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Document 62019CJ0002

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 26 de março de 2020.
Processo penal contra A. P.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Riigikohus.
Reenvio prejudicial — Decisão‑Quadro 2008/947/JAI — Reconhecimento mútuo das sentenças e das decisões relativas à liberdade condicional — Âmbito de aplicação — Sentença que aplica uma pena privativa de liberdade suspensa — Medida de vigilância — Obrigação de não cometer uma nova infração penal — Obrigação de origem legal.
Processo C-2/19.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:237

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

26 de março de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Decisão‑Quadro 2008/947/JAI — Reconhecimento mútuo das sentenças e das decisões relativas à liberdade condicional — Âmbito de aplicação — Sentença que aplica uma pena privativa de liberdade suspensa — Medida de vigilância — Obrigação de não cometer uma nova infração penal — Obrigação de origem legal»

No processo C‑2/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia), por Decisão de 11 de dezembro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de janeiro de 2019, no processo penal contra

A. P.

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, M. Safjan, L. Bay Larsen (relator), C. Toader e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 14 de novembro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação de A. P., por M. Lentsius e G. Sile, vandeadvokaadid,

em representação do Governo estónio, por N. Grünberg, na qualidade de agente,

em representação do Governo letão, por V. Soņeca, L. Juškeviča e I. Kucina, na qualidade de agentes,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér, M. M. Tátrai e V. Kiss, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna e J. Sawicka, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e K. Toomus, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de fevereiro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Decisão‑Quadro 2008/947/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas (JO 2008, L 337, p. 102).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo ao reconhecimento, na Estónia, de uma sentença do Rīgas pilsētas Latgales priekšpilsētas tiesa (Tribunal da cidade de Riga, distrito suburbano de Latgale, Letónia) pelo qual A. P. foi condenado a uma pena de prisão de três anos cuja execução está suspensa.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 8 e 24 da Decisão‑Quadro 2008/947 têm a seguinte redação:

«(8)

O reconhecimento mútuo e a fiscalização de penas suspensas, condenações condicionais, sanções alternativas e de liberdade condicional têm por finalidade promover a reinserção social da pessoa condenada, dando‑lhe a possibilidade de manter os seus laços familiares, linguísticos, culturais e outros; por outro lado, pretende‑se igualmente melhorar o controlo do cumprimento das medidas de vigilância e das sanções alternativas, com o objetivo de prevenir a reincidência e atender, assim, ao princípio da proteção da vítima e do público em geral.

[…]

(24)

Atendendo a que os objetivos da presente decisão‑quadro, designadamente facilitar a reinserção social da pessoa condenada, melhorar a proteção da vítima e do público em geral, bem como promover a aplicação de medidas de vigilância e sanções alternativas adequadas, no caso dos infratores que não residam no Estado de condenação, não pode ser suficientemente realizado pelos próprios Estados‑Membros devido ao caráter transfronteiriço das situações envolvidas e pode, pois, devido à dimensão da ação, ser mais bem alcançado ao nível da União, esta pode tomar medidas, em conformidade com o princípio da subsidiariedade […]»

4

O artigo 1.o, n.os 1 e 2, desta decisão‑quadro dispõe:

«1.   A presente decisão‑quadro visa facilitar a reinserção social da pessoa condenada, melhorar a proteção da vítima e do público em geral, bem como promover a aplicação de medidas de vigilância e sanções alternativas adequadas, no caso dos infratores que não residam no Estado de condenação. Tendo em vista atingir esses objetivos, a presente decisão‑quadro estabelece as regras segundo as quais um Estado‑Membro, que não seja aquele onde a pessoa em causa foi condenada, reconhece a sentença e, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional e fiscaliza a medida de vigilância ou a sanção alternativa aplicada, e toma as demais decisões relacionadas com essa sentença, salvo disposição em contrário da presente decisão‑quadro.

2   A presente decisão‑quadro aplica‑se apenas:

a)

Ao reconhecimento das sentenças e, se for caso disso, às decisões relativas à liberdade condicional;

b)

À transferência da responsabilidade pela fiscalização de medidas de vigilância e de sanções alternativas;

c)

A todas as demais decisões relacionadas com as referidas nas alíneas a) e b),

tal como descrito e previsto na presente decisão‑quadro.»

5

O artigo 2.o, pontos 1 a 4 e 7, da referida decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

1.

“Sentença”, a decisão transitada em julgado ou a ordem de um tribunal do Estado de emissão que determine que uma pessoa singular cometeu uma infração penal e que aplique:

a)

Uma pena de prisão ou medida privativa de liberdade, se a liberdade condicional tiver sido concedida com base nessa sentença ou numa decisão subsequente relativa à liberdade condicional;

b)

Uma pena suspensa;

c)

Uma condenação condicional;

d)

Uma sanção alternativa.

2.

“Pena suspensa”, a pena de prisão ou medida privativa de liberdade cuja execução seja suspensa condicionalmente, no todo ou em parte, ao ser pronunciada a condenação, mediante a aplicação de uma ou mais medidas de vigilância, que podem estar incluídas na própria sentença ou ser determinadas numa decisão relativa à liberdade condicional tomada separadamente por uma autoridade competente.

3.

“Condenação condicional”, a sentença em virtude da qual a aplicação de uma pena é suspensa condicionalmente, mediante a imposição de uma ou mais medidas de vigilância, ou por força da qual são impostas uma ou mais medidas de vigilância em substituição de uma pena de prisão ou medida privativa de liberdade. Essas medidas de vigilância podem estar previstas na própria sentença ou podem ser determinadas numa decisão relativa à liberdade condicional tomada separadamente por uma autoridade competente.

4.

“Sanção alternativa”, a sanção que, não sendo uma pena de prisão, uma medida privativa de liberdade ou uma sanção pecuniária, impõe deveres ou regras de conduta.

[…]

7.

“Medidas de vigilância”, deveres e regras de conduta impostos por uma autoridade competente a uma pessoa singular, de acordo com a legislação nacional do Estado de emissão, no âmbito de uma pena suspensa, condenação condicional ou liberdade condicional.»

6

O artigo 4.o da mesma decisão‑quadro prevê:

«1.   A presente decisão‑quadro aplica‑se às seguintes medidas de vigilância ou sanções alternativas:

a)

Dever da pessoa condenada de comunicar a uma autoridade específica qualquer mudança de residência ou de local de trabalho;

b)

Proibição de entrar em determinados lugares, sítios ou zonas definidas do Estado de emissão ou de execução;

[…]

d)

Imposição de regras relacionadas com o comportamento, a residência, a educação e formação, a ocupação dos tempos livres, ou que estabelecem restrições ou modalidades relativas [ao] exercício da atividade profissional;

[…]

f)

Dever de evitar o contacto com determinadas pessoas;

g)

Dever de evitar o contacto com objetos específicos que tenham sido, ou sejam suscetíveis de ser, usados pela pessoa condenada para cometer uma infração penal;

[…]

2.   No âmbito da execução da presente decisão‑quadro, cada Estado‑Membro notifica ao Secretariado‑Geral do Conselho as medidas de vigilância e as sanções alternativas, para além das referidas no n.o 1, de que está disposto a assegurar a fiscalização. O Secretariado‑Geral do Conselho faculta as informações recebidas a todos os Estados‑Membros e à Comissão.»

7

O artigo 6.o, n.os 1 e 2, da Decisão‑Quadro 2008/947 dispõe:

«1.   Quando, em aplicação dos n.os 1 ou 2 do artigo 5.o, a autoridade competente do Estado de emissão transmitir a outro Estado‑Membro uma sentença e, se for caso disso, uma decisão relativa à liberdade condicional, estas devem ser acompanhadas da certidão cujo formulário‑tipo consta do anexo I.

2.   A sentença e, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional, acompanhadas da certidão referida no n.o 1, devem ser transmitidas pela autoridade competente do Estado de emissão diretamente à autoridade competente do Estado de execução, por qualquer meio que permita conservar registo escrito, por forma a que o Estado de execução possa verificar a sua autenticidade. A pedido da autoridade competente do Estado de execução, são‑lhe transmitidos o original da sentença e, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, ou cópias autenticadas das mesmas, bem como o original da certidão. Todas as comunicações oficiais são também efetuadas diretamente entre as referidas autoridades competentes.»

8

O artigo 8.o, n.o 2, desta decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«A autoridade competente do Estado de execução pode adiar a decisão relativa ao reconhecimento da sentença e, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional quando a certidão referida no n.o 1 do artigo 6.o estiver incompleta ou não corresponder manifestamente à sentença ou, se for caso disso, à decisão relativa à liberdade condicional, até que a certidão seja completada ou corrigida, dentro de um prazo razoável.»

9

O artigo 11.o, n.o 1, alínea a), e n.o 3, da referida decisão‑quadro determina:

«1.   A autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença, ou, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, bem como a assunção da responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas se:

a)

A certidão referida no n.o 1 do artigo 6.o estiver incompleta ou não corresponder manifestamente à sentença ou à decisão relativa à liberdade condicional e não tiver sido completada ou corrigida dentro de um prazo razoável, a fixar pela autoridade competente do Estado de execução;

[…]

3.   Nos casos referidos nas alíneas a), b), c), h), i), j) e k) do n.o 1, antes de decidir não reconhecer a sentença ou, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional, e não assumir a responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, a autoridade competente do Estado de execução deve comunicar com a autoridade competente do Estado de emissão por qualquer meio adequado e, se oportuno, solicitar‑lhe que faculte sem demora todas as informações complementares necessárias.»

10

O artigo 14.o, n.o 1, dessa decisão‑quadro prevê:

«A autoridade competente do Estado de execução é competente para tomar todas as decisões subsequentes relacionadas com uma pena suspensa, liberdade condicional, condenação condicional ou sanção alternativa, designadamente em caso de incumprimento de uma medida de vigilância ou de uma sanção alternativa, ou se a pessoa condenada cometer uma nova infração penal.

Essas decisões subsequentes incluem, nomeadamente:

a)

A modificação de deveres ou regras de conduta que constituem a medida de vigilância ou a sanção alternativa, ou a alteração da duração do período de vigilância;

b)

A revogação da suspensão da execução da sentença ou a revogação da liberdade condicional; e

c)

A aplicação de uma pena de prisão ou medida privativa de liberdade no caso de sanção alternativa ou condenação condicional.»

11

O artigo 20.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/947 dispõe:

«Se estiver a decorrer um novo processo penal contra a pessoa em causa no Estado de emissão, a autoridade competente desse Estado pode solicitar à autoridade competente do Estado de execução que lhe transfira a competência pela fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, bem como pelas demais decisões relacionadas com a sentença. Neste caso, a autoridade competente do Estado de execução pode transferir essa competência para a autoridade do Estado de emissão.»

Direito estónio

12

O artigo 73.o, n.o 1, do Karistusseadustik (Código Penal) tem a seguinte redação:

«Quando, tendo em consideração as circunstâncias da infração e a personalidade do autor, o tribunal considerar que não é útil que o condenado cumpra a pena de prisão aplicada por uma duração determinada ou pague a multa, pode decidir que a execução da pena seja, no todo ou em parte, suspensa condicionalmente. A suspensão condicional da execução da pena pode incidir sobre a totalidade da pena sob reserva de disposições contrárias na parte especial do presente código. Em caso de suspensão condicional da execução da pena, a totalidade ou parte da pena pronunciada não é executada se a pessoa condenada não cometer uma nova infração intencional durante o período de suspensão da pena sob condição fixado pelo tribunal […]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

13

Por sentença de 24 de janeiro de 2017, o Rīgas pilsētas Latgales priekšpilsētas tiesa (Tribunal da cidade de Riga, distrito suburbano de Latgale) condenou A. P. a uma pena de prisão de três anos, cuja execução está suspensa.

14

Em 22 de maio de 2017, o Justiitsministeerium (Ministério da Justiça, Estónia) transmitiu ao Harju Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Harju, Estónia) um pedido de reconhecimento e execução dessa sentença na Estónia, emanado das autoridades competentes letãs.

15

Por Despacho de 16 de fevereiro de 2018, o Harju Maakohus (Tribunal de Primeira Instância de Harju) julgou o pedido da recorrente procedente.

16

Na sequência de um recurso interposto por A. P., o Tallinna Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso de Talim, Estónia) confirmou este despacho, por Despacho de 21 de março de 2018.

17

A. P. Interpôs recurso deste último despacho para o órgão jurisdicional de reenvio.

18

Este órgão jurisdicional considera, tendo em conta a sentença de 24 de janeiro de 2017 do Rīgas pilsētas Latgales priekšpilsētas tiesa (Tribunal da cidade de Riga, distrito suburbano de Latgale), que a suspensão da execução da pena a que A. P. foi condenado apenas está subordinada à obrigação, resultante do artigo 73.o, n.o 1, do Código Penal estónio, de não cometer uma nova infração intencional.

19

O órgão jurisdicional de reenvio considera, além disso, que essa obrigação não corresponde a nenhuma das medidas de vigilância ou sanções alternativas referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/947.

20

Uma vez que o direito estónio só autoriza o reconhecimento de uma sentença ao abrigo desta decisão‑quadro na medida em que imponha pelo menos uma dessas medidas de vigilância ou uma dessas sanções alternativas, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a referida decisão‑quadro deve ser interpretada no sentido de que prevê o reconhecimento de uma sentença como a proferida em 24 de janeiro de 2017 pelo Rīgas pilsētas Latgales priekšpilsētas tiesa (Tribunal da cidade de Riga, distrito suburbano de Latgale).

21

Nestas circunstâncias, o Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve considerar‑se que o reconhecimento de uma sentença de um Estado‑Membro e a fiscalização da sua execução são conformes com a Decisão‑Quadro [2008/947], igualmente quando, através dessa sentença, tiver sido suspensa sob condição a execução de uma pena de prisão a que uma pessoa foi condenada sem que lhe tenham sido impostas quaisquer obrigações adicionais, pelo que a única obrigação que recai sobre a pessoa condenada é não cometer intencionalmente uma nova infração penal durante o período de suspensão da pena sob condição (trata‑se da suspensão da pena sob condição na aceção do artigo 73.o do karistusseadustik — Código Penal estónio)?»

Quanto à questão prejudicial

Quanto à admissibilidade

22

O Governo letão alega que a questão submetida é inadmissível na medida em que a decisão de reenvio se baseia numa interpretação errada do direito letão, o que permite concluir que não existe um verdadeiro litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

23

A este respeito, sustenta, em primeiro lugar, que o órgão jurisdicional de reenvio considera erradamente que A. P. apenas está obrigado a não cometer uma nova infração intencional durante um período de suspensão, uma vez que o direito letão permite a revogação da suspensão também em caso de infração não intencional e que este direito impõe, de forma automática, certas medidas de vigilância às pessoas condenadas numa pena privativa de liberdade suspensa.

24

Em segundo lugar, este Governo sustenta que os órgãos jurisdicionais estónios deveriam, em aplicação do artigo 8.o, n.o 2, e do artigo 11.o, n.o 1, alínea a), e n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/947, ter convidado os órgãos jurisdicionais do Estado de emissão a transmitir‑lhes todas as informações necessárias para completar a certidão que, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, acompanha a sentença transmitida pela autoridade competente letã. Se o órgão jurisdicional de reenvio tivesse cumprido esta obrigação, teria constatado a inexistência de litígio no processo principal.

25

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão judicial a tomar tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões colocadas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 4 de dezembro de 2018, Minister for Justice and Equality e Commissioner of An Garda Síochána, C‑378/17, EU:C:2018:979, n.o 26 e jurisprudência aí referida).

26

Daqui resulta que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 4 de dezembro de 2018, Minister for Justice and Equality e Commissioner of An Garda Síochána, C‑378/17, EU:C:2018:979, n.o 27 e jurisprudência referida).

27

Além disso, cabe ao Tribunal de Justiça ter em conta, no quadro da repartição das competências entre os tribunais da União e os tribunais nacionais, o contexto factual e regulamentar no qual se inserem as questões prejudiciais, tal como definido pela decisão de reenvio. Assim, quaisquer que sejam as críticas do Governo letão à apreciação, constante da decisão de reenvio, dos efeitos da sentença que condenou A. P. numa pena de prisão suspensa, o exame do presente reenvio prejudicial deve ser efetuado com base nesta apreciação [v., neste sentido, Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Bevándorlási és Menekültügyi Hivatal (Reagrupamento familiar — Irmã de refugiado), C‑519/18, EU:C:2019:1070, n.o 26 e jurisprudência referida].

28

Neste contexto, o argumento do Governo letão relativo à existência de uma obrigação dos órgãos jurisdicionais estónios de recolher informações junto dos órgãos jurisdicionais letões não pode ser acolhido. Com efeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se dispõe de todas as informações cuja transmissão é exigida pela Decisão‑Quadro 2008/947 e, especialmente, se a certidão referida no artigo 6.o desta última deve ser completada. Por conseguinte, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio considerou que dispunha de elementos suficientes para determinar, nos termos das regras do direito nacional pertinentes, os efeitos da sentença que condenou A. P. a uma pena de prisão suspensa, não cabe ao Tribunal de Justiça pôr em causa esta apreciação.

29

Decorre do que precede que os argumentos apresentados pelo Governo letão não são suficientes para demonstrar que a questão submetida não tem manifestamente qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal e que estes argumentos não são, portanto, suscetíveis de ilidir a presunção de pertinência de que beneficia esta questão.

Quanto ao mérito

30

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/947 deve ser interpretado no sentido de que o reconhecimento de uma sentença que aplicou uma pena privativa de liberdade, cuja execução está suspensa sob a única condição do respeito de uma obrigação legal de não cometimento de uma nova infração penal durante um período de suspensão, está abrangido pelo âmbito de aplicação desta decisão‑quadro.

31

O artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/947 dispõe que esta se aplica apenas ao reconhecimento das sentenças e, se for caso disso, às decisões relativas à liberdade condicional, à transferência da responsabilidade pela fiscalização de medidas de vigilância e de sanções alternativas e a todas as demais decisões relacionadas com esse reconhecimento ou fiscalização.

32

Decorre do artigo 2.o, ponto 1, desta decisão‑quadro que o termo «sentença» designa, para efeitos da referida decisão‑quadro, a decisão transitada em julgado ou a ordem de um tribunal do Estado de emissão que determine que uma pessoa singular cometeu uma infração penal e que aplique uma das medidas enumeradas no artigo 2.o, ponto 1, alíneas a) a d), da mesma decisão‑quadro.

33

Uma vez que a questão submetida tem por objeto o reconhecimento de uma decisão judicial que aplicou uma pena privativa de liberdade cuja execução está suspensa, há que determinar se essa decisão judicial deve ser considerada uma sentença, na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Decisão‑Quadro 2008/947, com base no artigo 2.o, ponto 1, alínea b), desta decisão‑quadro, que visa as decisões judiciais que aplicam uma pena suspensa.

34

O conceito de «pena suspensa» é definido no artigo 2.o, ponto 2, da mesma decisão‑quadro como sendo a pena de prisão ou medida privativa de liberdade cuja execução seja suspensa condicionalmente, no todo ou em parte, ao ser pronunciada a condenação, mediante a aplicação de uma ou mais medidas de vigilância.

35

Por conseguinte, há que determinar se a obrigação de não cometer uma nova infração penal durante um período de suspensão representa uma medida de vigilância, na aceção da Decisão‑Quadro 2008/947.

36

A este respeito, resulta do artigo 2.o, ponto 7, desta decisão‑quadro que constituem medidas de vigilância, para efeitos da referida decisão‑quadro, os deveres e as regras de conduta impostos por uma autoridade competente a uma pessoa singular, de acordo com a legislação nacional do Estado de emissão, no âmbito de uma pena suspensa, condenação condicional ou liberdade condicional.

37

Uma vez que esta disposição não reserva a qualificação de «medidas de vigilância», na aceção da referida decisão‑quadro, a determinados tipos precisos de obrigações, a obrigação de se abster de cometer uma nova infração penal durante um período de suspensão pode, portanto, ser considerada uma medida de vigilância quando constitui a condição a que está subordinada a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade.

38

No entanto, o artigo 4.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/947 precisa que esta se aplica às medidas de vigilância ou sanções alternativas que enumera e restringe, portanto, em princípio, o seu âmbito de aplicação a essas medidas de vigilância e a essas sanções alternativas.

39

É certo que esta restrição pode ser afastada em certas situações, na medida em que cada Estado‑Membro dispõe, ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, da mesma decisão‑quadro, da faculdade de notificar as outras medidas de vigilância ou as outras sanções alternativas de que está disposto a assegurar a fiscalização.

40

Todavia, resulta da decisão de reenvio que a República da Estónia não fez uso desta faculdade e que o direito estónio prevê unicamente a fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas previstas no artigo 4.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/947.

41

Neste contexto, há que salientar que a obrigação de não cometer uma nova infração penal durante um período de suspensão não é expressamente mencionada entre as categorias de obrigações e de regras de conduta enumeradas nessa disposição.

42

No entanto, o artigo 4.o, n.o 1, alínea d), desta decisão‑quadro refere‑se à categoria mais ampla da «imposição de regras relacionadas com o comportamento».

43

Não sendo esta última expressão definida pela referida decisão‑quadro, há que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, determinar o seu significado e alcance de acordo com o seu sentido habitual na linguagem comum, tendo em atenção o contexto em que é utilizada e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que é utilizada (v., neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2012, Ketelä, C‑592/11, EU:C:2012:673, n.o 51 e jurisprudência referida).

44

A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que a obrigação imposta a uma pessoa condenada de se abster de cometer uma nova infração penal durante um período de suspensão deve, na medida em que constitui uma instrução destinada a determinar a conduta dessa pessoa, ser considerada uma «imposição de regras relacionadas com o comportamento», no sentido habitual que esta expressão reveste na linguagem corrente.

45

Em segundo lugar, o contexto em que se insere o artigo 4.o, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro 2008/947 indica igualmente que esta disposição deve ser interpretada no sentido de que abrange, nomeadamente, essa obrigação.

46

Em primeiro lugar, embora o órgão jurisdicional de reenvio se interrogue sobre a possibilidade de aplicar esta decisão‑quadro à referida obrigação, uma vez que, em seu entender, esta não implica a aplicação de medidas de fiscalização ativa pelo Estado‑Membro de execução, há que constatar que várias medidas de vigilância mencionadas no artigo 4.o da referida decisão‑quadro não exigem necessariamente a aplicação dessas medidas de fiscalização. Tal é nomeadamente o caso das proibições de entrar em determinados lugares, sítios ou zonas definidas, do dever de evitar o contacto com determinadas pessoas ou ainda de evitar o contacto com objetos específicos, referidos no artigo 4.o, n.o 1, alíneas b), f) e g), da mesma decisão‑quadro.

47

Em segundo lugar, o artigo 14.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Decisão‑Quadro 2008/947 prevê que a autoridade competente do Estado‑Membro de execução é competente para tomar, nomeadamente, todas as decisões subsequentes relacionadas com uma pena suspensa, designadamente se a pessoa condenada cometer uma nova infração penal.

48

Como decorre do artigo 14.o, n.o 1, alíneas a) e b), desta decisão‑quadro, as decisões adotadas a esse título podem prever a modificação de uma medida de vigilância, a alteração da duração do período de vigilância ou a revogação da suspensão.

49

Daqui resulta que um dos efeitos do reconhecimento de uma sentença que aplica uma pena suspensa é conferir à autoridade competente do Estado‑Membro de execução o poder de adotar as medidas relativas à suspensão inicialmente concedida, que se afiguram necessárias quando a pessoa condenada comete uma nova infração penal.

50

Nestas condições, interpretar a lista enunciada no artigo 4.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/947 no sentido de que não inclui a obrigação de não cometer uma nova infração penal conduziria a um resultado paradoxal.

51

Com efeito, tal interpretação implicaria que o poder de adotar medidas posteriores, em caso de prática de uma nova infração penal pela pessoa condenada, seria necessariamente recusado à autoridade competente do Estado‑Membro de residência, uma vez que a sentença que aplica uma pena suspensa vincula exclusivamente a manutenção dessa suspensão ao respeito dessa obrigação. Ora, o referido poder é reconhecido a essa autoridade se essa suspensão estiver subordinada a uma outra obrigação prevista no artigo 4.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/947, sem ligação direta com a eventual prática de uma nova infração penal. Esta última solução aplicar‑se‑ia, especialmente, se essa outra obrigação tiver um alcance muito limitado, como o dever de comunicar a uma autoridade específica qualquer mudança de residência ou de local de trabalho, previsto no artigo 4.o, n.o 1, alínea a), desta decisão‑quadro, ou se a referida outra obrigação não tiver nenhuma relação com o Estado‑Membro de execução, como a proibição de entrar em determinadas zonas definidas do Estado-Membro de emissão, prevista no artigo 4.o, n.o 1, alínea b), da referida decisão‑quadro.

52

Em terceiro lugar, admitir a possibilidade de reconhecer, ao abrigo da Decisão‑Quadro 2008/947, uma sentença que proferiu uma pena suspensa quando a execução dessa pena estiver suspensa sob a condição única de não cometer uma nova infração penal é suscetível de contribuir para a realização dos objetivos prosseguidos por esta decisão‑quadro. Com efeito, decorre do seu artigo 1.o, n.o 1, e dos seus considerandos 8 e 24 que a referida decisão‑quadro prossegue três objetivos complementares, a saber, facilitar a reabilitação social da pessoa condenada, melhorar a proteção da vítima e do público em geral, prevenindo a reincidência, e promover a aplicação de medidas de vigilância e sanções alternativas adequadas, no caso dos infratores que não residam no Estado-Membro de condenação.

53

Especialmente, as autoridades do Estado‑Membro em que a pessoa condenada reside estão, regra geral, mais aptas para vigiar o respeito dessa obrigação e para tirar as consequências da sua eventual violação, uma vez que estão, em princípio, mais bem colocadas para apreciar a natureza dessa violação, a situação do seu autor e as suas perspetivas de reabilitação.

54

Além disso, há que observar que o nexo estabelecido entre a suspensão da execução da pena e a obrigação de não cometer uma nova infração penal visa desencorajar a reincidência. Assim, permitir à autoridade competente do Estado‑Membro de residência retirar as consequências de uma eventual violação dessa obrigação é suscetível de contribuir para a realização do objetivo de proteção das vítimas e da sociedade em geral.

55

Resulta do exposto que a obrigação de não cometer uma nova infração penal durante um período de suspensão pode, em princípio, constituir uma medida de vigilância, na aceção do artigo 2.o, ponto 7, da Decisão‑Quadro 2008/947, quando seja um requisito a que está subordinada a suspensão da execução de uma pena privativa de liberdade.

56

Todavia, importa sublinhar que o artigo 2.o, ponto 2, desta decisão‑quadro precisa que as medidas de vigilância relacionadas com uma pena suspensa podem estar incluídas na própria sentença ou ser determinadas numa decisão relativa à liberdade condicional tomada separadamente por uma autoridade competente.

57

Além disso, resulta do artigo 2.o, ponto 7, da referida decisão‑quadro que as medidas de vigilância a que esta se refere são, por definição, «impost[a]s por uma autoridade competente».

58

Daqui resulta que incumbe à autoridade competente do Estado‑Membro de emissão determinar as condições a que está subordinada a suspensão da execução da pena ou da medida privativa de liberdade aplicada, de modo que permita às autoridades do Estado‑Membro de execução identificar, com base na sentença ou na decisão relativa à liberdade condicional, as medidas de vigilância impostas à pessoa condenada. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, tendo em conta os elementos que figuram na sentença transmitida, é esse o caso no processo principal.

59

Tendo em conta todas as considerações expostas, há que responder à questão submetida que o artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/947, lido em conjugação com o artigo 4.o, n.o 1, alínea d), da mesma, deve ser interpretado no sentido de que o reconhecimento de uma sentença que aplicou uma pena privativa de liberdade, cuja execução está suspensa sob a única condição do respeito de uma obrigação legal de não cometimento de uma nova infração penal durante um período de suspensão, está abrangido pelo âmbito de aplicação desta decisão‑quadro, desde que essa obrigação legal decorra dessa sentença ou de uma decisão relativa à liberdade condicional proferida com base na referida sentença, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

60

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/947/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, lido em conjugação com o artigo 4.o, n.o 1, alínea d), da mesma, deve ser interpretado no sentido de que o reconhecimento de uma sentença que aplicou uma pena privativa de liberdade, cuja execução está suspensa sob a única condição do respeito de uma obrigação legal de não cometimento de uma nova infração penal durante um período de suspensão, está abrangido pelo âmbito de aplicação desta decisão‑quadro, desde que essa obrigação legal decorra dessa sentença ou de uma decisão relativa à liberdade condicional proferida com base na referida sentença, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: estónio.

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