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Document 62019CJ0629

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 14 de outubro de 2020.
Sappi Austria Produktions-GmbH & Co KG e Wasserverband «Region Gratkorn-Gratwein» contra Landeshauptmann von Steiermark.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesverwaltungsgericht Steiermark.
Reenvio prejudicial — Ambiente — Resíduos — Diretiva 2008/98/CE — Artigo 2.o, n.o 2, alínea a), artigo 3.o, ponto 1, e artigo 6.o, n.o 1 — Águas residuais — Lamas de depuração — Âmbito de aplicação — Conceito de “resíduos” — Fim do estatuto de resíduo — Operação de valorização ou de reciclagem.
Processo C-629/19.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:824

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

14 de outubro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Resíduos — Diretiva 2008/98/CE — Artigo 2.o, n.o 2, alínea a), artigo 3.o, ponto 1, e artigo 6.o, n.o 1 — Águas residuais — Lamas de depuração — Âmbito de aplicação — Conceito de “resíduos” — Fim do estatuto de resíduo — Operação de valorização ou de reciclagem»

No processo C‑629/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria, Áustria), por Decisão de 14 de agosto de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de agosto de 2019, no processo

Sappi Austria Produktions‑GmbH & Co. KG,

Wasserverband «Region Gratkorn‑Gratwein»

contra

Landeshauptmann von Steiermark,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev (relator), presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Segunda Secção, A. Kumin, T. von Danwitz e P. G. Xuereb, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Sappi Austria Produktions‑GmbH & Co. KG e da Wasserverband «Region Gratkorn‑Gratwein», por P. Schaden e W. Thurner, Rechtsanwälte,

em representação do Governo austríaco, por J. Schmoll, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por F. Thiran e M. Noll‑Ehlers, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 2, alínea a), do artigo 3.o, ponto 1, do artigo 5.o, n.o 1, e do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas (JO 2008, L 312, p. 3).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Sappi Austria Produktions‑GmbH & Co. KG (a seguir «Sappi») e a Wasserverband «Region Gratkorn‑Gratwein» (Associação de fornecimento de água de Gratkorn‑Gratwein, Áustria) (a seguir «Wasserverband») ao Landeshauptmann von Steiermark (chefe do Governo do Land da Estíria, Áustria, a seguir «Administração Regional») a propósito de uma decisão desta última que declara que as alterações relativas às instalações industriais da Sappi e da Wasserverband, situadas no mesmo local, devem ser sujeitas a uma obrigação de autorização prévia.

Quadro jurídico

Direito da União

3

A Diretiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de julho de 1975, relativa aos resíduos (JO 1975, L 194, p. 39; EE 15 F1 p. 129), conforme alterada pela Diretiva 91/156/CEE do Conselho, de 18 de março de 1991 (JO 1991, L 78, p. 32) (a seguir «Diretiva 75/442»), tinha por objetivo essencial a proteção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e depósito dos resíduos.

4

A Diretiva 75/442 foi codificada pela Diretiva 2006/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2006, relativa aos resíduos (JO 2006, L 114, p. 9), que foi, em seguida, revogada e substituída pela Diretiva 2008/98. Os artigos 4.o, 8.o e 9.o da Diretiva 75/442 foram reproduzidos, em substância, no artigo 13.o, no artigo 36.o, n.o 1, e nos artigos 15.o e 23.o da Diretiva 2008/98.

5

O capítulo I da Diretiva 2008/98, sob a epígrafe «Objeto, âmbito de aplicação e definições», inclui os artigos 1.o a 7.o da mesma.

6

O artigo 1.o desta diretiva tem a seguinte redação:

«A presente diretiva estabelece medidas de proteção do ambiente e da saúde humana, prevenindo ou reduzindo os impactos adversos decorrentes da produção e gestão de resíduos, e reduzindo os impactos gerais da utilização dos recursos e melhorando a eficiência dessa utilização.»

7

O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da referida diretiva dispõe:

«São excluídos do âmbito de aplicação da presente diretiva, na medida em que já estejam abrangidos por demais legislação comunitária:

a)

As águas residuais;

[…]»

8

O artigo 3.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1.

“Resíduos”, quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer;

[…]

15.

“Valorização”, qualquer operação cujo resultado principal seja a transformação dos resíduos de modo a servirem um fim útil, substituindo outros materiais que, caso contrário, teriam sido utilizados para um fim específico, ou a preparação dos resíduos para esse fim, na instalação ou no conjunto da economia. O anexo II contém uma lista não exaustiva de operações de valorização;

[…]»

9

O artigo 5.o da Diretiva 2008/98, sob a epígrafe «Subprodutos», enuncia:

«1.   Uma substância ou objeto resultante de um processo de produção cujo principal objetivo não seja a produção desse item só pode ser considerado um subproduto e não um resíduo na aceção do ponto 1 do artigo 3.o se estiverem reunidas as seguintes condições:

a)

Existir a certeza de posterior utilização da substância ou objeto;

b)

A substância ou objeto poder ser utilizado diretamente, sem qualquer outro processamento que não seja o da prática industrial normal;

c)

A substância ou objeto ser produzido como parte integrante de um processo de produção; e

d)

A posterior utilização ser legítima, isto é, a substância ou objeto satisfazer todos os requisitos relevantes do produto em matéria ambiental e de proteção da saúde para a utilização específica e não acarretar impactos globalmente adversos do ponto de vista ambiental ou da saúde humana.

[…]»

10

Nos termos do artigo 6.o desta diretiva, sob a epígrafe «Fim do estatuto de resíduo»:

«1.   Determinados resíduos específicos deixam de ser resíduos na aceção do ponto 1 do artigo 3.o caso tenham sido submetidos a uma operação de valorização ou de reciclagem, e satisfaçam critérios específicos a estabelecer nos termos das seguintes condições:

a)

A substância ou objeto ser habitualmente utilizado para fins específicos;

b)

Existir um mercado ou uma procura para essa substância ou objeto;

c)

A substância ou objeto satisfazer os requisitos técnicos para os fins específicos e respeitar a legislação e as normas aplicáveis aos produtos; e

d)

A utilização da substância ou objeto não acarretar impactos globalmente adversos do ponto de vista ambiental ou da saúde humana.

Se necessário, os critérios incluem valores‑limite para os poluentes e têm em conta eventuais efeitos ambientais adversos da substância ou objeto.

[…]»

Direito austríaco

11

As disposições relevantes da Abfallwirtschaftsgesetz de 2002 (Lei Federal Austríaca Relativa à Gestão de Resíduos de 2002, a seguir «AWG 2002»), que transpõe a Diretiva 2008/98, estão redigidas da seguinte forma:

«Definições

§ 2 (1) Para efeitos da presente lei federal, entende‑se por resíduos os bens móveis,

1.

de que o detentor se desfaça ou tenha intenção de se desfazer, ou

2.

cuja recolha, armazenamento, transporte e tratamento como resíduo sejam necessários para não prejudicar o interesse público (§ 1, n.o 3).

[…]

(3a) Uma substância ou objeto resultante de um processo de produção cujo principal objetivo não seja a produção dessa substância ou objeto só pode ser considerado um subproduto e não um resíduo se estiverem reunidas as seguintes condições:

1.

Existir a certeza de posterior utilização da substância ou objeto;

2.

A substância ou o objeto poder ser utilizado diretamente, sem qualquer outro processamento que não seja o da prática industrial normal;

3.

A substância ou o objeto ser produzido como parte integrante de um processo de produção; e

4.

A posterior utilização ser permitida, em particular, a substância ou o objeto poder ser utilizado de forma segura para o fim razoável pretendido, a utilização não prejudicar nenhuns bens protegidos (v. § 1, n.o 3) e todas as disposições legais aplicáveis serem cumpridas.

[…]

Exclusões do âmbito de aplicação

§ 3 (1) Não são resíduos na aceção da presente lei federal

1.

as águas residuais, incluindo as outras águas enumeradas no § 1, n.o 1, pontos 1 a 4 e 6, e n.o 2, da Verordnung über die allgemeine Begrenzung von Abwasseremissionen in Fließgewässer und öffentliche Kanalisationen (Regulamento sobre a Limitação Geral da Descarga de Águas Residuais nos Cursos de Água e nas Canalizações públicas, BGBl. n.o 186/1996).

[…]

Fim do estatuto de resíduo

§ 5 (1) Salvo disposição em contrário no regulamento referido no n.o 2 ou num regulamento referido no artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2008/98/CE relativa aos resíduos, considera‑se que as substâncias existentes são resíduos até que elas próprias ou substâncias diretamente retiradas sejam utilizadas como substituto de matérias‑primas ou produtos obtidos a partir de matérias‑primas primárias. Em caso de preparação para a reutilização na aceção do artigo 2.o, n.o 5, ponto 6, o fim do estatuto de resíduo ocorre no fim desta operação de valorização.

[…]

Decisões de declaração

§ 6 […]

(6)   A pedido de um promotor ou do Umweltanwalt ou oficiosamente, o Landeshauptmann [chefe do Governo do Land] deve determinar no prazo de três meses se

1.

uma instalação está sujeita à obrigação de obter uma autorização nos termos do § 37, n.o 1, ou n.o 3, ou nos termos do § 52, ou se existe uma exceção ao abrigo do § 37, n.o 2,

[…]

3.

a alteração de uma instalação de tratamento está sujeita à obrigação de obter uma autorização nos termos do § 37, n.o 1, ou n.o 3, ou se está sujeita à declaração obrigatória nos termos do § 37, n.o 4. […]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

A Sappi explora, em Gratkorn (Áustria), uma grande instalação industrial de produção de papel e de celulose. Nesse local, encontra‑se igualmente uma estação de tratamento, explorada conjuntamente pela Sappi e pela Wasserverband, que trata as águas residuais provenientes da produção de papel e de celulose, bem como as águas residuais urbanas. Aquando do tratamento dessas águas residuais, imposto pelo direito nacional, são produzidas as lamas de depuração em causa no processo principal. Essas lamas são, portanto, constituídas simultaneamente por substâncias provenientes de águas residuais industriais e por substâncias provenientes de águas residuais urbanas. As lamas de depuração assim formadas na estação de tratamento são depois incineradas numa caldeira da Sappi e numa incineradora de resíduos explorada pela Wasserverband, e o vapor recuperado para efeitos da valorização energética alimenta a produção do papel e da celulose.

13

A Administração Regional constatou, após um processo de inquérito aprofundado nos termos do § 6, n.o 6, da AWG 2002, que as alterações efetuadas na caldeira da Sappi e na incineradora de resíduos, propriedade da Wasserverband, igualmente situada em Gratkorn, estavam sujeitas à obrigação de obter uma autorização.

14

É certo que a referida Administração considerou que as lamas de depuração destinadas à incineração provinham, na sua maior parte, a saber, cerca de 97 %, de um processo de produção de papel e que, para esta parte, se podia admitir que têm o estatuto de «subproduto», na aceção do § 2, n.o 3a, da AWG 2002. Todavia, considerou que não era esse o caso para a parte das lamas de depuração produzidas durante o tratamento das águas residuais urbanas. Na sua opinião, essas lamas de depuração continuam a ser resíduos.

15

Na medida em que, segundo a jurisprudência do Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), não existe nenhum limite de minimis para a qualificação de uma substância como «resíduo», deve partir‑se do princípio de que todas as lamas de depuração incineradas nas instalações industriais da Sappi e da Wasserverband devem ser qualificadas de «resíduo», na aceção do § 2, n.o 1, da AWG 2002. A Sappi e a Wasserverband interpuseram recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio.

16

Por Acórdão de 19 de dezembro de 2016, o referido órgão jurisdicional deu provimento ao recurso da Sappi e da Wasserverband. Chamado a pronunciar‑se em recurso de «Revision» desse acórdão, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) anulou‑o por Acórdão de 27 de fevereiro de 2019 e remeteu o processo ao órgão jurisdicional de reenvio.

17

O Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) salienta que o § 2, n.o 3a, da AWG 2002 fixa, em conformidade com o artigo 5.o da Diretiva 2008/98, as condições a cumprir para que uma substância ou objeto que seja efetivamente o resultado de um processo de produção, mas que não seja o objetivo principal, possa ser qualificado de «subproduto» e não de «resíduo». Resulta desta disposição que se deve tratar de uma substância ou de um objeto produzido durante um processo de produção.

18

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se, como considerou o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo), as lamas de depuração resultantes do tratamento conjunto das águas residuais de origem industrial e municipal constituem um «resíduo», na aceção do direito da União. Este órgão jurisdicional sublinha que, se o tratamento das águas residuais não se inscrevesse num processo de produção, não seria respeitada uma das condições determinantes da existência de um subproduto.

19

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a inclusão de lamas de depuração através de um sistema fechado automatizado é feita na empresa, que a utilização das lamas de depuração é integral e que esse processo não cria nenhum perigo para o ambiente e para a saúde humana. Além disso, este procedimento tinha ainda por objetivo prevenir a produção de resíduos e substituir a utilização de combustíveis fósseis.

20

Nestas circunstâncias, o Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional da Estíria, Áustria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem as lamas de depuração ser consideradas resíduos à luz da exceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva [2008/98], em conjugação com a Diretiva 91/271/CEE do Conselho, de 21 de maio de 1991, relativa ao tratamento de águas residuais urbanas [(JO 1991, L 135, p. 40),] e/ou com a Diretiva relativa às lamas de depuração, com a redação do Regulamento (CE) n.o 1137/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008[, que adapta à Decisão 1999/468/CE do Conselho certos atos sujeitos ao procedimento previsto no artigo 251.o do Tratado, no que se refere ao procedimento de regulamentação com controlo — Adaptação ao procedimento de regulamentação com controlo — Primeira Parte (JO 2008, L 311, p. 1)]?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Permite o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva [2008/98] que uma substância seja classificada como [“subproduto”] na aceção do conceito de [“resíduos”] previsto no direito da União, se, por motivos de ordem técnica, tiver sido adicionada a esta substância uma pequena percentagem de outras substâncias, as quais, de outro modo, seriam consideradas resíduos, se tal não influenciar de modo algum a composição da substância na sua globalidade e apresentar um benefício significativo para o ambiente?»

Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

21

Nas suas observações escritas, o Governo austríaco alega que o pedido de decisão prejudicial é manifestamente inadmissível.

22

Em primeiro lugar, não é necessário responder à primeira questão. O objeto do processo principal é saber se as lamas de depuração são «resíduos», na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2008/98, eventualmente lido em conjugação com os artigos 5.o e 6.o da mesma. Ora, a primeira questão tem por objeto o artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da referida diretiva. Uma vez que as lamas de depuração não são um elemento constitutivo das águas residuais, esta disposição não tem manifestamente nenhuma relação com o objeto do processo principal e a questão é, portanto, hipotética.

23

Em segundo lugar, as razões pelas quais o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a interpretação desta disposição não resultam da exposição de motivos. Considera que o referido órgão jurisdicional se interroga apenas sobre a conformidade do § 2, n.os 1 e 3a, da AWG 2002 com o direito da União e com a interpretação que dele foi feita. Ora, estas disposições não transpõem o artigo 2.o, n.o 2, alínea a), mas o artigo 3.o, ponto 1, e o artigo 5.o da Diretiva 2008/98.

24

Entende que, na realidade, o órgão jurisdicional de reenvio não pede uma interpretação do artigo 6.o, mas do artigo 5.o da Diretiva 2008/98. Ora, a reunião dos critérios para qualificar uma substância de «subproduto» pressupõe que não exista resíduo. Por último, o referido órgão jurisdicional não manifesta dúvidas quanto à interpretação do artigo 6.o desta diretiva, limitando‑se a criticar, genericamente, a falta de «promoção da hierarquia dos resíduos» no processo principal e não suscita questões de direito da União que ainda não tenham sido resolvidas.

25

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 267.o TFUE confere aos órgãos jurisdicionais nacionais a mais ampla faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas, designadamente, à interpretação das disposições do direito da União necessárias à resolução do litígio que lhes é submetido e têm liberdade para exercer essa faculdade a qualquer momento do processo que entenderem adequado (Acórdão de 26 de junho de 2019, Addiko Bank, C‑407/18, EU:C:2019:537, n.o 35 e jurisprudência referida).

26

De igual modo, o Tribunal de Justiça recordou reiteradamente que as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais relativas ao direito da União gozam de presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre tais questões se for manifesto que a interpretação de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdãos de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o., C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 27, e de 26 de junho de 2019, Addiko Bank, C‑407/18, EU:C:2019:537, n.o 36).

27

Ora, não é o que sucede no presente caso.

28

Por um lado, há que observar que a substância em causa no processo principal é constituída por lamas de depuração provenientes do tratamento das águas residuais da estação de tratamento explorada pela Sappi e pela Wasserverband. Ora, em determinadas circunstâncias, o artigo 2.o da Diretiva 2008/98 exclui as águas residuais do âmbito de aplicação desta diretiva. Por conseguinte, o facto de o órgão jurisdicional de reenvio interrogar o Tribunal de Justiça sobre a interpretação do referido artigo não se afigura desprovida de relação com o objeto do litígio no processo principal.

29

Por outro lado, as questões submetidas dizem respeito à qualificação dessas lamas de «resíduo» ou de «subproduto», o que implica consequências jurídicas precisas e está claramente relacionado com o litígio no processo principal. Ora, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se todas as condições previstas no artigo 5.o, n.o 1, ou no artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98 estão preenchidas. Para o efeito, o referido órgão jurisdicional expôs suficientemente os elementos de direito e de facto para permitir ao Tribunal de Justiça responder a esta questão de forma útil.

30

Daqui resulta que o presente pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto às questões prejudiciais

31

Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 2, alínea a), o artigo 3.o, ponto 1, o artigo 5.o, n.o 1, e o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98 devem ser interpretados no sentido de que as lamas de depuração produzidas durante o tratamento conjunto, numa estação de tratamento, de águas residuais de origem industrial e residencial ou municipal, incineradas numa incineradora de resíduos para efeitos de valorização energética através da produção de vapor, devem ser qualificadas de «resíduos».

32

Em primeiro lugar, importa examinar se as substâncias em causa no processo principal estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/98.

33

O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2008/98 exclui do seu âmbito de aplicação as águas residuais, com exceção dos resíduos líquidos, desde que, todavia, essas águas residuais estejam abrangidas por «demais legislação [do direito da União]».

34

Assim, o legislador da União quis qualificar expressamente as águas residuais de «resíduos», na aceção da referida a diretiva, embora tenha previsto que estes resíduos, em certas condições, podem sair do seu âmbito de aplicação e ser abrangidos por outra legislação (v., por analogia, no que respeita ao artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 75/442, Acórdão de 10 de maio de 2007, Thames Water Utilities, C‑252/05, EU:C:2007:276, n.o 26).

35

Para poderem ser consideradas «demais legislação [do direito da União]», na aceção do artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2008/98, as regras em causa não se devem limitar a referir‑se a uma substância particular, devendo antes conter disposições precisas que organizem a sua gestão enquanto «resíduos» na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2008/98. Se assim não fosse, a gestão dos resíduos em causa não seria organizada nem no quadro desta diretiva ou de outra diretiva nem no quadro de uma legislação nacional, o que seria contrário tanto à redação do artigo 2.o, n.o 2, da referida diretiva como à própria finalidade da legislação da União em matéria de resíduos (v., por analogia, no que respeita ao artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 75/442, Acórdão de 10 de maio de 2007, Thames Water Utilities, C‑252/05, EU:C:2007:276, n.o 33 e jurisprudência referida).

36

Resulta do exposto que, para poderem ser consideradas «demais legislação [do direito da União]», na aceção do artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/98, as regras da União em causa devem conter disposições precisas que organizem a gestão dos resíduos e assegurar um nível de proteção pelo menos equivalente ao resultante desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2007, Thames Water Utilities, C‑252/05, EU:C:2007:276, n.o 34 e jurisprudência referida).

37

Ora, a Diretiva 91/271 não assegura um tal nível de proteção. Embora regule a recolha, o tratamento e a descarga de águas residuais, não contém disposições precisas relativas à gestão das lamas de depuração. Por conseguinte, não se pode considerar que regula a gestão destas últimas nem que assegura um nível de proteção pelo menos equivalente ao resultante da Diretiva 2008/98 (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2007, Thames Water Utilities, C‑252/05, EU:C:2007:276, n.o 35).

38

No que se refere à Diretiva 86/278/CEE do Conselho, de 12 de junho de 1986, relativa à proteção do ambiente, e em especial dos solos, na utilização agrícola de lamas de depuração (JO 1986, L 181, p. 6), evocada tanto pelo órgão jurisdicional de reenvio como pelas partes no processo principal, como resulta do seu próprio título e do seu artigo 1.o, regula unicamente a utilização agrícola de lamas de depuração. Por conseguinte, esta diretiva não é pertinente para qualificar as lamas de depuração incineradas numa incineradora de resíduos para efeitos de valorização energética através da produção de vapor, sem relação com as atividades agrícolas.

39

Como tal, há que observar que essas águas residuais não estão excluídas do âmbito de aplicação da Diretiva 2008/98. O mesmo se aplica às lamas de depuração em causa no processo principal, produzidas aquando do tratamento das referidas águas residuais, dado que as lamas de depuração não figuram entre as substâncias e os objetos que podem ser excluídos, por força do artigo 2.o, n.o 2, desta diretiva, do seu âmbito de aplicação.

40

Em segundo lugar, cabe determinar se as lamas de depuração em causa no processo principal constituem um «resíduo», na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2008/98.

41

Há que recordar que esta disposição define o conceito de «resíduo» como quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer.

42

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de «resíduo» resulta, antes de mais, do comportamento do detentor e do significado da expressão «se desfazer» (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 17 e jurisprudência referida).

43

Quanto à expressão «se desfazer», decorre igualmente de jurisprudência constante que esta expressão deve ser interpretada à luz do objetivo da Diretiva 2008/98, o qual, nos termos do considerando 6 da referida diretiva, consiste na minimização do impacto negativo da produção e gestão de resíduos na saúde humana e no ambiente, bem como à luz do artigo 191.o, n.o 2, TFUE, que dispõe que a política da União no domínio do ambiente visa um elevado nível de proteção e se baseia, designadamente, nos princípios da precaução e da ação preventiva. Daqui decorre que os termos «se desfazer» e, portanto, o conceito de «resíduo», na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2008/98, não podem ser interpretados de modo restritivo (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 18 e jurisprudência referida).

44

Além disso, resulta das disposições dessa diretiva que os termos «se desfazer» englobam simultaneamente a «valorização» e a «eliminação» de uma substância ou de um objeto, na aceção do artigo 3.o, pontos 15 e 19, da referida diretiva (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 19 e jurisprudência referida).

45

Mais especificamente, a existência de um «resíduo», na aceção da Diretiva 2008/98, deve ser verificada à luz de todas as circunstâncias, tendo em conta o objetivo dessa diretiva e desde que isso não prejudique a eficácia desta. Assim, certas circunstâncias podem constituir indícios da existência de uma ação, de uma intenção ou de uma obrigação de se desfazer de uma substância ou de um objeto, na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2008/98 (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.os 20 e 21).

46

Entre as circunstâncias que podem constituir tais indícios, figura o facto de a substância utilizada ser um resíduo de produção ou de consumo, a saber, um produto que não se pretendeu produzir como tal (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2008, Commune de Mesquer, C‑188/07, EU:C:2008:359, n.o 41, e de 3 de outubro de 2013, Brady, C‑113/12, EU:C:2013:627, n.o 40).

47

A este respeito, pode constituir igualmente um tal indício o facto de essa substância ser considerada um resíduo de produção cuja utilização eventual se deve fazer em condições especiais de precaução em razão da perigosidade da sua composição para o ambiente (Acórdão de 3 de outubro de 2013, Brady, C‑113/12, EU:C:2013:627, n.o 41 e jurisprudência referida).

48

Além disso, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o método de tratamento ou o modo de utilização de uma substância não são determinantes para a qualificação ou não de «resíduo» de uma substância e que o conceito de «resíduo» não exclui as substâncias nem os objetos suscetíveis de reutilização económica. O sistema de fiscalização e gestão instituído pela Diretiva 2008/98 pretende, com efeito, abranger todos os objetos e todas as substâncias dos quais o proprietário se desfaz, mesmo que tenham valor comercial e sejam recolhidos a título comercial para efeitos de reciclagem, recuperação ou reutilização (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2008, Commune de Mesquer, C‑188/07, EU:C:2008:359, n.o 40, e de 3 de outubro de 2013, Brady, C‑113/12, EU:C:2013:627, n.o 42 e jurisprudência referida).

49

Importa, além disso, prestar uma atenção especial à circunstância de o objeto ou a substância em questão não ter ou ter deixado de ter utilidade para o seu detentor, de modo que esse objeto ou substância constitua um encargo do qual o detentor se procura desfazer. Sendo esse o caso, existe o risco de ver o referido detentor desfazer‑se do objeto ou substância na sua posse de uma forma suscetível de causar prejuízo ao ambiente, designadamente abandonando‑o, rejeitando‑o ou eliminando‑o de modo descontrolado. Inserindo‑se no conceito de «resíduo», na aceção da Diretiva 2008/98, esse objeto ou essa substância está sujeito às disposições desta diretiva, o que implica que a valorização ou a eliminação do referido objeto ou da referida substância deverá ser efetuada de modo a não ser posta em perigo a saúde humana e sem que sejam utilizados processos ou métodos suscetíveis de causar prejuízo ao ambiente (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 22).

50

A este respeito, o grau de probabilidade de reutilização de um bem, de uma substância ou de um produto sem uma operação de transformação prévia constitui um critério pertinente para efeitos de apreciar se estes constituem ou não um resíduo na aceção da Diretiva 2008/98. Se, além da simples possibilidade de reutilizar o bem, a substância ou o produto em causa, existir uma vantagem económica para o detentor ao fazê‑lo, a probabilidade de uma tal reutilização é grande. Nesse caso, o bem, a substância ou o produto em causa já não podem ser vistos como um encargo de que o detentor se pretenderá «desfazer», mas sim como um autêntico produto (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 23 e jurisprudência referida).

51

Do mesmo modo, em certas situações, um objeto, um material ou uma matéria‑prima resultantes de um processo de fabrico ou de extração que não é destinado, em princípio, a produzi‑lo pode constituir não um resíduo, mas um subproduto, do qual a empresa não «se [deseja] desfazer», na aceção do artigo 3.o, ponto 1, da Diretiva 2008/98, mas que tem a intenção de explorar ou comercializar — incluindo, sendo caso disso, para outros operadores económicos — em condições vantajosas para ela, num processo posterior, desde que essa reutilização não seja meramente eventual, mas certa, sem transformação prévia, e na continuidade do processo de produção (Acórdão de 3 de outubro de 2013, Brady, C‑113/12, EU:C:2013:627, n.o 44 e jurisprudência referida).

52

Com efeito, não seria de modo algum justificado sujeitar às exigências da Diretiva 2008/98, que visam assegurar que as operações de valorização ou de eliminação dos resíduos sejam executadas sem pôr em perigo a saúde humana e sem que sejam utilizados procedimentos ou métodos suscetíveis de causar prejuízo ao ambiente, bens, substâncias ou produtos que o detentor pretende explorar ou comercializar em condições vantajosas, independentemente de qualquer operação de valorização. No entanto, atendendo à obrigação de proceder a uma interpretação lata do conceito de «resíduo», deve considerar‑se que só são assim visadas as situações nas quais a reutilização do bem ou da substância em questão é não só eventual mas certa, sem que seja necessário recorrer para este efeito previamente a um dos procedimentos de valorização dos resíduos referidos no anexo II da Diretiva 2008/98, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 24 e jurisprudência referida).

53

Cabe em última instância ao órgão jurisdicional de reenvio, único competente para apreciar os factos do processo chamado a conhecer, verificar se o detentor do objeto ou da substância em questão tinha efetivamente a intenção de se «desfazer» do mesmo, tendo em conta todas as circunstâncias do caso em apreço, velando pelo respeito do objetivo visado pela Diretiva 2008/98. No entanto, incumbe ao Tribunal de Justiça fornecer a este órgão jurisdicional todas as indicações úteis para a resolução do litígio que lhe é submetido (Acórdão de 4 de julho de 2019, Tronex, C‑624/17, EU:C:2019:564, n.o 25 e jurisprudência referida).

54

No caso em apreço, o objeto do processo principal é saber se as lamas de depuração provenientes da estação de tratamento de águas residuais explorada conjuntamente pela Sappi e pela Wasserverband devem ser qualificadas de resíduos e se, por conseguinte, a sua incineração está abrangida pelas disposições aplicáveis aos resíduos. Se for caso disso, há que, por força do direito nacional, submeter as alterações efetuadas na caldeira da Sappi e na incineradora dos resíduos detida pela Wasserverband a uma obrigação de autorização.

55

A Sappi sustenta que não é esse o caso, uma vez que as lamas de depuração em causa no processo principal são compostas em quase 100 % de resíduos vegetais, resultantes de um processo de produção do papel e de celulose, integradas desde a conceção da instalação e utilizadas para fins de valorização energética para a produção de papel. Proporcionam, assim, uma vantagem económica importante a essa empresa. Devido ao ciclo fechado de utilização, que inclui um transporte, 24 horas por dia, em tapetes rolantes, não existe nenhuma substância de que o detentor se pretenda desfazer.

56

Por outro lado, resulta da decisão de reenvio que essas lamas de depuração se produzem aquando do tratamento conjunto das águas residuais de origem industrial e, em pequena proporção, de origem residencial ou municipal na estação de tratamento e são utilizadas, após dessecação mecânica, numa incineradora de resíduos para efeitos de uma valorização energética através da produção de vapor, no processo de produção da Sappi. Devido a esta reintegração das lamas de depuração no sistema, bem como à sua incineração permanente e contínua, neutra em termos de emissões, com vista à produção de vapor no processo de fabrico do papel, o órgão jurisdicional de reenvio considera que as referidas lamas são reutilizadas de maneira constante, imediata e certa.

57

Como decorre da jurisprudência recordada nos n.os 41 e 42 do presente acórdão, o conceito de «resíduo» é definido como quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer.

58

A este respeito, há que observar que o facto de, na estação de tratamento, apenas uma pequena proporção de águas residuais urbanas ser acrescentada às águas residuais provenientes da produção de papel e de celulose não é pertinente para determinar se as lamas de depuração que resultam do tratamento conjunto dessas águas residuais constituem ou não um «resíduo».

59

Esta interpretação é a única que garante o respeito dos objetivos de reduzir ao mínimo os efeitos negativos da produção e da gestão dos resíduos na saúde humana e no ambiente, visados pela Diretiva 2008/98. Com efeito, nesse caso, as águas residuais provenientes da produção de papel e de celulose não podem ser separadas das águas residuais de origem residencial ou municipal e só podem ser valorizadas ou eliminadas se também forem objeto das operações necessárias de tratamento exigidas pelo direito nacional. Ora, é pacífico que as águas residuais de origem residencial ou municipal devem ser consideradas substâncias de que o seu detentor se desfez.

60

Resulta do exposto que, sem prejuízo das verificações que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, as águas residuais em causa no processo principal devem ser consideradas substâncias de que o detentor se pretende desfazer, o que implica a sua qualificação de «resíduos» na aceção da Diretiva 2008/98.

61

Segundo as indicações que constam dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, o tratamento dessas águas residuais constitui um processo de tratamento imposto pela legislação nacional em matéria de gestão da água antes do despejo de águas residuais num curso de água, na medida em que apenas as substâncias não nocivas podem aí ser descarregadas. A este respeito, resulta dos elementos dos autos que, em função do tipo de águas residuais e do processo de tratamento, as lamas de depuração podem conter certas substâncias nocivas, como germes patogénicos ou metais pesados, que apresentam um risco para o ambiente e para a saúde humana e animal.

62

No que respeita às lamas de depuração em causa no processo principal, é pacífico que são um resíduo resultante do tratamento de águas residuais. Tal elemento constitui, como resulta da jurisprudência recordada nos n.os 46 e 47 do presente acórdão, um indício da manutenção do estatuto de resíduo.

63

Todavia, parece que o órgão jurisdicional de reenvio considera que, antes mesmo da sua incineração, as lamas de depuração já não podem ser qualificadas de «resíduos».

64

A este respeito, há que recordar que o artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/98 enuncia as condições a que devem responder os critérios específicos que permitem determinar quais os «resíduos» que deixam de o ser, na aceção do artigo 3.o, ponto 1, desta diretiva, quando tenham sido submetidos a uma operação de valorização, incluindo a reciclagem.

65

Na valorização de resíduos, é necessário garantir um elevado nível de proteção da saúde humana e do ambiente. Em especial, a valorização das lamas de depuração comporta certos riscos para o ambiente e para a saúde humana, nomeadamente no que respeita à potencial presença de substâncias perigosas (v., neste sentido, Acórdão de 28 de março de 2019, Tallinna Vesi, C‑60/18, EU:C:2019:264, n.o 28).

66

No caso em apreço, há que observar que, na hipótese de a incineração das lamas de depuração consistir numa operação de valorização, na aceção do artigo 3.o, ponto 15, da Diretiva 2008/98, que tem por objeto operações relativas a resíduos, essas lamas deveriam ainda ser qualificadas de «resíduos» no momento da sua incineração. Por conseguinte, uma alteração de estatuto como a mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio pressupõe que o tratamento efetuado com vista à valorização permite obter lamas de depuração que correspondem a um nível elevado de proteção da saúde humana e do ambiente, como exige a Diretiva 2008/98, que estão especialmente isentas de qualquer substância perigosa. Para tal, há que garantir a inocuidade das lamas de depuração em causa no processo principal.

67

É ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe verificar se as condições do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98 já estão reunidas antes da incineração das lamas de depuração. Importa, nomeadamente, verificar, se for caso disso, com base numa análise científica e técnica, se as lamas de depuração não ultrapassam os valores‑limite legais para os poluentes e se a sua incineração não tem efeitos globais nocivos para o ambiente ou para a saúde humana.

68

É nomeadamente pertinente no âmbito desta apreciação o facto de o calor produzido aquando da incineração de lamas de depuração ser reutilizado no âmbito de um processo de produção de papel e de celulose, bem como o facto de esse processo apresentar uma vantagem significativa para o ambiente devido à utilização de materiais provenientes da valorização para a preservação dos recursos naturais e para a criação de uma economia circular.

69

Se, com base nessa análise, o órgão jurisdicional de reenvio vier a constatar que as condições do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98 estavam reunidas antes da incineração das lamas de depuração em causa no processo principal, há que considerar que tais lamas não constituem resíduos.

70

Na hipótese inversa, há que considerar que as referidas lamas de depuração ainda estão abrangidas pelo conceito de «resíduo» no momento dessa incineração.

71

Nestas circunstâncias, e na medida em que, como resulta da redação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98, a qualidade de «subproduto» e o estatuto de «resíduo» se excluem mutuamente, não há que examinar se as lamas em causa no processo principal devem ser qualificadas de «subprodutos», na aceção desta disposição.

72

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 2.o, n.o 2, alínea a), o artigo 3.o, ponto 1, e o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98 devem ser interpretados no sentido de que as lamas de depuração produzidas durante o tratamento conjunto, numa estação de tratamento, de águas residuais de origem industrial e residencial ou municipal, incineradas numa incineradora de resíduos para efeitos de valorização energética através da produção de vapor, não devem ser consideradas resíduos se as condições do artigo 6.o, n.o 1, desta Diretiva 2008/98 já estiverem reunidas antes da sua incineração. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é esse o caso no processo principal.

Quanto às despesas

73

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), o artigo 3.o, ponto 1, e o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas, devem ser interpretados no sentido de que as lamas de depuração produzidas durante o tratamento conjunto, numa estação de tratamento, de águas residuais de origem industrial e residencial ou municipal, incineradas numa incineradora de resíduos para efeitos de valorização energética através da produção de vapor, não devem ser consideradas resíduos se as condições do artigo 6.o, n.o 1, desta Diretiva 2008/98 já estiverem reunidas antes da sua incineração. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é esse o caso no processo principal.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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