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Document 62021CC0068

Conclusões do advogado-geral Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 5 de maio de 2022.
Iveco Orecchia SpA contra APAM Esercizio SpA e Brescia Trasporti SpA.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Consiglio di Stato.
Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Veículos a motor — Diretiva 2007/46/CE — Especificações técnicas — Proposta de fornecimento de peças sobresselentes equivalentes às originais de uma marca precisa — Falta de prova de homologação — Declaração de equivalência ao original pelo proponente — Conceito de “fabricante” — Meios de prova — Contratos públicos — Diretiva 2014/25/UE.
Processos apensos C-68/21 e C-84/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:365

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 5 de maio de 2022 ( 1 )

Processos apensos C‑68/21 e C‑84/21

Iveco Orecchia SpA

contra

APAM Esercizio SpA (C‑68/21),

Brescia Trasporti SpA (C‑84/21),

sendo intervenientes:

Veneta Servizi International Srl unipersonale,

Var Srl,

Di Pinto & Dalessandro SpA,

Bellizzi Srl

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália)]

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2014/25/UE — Artigos 60.o e 62.o — Especificações técnicas — Componentes para autocarros da marca Iveco ou equivalentes — Prova da equivalência — Diretiva 2007/46/CE — Artigo 10.o, n.o 2, artigo 19.o, n.o 1, artigo 28.o, n.o 1, e anexo IV — Homologação CE — Componentes — Necessidade de que os componentes abrangidos por um dos atos regulamentares que constam do anexo IV disponham da homologação CE»

1.

Em Itália, duas empresas públicas responsáveis pela prestação do serviço de transportes urbanos e interurbanos de passageiros nos respetivos municípios (Mântua e Brescia) lançaram um concurso para o fornecimento de peças sobresselentes para autocarros. As peças sobresselentes tanto podiam ser originais da marca Iveco, à qual correspondiam os veículos, como equivalentes.

2.

Uma vez adjudicados os contratos de fornecimento, uma empresa proponente que não tinha sido selecionada interpôs dois recursos no âmbito dos quais se discute se as «peças sobresselentes equivalentes» deviam dispor de uma homologação CE, em conformidade com a Diretiva 2007/46/CE ( 2 ).

3.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) pretende saber, antes de mais, se a homologação é necessária para o fornecimento das peças sobresselentes equivalentes ou se seria suficiente apresentar, juntamente com a proposta, uma declaração de equivalência ao original homologado.

I. Quadro jurídico: direito da União

A.   Diretiva 2007/46

4.

O artigo 1.o («Objeto») dispõe:

«A presente diretiva estabelece um quadro harmonizado que contém as disposições administrativas e os requisitos técnicos gerais aplicáveis à homologação de todos os veículos novos que sejam abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como à homologação de sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a esses veículos, no intuito de facilitar a respetiva matrícula, venda e colocação em circulação na Comunidade.

A presente diretiva estabelece igualmente as disposições relativas à venda e entrada em circulação das peças e equipamentos destinados a veículos homologados nos termos nela previstos.

Os requisitos técnicos específicos relativos ao fabrico e ao funcionamento dos veículos devem ser estabelecidos em aplicação da presente diretiva em atos regulamentares, cuja lista exaustiva consta do anexo IV.»

5.

Nos termos do artigo 2.o («Âmbito de aplicação»):

«1.   A presente diretiva é aplicável à homologação de veículos projetados e fabricados numa ou mais fases para utilização em estrada, e de sistemas, componentes e unidades técnicas projetados e fabricados para esses veículos.

[…]».

6.

Em conformidade com o artigo 3.o («Definições»):

«Para efeitos do disposto na presente diretiva e nos atos regulamentares enumerados no anexo IV, salvo disposição em contrário neles prevista, entende‑se por:

1)

“Ato regulamentar”, uma diretiva ou um regulamento específicos ou um regulamento UNECE anexo ao Acordo de 1958 revisto;

2)

“Diretiva ou regulamento específicos”, uma diretiva ou um regulamento enumerado na parte I do anexo IV. Esta expressão inclui igualmente os atos de execução respetivos;

3)

“Homologação”, o procedimento através do qual um Estado‑Membro certifica que um modelo de veículo ou tipo de sistema, de componente ou de unidade técnica cumpre as disposições administrativas e os requisitos técnicos aplicáveis;

4)

“Homologação nacional”, um procedimento de homologação estabelecido na legislação nacional de um Estado‑Membro, homologação essa cuja validade é limitada ao território desse Estado‑Membro;

5)

“Homologação CE”, o procedimento através do qual um Estado‑Membro certifica que um modelo de veículo ou tipo de sistema, de componente ou de unidade técnica cumpre as disposições administrativas e os requisitos técnicos aplicáveis constantes da presente diretiva e dos atos regulamentares enumerados nos anexos IV ou XI;

[…]

24)

“Componente”, um dispositivo sujeito aos requisitos de um ato regulamentar e destinado a ser parte de um veículo, que pode ser homologado separadamente se o ato regulamentar o previr expressamente;

[…]»

7.

O artigo 7.o («Procedimento a seguir para a homologação CE de sistemas, componentes ou unidades técnicas») tem a seguinte redação:

«1.   O pedido deve ser apresentado pelo fabricante à entidade homologadora. Para cada tipo de sistema, componente ou unidade técnica, só pode ser apresentado um único pedido junto de um único Estado‑Membro. Para cada tipo a homologar, deve ser apresentado um pedido separado.

2.   O pedido deve ser acompanhado do dossier de fabrico, cujo conteúdo é indicado nas diretivas ou regulamentos específicos aplicáveis.

[…]»

8.

O artigo 10.o («Disposições específicas aplicáveis a sistemas, componentes ou unidades técnicas») dispõe:

«[…]

2.   Os Estados‑Membros devem conceder a homologação CE de componente ou unidade técnica aos componentes ou unidades técnicas que estejam em conformidade com as informações contidas no dossier de fabrico e que satisfaçam os requisitos técnicos previstos na diretiva ou regulamento específicos aplicáveis, conforme previsto no anexo.

[…]»

9.

O artigo 19.o («Marca de homologação CE») dispõe:

«1.   O fabricante de um componente ou de uma unidade técnica, quer estes façam ou não parte de um sistema, deve apor em cada componente ou unidade fabricados em conformidade com o tipo homologado a marca de homologação CE exigida pela diretiva específica ou regulamento aplicáveis.

2.   No caso de não ser exigida a marca de homologação CE, o fabricante deve apor, no mínimo, a sua firma ou marca comercial, o número do tipo e/ou um número de identificação.

3.   A marca de homologação CE deve respeitar o disposto no apêndice do anexo VII.»

10.

O artigo 28.o («Venda e entrada em circulação de componentes e unidades técnicas») prevê:

«1.   Os Estados‑Membros só devem autorizar a venda ou a entrada em circulação de componentes ou unidades técnicas se estes satisfizerem os requisitos dos atos regulamentares aplicáveis e forem devidamente marcados nos termos do artigo 19.o

[…]»

11.

O artigo 46.o («Sanções») enuncia:

«Os Estados‑Membros determinam as sanções aplicáveis em caso de violação das disposições da presente diretiva, em especial as proibições constantes do artigo 31.o ou dele decorrentes, e dos atos regulamentares enumerados na parte I do anexo IV, e tomam as medidas necessárias para a sua aplicação. […]»

12.

O anexo IV («Lista de requisitos para efeitos de homologação CE de veículos») é composto por duas partes: uma enumera a lista de «atos regulamentares» (diretivas específicas e regulamentos) e, outra, após definir os regulamentos UNECE [«correspondem aos regulamentos a que a Comissão aderiu enquanto parte contratante no “Acordo de 1958 revisto” da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa, por força da Decisão 97/836/CE do Conselho (JO 1997, L 346, p. 78), ou por decisões subsequentes deste último, conforme disposições constantes do artigo 3.o, n.o 3, da referida decisão»], estabelece a relação entre eles.

B.   Diretiva 2014/25/UE ( 3 )

13.

O artigo 60.o («Especificações técnicas») enuncia:

«1.   As especificações técnicas definidas no ponto 1 do Anexo VIII devem constar dos documentos do concurso. As especificações técnicas definem as características exigidas para as obras, serviços ou fornecimentos.

[…]

2.   As especificações técnicas devem permitir a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não podem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência.

3.   Sem prejuízo das regras técnicas nacionais vinculativas, na medida em que sejam compatíveis com o direito da União, as especificações técnicas devem ser formuladas segundo uma das seguintes modalidades:

a)

Em termos de desempenho ou de requisitos funcionais, incluindo as características ambientais, desde que os parâmetros sejam suficientemente precisos para permitir que os proponentes determinem o objeto do contrato e que as entidades adjudicantes procedam à respetiva celebração;

b)

Por referência a especificações técnicas definidas e, por ordem de preferência, a normas nacionais que transponham normas europeias, a avaliações técnicas europeias, a especificações técnicas comuns, a normas internacionais, a outros referenciais técnicos estabelecidos pelos organismos europeus de normalização ou quando qualquer um destes não exista a normas nacionais, a homologações técnicas nacionais ou a especificações técnicas nacionais em matéria de conceção, cálculo e execução das obras e de utilização dos fornecimentos; cada referência deve ser acompanhada da menção “ou equivalente”;

c)

Em termos do desempenho ou dos requisitos funcionais a que se refere a alínea a), remetendo, como meio de presunção da conformidade com esse desempenho ou esses requisitos funcionais, para as especificações técnicas a que se refere a alínea b);

d)

Por referência às especificações técnicas a que se refere a alínea b), para determinadas características, e por referência ao desempenho ou aos requisitos funcionais a que se refere a alínea a), para outras.

4.   A menos que o objeto do contrato o justifique, as especificações técnicas não podem fazer referência a determinado fabrico ou proveniência, a um processo específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado operador económico, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas ou produtos. Tal referência é autorizada, a título excecional, no caso de não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato nos termos do n.o 3. Essa referência deve ser acompanhada da menção “ou equivalente”.

5.   Sempre que as entidades adjudicantes recorrerem à possibilidade de remeter para as especificações técnicas a que se refere o n.o 3, alínea b), não podem excluir uma proposta com o fundamento de que as obras, fornecimentos ou serviços dela constantes não estão em conformidade com as suas especificações técnicas de referência, se o proponente demonstrar na sua proposta por qualquer meio adequado, nomeadamente os meios de prova referidos no artigo 62.o, que as soluções propostas satisfazem de modo equivalente os requisitos definidos nas especificações técnicas.

6.   […]

Cabe ao proponente demonstrar, na sua proposta, por qualquer meio adequado, incluindo os meios referidos no artigo 62.o, que o fornecimento, o serviço ou a obra conforme com a norma corresponde ao desempenho ou preenche os requisitos funcionais da entidade adjudicante.»

14.

O artigo 62.o («Relatórios de ensaio, certificação e outros meios de prova») dispõe:

«1.   As entidades adjudicantes podem exigir aos operadores económicos a apresentação de um relatório de ensaio de um organismo de avaliação da conformidade ou um certificado emitido por tal organismo como meio de prova da conformidade com os requisitos ou critérios estabelecidos nas especificações técnicas, com os critérios de adjudicação ou com as condições de execução dos contratos.

Quando as entidades adjudicantes exigirem a apresentação de certificados emitidos por um organismo de avaliação da conformidade específico, devem também aceitar os certificados de outros organismos de avaliação da conformidade equivalentes.

[…]

2.   As entidades adjudicantes devem aceitar outros meios de prova adequados além dos enunciados no n.o 1, como a documentação técnica do fabricante, caso o operador económico em causa não tenha acesso aos certificados ou aos relatórios de ensaio referidos no n.o 1, nem qualquer possibilidade de os obter dentro dos prazos estabelecidos, desde que a falta de acesso não seja imputável ao próprio operador económico e desde que este prove que as obras, fornecimentos ou serviços por ele prestados cumprem os requisitos ou critérios indicados nas especificações técnicas, nos critérios de adjudicação ou nas condições de execução dos contratos.

[…]»

II. Matéria de facto, processos e questões prejudiciais

A.   Adjudicações controvertidas

1. Processo C‑68/21

15.

A APAM Esercizio SpA, empresa que opera no setor dos transportes públicos urbanos e interurbanos em Mântua (Itália), procedeu a um anúncio ( 4 ) de concurso aberto para o fornecimento bienal de «peças sobresselentes originais Iveco ou equivalentes para autocarros» (CIG 7602877C91), cujo valor estimativo em 710000 euros.

16.

O artigo 5.1. («Tipologia das peças sobresselentes») do caderno de encargos distinguia entre:

«Peças sobresselentes destinadas à segurança do veículo e à proteção do ambiente». No que lhes diz respeito, «os componentes sujeitos à prova de homologação com o veículo ou como unidades técnicas só [deveriam] ser fornecidos componentes originais ou equivalentes legalmente homologados em conformidade com a legislação nacional (Código da Estrada) e comunitária (Diretiva 98/14/CEE, Diretiva 2007/46 e anexo IV da mesma)».

«Peças sobresselentes originais (ou de primeira montagem)».

«Peças sobresselentes equivalentes», definidas como «as peças sobresselentes (peças, componentes, equipamentos) de qualidade equivalente ao original, ou peças de qualidade pelo menos igual à dos componentes utilizados para a montagem do veículo, produzidas de acordo com as especificações técnicas e as normas de produção específicas do fabricante da peça sobresselente original».

17.

Esse artigo acrescentava que «essas peças sobresselentes [equivalentes], em conformidade com a regulamentação da União e com as disposições legais em vigor, podem ser fabricadas por qualquer empresa capaz de certificar em qualquer momento, em conformidade com a regulamentação em vigor (UNI CEI ENISO/IEC 17050), que a qualidade das peças sobresselentes produzidas corresponde à das peças originais utilizadas para a montagem dos veículos automóveis em questão».

18.

O artigo 5.o, n.o 2 («Certificações e declarações») do caderno de encargos precisava que o proponente «deve apresentar no âmbito do concurso e para peça sobresselente equivalente proposta a certificação de conformidade ou uma homologação específica do componente de substituição fornecido pelo fabricante ou pelo homologador ou pelo laboratório dos ensaios certificados segundo a norma ISO 45000».

19.

O artigo 15.o («Documentação administrativa») do caderno de encargos, exigia, na sua alínea d), «[…] a documentação técnica adequada para cada peça sobresselente equivalente proposta, acompanhada de: […] Um certificado de homologação do produto, quando obrigatório, emitido pelo fabricante da peça sobresselente equivalente proposta; um certificado de equivalência do produto apresentado em relação ao produto de origem (ou de primeira montagem) correspondente, em termos de permutabilidade perfeita, sem recorrer a nenhuma adaptação, a peça sobresselente do conjunto ou o sistema em que deve ser montada e características de desempenho que garantam uma funcionalidade e uma segurança regulares do produto no sistema, bem como uma vida idêntica, emitida pelo produtor da peça sobresselente equivalente proposta».

20.

Três empresas participaram no procedimento, entre elas a Iveco Orecchia e a Veneta Servizi International Srl unipersonale, à qual o contrato foi adjudicado.

2. Processo C‑84/21

21.

A Brescia Trasporti SpA, empresa que opera no setor dos transportes públicos urbanos e interurbanos de Brescia (Itália), procedeu a um anúncio ( 5 ) de concurso, cujo valor de base do contrato estimativo era de 2100000 euros, que tinha por objeto «o fornecimento de peças sobresselentes para autocarros da marca Iveco com um motor Iveco — CIG 7680570EDB».

22.

O artigo 1.o («Definições técnicas») do documento que continha as especificações técnicas do concurso previa três tipos de peças sobresselentes: «peças sobresselentes originais», «peças sobresselentes originais de primeira montagem» e «peças sobresselentes equivalentes».

23.

Segundo o artigo 1.o, n.o 3, «as peças sobresselentes de qualidade equivalente equivalentes ao original são peças de qualidade pelo menos igual à dos componentes utilizados para o fabrico do veículo, produzidas segundo as especificações técnicas e as normas de produção específicas do fabricante da peça sobresselente».

24.

O artigo 2.o («Características das peças sobresselentes a fornecer […]») desse mesmo documento previa que o proponente devia indicar, para cada peça sobresselente, se pretendia fornecer uma original, de primeira montagem ou uma equivalente.

25.

O artigo 3.o («Documentação a apresentar com a proposta»), no que respeita às «peças sobresselentes de qualidade equivalente», exigia que a proposta fosse acompanhada, sob pena de exclusão, de um «certificado do fabricante da produção atestando, para cada peça sobresselente:

que a qualidade das peças sobresselentes é suficientemente elevada para que a sua utilização não comprometa a reputação da rede autorizada;

a sua natureza perfeitamente intermutável com as peças sobresselentes originais, […] sem recurso a nenhuma adaptação da peça sobresselente, do conjunto ou do sistema em que deva ser montada […]».

26.

O artigo 3.o acrescentava que «o fornecedor deve ainda apresentar o certificado de homologação do produto, quando obrigatório. No que respeita às guarnições de travões, aos discos de travões e aos tambores, o fornecedor deve apresentar, além dos documentos acima referidos, o certificado de homologação comunitária ECE R90».

27.

Participaram no concurso a Iveco Orecchia e a VAR Srl, à qual o contrato foi adjudicado.

B.   Processos nacionais e questão prejudicial

28.

A Iveco Orecchia impugnou no Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia — sezione staccata di Brescia (Tribunal Administrativo Regional da Lombardia — Secção de Brescia), as duas decisões de adjudicação argumentando, em substância, que:

os adjudicatários não provaram, através de certificação ou por outros meios, a homologação dos componentes exigidos pelos documentos do contrato e pela legislação na matéria;

subsidiariamente, as condições do concurso eram ilegais, se fossem interpretadas no sentido de que não exigiam, quando necessário, a apresentação de um certificado de homologação emitido por uma autoridade competente ou, em todo o caso, a prova da existência dessa homologação.

29.

O órgão jurisdicional de primeira instância negou provimento aos dois recursos da Iveco Orecchia por Acórdãos de 25 de junho e de 26 de agosto de 2019, dos quais esta empresa recorreu para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ( 6 ).

30.

Segundo o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ( 7 ):

As peças sobresselentes originais Iveco, objeto do contrato de fornecimento, são homologadas conjuntamente com o veículo.

A venda de peças sobresselentes sujeitas a homologação, sobretudo se forem suscetíveis de comprometer a segurança dos veículos e as prestações ambientais, só é possível se essas peças tiverem sido homologadas e aprovadas pela autoridade homologadora.

O anexo IV da Diretiva 2007/46 contém a lista específica e detalhada das categorias de componentes para os quais existe uma regulamentação pertinente, e também específica, relativa à sua homologação.

As especificações técnicas pediam o certificado de homologação, quando fosse necessário ( 8 ).

À luz destes elementos, importa determinar se é necessária a homologação dos componentes não originais produzidos por um fabricante desses componentes.

A regulamentação aplicável, a saber, a Diretiva 2007/46 e as disposições nacionais de transposição, parece impor as mesmas obrigações de homologação aos fabricantes de veículos (que os homologam no seu conjunto e, ao fazê‑lo, homologam automaticamente cada uma das suas partes) e aos fabricantes de componentes.

Assim, se uma peça ou um componente está sujeita às disposições de um ato regulamentar (contemplado no anexo IV da Diretiva 2007/46), só pode ser comercializada se tiver sido previamente homologada.

Todavia, poderia igualmente defender‑se, como propõem as empresas recorridas, que não devem ser exigidos para as propostas de peças sobresselentes previstas na tipologia do referido anexo IV, efetuadas por outros sujeitos distintos dos fabricantes de veículos, os mesmos documentos técnicos comprovativos de que essas peças foram sujeitas aos ensaios que são exigidos aos componentes originais homologados. Nesta perspetiva, uma certificação genérica de equivalência, que declare a conformidade da peça sobresselente com as especificações técnicas previstas no caderno de encargos e a correspondência das soluções propostas com o indicado nesse caderno de encargos, poderia revelar‑se suficiente como alternativa a essa documentação.

31.

Neste contexto, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) submete duas questões prejudiciais, das quais, abordarei apenas a primeira, por indicação do Tribunal de Justiça. Tem a seguinte redação:

«É conforme com o direito da União — em especial com as disposições da Diretiva 2007/46/CE (que figuram nos artigos 10.o, 19.o e 28.o da referida diretiva), e com os princípios da igualdade de tratamento e da imparcialidade, da plena concorrência e da boa administração — que, no que se refere especificamente ao fornecimento por contrato público de peças sobress[e]lentes para autocarros destinados ao serviço público, a entidade adjudicante seja autorizada a aceitar peças sobress[e]lentes destinadas a um dado veículo, produzidas por um fabricante distinto do fabricante do veículo, por conseguinte, não homologadas juntamente com o veículo, pertencentes a um dos tipos de componentes abrangidos pelas normas técnicas constantes do anexo IV da referida diretiva (Lista de requisitos para efeitos de homologação CE de veículos) e propostas no concurso sem estarem acompanhadas do certificado de homologação e sem nenhuma informação sobre a efetiva homologação, no pressuposto de que a homologação não é necessária, sendo suficiente uma declaração de equivalência ao original homologado emitida pelo proponente?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

32.

Os pedidos de decisão prejudicial foram registados no Tribunal de Justiça em 3 e 11 de fevereiro de 2021, respetivamente.

33.

Apresentaram observações escritas a Iveco Orecchia, a Brescia Trasporti SpA, a Var Srl, a Veneta Servizi International Srl unipersonale, a Di Pinto & Dalessandro SpA, a APAM Esercizio SpA, o Governo de Itália e a Comissão Europeia. Todos intervieram na audiência realizada em 10 de março de 2022, com exceção da Di Pinto & Dalessandro SpA.

IV. Apreciação

A.   Observação preliminar

34.

Embora o órgão jurisdicional de reenvio esteja interessado apenas na interpretação dos artigos 10.o, 19.o e 28.o da Diretiva 2007/46, não se pode ignorar que os litígios dizem respeito a contratos de fornecimento cuja adjudicação foi feita segundo um procedimento sujeito aos preceitos da Diretiva 2014/25.

35.

Com efeito, como a Comissão destaca e foi salientado na audiência, as adjudicações controvertidas foram feitas por entidades que operam no setor dos transportes urbanos e interurbanos, cujo regime é fixado pela Diretiva 2014/25.

36.

Tanto os despachos de reenvio como algumas das observações escritas referem a Diretiva 2014/24/EU ( 9 ). Todavia, não penso que seja essa a regulamentação de referência adequada.

37.

Repito que o objeto dos contratos a concurso foi, nestes processos, o fornecimento de peças sobresselentes para autocarros no âmbito da prestação do serviço público de transporte. Esses contratos estão sujeitos à Diretiva 2014/25, uma vez que são instrumentais das «atividades que tenham por objetivo a disponibilização ou exploração de redes destinadas à prestação de serviços ao público no domínio dos transportes por […] autocarros […]», a que se refere o seu artigo 11.o

38.

Os serviços de transporte estão expressamente abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2014/25, segundo o seu artigo 1.o, n.o 2.

39.

De qualquer modo, os artigos aqui pertinentes da Diretiva 2014/25 (artigos 60.o e 62.o) são equivalentes aos seus artigos correspondentes da Diretiva 2014/24 (artigos 42.o e 44.o).

B.   Primeira questão prejudicial

40.

A dúvida do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) tem contornos bem delimitados: pretende saber se uma entidade adjudicante pode aceitar peças sobresselentes para autocarros, quando, cumulativamente:

Essas peças correspondem a uma das categorias do anexo IV da Diretiva 2007/46.

Foram produzidas por um fabricante diferente do fabricante do autocarro, isto é, não homologadas juntamente com este último.

Não estão acompanhadas do certificado de homologação nem de nenhuma outra informação sobre a sua efetiva homologação, partindo do pressuposto de que essa homologação não é necessária e de que é suficiente uma declaração de equivalência (à peça original) emitida pelo próprio proponente.

41.

Para responder a esta dúvida, analisarei, em primeiro lugar, as normas da União relativas à homologação dos veículos a motor, bem como dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a esses veículos. Seguidamente, referir‑me‑ei às diferenças entre a homologação e a equivalência, para expor, por último, a incidência sobre os presentes processos da Diretiva 2014/25.

1. Homologação de veículos e dos seus componentes

42.

A Diretiva 2007/46 pretende «substituir os regimes de homologação dos Estados‑Membros por um procedimento de homologação comunitária baseado no princípio da harmonização total» ( 10 ).

43.

O artigo 1.o da Diretiva 2007/46, ao definir o seu objeto, faz alusão ao estabelecimento de «um quadro harmonizado que contém as disposições administrativas e os requisitos técnicos gerais aplicáveis à homologação» não apenas dos veículos novos que sejam abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, mas também de sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a tais veículos.

44.

Nesse mesmo quadro estabelecem‑se «[…] disposições relativas à venda e entrada em circulação das peças e equipamentos destinados a veículos homologados nos termos nela previstos».

45.

A Diretiva 2007/46 introduz o conceito de «homologação» ( 11 ), que é diferente da homologação individual. A homologação tanto pode ser «nacional», cuja validade é limitada ao território de um Estado‑Membro, como «homologação CE». Esta última certifica que são cumpridas «as disposições administrativas e os requisitos técnicos aplicáveis constantes da […] diretiva e dos atos regulamentares enumerados nos anexos IV ou XI» ( 12 ).

46.

Como já salientei, a questão prejudicial diz apenas respeito às categorias de componentes ( 13 ) que constam dos atos regulamentares ( 14 ) enumerados no anexo IV da Diretiva 2007/46.

47.

A homologação CE dos componentes pode ser feita quer juntamente com o veículo novo quer separadamente ( 15 ). Em conformidade com o artigo 3.o, ponto 24, da Diretiva 2007/46, um componente destinado a ser parte de um veículo pode ser homologado separadamente desse veiculo.

48.

Para a homologação CE de componentes separados é seguido um procedimento regulado no artigo 7.o da Diretiva 2007/46 e cujas disposições específicas se encontram previstas no artigo 10.o Nos termos do n.o 2 deste último, «[o]s Estados‑Membros devem conceder a homologação CE de componente ou unidade técnica aos componentes […] que […] satisfaçam os requisitos técnicos previstos na diretiva ou regulamento específicos aplicáveis, conforme previsto no anexo IV».

49.

Embora não tão claramente como seria desejável, dos artigos 10.o, n.o 2, 19.o e 28.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46 infere‑se que os componentes do veículo enumerados no seu anexo IV estão, em princípio, sujeitos a homologação.

50.

É significativo, com efeito, que, em conformidade com o artigo 28.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46, os Estados‑Membros só possam autorizar a venda ou a colocação em circulação dos componentes homologados. Consideram‑se como tal os que «satisfizerem os requisitos dos atos regulamentares aplicáveis [os enumerado no anexo IV] e forem devidamente marcados nos termos do artigo 19.o».

51.

A fim de verificar se os componentes (originais ou não) de um veículo respeitam os requisitos técnicos previstos nos atos regulamentares do anexo IV, o instrumento escolhido pela Diretiva 2007/46 é, precisamente, o da homologação e não outro. Na minha opinião, esta é a interpretação mais adequada do artigo 10.o, n.o 2, dessa diretiva, lido à luz dos atos regulamentares para os quais remete o seu anexo IV.

52.

Ora, pode acontecer (como a VAR sublinhou nas suas observações escritas e foi confirmado pela Comissão e pelo Governo italiano na audiência) que, nos termos desses mesmos atos regulamentares, um componente, em concreto, esteja isento da homologação obrigatória. Nesse caso, não é obrigatória a apresentação do certificado de homologação, que é incontornável no que respeita aos outros componentes enumerados na lista do anexo IV.

53.

Essa possibilidade encontra‑se prevista no artigo 19.o, n.o 2, da Diretiva 2007/46: «[n]o caso de não ser exigida a marca de homologação CE, o fabricante [do componente] deve apor, no mínimo, a sua firma ou marca comercial, o número do tipo e/ou um número de identificação».

54.

Por conseguinte, sob reserva dessa circunstância, os componentes referidos num dos atos regulamentares enumerados no anexo IV da Diretiva 2007/46 não podem ser colocados no mercado se não tiverem obtido previamente a homologação CE. Sem ela, insisto, a sua venda e a sua colocação em circulação não são autorizadas.

55.

Essa exigência está ligada a imperativos de segurança para o tráfego de veículos, em função dos quais é solicitada a homologação das (nem todas) peças sobresselentes ( 16 ). A homologação CE constitui, assim, uma condição prévia de aptidão que diz respeito não apenas aos canais de introdução através da adjudicação de contratos públicos, mas também a qualquer modalidade de colocação no mercado.

56.

O facto de os componentes serem fabricados pelo titular da marca ou por um produtor de peças sobresselentes é indiferente, como o é também o facto de serem instalados num veículo novo ou num outro usado. Por conseguinte, não se pode falar de uma discriminação em detrimento dos fabricantes de peças sobresselentes equivalentes: quando se trate de componentes sujeitos à homologação CE, os equivalentes e os originais estão sujeitos ao mesmo regime ( 17 ).

57.

Assente esta premissa, em resposta à primeira parte da primeira questão prejudicial, deve‑se afirmar que:

Em princípio, uma entidade adjudicante não pode aceitar, sem o certificado de homologação, peças sobresselentes abrangidas pelos atos regulamentares enumerados no anexo IV da Diretiva 2007/46, quando esses atos exijam a homologação dessas peças.

Compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, à luz dos componentes específicos que eram objeto do concurso público, se estavam sujeitos a homologação obrigatória por força dos referidos atos regulamentares.

2. Homologação e equivalência

58.

Na segunda parte da primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, na hipótese que refere, se seria suficiente uma declaração de equivalência ao original homologado, emitida pelo próprio proponente.

59.

Os conceitos de homologação e de equivalência têm o seu significado próprio, que não coincide:

A homologação é uma técnica de controlo, feita por uma autoridade, organismo ou entidade sob os seus auspícios, com a qual se certifica que um veículo (ou, neste caso, os seus componentes) cumpre certas prescrições regulamentares e determinados requisitos técnicos.

A (declaração de) equivalência limita‑se à comparação objetiva de determinados produtos, independentemente de terem sido previamente homologados ou não.

60.

Como já referi, a homologação constitui um requisito para a colocação no mercado de componentes do veículo que devem respeitar especificações técnicas muito pormenorizadas. O seu fundamento são exigências imperativas de segurança, incontornáveis dado que se trata da circulação de veículos na via pública.

61.

A equivalência (no presente caso, de peças sobresselentes de diferentes fabricantes, que desempenham a mesma função) prende‑se sobretudo com as características, semelhantes ou distintas, dos produtos comparados.

62.

As provas de cada uma dessas condições não são intermutáveis. Um componente homologado pode não ser equivalente ao que a entidade adjudicante pede e, inversamente, um componente não homologado pode ser materialmente equivalente aos originais previstos nas especificações técnicas do concurso.

63.

Poder‑se‑ia pensar que, se duas peças sobresselentes, uma homologada e outra não, são de qualidade equivalente e intermutáveis, é porque ambas preenchem os requisitos técnicos para passar no controlo de homologação. Todavia, não me parece que a Diretiva 2007/46 permita essa presunção. Quando estão em causa a segurança rodoviária e a proteção do ambiente, é necessário o controlo de um terceiro (a autoridade ou o organismo que procede à homologação em conformidade com procedimentos e ensaios específicos) para cada protótipo, a menos que um ato regulamentar o considere desnecessário.

64.

Não penso que as peças sobresselentes estejam isentas do controlo da homologação (e exclusivamente sujeitos à declaração de equivalência) pelo simples facto de que se destinem a ser montadas num veículo usado. O facto de se destinarem a serem incorporadas no veículo usado (por definição, a posteriori) não as torna automaticamente mais seguras, como parecem considerar algumas das partes no litígio.

65.

As cláusulas que regulam as duas adjudicações em causa nestes litígios estavam em conformidade com este critério: para as peças sobresselentes equivalentes sujeitas a homologação, o proponente devia apresentar, sob pena de exclusão da sua proposta, o certificado de homologação.

66.

Por conseguinte, no que respeita a este tipo específico de peças sobresselentes, não se pode aceitar como alternativa à apresentação dos certificados de homologação, uma simples declaração unilateral do proponente que comprove a equivalência das peças sobresselentes aos componentes originais.

67.

Assim, no que respeita às peças sobresselentes sujeitas a homologação obrigatória, a declaração de equivalência ao original homologado emitida pelo proponente não é suficiente.

68.

Resta examinar se esta interpretação da Diretiva 2007/46 é compatível com os princípios e com as disposições da Diretiva 2014/25.

3. Incidência da Diretiva 2014/25

69.

As entidades adjudicantes definem, nos cadernos de encargos que publicam, as características das obras, dos serviços ou dos fornecimentos que tencionam adquirir no âmbito dos contratos públicos. Entre essas características podem figurar as correspondentes às «especificações técnicas» dos respetivos produtos ou serviços.

70.

Como tive ocasião de assinalar, «[a] descrição distorcida dessas especificações técnicas pode constituir, no mínimo, uma importante “barreira de entrada” a certos concorrentes e, em casos extremos, predeterminar (incluindo de modo fraudulento) a escolha final do adjudicatário, quando este é o único a poder oferecer produtos ou serviços que preencham as características indicadas» ( 18 ).

71.

A preocupação de evitar práticas irregulares e o objetivo de «permitir a abertura dos contratos públicos à concorrência» levaram o legislador da União a estabelecer previsões regulamentares nesta matéria que possibilitem «a apresentação de propostas que reflitam a diversidade das soluções técnicas, das normas e das especificações técnicas existentes no mercado, nomeadamente das definidas com base em critérios de desempenho ligados ao ciclo de vida e à sustentabilidade do processo de produção das obras, fornecimentos e serviços» ( 19 ).

72.

Esse desígnio encontra‑se refletido no artigo 60.o, n.o 2, da Diretiva 2014/25: «As especificações técnicas devem permitir a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não podem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência».

73.

Por conseguinte, regra geral, «as especificações técnicas deverão ser elaboradas de forma a evitar uma redução artificial da concorrência através de requisitos que favoreçam um operador económico específico ao refletirem as principais características dos fornecimentos, serviços ou obras que este habitualmente oferece. A elaboração das especificações técnicas em termos de requisitos funcionais e de desempenho permite geralmente que esse objetivo seja alcançado da melhor forma possível» ( 20 ).

74.

Todavia, a título excecional, o artigo 60.o, n.o 4, da Diretiva 2014/25 autoriza que se faça «referência […] a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados». Mas essa possibilidade, que privilegia determinados produtores, é atenuada pela imposição de que a referência seja sempre acompanhada da menção «ou equivalente» ( 21 ).

75.

É coerente com os princípios do artigo 60.o, n.o 2, da Diretiva 2014/25 o facto de o n.o 5 desse mesmo artigo e o artigo 62.o, n.o 2, regularem a possibilidade de atestar o cumprimento das especificações técnicas, quando se trata de provar a equivalência das peças sobresselentes, de forma aberta e flexível, «o que significa que é autorizada a utilização de qualquer meio adequado» ( 22 ).

76.

No presente processo, os contratos tinham por objeto o fornecimento de peças sobresselentes, que tanto podiam ser originais Iveco como equivalentes. Ora, quando se tratasse de peças sobresselentes sujeitas ao requisito da homologação, o certificado que atestasse esta última não seria imprescindível, uma vez que, sem ele, essas peças sobresselentes (originais ou equivalentes) não poderiam ser disponibilizadas por um proponente, dado que faltaria um pressuposto indispensável para a sua comercialização.

77.

A Diretiva 2014/25 regulamenta a prova das especificações técnicas sem se referir à homologação dos bens objeto do fornecimento. É lógico que assim seja, porque a exigência de homologação dependerá do tipo de fornecimento que será adquirido ( 23 ) e os setores abrangidos por essa diretiva são muito heterogéneos.

78.

Ora, a Diretiva 2014/25, por mais que inspirada no desígnio de uma maior abertura dos contratos públicos à concorrência, não pode pôr de lado as exigências imperativas impostas por outras normas do direito da União.

79.

Tal é reconhecido no considerando 56 da Diretiva 2014/25: «[n]enhuma disposição da […] diretiva deverá impedir a imposição ou a aplicação das medidas necessárias à proteção da […] segurança públicas, da saúde e da vida humana e animal ou à preservação da vida vegetal ou outras medidas ambientais».

80.

Por conseguinte, a Diretiva 2014/25 não «deverá impedir» a aplicação da Diretiva 2007/46, na medida em que esta última visa «[…] assegurar um elevado nível de segurança rodoviária, de proteção da saúde e do ambiente, de eficiência energética e de proteção contra a utilização não autorizada» ( 24 ). Na medida em que a Diretiva 2007/46 imponha, precisamente tendo em vista esses objetivos, a homologação de determinadas peças sobresselentes de veículos, tal exigência torna‑se incontornável e não pode ser evitada mediante recurso à Diretiva 2014/25.

81.

Como argumenta a Comissão ( 25 ), esse mesmo critério inspira outras regras relativas ao funcionamento do mercado interno, pelas quais o legislador da União sublinhou a prevalência da lex specialis (como, por exemplo, a que regulamenta a circulação dos veículos a motor) em relação às disposições gerais sobre a livre circulação de produtos.

82.

De qualquer modo, a obrigação de homologar as peças sobresselentes não é incompatível com a abertura dos contratos públicos à concorrência. A fim de a preservar, o artigo 38.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46 facilita o acesso à produção de componentes aos concorrentes do fabricante do veículo. Este último deve pôr à disposição desses concorrentes as informações pertinentes, «incluindo, se for caso disso, os desenhos especificamente indicados no anexo ou apêndice de um ato regulamentar, que sejam necessárias para a homologação CE de componentes».

V. Conclusão

83.

Atendendo ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão prejudicial do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) nos seguintes termos:

«Os artigos 10.o, n.o 2, 19.o, n.o 1, e 28.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos, devem ser interpretados no sentido de que, no caso de um concurso relativo a um contrato público de fornecimento de componentes de peças sobresselentes para autocarros destinados ao serviço público de transporte autorizar que sejam propostas peças sobresselentes equivalentes cuja homologação seja obrigatória por força de um dos atos regulamentares que constam do anexo IV da diretiva referida, os proponentes devem apresentar o certificado de homologação CE, não sendo suficiente, para esse efeito, a apresentação de uma declaração de equivalência.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (Diretiva‑Quadro) (JO 2007, L 263, p. 1). Foi substituída pelo Regulamento (UE) 2018/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativo à homologação e à fiscalização do mercado dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a esses veículos, que altera os Regulamentos (CE) n.o 715/2007 e (CE) n.o 595/2009 e revoga a Diretiva 2007/46/CE (JO 2018, L 151, p. 1). O Regulamento 2018/858 não é aplicável, ratione temporis, a estes processos.

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17/CE (JO 2014, L 94, p. 243).

( 4 ) Anúncio publicado no suplemento do JO relativo aos contratos públicos europeus de 21 de agosto de 2018 (referência 2018/S 159‑365946).

( 5 ) Anúncio publicado no suplemento do JO relativo aos contratos públicos europeus de 13 de novembro de 2018 (referência 2018/S 218‑500319).

( 6 ) No Acórdão de 26 de agosto de 2019, o tribunal de primeira instância julgou improcedente o primeiro fundamento do pedido da Iveco Orecchia, entre outras considerações porque esta última não indicou especificamente quais as peças sobresselentes propostas pela Brescia Trasporti SpA que deveriam ter certificado de homologação.

( 7 ) N.os VIII.1, VIII.2 e VIII.4 dos despachos de reenvio.

( 8 ) Segundo o despacho de reenvio do processo C‑84/21, «no âmbito do concurso controvertido, as especificações técnicas pediam o certificado de homologação, quando fosse necessário, e para os discos de travão e tambores equivalentes remetia expressamente para o artigo 34.o da Diretiva 2007/46 (que, por sua vez, remete para os regulamentos CEPE prescritos para efeitos da homologação CE)».

( 9 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65).

( 10 ) Considerando 2.

( 11 )

( 12 ) Artigo 3.o, ponto 5, da Diretiva 2007/46.

( 13 ) Por conseguinte, não diz respeito aos sistemas e às unidades técnicas.

( 14 ) O artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2007/46 define «ato regulamentar» como «uma diretiva ou um regulamento específicos ou um regulamento UNECE [Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa] anexo ao Acordo de 1958 revisto» [«a que a Comissão aderiu enquanto parte contratante no “Acordo de 1958 revisto” da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa, por força da Decisão 97/836/CE do Conselho» (parte II do anexo IV da Diretiva‑Quadro)]. Nos termos do artigo 34.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46, «[o]s regulamentos UNECE a que a Comunidade aderiu, enumerados na parte I do anexo IV […] constituem parte integrante do regime de homologação CE de veículos, nos mesmos termos que as diretivas e regulamentos específicos».

( 15 ) Nestes litígios, as peças sobresselentes do autocarro não são homologadas conjuntamente com o próprio veículo, mas sim de forma separada.

( 16 ) Por isso, o artigo 46.o da Diretiva 2007/46 impõe aos Estados‑Membros que determinem «as sanções aplicáveis em caso de violação das disposições da presente diretiva […] e dos atos regulamentares enumerados na parte I do anexo IV, e [tomem] as medidas necessárias para a sua aplicação».

( 17 ) Nas suas observações escritas (p. 15 do original italiano) a VAR esclarece que «nunca defendeu que […] a homologação de uma peça sobresselente equivalente a um componente sujeito a homologação obrigatória “não seria necessária”, nem que, nesse caso, a homologação poderia ser substituída por uma “declaração de equivalência ao original homologado, apresentada pelo proponente”».

( 18 ) Conclusões do processo VAR e ATM (C‑14/17, EU:C:2018:135, n.o 2).

( 19 ) Considerando 83 da Diretiva 2014/25.

( 20 ) Ibidem.

( 21 ) Nos n.os 33 e segs. das Conclusões do processo VAR e ATM (C‑14/17, EU:C:2018:135) analisei de modo mais aprofundado a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à «[a] inclusão, nos anúncios dos concursos públicos ou no caderno de encargos, de especificações técnicas que remetam para uma determinada marca».

( 22 ) Acórdão de 12 de julho de 2018, VAR e ATM (C‑14/17, EU:C:2018:568, n.o 33).

( 23 ) Em muitos contratos de fornecimento, não existirão normas da União que regulem a homologação dos produtos. Em contrapartida, nestes processos, como os concursos diziam respeito a peças sobresselentes de veículos objeto de um quadro harmonizado, é aplicável uma regulamentação rigorosa que prevê a homologação, exceto se o ato regulamentar correspondente do anexo IV da Diretiva 2007/46 a excluir para alguns.

( 24 ) Considerando 3 da Diretiva 2007/46.

( 25 ) N.o 42 e nota 37 das suas observações escritas, em que refere o considerando 5 do Regulamento (CE) n.o 765/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de julho de 2008, que estabelece os requisitos de acreditação e fiscalização do mercado relativos à comercialização de produtos, e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 339/93 (JO 2008, L 218, p. 30). Nos termos desse considerando, «[o] quadro da fiscalização do mercado previsto no presente regulamento deverá completar e reforçar as disposições já existentes na legislação comunitária de harmonização em matéria de fiscalização do mercado e de aplicação das referidas disposições. Contudo, em harmonia com o princípio da especialidade (a lei especial prevalece sobre a lei geral), o presente regulamento só deverá aplicar‑se na medida em que não haja disposições especiais com objetivos, natureza ou efeitos noutras normas, vigentes ou futuras, da legislação comunitária de harmonização. Existem exemplos nos seguintes setores: precursores de drogas, dispositivos médicos, medicamentos para uso humano e medicamentos veterinários, veículos a motor e aviação. Por conseguinte, as disposições correspondentes do presente regulamento não deverão ser aplicáveis nos domínios abrangidos por essas disposições específicas» (o sublinhado é meu).

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