de assistência ao dono da obra, de prestação de serviços jurídicos e em matéria ambiental, no âmbito da relação in house que une cada uma das partes à referida sociedade intermunicipal».

A fim de coordenar a tomada de decisões no âmbito da execução da convenção‑quadro, o seu anexo constituía um comité de direção ( 7 ).

A IGRETEC, mesmo não sendo signatária da convenção‑quadro, além de estar representada no comité de direção, seria responsável pelo seu secretariado.

14.

Em 9 de fevereiro de 2017, o conselho de administração da SLSP Sambre e Biesme decidiu: a) «aprovar a celebração de uma convenção‑quadro de contratos conjuntos com o município de Farciennes»; e b) «não abrir concurso para o contrato público dos serviços de inventário do amianto», cujo caderno de encargos especial tinha sido anteriormente aprovado, «atendendo à relação in house entre a [SLSP Sambre e Biesme] e a IGRETEC». O caderno de encargos é descrito como a primeira fase de execução do projeto de bairro ecológico em Farciennes.

15.

Em 10 de fevereiro de 2017, o comissário da SWL afetado à SLSP Sambre e Biesme interpôs recurso na própria SWL contra as duas decisões acima referidas (a seguir «decisões controvertidas»). A SWL atua em nome do Governo da Valónia na qualidade de autoridade de supervisão das sociedades de habitação de serviço público.

16.

Em 25 de fevereiro de 2017, a SWL anulou as decisões controvertidas, pelo facto de ter sido atribuído à IGRETEC sem concurso o contrato de assistência técnica (artigo 5.o da convenção‑quadro) e o contrato dos serviços de inventário do amianto.

17.

A SWL considera que:

é razoável duvidar que a SLSP Sambre e Biesme exerça sobre a IGRETEC uma influência determinante, na medida em que possui uma única participação no capital social desta última, cujos estatutos conferem uma posição predominante aos municípios.

a designação do município de Farciennes como autoridade adjudicante piloto (artigo 1.o da convenção‑quadro) não é suficiente para justificar a adjudicação direta dos contratos à IGRETEC, em nome das diferentes partes na convenção, mesmo que o município de Farciennes beneficie individualmente da exceção «in house» nas suas relações com a IGRETEC. No âmbito de um contrato conjunto, os diferentes cocontratantes juntam‑se para a realização da encomenda, mas cada um deve cumprir os procedimentos habituais relativos aos contratos.

18.

Uma vez que os acordos da SWL são suscetíveis de recurso para o órgão jurisdicional administrativo, a SLSP Sambre e Biesme e o município de Farciennes impugnaram separadamente a anulação das decisões controvertidas.

19.

O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), chamado a pronunciar‑se sobre esses recursos, submete ao Tribunal de Justiça dois pedidos de decisão prejudicial.

20.

Quanto ao primeiro (processo C‑383/21), submete as seguintes questões:

«1)

Deve o artigo 12.o, n.o 3, da Diretiva 2014/24/UE […] ser interpretado no sentido de que produz efeito direto?

2)

Em caso de resposta afirmativa a esta primeira questão, deve o artigo 12.o, n.o 3, ser interpretado no sentido de que a condição para uma autoridade adjudicante, neste caso, uma sociedade de habitação de serviço público, ser representada nos órgãos decisórios da pessoa coletiva controlada, neste caso, uma sociedade cooperativa intermunicipal, é preenchida pelo simples facto de uma pessoa com assento no conselho de administração desta sociedade cooperativa intermunicipal na qualidade de conselheiro municipal de outra autoridade adjudicante participante, neste caso, um município, ser, devido a circunstâncias exclusivamente factuais e sem garantia jurídica de representação, igualmente administrador da sociedade de habitação de serviço público, enquanto o município é acionista (não exclusivo) tanto da entidade controlada (sociedade cooperativa intermunicipal) como da sociedade de habitação de serviço público?

3)

Em caso de resposta negativa à primeira questão submetida, deve considerar‑se que uma autoridade adjudicante, neste caso, uma sociedade de habitação de serviço público, “participa” nos órgãos decisórios da pessoa coletiva controlada, neste caso, uma sociedade cooperativa intermunicipal, pelo simples facto de uma pessoa com assento no conselho de administração desta sociedade cooperativa intermunicipal na qualidade de conselheiro municipal de outra autoridade adjudicante participante, neste caso, um município, ser, devido a circunstâncias exclusivamente factuais e sem garantia jurídica de representação, igualmente administrador da sociedade de habitação de serviço público, enquanto o município é acionista (não exclusivo) tanto da entidade controlada (sociedade cooperativa intermunicipal) como da sociedade de habitação de serviço público?»

21.

No segundo pedido de decisão prejudicial (processo C‑384/21), o órgão jurisdicional de reenvio, além das acima referidas, submete as seguintes questões:

«4)

Deve o artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24/UE […] ser interpretado no sentido de que produz efeito direto?

5)

Em caso de resposta afirmativa a esta questão, deve o artigo 12.o, n.o 4, da referida Diretiva 2014/24/UE ser interpretado no sentido de que permite confiar, sem abertura prévia à concorrência, missões de assistência ao dono da obra, de prestação de serviços jurídicos e em matéria ambiental a uma autoridade adjudicante, neste caso, uma sociedade cooperativa intermunicipal, quando essas missões se inscrevem no âmbito de uma cooperação entre duas autoridades adjudicantes, neste caso, um município e uma sociedade de habitação de serviço público, [quando] não é contestado que o município exerce um controlo “in house conjunto” sobre a sociedade cooperativa intermunicipal e [quando] o município e a sociedade de habitação de serviço público são membros da sociedade cooperativa intermunicipal no setor de atividades “gabinete de estudos e de gestão e central de compras” do seu objeto social a que dizem precisamente respeito as missões que estas desejam confiar‑lhe, missões que correspondem a atividades efetuadas no mercado por gabinetes de estudos e de gestão especializados em conceção, realização e execução de projetos?»

III. Tramitação dos processos no Tribunal de Justiça

22.

Os pedidos de decisão prejudicial deram entrada no Tribunal de Justiça em 24 de junho de 2021. Foram apensados para efeitos das fases escrita e oral do processo, bem como para efeitos do acórdão.

23.

Apresentaram observações escritas a SLSP Sambre e Biesme, o município de Farciennes, o Governo belga e a Comissão. Todos intervieram na audiência que teve lugar em 30 de março de 2022.

IV. Análise

A.   Preliminar

24.

Por indicação do Tribunal de Justiça, estas conclusões abordarão a primeira questão dos dois processos e a quarta e quinta questões do segundo processo.

B.   Primeira questão prejudicial do processo C‑383/21 e primeira e quarta questões prejudiciais do processo C‑384/21

25.

O órgão jurisdicional de reenvio explica que a lei belga que transpõe a Diretiva 2014/24 para o direito interno ainda não estava em vigor no momento dos factos controvertidos, embora o prazo de transposição já tivesse terminado ( 8 ).

26.

As recorrentes em cada um dos dois recursos sustentam que o artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24 tem efeito direto, uma vez que contém disposições incondicionais e suficientemente precisas que criam direitos para os particulares e que estes podem invocar contra o Estado e todos os órgãos da sua Administração ( 9 ).

27.

O Governo belga e a Comissão ( 10 ) são de opinião contrária. Alegam que o artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24 não preenche os requisitos para produzir efeito direto, na medida em que, em suma:

As autoridades adjudicantes e os organismos de direito público abrangidos pelas diretivas relativas aos contratos públicos não são «particulares» beneficiários de direitos que poderiam invocar contra o Estado.

Essas disposições não preveem uma obrigação de atuar ou de não atuar a cargo do Estado e em benefício dos operadores económicos.

28.

O resultado que apresentarei em seguida (a aplicação ao presente litígio do artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24) seria alcançado, na prática, tanto se se admitisse que o eventual efeito direto destes números beneficia as entidades públicas em causa, que poderiam invocá‑lo contra o Estado, como se se entendesse simplesmente que, na falta de transposição dentro do prazo dessa diretiva, essas entidades estavam vinculadas pelas referidas disposições. Parece‑me que esta última tese é a correta.

1. Efeito direto, caráter incondicional e invocabilidade pelas autoridades públicas do artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24

29.

A meu ver, a abordagem subjacente a estas questões prejudiciais não é a mais adequada. Se o fosse, a resposta deveria seguir a posição defendida pela SWL no litígio de origem e apoiada pelo Governo belga e pela Comissão no âmbito desse processo.

30.

Para sustentar essa posição, recordo que a doutrina do chamado «efeito direto», desenvolvida pelo Tribunal de Justiça relativamente às diretivas, tem por objetivo primordial proteger os particulares. Permite‑lhes exercer direitos que lhes são conferidos pelas diretivas e que não poderiam reivindicar de outra forma, devido à falta das medidas de execução necessárias a nível nacional.

31.

A jurisprudência constante do Tribunal de Justiça sobre o efeito direto das diretivas, em especial as não transpostas nos prazos ou as incorretamente transpostas, determina quem pode invocar esse efeito direto e em que condições.

32.

No recente Acórdão de 8 de março de 2022, o Tribunal de Justiça declarou:

«sempre que as disposições de uma diretiva se afigurem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar nos tribunais nacionais contra o Estado, quer quando este não as tenha transposto para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva, quer quando delas tenha feito uma transposição incorreta […]» ( 11 );

«[…] uma disposição do direito da União é, por um lado, incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem está subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, é suficientemente precisa para ser invocada por um litigante e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos […]» ( 12 );

«[…] ainda que uma diretiva confira aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação na adoção das modalidades da sua aplicação, pode considerar‑se que uma disposição dessa diretiva tem caráter incondicional e preciso quando impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa, que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela enunciada […]» ( 13 ).

33.

Ora, à luz destas premissas, considero que as entidades públicas, como o município de Farciennes e a SLSP Sambre e Biesme, que são apenas uma emanação do Estado em sentido amplo, não podem invocar contra este o (hipotético) efeito direto do artigo 12.o da Diretiva 2014/24.

34.

Por um lado, mesmo admitindo que este artigo incorpora, nos seus n.os 3 e 4, uma formulação «suficientemente precisa», dificilmente se poderia afirmar que apresenta um caráter «incondicional» e que impõe uma obrigação inequívoca aos Estados‑Membros. Pelo contrário, autoriza esses Estados a excluir, se o considerarem oportuno, do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24, os contratos celebrados entre entidades do setor público.

35.

O Tribunal de Justiça explica como o artigo 12.o, n.o 1, da Diretiva 2014/24, «que se limita […] a precisar as condições que uma autoridade adjudicante deve cumprir quando deseja celebrar uma transação interna, apenas tem por efeito habilitar os Estados‑Membros a excluir essa transação do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24» ( 14 ).

36.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça afirma que a Diretiva 2014/24 «não obriga os Estados‑Membros a recorrer a um processo de contratação pública» e «não os pode obrigar a recorrer a uma transação interna quando as condições previstas no artigo 12.o, n.o 1 estão preenchidas» ( 15 ). O mesmo se aplica aos n.os 3 e 4 deste artigo.

37.

Essa afirmação é coerente com a liberdade dos Estados‑Membros «quanto à escolha da forma de prestação de serviços através da qual as autoridades adjudicantes proverão às suas próprias necessidades» ( 16 ).

38.

Por outro lado, como já referi, as entidades municipais e os organismos de direito público (mesmo sob a forma de sociedades comerciais) não podem invocar, contra o Estado, o alegado «efeito direto» do artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24. Nas suas relações com os organismos estatais que controlam as suas decisões, as entidades municipais não são «particulares» que possam beneficiar desse efeito.

39.

Por estes motivos, e embora considere desnecessária uma resposta neste litígio sobre o efeito direto do artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24, se o Tribunal de Justiça decidir abordar essa questão, que foi longamente debatida na audiência, concordo com a opinião aí defendida pelo Governo belga e pela Comissão.

40.

O artigo 12.o da Diretiva 2014/24 fixa as condições mínimas de uma faculdade cujo exercício, insisto, pode ser totalmente excluído pelos Estados‑Membros. Não se optando pela exclusão, a única possibilidade de efeito direto desse artigo 12.o (que só poderia ser invocado por um operador económico que se considere lesado) seria aquela em que uma autoridade adjudicante procuraria contornar a legislação relativa aos contratos públicos e proceder a uma transação interna ou a uma cooperação horizontal perante o não preenchimento das condições mínimas impostas pelo referido artigo.

2. Aplicação do artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24 às autoridades públicas

41.

Todavia, não decorre do exposto que o artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24 não seja aplicável no presente processo.

42.

Para as autoridades públicas, a sujeição ao artigo 12.o, n.os 3 e 4, antes da transposição da diretiva, não decorre do eventual efeito direto que estas disposições possam ter, mas sim do «dever de todas as autoridades estatais agirem em conformidade com as disposições das diretivas (artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE) e cooperarem de forma leal e assegurarem a plena execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições (artigo 4.o, n.o 3, TUE)» ( 17 ).

43.

Por conseguinte, a resposta adequada às primeiras questões dos dois reenvios prejudiciais deve focar‑se, preferencialmente, na vinculação das autoridades públicas à Diretiva 2014/24 (se se quiser, no seu efeito obrigatório, como o qualificou a Comissão na audiência), quando ainda não tinha sido transposta apesar de o prazo ter terminado.

44.

O Tribunal de Justiça confirmou essa sujeição ( 18 ).

45.

Quanto às autoridades adjudicantes em causa nestes dois litígios, cuja natureza pública não é contestada, isso significa que estavam vinculadas pela Diretiva 2014/24 a partir da data em que deveria ter sido transposta ( 19 ).

46.

Na falta de transposição, e independentemente da questão de saber se o artigo 12.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2014/24 tem, ou não, efeito direto para que os particulares o possam invocar contra as autoridades públicas ou contra as entidades delas dependentes, estas últimas, na medida em que atuaram na qualidade de autoridades adjudicantes, estavam obrigadas a conformar‑se com as condições previstas nesta disposição.

47.

Se, para obter os serviços necessários à realização dos respetivos projetos, o município de Farciennes e a SLSP Sambre e Biesme preferiam não recorrer ao mercado e queriam evitar os procedimentos habituais no âmbito dos contratos públicos, eram aplicáveis, à data dos factos, as condições previstas no artigo 12.o da Diretiva 2014/24.

48.

Uma vez transposta a diretiva, a cooperação entre entidades públicas, vertical (in house) ou horizontal, não deverá ser sujeita aos procedimentos de contratação pública caso o Estado‑Membro, no exercício da sua liberdade, tenha decidido utilizar as possibilidades de exclusão do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24 que lhe confere o seu artigo 12.o, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça ( 20 ).

49.

Nesse contexto, quando um Estado tenha optado por admitir os mecanismos de cooperação interadministrativa excluídos dos procedimentos formalizados da Diretiva 2014/24, as suas autoridades adjudicantes terão de preencher as condições do seu artigo 12.o, n.os 3 e 4, se não pretenderem recorrer ao mercado para obter determinados serviços ou fornecimentos.

C.   Quinta questão prejudicial do processo C‑384/21

1. Objeto

50.

A quinta questão do processo C‑384/21 tem por objeto a exclusão do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24, conforme enunciada no seu artigo 12.o, n.o 4.

51.

Contrariamente ao previsto nos n.os 2 e 3 do artigo 12.o da Diretiva 2014/24, nos termos dos quais uma autoridade adjudicante (ou várias) deve ter o controlo do adjudicatário do contrato público, a exclusão do n.o 4 assenta na cooperação de autoridades adjudicantes entre as quais essa relação de controlo não existe.

52.

A questão prejudicial tem origem nos argumentos que o município de Farciennes apresentou a título subsidiário, para o caso de se considerar que, à luz da relação entre a SLSP Sambre e Biesme e a IGRETEC, as condições do artigo 12.o, n.o 3, da Diretiva não estão preenchidas ( 21 ).

53.

O município de Farciennes alega que, na falta do controlo conjunto previsto nesse número, poderia ainda ocorrer uma cooperação horizontal entre autoridades adjudicantes, em conformidade com o artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24. A cooperação entre este município, a SLSP Sambre e Biesme e a IGRETEC seria desta natureza.

54.

Da leitura das suas observações deduzo que o município de Farciennes defende duas formas de compreender as relações entre as entidades públicas em causa:

segundo a primeira, que parece preferir, existe uma cooperação horizontal que, segundo o município de Farciennes e a SLSP Sambre e Biesme, deve servir para realizar o plano de conceção do bairro ecológico e, segundo a IGRETEC, para cumprir a sua missão em benefício dos seus associados, que consiste em contribuir para os seus projetos. Por conseguinte, a convenção entre as partes visaria a realização de objetivos comuns ( 22 );

de acordo com a segunda, a relação in house entre o município e a IGRETEC implica que, quando o primeiro confia à segunda a execução de determinadas prestações, recorra aos seus próprios serviços, o que deve ser tido em conta no âmbito da sua cooperação com a SLSP Sambre e Biesme ( 23 ).

55.

Nas duas combinações, as relações estariam abrangidas pelo artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24. Consequentemente, não seria necessário um concurso público.

2. Cooperação do artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24

56.

Nos termos do seu artigo 12.o, n.o 4, um contrato público não é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24 se as três condições enumeradas nas alíneas a), b) e c) desta disposição estiverem cumulativamente preenchidas ( 24 ).

57.

As dúvidas do órgão jurisdicional nacional dizem respeito ao termo «cooperação», na aceção daquele artigo, cuja interpretação deve ser autónoma ( 25 ).

58.

Noutra ocasião ( 26 ), expliquei que a disposição retoma a jurisprudência do Tribunal de Justiça anterior à codificação, mas vai mais além: procede à sua clarificação e à sua flexibilização, aproximando, em certa medida, as suas condições às de outras fórmulas que permitem excluir da Diretiva 2014/24 determinados contratos de entidades do setor público ( 27 ).

59.

Assim se explicam as seguintes características da cooperação horizontal não sujeita aos processos formalizados de adjudicação de contratos públicos, nos termos da Diretiva 2014/24:

não se exige, como acontecia no âmbito da jurisprudência anterior ( 28 ), que a cooperação sirva para a realização conjunta de uma missão de serviço público comum a todas as autoridades adjudicantes participantes ( 29 );

admite‑se que a cooperação diga respeito (ou se materialize em) atividades de apoio dos serviços públicos, desde que contribuam para a sua realização efetiva ( 30 );

os serviços prestados pelas autoridades adjudicantes não têm de ser necessariamente idênticos. Desde que seja preenchida a condição relativa ao facto de os objetivos serem comuns, que, além disso, devem ser de interesse público, é admissível que esses serviços sejam complementares ( 31 );

quando sejam assumidos compromissos no sentido de contribuir para a execução em cooperação do serviço público, não é necessário que cada uma das partes participe de igual modo na cooperação; esta pode assentar numa divisão de tarefas ou numa certa especialização ( 32 ).

60.

Em contrapartida, é indispensável que a cooperação das partes vise a realização de objetivos comuns a todas elas. Este é um elemento essencial da cooperação horizontal, que estabelece uma diferença relativamente à adjudicação direta a entidades controladas pela autoridade adjudicante.

61.

Foi esse o entendimento do Tribunal de Justiça no Acórdão Remondis II, referindo‑se à «dimensão intrinsecamente colaborativa» da cooperação do artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24. Essa dimensão concretiza‑se, entre outras coisas, na preparação do acordo de cooperação através da definição de necessidades comuns e da identificação de soluções para as mesmas ( 33 ).

62.

Além disso, a cooperação horizontal assenta num conceito de cooperação, isto é, traduz‑se em compromissos recíprocos dos participantes. Esses compromissos vão além da execução de um determinado serviço, por um lado, e da sua remuneração, por outro, tal como esclarecido no Acórdão Remondis II ( 34 ).

63.

A expressão «conceito de cooperação», explícita no considerando 33 da Diretiva 2014/24, equivale às propostas que exigem uma «cooperação efetiva», e em que esta «envolv[a] direitos e obrigações mútuos das partes» ( 35 ). Está excluída a possibilidade de uma das autoridades adjudicantes ser «um mero adquirente» ( 36 ) da obra, do serviço ou do fornecimento em causa.

64.

A natureza efetiva da cooperação é essencial em qualquer acordo que pretenda ser abrangido pelo artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24. Essa característica permitirá distinguir esta modalidade de cooperação horizontal da cooperação vertical (in house) e também dos contratos sujeitos aos procedimentos de adjudicação de contratos públicos, em que uma das partes realiza uma missão segundo as especificações fixadas pela outra, que se limita, por seu turno, a proceder ao pagamento de uma remuneração ( 37 ).

3. No processo de origem

a) Primeiro cenário

65.

O município de Farciennes apresenta um primeiro cenário para defender a existência de uma relação de cooperação horizontal entre ele próprio, a SLSP Sambre e Biesme e a IGRETEC.

66.

Em suma, recordo que:

A SLSP Sambre e Biesme e o município de Farciennes tomaram a iniciativa de realizarem conjuntamente os respetivos projetos de reabilitação de habitações e de renovação urbana de um determinado bairro.

Para esse efeito, celebraram uma convenção‑quadro relativa aos contratos, da qual a IGRETEC não foi signatária.

A inclusão da IGRETEC resulta da encomenda dos serviços necessários à execução do projeto do bairro ecológico. Essa encomenda vem na sequência da decisão das duas autoridades adjudicantes de se juntarem para a realização desse projeto.

67.

Em meu entender, a relação trilateral assim descrita não é abrangida pelo artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24. Neste ponto, concordo com o órgão jurisdicional de reenvio, no sentido de que «o simples facto de a [IGRETEC] exercer missões no âmbito da convenção celebrada entre o município de Farciennes e a SLSP Sambre & Biesme para a realização de um projeto comum de conceção do bairro ecológico em Farciennes não significa que a IGRETEC coopere, por si só, no projeto ou que prossiga um objetivo comum com as partes signatárias dessa convenção» ( 38 ).

68.

São diversos os motivos que me levam a corroborar esta apreciação do órgão jurisdicional de reenvio, igualmente partilhada pela Comissão, à luz da descrição dos factos efetuada por esse órgão jurisdicional. Importa salientar que é a este último que compete exclusivamente fixar o quadro factual do litígio, o que implica avaliar a intervenção dos sujeitos em conflito e a finalidade prosseguida por cada um deles.

69.

Em primeiro lugar, como salienta o órgão jurisdicional a quo nos termos que acabo de descrever, não existe uma comunidade de objetivos que justifique uma cooperação das três entidades, na aceção do artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24 ( 39 ).

70.

A análise dos estatutos da IGRETEC e da sua intervenção nos projetos controvertidos leva o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) a salientar que as missões realizadas neste processo pela IGRETEC estão incluídas no «setor I» do seu objeto social, ou seja, são atividades prestadas no mercado por gabinetes de estudos e de gestão especializados na execução de projetos, e não no «setor II», relativo ao desenvolvimento económico, social e turístico da região e, em especial, à construção, ao financiamento e à utilização de determinados imóveis ( 40 ).

71.

Em segundo lugar, também não se verifica a dimensão colaborativa que se traduz, num primeiro momento, na definição das necessidades e soluções comuns às partes que pretendam cooperar. Nessa fase, a intervenção profissional da IGRETEC pode servir para permitir ao município de Farciennes e à SLSP Sambre e Biesme identificar e compreender quais são as necessidades do projeto de bairro ecológico que ambos pretendem criar. Em contrapartida, para a IGRETEC, trata‑se de necessidades alheias.

72.

Em terceiro lugar, a estratégia sobre a melhor forma de partilhar e utilizar em comum os recursos das partes parece‑me limitada ao município de Farciennes e à SLSP Sambre e Biesme, ainda que operem no âmbito de opções propostas pela IGRETEC ( 41 ). Na realidade, esta última não presta serviços públicos de forma conjunta com esse município e com a SLSP Sambre e Biesme.

73.

Por último, a inclusão da IGRETEC na relação entre as duas autoridades adjudicantes ( 42 ) através da convenção de assistência para a gestão de projetos e de serviços jurídicos e em matéria ambiental não preenche as condições de uma cooperação efetiva. Com essa convenção, o município de Farciennes e a SLSP Sambre e Biesme não se comprometem, no que respeita à IGRETEC, em nada além do que fariam no âmbito de um concurso público: exigem a prestação de serviços que a IGRETEC oferece, assumindo em contrapartida, como única obrigação, a de pagamento.

b) Segundo cenário

74.

O segundo cenário prevê uma conjugação entre cooperação horizontal e cooperação vertical, em que a IGRETEC, controlada por um dos dois participantes na cooperação horizontal (o município de Farciennes), realiza igualmente uma prestação para o outro (a SLSP Sambre e Biesme) e é remunerada por ambos.

75.

Na opinião do município de Farciennes, quando confia à IGRETEC a assistência na gestão de projetos, de serviços jurídicos e em matéria de ambiente, utiliza os recursos próprios desse município. Este aspeto deveria também ser tido em consideração no âmbito da cooperação entre o próprio e a SLSP Sambre e Biesme.

76.

Não me parece ser possível aceitar este argumento, que o próprio município de Farciennes apresenta a título secundário (no âmbito de um argumento que, por sua vez, é subsidiário da tese principal) e que, talvez por esse motivo, não desenvolve em maior profundidade.

77.

Se bem entendo a posição do município de Farciennes, o que defende é que as duas entidades que são parte na relação de cooperação vertical (a IGRETEC e o próprio município) são, por força dessa relação, apenas uma entidade para efeitos da cooperação horizontal com um terceiro ( 43 ). Consequentemente, não seria necessário que ambas fossem signatárias da convenção‑quadro com a SLSP Sambre e Biesme.

78.

Discordo dessa argumentação. No âmbito da cooperação vertical (in house), a autoridade adjudicante e a entidade instrumental sobre a qual exerce um controlo análogo ao que detém sobre os seus próprios serviços são entidades formalmente distintas, tanto antes como depois da celebração de um contrato público.

79.

Assim, a existência de uma relação in house entre o município de Farciennes e a IGRETEC não é suficiente para que se considerem preenchidas as condições da cooperação horizontal com a SLSP Sambre e Biesme.

V. Conclusão

80.

À luz do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, atuando como Supremo Tribunal do contencioso administrativo, Bélgica) nos seguintes termos:

«1)

Uma autoridade adjudicante que pretenda atribuir um contrato público abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE sem se submeter aos processos de adjudicação nela previstos deve cumprir as condições estabelecidas no seu artigo 12.o a partir da data‑limite de transposição da diretiva para o direito interno se, nesse momento, essa transposição não tiver ocorrido.

2)

O artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24, deve ser interpretado no sentido de que:

exclui a existência de uma cooperação entre autoridades adjudicantes quando a relação que as une, no âmbito da qual se comprometem a prestar os respetivos serviços, não prossegue objetivos comuns a todas elas;

não abrange uma relação entre autoridades adjudicantes independentes em que uma obtém da outra um serviço em contrapartida, exclusivamente, de uma remuneração em dinheiro.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65), conforme alterada pelo Regulamento Delegado (UE) 2015/2170 da Comissão, de 24 de novembro de 2015 (JO 2015, L 307, p. 5).

( 3 ) Sociedade de habitação de serviço público Sambre e Biesme (a seguir «SLSP Sambre e Biesme»).

( 4 ) Intermunicipal para a gestão e a realização de estudos técnicos e financeiros (a seguir «IGRETEC»).

( 5 ) Representava 0,0000000197 % das participações sociais com direito de voto (p. 26 do despacho de reenvio do processo C‑383/21) e 0,0000049 % das participações sociais (p. 39 do despacho de reenvio do processo C‑384/21).

( 6 ) Intitulado «Escolha da assistência ao dono da obra para a execução de contratos de serviços, de obras e de promoção de obras e para a realização do processo de revitalização urbana».

( 7 ) O comité de direção é composto por quatro representantes do município de Farciennes, dois da SLSP Sambre e Biesme, dois da IGRETEC e dois da Société wallonne du logement (Sociedade de habitação da Valónia, a seguir «SWL»). As decisões do comité são aprovadas por consenso.

( 8 ) A data‑limite de transposição da Diretiva 2014/24 para o direito nacional era 18 de abril de 2016. A lei belga de transposição foi aprovada em 17 de junho de 2016. É aplicável desde 30 de junho de 2017, após a entrada em vigor de um decreto de execução de 18 de abril de 2017.

( 9 ) Observações do município de Farciennes, n.os 33 e segs.; e da SLSP Sambre e Biesme, n.os 34 e segs.

( 10 ) Observações do Governo belga, n.os 17 e segs., bem como n.os 80 e segs.; da Comissão, n.os 12 e segs. A SLW tinha defendido a mesma tese perante o órgão jurisdicional de reenvo.

( 11 ) Acórdão proferido no processo Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto) (C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 17).

( 12 ) Ibidem, n.o 18.

( 13 ) Ibidem, n.o 19.

( 14 ) Acórdão de 3 de outubro de 2019, Irgita (C‑285/18, a seguir «Acórdão Irgita, EU:C:2019:829, n.o 43, o sublinhado é meu). Posteriormente, Despacho de 6 de fevereiro de 2020, Pia Opera Croce Verde Padova (C‑11/19, EU:C:2020:88, n.os 40 a 46).

( 15 ) Acórdão Irgita, n.o 46.

( 16 ) Acórdão Irgita n.o 45, com referência ao considerando 5 da Diretiva 2014/24, nos termos do qual «nada na presente diretiva obriga os Estados‑Membros a confiar a terceiros, mediante contrato, ou a externalizar a prestação de serviços que pretendam eles próprios prestar ou organizar por meios diferentes dos contratos públicos na aceção da presente diretiva».

( 17 ) Quanto a este aspeto, sigo as Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:623, n.o 52).

( 18 ) Acórdão de 12 de dezembro de 2013, Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 34).

( 19 ) Após a transposição (correta), as normas relativas aos contratos públicos e as suas exceções são as previstas pela legislação nacional. Na audiência, esclareceu‑se que o legislador belga retomou substancialmente o conteúdo do artigo 12.o da Diretiva 2014/24 na Lei de 17 de junho de 2016. No entanto, poderia não o ter feito. Por conseguinte, é (teoricamente) plausível uma transposição em que a faculdade de exclusão prevista no artigo 12.o não seja exercida.

( 20 ) É habitual exigir que esta interpretação seja estrita, alegando‑se que as hipóteses do artigo 12.o da Diretiva 2014/24 são «exceções» ou «derrogações» à aplicação desta. Sem entrar agora na questão de saber qual deve ser a orientação da exegese, devo reiterar que este artigo delimita o âmbito de aplicação da diretiva. Em bom rigor, não constitui uma exceção à mesma (v. as minhas Conclusões no processo Informatikgesellschaft für Software‑Entwicklung, C‑796/18, EU:C:2020:47, n.os 37 e 38).

( 21 ) Resulta do enunciado da questão que, para o órgão jurisdicional de reenvio, o município de Farciennes exerce sobre a IGRETEC um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços, mas não é esse o caso na relação da SLSP Sambre e Biesme com a IGRETEC.

( 22 ) Observações do município de Farciennes, n.os 115 e segs., especialmente os n.os 143 e 145.

( 23 ) Ibidem, n.os 115 e segs., especialmente os n.os 139 e 140.

( 24 ) Além dessas condições, a cooperação interadministrativa deve, em todo o caso, respeitar as regras fundamentais do TFUE, nomeadamente as relativas à livre circulação de mercadorias, à liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços, bem como aos princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Sobre a proibição de uma cooperação entre autoridades adjudicadoras que tenha por efeito colocar uma empresa privada numa situação privilegiada em relação aos seus concorrentes, ver Acórdão de 28 de maio de 2020, Informatikgesellschaft für Software‑Entwicklung (C‑796/18, EU:C:2020:395, n.os 63 e segs. e n.o 3 do dispositivo).

( 25 ) Acórdão de 4 de junho de 2020, Remondis (C‑429/19, EU:C:2020:436, a seguir «Acórdão Remondis II», n.o 24).

( 26 ) Conclusões do processo Informatikgesellschaft für Software‑Entwicklung (C‑796/18, EU:C:2020:47, n.os 26 a 28).

( 27 ) Antes da Diretiva 2014/24, o Tribunal de Justiça tinha‑se recusado a reconhecer uma cooperação horizontal no âmbito da adjudicação direta de contratos relativos a prestações de apoio a um serviço público, como a realização de estudos de arquitetura ou de engenharia e a limpeza de escritórios: v. Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Ordine degli Ingegneri della Provincia di Lecce e o. (C‑159/11, EU:C:2012:817), para o primeiro; e Acórdão de 13 de junho de 2013, Piepenbrock (C‑386/11, EU:C:2013:385), para o segundo. Todavia, poder‑se‑ia argumentar que o motivo dessa recusa residia não no caráter auxiliar da prestação, mas na falta de orientação do acordo inter partes para a execução conjunta de missões de serviço público comum: remeto para o n.o 34 do Acórdão Ordine degli Ingegneri della Provincia di Lecce e o. e para o n.o 39 do Acórdão Piepenbrock. Em todo o caso, a restrição desapareceu na diretiva em vigor.

( 28 ) Além dos referidos na nota anterior, v. Acórdão de 9 de junho de 2009, Comissão/Alemanha (C‑480/06, EU:C:2009:357, n.o 37); Acórdão de 8 de maio de 2014, Datenlotsen Informationssysteme (C‑15/13, EU:C:2014:303, n.o 35). Foi também esta a posição defendida pela Comissão na sua proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos contratos públicos (COM/2011/0896 final), artigo 11.o, n.o 4, alínea a).

( 29 ) Acórdão de 28 de maio de 2020, Informatikgesellschaft für Software‑Entwicklung (C‑796/18, EU:C:2020:395), n.os 57 e 58 e dispositivo.

( 30 ) Ibidem, n.os 59 e 60 e dispositivo. Nas minhas Conclusões nesse processo (C‑796/18, EU:C:2020:47, n.os 84 e 85), defendi que as atividades de apoio deveriam estar «imediat[a] e inseparavelmente ligadas ao serviço público», revestindo «um caráter instrumental com tal grau de intensidade que o próprio serviço depende delas para ser executado enquanto serviço público». Embora a formulação do Tribunal de Justiça seja diferente, não me parece mais permissiva.

( 31 ) Como exemplos de serviços complementares, podem indicar‑se as atividades de recolha e de tratamento de resíduos, a que se refere o Acórdão de 9 de junho de 2009, Comissão/Alemanha (C‑480/06, EU:C:2009:357); ou as de ensino e de investigação próprias das universidades públicas, como salientou o advogado‑geral P. Mengozzi nas suas Conclusões no processo Datenlotsen Informationssysteme (C‑15/13, EU:C:2014:23, n.o 59). Na prática, a flexibilidade concedida pela Diretiva 2014/24 pode revelar‑se inoperante, quando a diferença na substância dos serviços a cargo de cada autoridade adjudicante não lhes permita definir objetivos comuns a todas elas. Nesse caso, faltaria um elemento indispensável da cooperação. É igualmente concebível que tal diferença impeça a realização dos respetivos serviços em cooperação, por falta de interesse de uma autoridade adjudicante nas prestações oferecidas pela outra, ou porque a complementaridade não é recíproca, mas sim unilateral. Nesse contexto, se a relação entre as partes se limita a que a autoridade adjudicante interessada no serviço da outra o adquira em troca de um preço, não há cooperação na aceção do artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24. Provavelmente, também não se poderia considerar que se trata de uma interação regida unicamente por considerações de interesse público, como exige a alínea b) do mesmo número: receber um montante como contrapartida de uma prestação não constitui um objetivo de interesse público. A referência a serviços complementares (mais concretamente a «missões» de serviço público) surge no considerando 14 (aa) da proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos contratos públicos, anexa à nota do Secretariado‑Geral, Documento do Conselho 14971/12, de 19 de outubro de 2012. A exclusão da cooperação da diretiva estava expressamente subordinada à condição de os serviços complementares poderem ser realizados «em cooperação». Dada a sua natureza redundante, o desaparecimento da condição do texto final é irrelevante.

( 32 ) Considerando 33, terceiro parágrafo, da Diretiva 2014/24. A ideia já aparecia no documento de trabalho dos serviços da Comissão relativo à aplicação do direito dos contratos públicos da União Europeia às relações entre autoridades adjudicantes (cooperação no setor público), SEC(2011) 1169 final, de 4 outubro de 2011, n.o 3.3.2

( 33 ) Acórdão Remondis II, n.os 32 e 33.

( 34 ) Ibidem, n.o 27.

( 35 ) Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos contratos públicos, de 20 de dezembro de 2011 [COM(2011) 896 final], artigo 11.o, n.o 4, alínea a).

( 36 ) A expressão consta da nota do Secretariado‑Geral, Documento do Conselho 9315/12, de 27 de abril de 2012, p. 38. No Acórdão Remondis II, corresponde ao n.o 29.

( 37 ) A cooperação horizontal não exclui as transferências financeiras entre os participantes, mas sim, insisto, que a contribuição de um deles esteja associada a um simples pagamento.

( 38 ) Despacho de reenvio do processo C‑384/21, p. 56.

( 39 ) Despacho de reenvio do processo C‑384/21, p. 56. As observações das partes não revelam uma finalidade comum a todos, se é que existe, e essa finalidade não é evidente para um observador externo. Em meu entender, estes processos ilustram as dificuldades que evoquei na nota n.o 31. Um exemplo de cooperação para (e através da) prestação de serviços complementares com a mesma finalidade é o contrato analisado no Acórdão de 9 de junho de 2009, Comissão/Alemanha (C‑480/06, EU:C:2009:357): v. seu n.o 37. O objetivo comum consistia na racionalização do tratamento de resíduos, numa instalação o mais próxima possível.

( 40 ) Despacho de reenvio do processo C‑384/21, pp. 56 e 57. Todavia, importa chamar a atenção para o facto de, nos termos do artigo 12.o, um pressuposto da exclusão do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/24 consistir em que exista, para a autoridade adjudicante, a opção de obter o serviço através da cooperação interadministrativa (vertical ou horizontal) ou recorrendo ao mercado. Em geral, as prestações obtidas através da cooperação entre entidades públicas podem (também) ser obtidas no mercado.

( 41 ) As suas propostas diziam respeito a aspetos como o número de habitações, a demolição ou a reabilitação das existentes, o recurso a investimentos privados, o tipo de contrato público e outros aspetos análogos.

( 42 ) Na realidade, como dá a entender a Comissão (n.o 33 das suas observações escritas), a IGRETEC não surge como autoridade adjudicante. Desconhece‑se qual poderia ser a prestação que a IGRETEC «adquire» e que, na falta da cooperação, deveria adjudicar através de concurso.

( 43 ) N.o 146, in fine das observações do município de Farciennes: «Por definição, a relação in house permite equiparar a [IGRETEC] ao município de Farciennes». Embora, na audiência, a representante do município tenha evocado um «nexo funcional e orgânico» entre as duas entidades, manteve a argumentação relativa à relação in house entre elas.

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