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Document 62021CC0378

Conclusões da advogada-geral J. Kokott apresentadas em 8 de setembro de 2022.
P GmbH contra Finanzamt Österreich.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzgericht.
Reenvio prejudicial — Harmonização das legislações fiscais — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 203 — Regularização da declaração de IVA — Beneficiários de serviços que não podem invocar o direito à dedução — Inexistência de risco de perda de receitas fiscais.
Processo C-378/21.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:657

 CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 8 de setembro de 2022 ( 1 )

Processo C‑378/21

P GmbH

sendo interveniente:

Finanzamt Österreich

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzgericht (Tribunal Tributário Federal, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Imposto sobre o valor acrescentado — Erro sobre a taxa do imposto aplicável — Regularização da dívida fiscal — Impossibilidade factual de retificar faturas já emitidas — Desnecessidade de retificar as faturas quando os destinatários das prestações não são sujeitos passivos — Inexistência de risco de perda de receitas fiscais — Exceção de enriquecimento sem causa»

I. Introdução

1.

A legislação em matéria de IVA é um domínio do direito que apresenta riscos para os sujeitos passivos, que, na realidade, só devem cobrar este imposto aos seus clientes por conta do Estado. Se, por exemplo, o sujeito passivo se basear erradamente numa taxa de imposto demasiado baixa, este é, não obstante, devedor do montante de imposto correto (mais elevado), que deve entregar ao Estado. O mesmo se aplica quando, por razões de facto e/ou de direito, o sujeito passivo não tem a possibilidade de repercutir a posteriori o IVA mais elevado sobre os seus clientes.

2.

Neste processo de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça deve agora pronunciar‑se sobre um caso inverso em que o sujeito passivo aplicou erradamente, ao longo de um ano inteiro, uma taxa demasiado elevada no cálculo do imposto que foi faturado e entregue ao Estado. Pode o Estado conservar este IVA demasiado elevado ou deve reembolsá‑lo ao sujeito passivo? De qualquer maneira, não existe materialmente um imposto neste montante. Por outro lado, foram emitidas a mencionar um montante de imposto demasiado elevado, o que poderia levar os clientes à dedução de um montante de imposto excessivo. Deverão, portanto, estas faturas ser previamente retificadas? O mesmo se aplica quando as prestações são exclusivamente fornecidas a consumidores finais sem direito à dedução do imposto a montante, pelo que estes últimos não poderiam, em todo o caso, ter direito à dedução do imposto pago a montante?

3.

Considerando a natureza de imposto sobre o consumo do IVA, o cliente deveria, na realidade, ser reembolsado pelo prestador do IVA pago em excesso. Não sendo tal reembolso, todavia, juridicamente possível (por exemplo, quando o preço acordado era um preço fixo) ou se o mesmo estiver, na prática, excluído (por exemplo, porque não são conhecidos os nomes dos clientes), coloca‑se a questão de saber quem poderá «enriquecer» definitivamente pelo erro quanto ao montante exato do imposto: o Estado ou o sujeito passivo que cometeu o erro?

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

4.

O quadro jurídico do direito da União é definido pela Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «Diretiva IVA») ( 2 ).

5.

O artigo 73.o da Diretiva IVA refere‑se ao valor tributável, dispondo:

«Nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.o a 77.o, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.»

6.

O artigo 78.o da Diretiva IVA determina os elementos a incluir ou não no valor tributável:

«O valor tributável inclui os seguintes elementos:

a)

Os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos, com exceção do próprio IVA; […]»

7.

O artigo 193.o da Diretiva IVA define o devedor deste imposto:

«O IVA é devido por sujeitos passivos que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis, com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa nos termos dos artigos 194.o a 199.o‑B e 202.o»

8.

O artigo 168.o, alínea a), da Diretiva IVA, relativo ao âmbito do direito à dedução, dispõe o seguinte:

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado‑Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)

O IVA devido ou pago nesse Estado‑Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo; […]»

9.

O artigo 203.o da Diretiva IVA regula a dívida fiscal em consequência da sua menção numa fatura:

«O IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura.»

10.

O artigo 220.o, n.o 1, da Diretiva IVA regula a obrigação de emitir faturas:

«Os sujeitos passivos devem assegurar que seja emitida uma fatura, por eles próprios, pelos adquirentes ou destinatários ou, em seu nome e por sua conta, por terceiros, nos seguintes casos:

1.

Relativamente às entregas de bens ou às prestações de serviços que efetuem a outros sujeitos passivos ou a pessoas coletivas que não sejam sujeitos passivos; […]»

B.   Direito austríaco

11.

O § 11, n.o 1, ponto 1, da Bundesgesetz über die Besteuerung der Umsätze (Lei Federal Relativa ao Imposto sobre o Volume de Negócios) (Umsatzsteuergesetz 1994, a seguir «UStG») regula a obrigação de emitir uma fatura:

«O empresário tem o direito de emitir faturas quando realize operações na aceção do § 1, n.o 1, ponto 1, da UStG. Se efetuar as operações a favor de outro empresário para os fins próprios da empresa deste ou a favor de uma pessoa coletiva que não tenha a qualidade de empresário, está obrigado a emitir faturas. Se o empresário realizar uma entrega tributável de obra ou uma entrega de obra relacionada com um bem imóvel destinada a um não empresário, está obrigado a emitir faturas. O empresário deve cumprir a sua obrigação de emitir uma fatura no prazo de seis meses após a execução da operação.»

12.

O § 11, n.o 12, da UStG, relativo à dívida fiscal no caso de menção não autorizada do imposto, prevê:

«Se a empresa tiver mencionado separadamente, numa fatura relativa a uma entrega ou a outra prestação, um montante de imposto de que não é devedora nos termos da presente Lei Federal Relativa à Operação, é devedora desse montante com base na fatura se não a tiver retificado relativamente ao adquirente da entrega ou ao destinatário da prestação. Em caso de retificação, o § 16, n.o 1, aplica‑se mutatis mutandis

13.

O § 239a da Bundesgesetz über allgemeine Bestimmungen und das Verfahren für die von den Abgabenbehörden des Bundes, der Länder und Gemeinden verwalteten Abgaben (Lei Federal Relativa às Disposições Gerais e ao Procedimento Aplicável a Contribuições Geridas pelas Autoridades Fiscais do Estado Federal, dos Länder e dos Municípios) (Bundesabgabenordnung, a seguir «BAO») dispõe:

«Na medida em que uma contribuição, que em conformidade com a finalidade da disposição fiscal deva ser economicamente suportada por uma pessoa diferente do sujeito passivo, tenha sido economicamente suportada por uma pessoa diferente do sujeito passivo, não se deverá proceder:

1.   ao lançamento na conta fiscal,

2.   ao reembolso, à transferência ou à cessão de créditos, e

3.   à sua utilização para liquidação de dívidas fiscais,

se tal conduzir a um enriquecimento sem causa do sujeito passivo.»

III. Matéria de facto e processo de decisão prejudicial

14.

A parte que interpõe recurso no órgão jurisdicional de reenvio (a seguir «P GmbH») é uma sociedade de responsabilidade limitada de direito austríaco.

15.

A recorrente explora um parque de jogos interior. No ano controvertido de 2019, a P GmbH sujeitou a remuneração correspondente aos seus serviços (taxas de acesso ao parque de jogos interior) à taxa normal de imposto austríaca de 20 %. No entanto, no ano controvertido de 2019, estes serviços prestados pela P GmbH estavam sujeitos a uma taxa reduzida de 13 % (uma das taxas reduzidas na Áustria no ano controvertido, em conformidade com o artigo 98.o, n.o 1, da Diretiva IVA).

16.

Aquando do pagamento do preço, a P GmbH emitiu aos clientes os recibos de pagamento em espécie, que são faturas de pequeno valor, nos termos do § 11, n.o 6, da UStG 1994 (faturas simplificadas nos termos do artigo 238.o, em conjugação com o artigo 226.o‑B da Diretiva IVA). No ano controvertido de 2019, a P GmbH emitiu um total de 22557 faturas e os seus clientes foram exclusivamente consumidores finais sem direito a deduzir o imposto pago a montante.

17.

A P GmbH retificou a sua declaração de imposto sobre o volume de negócios para o ano 2019 a fim de obter um crédito da parte da Administração Tributária para o imposto pago em excesso.

18.

A Administração Tributária recusou qualquer retificação por dois motivos: (1) A P GmbH é devedora do montante mais elevado do imposto sobre o volume de negócios em virtude da faturação, se não proceder à retificação das faturas por si emitidas. (2) O imposto sobre o volume de negócios é suportado não pela P GmbH, mas pelos seus clientes. Por conseguinte, a P GmbH enriquecer‑se‑ia no caso de uma retificação do imposto sobre o volume de negócios.

19.

A P GmbH interpôs recurso desta decisão. O Bundesfinanzgericht (Tribunal Tributário Federal, Áustria), competente para o apreciar, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial, as seguintes questões, nos termos do artigo 267.o TFUE:

1)

O IVA é devido pelo emitente de uma fatura nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA quando — como no caso em apreço — não há um risco de perda de receitas fiscais porque os destinatários dos serviços não são consumidores finais com o direito de deduzir o imposto a montante?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão e, por conseguinte, no caso de o emitente de uma fatura ser responsável pelo IVA nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA:

a)

Pode a retificação das faturas em relação aos destinatários dos serviços ser omitida quando, por um lado, não há um risco de perda de receitas fiscais e, por outro, a retificação das faturas for factualmente impossível?

b)

O facto de os consumidores finais terem suportado o imposto quando pagaram o preço e de o sujeito passivo ter assim enriquecido com a retificação do IVA opõe‑se à retificação do IVA?

20.

No processo no Tribunal de Justiça, apresentaram observações escritas a República da Áustria e a Comissão Europeia. Nos termos do artigo 76.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência.

IV. Apreciação jurídica

A.   Quanto à questão prejudicial e à metodologia de análise seguida

21.

Com as suas duas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pede a interpretação do artigo 203.o da Diretiva IVA. Este artigo impõe uma dívida fiscal a todas as pessoas que mencionem o IVA numa fatura.

22.

De acordo com as questões e a matéria de facto comunicada, exclui‑se, no caso em apreço, que os clientes da P GmbH beneficiem do direito à dedução do IVA pago a montante, uma vez que eram exclusivamente consumidores finais (isto é, não eram sujeitos passivos). No caso da utilização a título oneroso de um parque de jogos interior, é igualmente difícil imaginar que um sujeito passivo utilize as entradas vendidas pela P GmbH para os fins das suas operações tributadas (v. artigo 168.o da Diretiva IVA).

23.

No entanto, no ano controvertido, a P GmbH emitiu 22557 faturas a provavelmente 22557 utilizadores diferentes do parque de jogos. É possível que entre estes utilizadores se encontrasse eventualmente um sujeito passivo que tenha utilizado — correta ou incorretamente — a fatura para solicitar a correspondente dedução do imposto pago a montante. Apesar de esta situação ter sido excluída pelas questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, esta é a situação mais pertinente na prática.

24.

Por esta razão, proceder‑se‑á, em primeiro lugar, a uma interpretação do artigo 203.o da Diretiva IVA, partindo da premissa de que as 22557 faturas que mencionam uma taxa de imposto demasiado elevada não implicam qualquer risco de perda de receitas fiscais (v., a este respeito, infra, ponto B.). Em seguida, presumir‑se‑á que não é possível excluir um certo risco de perda de receitas fiscais (v., a este respeito, infra, ponto C.). Segue‑se a questão da regularização da dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA, naquela se examinará igualmente a necessidade de retificar as 22557 faturas (v., a este respeito, infra, ponto D.). Por último, analisar‑se‑á a possibilidade de opor à P GmbH a exceção do enriquecimento sem causa, se os clientes tiverem pagado a integralidade do preço (v., a este respeito, infra, ponto E.).

B.   Quanto à dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA na falta de risco de perda de receitas fiscais

1. IVA mencionado erradamente numa fatura

25.

Nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA, o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura. Todavia, em virtude do artigo 193.o da Diretiva IVA, o IVA é devido por sujeitos passivos que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis. Uma vez que este sujeito passivo deve assegurar, com base no artigo 220.o, primeiro parágrafo, ponto 1, da Diretiva IVA, que seja emitida uma fatura pelo menos no que se refere a outros sujeitos passivos, tal conduziria a uma segunda obrigação fiscal por uma mesma e única operação. Neste sentido, o artigo 203.o da Diretiva IVA deve ser objeto de uma interpretação estrita.

26.

Caso contrário, um sujeito passivo que faturasse corretamente o IVA sobre uma prestação tributável seria responsável duas vezes pelo IVA: uma vez, em virtude do artigo 203.o e, outra vez, em virtude do artigo 193.o da Diretiva IVA. A intenção do legislador da diretiva não pode ter sido esta. O artigo 203.o da Diretiva IVA só tem sentido próprio se estabelecer uma dívida fiscal para além do artigo 193.o da diretiva. Uma vez que o artigo 203.o da diretiva tem por finalidade evitar o risco de perda de receitas fiscais ( 3 ) (a este respeito, de forma pormenorizada, infra, n.os 30 e segs.), este artigo não pode abranger a «situação normal», em que um sujeito passivo emite uma fatura correta. Por conseguinte, o artigo 203.o abrange «unicamente» o IVA indevidamente faturado, isto é, o IVA não devido legalmente, mas mencionado na fatura.

27.

No presente caso, foi mencionado um montante de imposto demasiado elevado nas faturas (em aplicação da taxa normal de imposto em vez da taxa reduzida). A diferença resultante desta situação foi erradamente mencionada na fatura, ao referir um montante demasiado elevado. O emitente da fatura poderá ser responsável por esta diferença por força do artigo 203.o da Diretiva IVA se as outras condições estiverem preenchidas. O montante restante é já devido à luz do artigo 193.o da Diretiva IVA e não é contestado.

2. Quanto ao conceito de fatura na aceção do artigo 203.o da Diretiva IVA

28.

Do pedido de decisão prejudicial depreende‑se que os recibos de pagamento em espécie emitidos são faturas ditas de pequeno valor que, nos termos do artigo 238.o lido em conjugação com o artigo 226.o‑B da Diretiva IVA, requerem menos menções. Todavia, a menção do montante de IVA a pagar deve igualmente figurar nestas faturas.

29.

Esta fatura é emitida em conformidade com o título XI, capítulo 3, secções 3 ‑ 6, que confere, assim, nos termos do artigo 178.o, alínea a), um direito à dedução do imposto pago a montante, em virtude do artigo 168.o, alínea a), da Diretiva IVA. A questão de saber se a P GmbH era efetivamente obrigada a emitir as respetivas faturas no que se refere aos consumidores finais — apontando o artigo 220.o, primeiro parágrafo, n.o 1, da Diretiva IVA em sentido contrário —, é irrelevante, contrariamente à opinião da Comissão. O artigo 203.o da Diretiva IVA baseia‑se unicamente na existência de uma fatura e abrange, segundo a sua redação, igualmente as denominadas faturas de pequeno valor.

30.

O facto de a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA se referir ao IVA (demasiado elevado) mencionado de forma errada separadamente também nas faturas de pequeno valor, é conforme à jurisprudência existente do Tribunal de Justiça sobre a finalidade do artigo 203.o da Diretiva IVA. Segundo esta jurisprudência, a finalidade do artigo 203.o da Diretiva IVA consiste em combater o risco de perda de receitas fiscais, que pode resultar da invocação de uma dedução injustificada pelo destinatário da fatura com base na mesma ( 4 ).

31.

É certo que o direito de dedução do imposto pago a montante está limitado apenas aos impostos que correspondam a uma operação submetida ao IVA ( 5 ). Porém, há um risco de perda de receita fiscal quando o destinatário de uma fatura em que é mencionado indevidamente o IVA ainda a pode utilizar para exercer o direito a dedução, em conformidade com o artigo 168.o da Diretiva IVA ( 6 ). Com efeito, não é de excluir que a Administração Tributária não possa determinar em tempo oportuno que considerações jurídico‑substantivas se opõem ao exercício do direito à dedução formalmente existente.

32.

Assim, em caso de menção indevida do IVA, o artigo 203.o da Diretiva IVA visa um paralelismo entre a dedução do imposto a montante do destinatário da fatura e a dívida de imposto do emitente da fatura, como o que existiria no caso de uma fatura correta entre o fornecedor e o destinatário da prestação ( 7 ). De acordo com o teor do artigo 203.o da Diretiva IVA, não é necessário nesse caso que o destinatário da fatura tenha efetivamente procedido à dedução do imposto a montante. Basta que exista o risco de que se possa proceder a tal dedução. Por conseguinte, tal como também salienta corretamente a Áustria, de acordo com o seu sentido e finalidade, são abrangidas todas as faturas suscetíveis de induzir o seu destinatário à dedução do imposto pago a montante. Como acima referido (n.os 28 e segs.), este é também o caso das faturas de pequeno valor.

3. Quanto à necessidade de um risco de perda de receitas fiscais

33.

Em última análise, o emitente da fatura é, por conseguinte, responsável, independentemente da culpa, pelo risco (abstrato), de que o destinatário da fatura possa, com base nesta fatura (errada), proceder à dedução injustificada do imposto a montante. Trata‑se de uma responsabilidade abstrata pelo risco imputada ao emitente da fatura, que ocorre igualmente no caso de erro sobre a taxa exata do imposto se, como no caso em apreço, a fatura mencionar a taxa normal do imposto em vez da taxa reduzida. Como salienta com razão a Comissão, esta responsabilidade pressupõe a existência de um risco de dedução indevida (demasiado elevada) do imposto pago a montante.

34.

Por conseguinte, questiona‑se se o artigo 203.o da Diretiva IVA é aplicável no caso em apreço. Nos termos do artigo 168.o da Diretiva IVA, só um sujeito passivo tem a faculdade de deduzir o imposto pago a montante (em certas circunstâncias). Um consumidor final não tem, per se, qualquer direito à dedução do imposto pago a montante.

35.

Em contrapartida, o risco (abstrato) de uma dedução indevida do imposto pago a montante por quem não é sujeito passivo é quase nulo, salvo no caso de uma empresa em processo de criação. Porém, na falta de operações tributáveis, a Administração Tributária examinará, de qualquer forma, em detalhe a dedução do imposto pago a montante por estas últimas empresas. Provavelmente também por esta razão, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, numa situação como a do caso em apreço, não pode haver qualquer risco de perda de receitas fiscais.

36.

Se o artigo 203.o da Diretiva IVA visar uma situação de risco, tal risco exclui‑se, porém, per se, visto que os destinatários da prestação e os destinatários da fatura não são sujeitos passivos, mas sim consumidores finais, pelo que o artigo 203.o da Diretiva IVA não é aplicável.

4. Conclusão intermédia

37.

Por conseguinte, a primeira questão pode ser respondida nos seguintes termos: quando os destinatários das prestações de serviços são consumidores finais sem direito à dedução do imposto pago a montante, o emitente de uma fatura não é responsável pelo IVA nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA.

C.   Quanto à dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA numa situação em que não é possível excluir o risco de perda de receitas fiscais

38.

A Áustria, em particular, contesta a matéria de facto exposta pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo o qual não existe qualquer risco de perda de receitas fiscais. Mesmo que pareça razoável pensar que os utilizadores de um parque de jogos interior são apenas consumidores finais e não pessoas que são sujeitos passivos de IVA, não é possível, não obstante, excluir liminarmente que entre os 22557 bilhetes de entrada (e faturas) se encontre eventualmente um ou mais sujeitos passivos.

39.

É concebível, por exemplo, que um pai visite este parque de jogos interior com o seu filho. Se este pai for um sujeito passivo (por exemplo, um fotógrafo independente), então, existirá, pelo menos, um risco abstrato de que esta fatura seja incluída — corretamente (este vende as fotografias feitas neste parque) ou incorretamente (tratam‑se de registos privados) — na sua declaração de IVA e de que, nesta medida, se possa exercer um direito à dedução demasiado elevado. Neste caso, o artigo 203.o da Diretiva IVA seria aplicável. Em última análise, porém, compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se, e em que medida, existe um risco abstrato para o paralelismo entre a dívida fiscal do prestador e a dedução do imposto pago a montante do destinatário da prestação.

40.

Todavia, mesmo que não seja possível excluir um determinado risco abstrato em casos específicos, tal não significa que a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA se estenda a todas as 22557 faturas. Tal «ideia de contágio» — uma vez que não se pode excluir que um sujeito passivo tenha recebido a respetiva fatura, todas as faturas são abrangidas pelo artigo 203.o da diretiva — é alheia à legislação em matéria de IVA e também não é fundamentada em detalhe pela Áustria.

41.

A dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da diretiva refere‑se a cada uma das faturas incorretas. Se for caso disso, deverá determinar‑se, por meio de uma estimação, que, em geral, é sempre possível segundo o direito processual tributário, o número de faturas abstratas «que comportam riscos» e limitar‑se a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da diretiva a estas faturas. Tal situação está igualmente em consonância com o princípio da neutralidade, segundo o qual o sujeito passivo, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, não deve, em princípio, suportar ele próprio o IVA ( 8 ).

42.

No presente caso, a natureza da prestação de serviço tributável (direito de acesso a um parque de jogos interior), que só excecionalmente será invocada por um sujeito passivo, permite considerar que os eventuais riscos são muito reduzidos.

43.

Por conseguinte, a resposta à primeira questão pode ser completada da seguinte forma: pelo contrário, se entre os destinatários das faturas se encontrarem igualmente sujeitos passivos, verifica‑se uma dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA. A proporção destas faturas, que comportam um risco abstrato, deve, se for caso disso, determinar‑se por meio de uma estimação.

D.   Erro sobre o montante da taxa de imposto e obrigação de retificar as faturas

44.

Se o artigo 203.o da Diretiva IVA for aplicável, coloca‑se a questão da possibilidade de retificação destas faturas para reduzir uma dívida fiscal demasiado elevada (por força da fatura) ao imposto efetivamente devido por lei (por força da operação tributável) em conformidade com o artigo 193.o da Diretiva IVA. Esta questão colocar‑se‑ia da mesma forma se, contrariamente ao que proponho, o Tribunal de Justiça estendesse igualmente a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA à emissão de faturas aos consumidores finais que não são sujeitos passivos.

1. Jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à possibilidade de retificação

45.

A este respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que a Diretiva IVA não contém qualquer disposição sobre a regularização, pelo emitente da fatura, do IVA indevidamente faturado ( 9 ). Enquanto esta lacuna não for integrada pelo legislador da União, compete aos Estados‑Membros fornecerem uma solução ( 10 ). No entanto, para chegar a esta solução, o Tribunal de Justiça já desenvolveu duas abordagens que os Estados‑Membros devem ter em consideração.

46.

Assim, compete, por um lado, aos Estados‑Membros, para assegurar a neutralidade do IVA, prever, na sua ordem jurídica interna, a possibilidade de regularização de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que quem emita a fatura demonstre a sua boa‑fé ( 11 ).

47.

Segundo o Tribunal de Justiça, tal afasta, por exemplo, uma disposição nacional que exclui a regularização do imposto após o início de uma inspeção tributária ( 12 ). O mesmo se aplica quando a regularização da dívida fiscal de um emitente de boa‑fé de uma fatura está subordinada à retificação das faturas, que é materialmente impossível, uma vez que não são sequer conhecidos os nomes dos destinatários das faturas. Uma tal condição seria desproporcionada ( 13 ).

48.

Por outro lado, o princípio da neutralidade do IVA exige que este imposto possa ser regularizado quando é indevidamente faturado, não podendo esta regularização ser sujeita pelos Estados‑Membros à boa‑fé do emitente da referida fatura, quando o emitente da fatura tenha eliminado por completo, em tempo útil, o risco de perda de receitas fiscais ( 14 ). Além disso, esta regularização não pode depender do poder de apreciação discricionário da Administração Tributária ( 15 ).

a) Regularização da dívida fiscal por um emitente de boa‑fé de uma fatura

49.

Resulta desta jurisprudência que, apesar do risco residual de perda de receitas fiscais, um sujeito passivo que demonstre a sua boa‑fé pode regularizar o IVA (isto é, a sua dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA) faturado indevidamente ( 16 ).

50.

Esta jurisprudência ( 17 ) tem em conta o facto de que o empresário que realiza a prestação (que também emite a fatura ou que está, em parte, obrigado a emiti‑la — v. artigo 220.o da Diretiva IVA) tem simplesmente a função de um cobrador de impostos por conta do Estado ( 18 ). Nas suas observações, a Comissão refere‑se mesmo a ele como «o prolongamento da Administração Tributária». Se o empresário cumprir esta função de boa‑fé, o Estado, que o envolveu como cobrador de impostos, deve ser responsável pelas consequências de eventuais erros.

51.

Do pedido de decisão prejudicial não se depreende exatamente por que razão a P GmbH aplicou a taxa de imposto errada. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio deve analisar se, no caso em apreço, é possível falar de um emitente de boa‑fé de uma fatura neste sentido. No entanto, há que ter em conta que a taxa de imposto correta depende, por vezes, de questões jurídicas de difícil delimitação e que, por vezes também, a sua determinação não é inequívoca. Em tais casos, existe um risco elevado de erro de direito. Quanto mais complexa é a Diretiva IVA ou a legislação nacional sobre o imposto sobre o volume de negócios, mais elevado é o risco correspondente para o sujeito passivo.

52.

Por conseguinte, se a taxa de imposto errada foi aplicada devido unicamente a uma apreciação jurídica incorreta (erro de direito), considero que se deve presumir que o emitente da fatura agiu de boa‑fé. Tal acontece, por exemplo, quando a taxa de imposto aplicável é controversa e o sujeito passivo optou pela abordagem — que se revelou posteriormente — ser a errada. A situação é diferente se o sujeito passivo não se interrogou de todo sobre a taxa de imposto, ou não havia dúvidas quanto à taxa de imposto aplicável. Tal erro de direito não seria compreensível nem explicável, pelo que, neste caso, não se poderia falar de um emitente de boa‑fé neste sentido. Assim, o importante é determinar se a emissão da fatura errada pode ser imputada ao sujeito passivo que age na qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado.

53.

Deste modo, se o órgão jurisdicional de reenvio determinar que a P GmbH agiu de boa‑fé neste sentido ao aplicar a taxa normal de imposto errada, é irrelevante que o risco de perda de receitas fiscais tenha sido eliminado. Uma vez que risco de perda de receitas fiscais resulta unicamente da existência de faturas erradas, também não seria necessário retificar as faturas para corrigir a dívida fiscal.

b) Regularização da dívida fiscal independentemente da boa‑fé do emitente da fatura

54.

No entanto, a questão da retificação das faturas para eliminar o risco de perda de receitas fiscais coloca‑se se o órgão jurisdicional de reenvio chegar à conclusão de que o sujeito passivo não agiu de boa‑fé ao emitir as faturas. Neste caso, a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA apenas pode ser regularizada se o risco de perda de receitas fiscais tiver sido eliminado integralmente e em tempo oportuno.

55.

Contudo, segundo o Tribunal de Justiça, as medidas que os Estados‑Membros têm a faculdade de tomar para garantir o exato recebimento do imposto e evitar a fraude não devem exceder o necessário para atingir tais objetivos. Não poderão, por isso, ser utilizadas de forma que ponham em causa a neutralidade do IVA, que constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União na matéria ( 19 ). Isto aplica‑se em especial numa situação de risco abstrato (v., a este respeito, n.os 30 e segs., supra).

56.

Se o reembolso do IVA — trata‑se aqui da redução do IVA devido nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA — se tornar impossível ou excessivamente difícil devido às condições em que esses pedidos de restituição de impostos podem ser apresentados, os princípios indicados podem exigir que os Estados‑Membros prevejam os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao sujeito passivo recuperar o imposto indevidamente faturado ( 20 ).

57.

Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, não há qualquer risco de perda de receitas fiscais no caso em apreço. Neste caso, também não é necessário retificar as faturas.

2. Quanto ao tratamento da impossibilidade factual de uma retificação

58.

Todavia, na medida em que existe um certo risco (v., a este respeito, n.os 38 e segs. supra), o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar e que poderá, se for caso disso, ser determinado por meio de uma estimação, será, em princípio, necessária uma correção para eliminar este risco de perda de receitas fiscais, que resulta da existência dessas faturas erradas.

59.

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se este princípio pode ser respeitado quando a retificação das faturas em causa for factualmente impossível, uma vez que não são sequer conhecidos os nomes dos destinatários das faturas. Exigir o impossível ao emitente da fatura poderá constituir um requisito desproporcionado. Por outro lado, como salienta a Áustria, foi o próprio emitente da fatura que, através do seu comportamento, causou um risco de perda de receitas fiscais.

60.

Em meu entender, nestes casos — em que há um risco de perda de receitas fiscais e uma impossibilidade factual de retificar as faturas emitidas erradamente —, a solução depende igualmente do exame do erro. Tal está em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que protege o emitente de boa‑fé de uma fatura (v., a este respeito, n.os 52 e segs. supra), ao passo que o emitente que não age de boa‑fé deve eliminar o risco de perda de receitas fiscais. Se apenas se puder proceder essa eliminação através da retificação da fatura, então, o emitente da mesma deverá suportar a impossibilidade de fazê‑lo.

61.

Uma vez que o risco de perda de receitas fiscais resulta da existência de faturas incorretas, estas devem, em princípio, ser retificadas. Se tal não for possível, a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA também não pode ser reduzida. Contrariamente ao entendimento da Comissão, é irrelevante que exista uma obrigação de emissão de faturas, visto que se trata da eliminação de uma dívida fiscal nascida devido a faturas incorretas (v. n.os 25 e segs., supra).

3. Conclusão intermédia

62.

O direito da União, em especial os princípios da proporcionalidade e da neutralidade do IVA, exige que haja a possibilidade de regularização da dívida de imposto constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA como responsabilização pelo risco abstrato de perda de receitas fiscais. A obrigação de permitir uma regularização é independente da eliminação do risco de perda de receitas fiscais resultante de uma faturação incorreta, quando o emitente da fatura tenha agido de boa‑fé, tendo sido, por exemplo, simplesmente vítima de um erro de direito. Se o emitente não tiver agido de boa‑fé, o risco de perda de receitas fiscais deve ser eliminado. Para o efeito, a fatura deve, em princípio, ser retificada. Se o emitente da fatura não puder proceder a essa retificação, esta impossibilidade inclui‑se nos riscos que devem ser suportados pelo emitente. Nesse caso, mantém‑se a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA.

E.   Quanto à exceção do enriquecimento sem causa

63.

Com a subquestão 2b, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o facto de os consumidores finais terem suportado um montante excessivo de IVA no âmbito do preço se opõe à regularização da dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA, de maneira que, em última análise, apenas o sujeito passivo que realiza a prestação (no presente caso, a P GmbH) tivesse enriquecido.

64.

O direito da União não se opõe a que um sistema jurídico nacional (no presente caso, o § 239a da BAO) recuse a restituição de impostos indevidamente cobrados em condições suscetíveis de implicar um enriquecimento sem causa dos contribuintes ( 21 ). No entanto, «o princípio da proibição do enriquecimento sem causa deve ser aplicado respeitando princípios como o princípio da igualdade de tratamento» ( 22 ).

65.

Porém, como o Tribunal de Justiça já decidiu, para que se verifique um enriquecimento não basta que a taxa de imposto contrária ao direito da União tenha sido repercutida sobre o consumidor final através do preço. Com efeito, mesmo na hipótese de o imposto ter sido completamente integrado no preço praticado, o sujeito passivo pode sofrer um prejuízo associado à diminuição do volume das suas vendas ( 23 ).

66.

No caso em apreço, uma empresa que fosse concorrente da P GmbH e que praticasse o mesmo preço, só teria sido tributada de um IVA equivalente a 13/113 do preço e não equivalente a 20/120 do preço. Aplicando o mesmo preço, a P GmbH teria uma margem de lucro inferior à de um concorrente comparável devido ao seu erro sobre a taxa de imposto. Em contrapartida, com a mesma margem de lucro, a P GmbH teria de cobrar um preço mais elevado, o que teria constituído uma desvantagem concorrencial. Isso milita, no caso em apreço, contra um enriquecimento sem causa da P GmbH.

67.

Como o Tribunal de Justiça declarou, para que a exceção do enriquecimento sem causa tenha êxito, é necessário que o encargo económico que o imposto indevidamente cobrado fez impender sobre o sujeito passivo tenha sido integralmente neutralizado ( 24 ).

68.

Por conseguinte, segundo o Tribunal de Justiça, só é possível demonstrar a existência e a medida do enriquecimento sem causa que o reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito comunitário causa a um sujeito passivo após uma análise económica que tenha em conta todas as circunstâncias pertinentes ( 25 ). A este respeito, o ónus da prova de um enriquecimento sem causa incumbe ao Estado‑Membro ( 26 ). Não é de admitir que, no caso das imposições indiretas (o mesmo é válido no caso do IVA cobrado indiretamente no caso em apreço), exista uma presunção de repercussão ( 27 ).

69.

A este respeito, importa frisar que compete ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar tal análise ( 28 ). Não obstante, o Tribunal de Justiça pode fornecer orientações úteis a este respeito, que podem ser relevantes para uma tomada em conta exaustiva de todas as circunstâncias.

70.

Por um lado, há que ter em consideração que, num caso como o presente, em que os consumidores finais, que suportam efetivamente o IVA, não são conhecidos, o IVA recolhido «enriquece» ou o Estado ou a empresa que realiza a prestação. Provavelmente por esta razão, a Comissão considera que Administração Tributária não pode, em princípio, invocar o enriquecimento sem causa da P GmbH. Neste caso, a legislação fiscal austríaca apenas concede ao Estado uma taxa reduzida (isto é, no valor de 13/113 do preço) relativamente às prestações fornecidas pela P GmbH. O montante que exceda este valor constitui, em termos jurídico‑substantivos, um «enriquecimento sem causa» do Estado. Pelo contrário, no direito civil, o devedor de imposto teria direito à totalidade do preço negociado com os consumidores finais.

71.

Por outro lado, no caso de prestações fornecidas aos consumidores finais, a forma como o preço final é constituído é, regra geral, irrelevante, uma vez que estes não podem deduzir o imposto pago a montante. Contrariamente ao que afirma a Comissão, o erro sobre as próprias bases do cálculo do preço não afeta, em princípio, o direito de caráter civil ao pagamento do preço acordado com os consumidores finais, se e na medida em que o montante concreto do IVA não se tenha tornado um elemento constitutivo específico do contrato.

72.

Esta conclusão é corroborada pelo artigo 73.o e segs. da Diretiva IVA, segundo o qual o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o prestador deva receber do destinatário. Trata‑se do preço acordado. Nos termos do artigo 78.o, alínea a), da Diretiva IVA, o valor tributável não inclui o IVA em si mesmo. Por conseguinte, de acordo com a conceção da Diretiva IVA, o montante correto do IVA está sempre incluído, por lei, no preço acordado. Tal foi recentemente confirmado pelo Tribunal de Justiça, mesmo num caso de fraude ao IVA ( 29 ).

73.

Porém, se — independentemente da menção correta na fatura — o montante exato do IVA se repercute sempre no consumidor final [artigos 73.o e 78.o, alínea a), da Diretiva IVA], não se pode dizer que o consumidor suportou um aumento do IVA e que, consequentemente, no caso em apreço, a P GmbH enriquecerá sem causa, se o Estado reembolsar o imposto que não era legalmente devido. O consumidor final já suportou o IVA no seu montante correto (v. artigos 73.o e 78.o da Diretiva IVA), mas este foi calculado num montante errado e mencionado num montante errado na fatura.

74.

A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, na apreciação global que se impõe, pode ser pertinente saber se os contratos celebrados entre as partes estipulavam, a título de remuneração pelas prestações de serviços, quantias fixas ou quantias de base acrescidas, eventualmente, dos impostos aplicáveis. No primeiro caso, a saber um acordo sobre uma quantia fixa, poderia não se verificar um enriquecimento sem causa ( 30 ). Iria mesmo mais longe excluindo per se, na hipótese de uma quantia fixa acordada em relação a um consumidor final e da repercussão do IVA, um enriquecimento sem causa do sujeito passivo que realiza a prestação. Este último tem de aceitar uma margem de lucro mais baixa ou uma competitividade inferior à dos seus concorrentes.

75.

Assim, o facto de os consumidores finais terem pagado um preço final calculado de maneira errada (por conter uma proporção demasiado elevada de IVA e uma margem de lucro demasiado baixa) não se opõe à regularização da dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva IVA. Em todo o caso, daqui não resulta um enriquecimento sem causa se tiver sido acordada uma quantia dita fixa (preço fixo). A situação poderá ser diferente se tiver sido acordado um preço acrescido do IVA legalmente devido. Porém, esta hipótese pode excluir‑se no caso em apreço.

V. Conclusão

76.

Deste modo, proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma às questões prejudiciais submetidas pelo Bundesfinanzgericht (Tribunal Tributário Federal, Áustria):

1)

Quando os destinatários das prestações de serviços são consumidores finais sem direito à dedução do imposto pago a montante, o emitente de uma fatura não é responsável pelo imposto sobre o valor acrescentado (IVA) nos termos do artigo 203.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, na redação em vigor no ano controvertido (2019); alterada, pela última vez, pela Diretiva 2018/2057 do Conselho, de 20 de dezembro de 2018. Pelo contrário, se entre os destinatários das faturas se encontrarem igualmente sujeitos passivos, verifica‑se uma dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva 2006/112. A proporção destas faturas deve, se for caso disso, determinar‑se por meio de uma estimação.

2)

Os princípios da proporcionalidade e da neutralidade do IVA exigem que haja a possibilidade de regularização da dívida de imposto constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva 2006/112 como responsabilização pelo risco abstrato de perda de receitas fiscais. A obrigação de permitir uma regularização é independente da eliminação do risco de perda de receitas fiscais resultante de uma faturação incorreta, quando o emitente da fatura tenha agido de boa‑fé. Existe boa‑fé se o sujeito passivo foi vítima de um erro de direito desculpável. Pelo contrário, se o emitente não tiver agido de boa‑fé neste sentido, o risco de perda de receitas fiscais deve ser eliminado. Para o efeito, a fatura deve, em princípio, ser retificada. Se o emitente da fatura não puder proceder a essa retificação, esta impossibilidade inclui‑se nos riscos que devem ser suportados pelo emitente. Nesse caso, mantém‑se a dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva 2006/112.

3)

O facto de os consumidores finais terem pagado um preço final calculado de maneira errada (por conter uma proporção demasiado elevada de IVA e, por conseguinte, uma margem de lucro demasiado baixa) não se opõe à regularização da dívida fiscal constituída nos termos do artigo 203.o da Diretiva 2006/112. Em todo o caso, daqui não resulta um enriquecimento sem causa se tiver sido acordada uma quantia dita fixa (preço fixo).


( 1 ) Língua original: alemão.

( 2 ) Diretiva do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (JO 2006, L 347, p. 1), na redação em vigor no ano controvertido (2019); alterada, pela última vez, pela Diretiva 2018/2057 do Conselho, de 20 de dezembro de 2018 (JO 2018, L 329, p. 3).

( 3 ) Neste sentido, expressamente, designadamente Acórdãos de 18 de março de 2021, P (cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 27); de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 32).

( 4 ) Neste sentido, expressamente, Acórdãos de 18 de março de 2021, P (cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 32), de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 24), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 32), de 31 de janeiro de 2013, LVK (C‑643/11, EU:C:2013:55, n.os 35 e 36), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.os 28 e segs.).

( 5 ) Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 13).

( 6 ) Neste sentido, expressamente, Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.os 28 e segs.), com referência ao Acórdão de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 57).

( 7 ) V., a este respeito, igualmente as minhas Conclusões no processo EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:35, n.os 31 e segs.).

( 8 ) V., neste sentido, Acórdãos de 13 de março de 2008, Securenta (C‑437/06, EU:C:2008:166, n.o 25), e de 1 de abril de 2004, Bockemühl (C‑90/02, EU:C:2004:206, n.o 39).

( 9 ) Neste sentido, expressamente, Acórdãos de 18 de março de 2021, P (cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 30), de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167, n.o 38), de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 48).

( 10 ) Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 35), de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o. (C‑78/02 a C‑80/02, EU:C:2003:604, n.o 49), de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 49), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).

( 11 ) Acórdãos de 18 de março de 2021, P (cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 31), de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 33), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 36), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).

( 12 ) Acórdão de 18 de março de 2021, P (cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 33).

( 13 ) Neste sentido, quanto a uma condição que se tornou impossível de satisfazer, v. Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 34).

( 14 ) Acórdão de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 28), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, LVK (C‑643/11, EU:C:2013:55, n.o 37), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 37), de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o. (C‑78/02 a C‑80/02, EU:C:2003:604, n.o 50), e de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 58).

( 15 ) Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 38), e de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 68).

( 16 ) Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 36), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).

( 17 ) O ponto de partida foi o Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18). Desde então, este texto foi repetido constantemente, sem nunca se explicar verdadeiramente por que razão e em que condições se pode falar de um sujeito passivo de boa‑fé neste contexto — v., por exemplo, Acórdãos de 18 de março de 2021, P (cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.os 31 e segs.), de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 33), e de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 36).

( 18 ) Acórdãos de 11 de novembro de 2021, ELVOSPOL (C‑398/20, EU:C:2021:911, n.o 31), de 15 de outubro de 2020, E. (IVA — Redução do valor tributável) (C‑335/19, EU:C:2020:829, n.o 31), de 8 de maio de 2019, A‑PACK CZ (C‑127/18, EU:C:2019:377, n.o 22), de 23 de novembro de 2017, Di Maura (C‑246/16, EU:C:2017:887, n.o 23), de 13 de março de 2008, Securenta (C‑437/06, EU:C:2008:166, n.o 25), e de 1 de abril de 2004, Bockemühl (C‑90/02, EU:C:2004:206, n.o 39).

( 19 ) Acórdão de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 39), v., no mesmo sentido, Acórdão de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 59 e jurisprudência aí referida).

( 20 ) Acórdão de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 40), v., neste sentido, Acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167, n.o 41).

( 21 ) Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 48), de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C‑309/06, EU:C:2008:211, n.o 41), de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis (C‑441/98 e C‑442/98, EU:C:2000:479, n.o 31), e de 24 de março de 1988, Comissão/Itália (104/86, EU:C:1988:171, n.o 6).

( 22 ) Acórdão de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C‑309/06, EU:C:2008:211, n.o 41).

( 23 ) Acórdãos de 6 de setembro de 2011, Lady & Kid e o. (C‑398/09, EU:C:2011:540, n.o 21), de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C‑309/06, EU:C:2008:211, n.o 42 e n.o 56), e de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o. (C‑192/95 a C‑218/95, EU:C:1997:12, n.os 29 e segs.).

( 24 ) Acórdão de 16 de maio de 2013, Alakor Gabonatermelő és Forgalmazó Kft. (C‑191/12, EU:C:2013:315, n.o 28). Por exemplo, se o Estado‑Membro tiver subvencionado ao mesmo tempo o preço erradamente demasiado elevado. Esta situação não se verifica, todavia, no presente caso.

( 25 ) Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 49), de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C‑309/06, EU:C:2008:211, n.o 43), e de 2 de outubro de 2003, Weber's Wine World e o. (C‑147/01, EU:C:2003:53, n.o 100).

( 26 ) É neste sentido que se deve provavelmente entender a fundamentação do Acórdão de 24 de março de 1988, Comissão/Itália (104/86, EU:C:1988:171, n.o 11). No mesmo sentido aponta o Acórdão de 6 de setembro de 2011, Lady & Kid e o. (C‑398/09, EU:C:2011:540, n.o 20), que, a respeito da recusa de reembolso de impostos não devidos, fala em uma exceção que deve ser interpretada em sentido estrito. V., igualmente, Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis (C‑441/98 e C‑442/98, EU:C:2000:479, n.o 33).

( 27 ) Neste sentido, expressamente, Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o. (C‑192/95 a C‑218/95, EU:C:1997:12, n.o 25 in fine).

( 28 ) Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 50), de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C‑309/06, EU:C:2008:211, n.o 44), de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis (C‑441/98 e C‑442/98, EU:C:2000:479, n.o 32), e de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o. (C‑192/95 a C‑218/95, EU:C:1997:12, n.os 23 e 25).

( 29 ) Acórdão de 1 de julho de 2021, Tribunal Económico Administrativo Regional de Galicia (C‑521/19, EU:C:2021:527, n.o 34). O Tribunal de Justiça censurou com razão a proposta da Administração Tributária de aumentar em IVA, a título de sanção, o preço (isento) acordado.

( 30 ) V., em sentido semelhante, desde logo Acórdão de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 50).

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