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Document 62019CC0387

    Conclusões do advogado-geral M. Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 17 de setembro de 2020.
    RTS infra BVBA e Aannemingsbedrijf Norré-Behaegel contra Vlaams Gewest.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Raad van State.
    Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2014/24/UE — Artigo 57.°, n.° 6 — Motivos de exclusão facultativos — Medidas tomadas pelo operador económico a fim de demonstrar a sua fiabilidade não obstante a existência de um motivo de exclusão facultativo — Obrigação de o operador económico fornecer a prova dessas medidas por iniciativa própria — Efeito direto.
    Processo C-387/19.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:728

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

    apresentadas em 17 de setembro de 2020 ( 1 )

    Processo C‑387/19

    RTS infra BVBA,

    Aannemingsbedrijf Norré‑Behaegel

    contra

    Vlaams Gewest

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica)]

    «Reenvio prejudicial – Contratos públicos de obras, fornecimentos e serviços – Tramitação do processo – Motivos de exclusão – Prova das medidas corretivas – Modalidades»

    1.

    O artigo 57.o da Diretiva 2014/24/UE ( 2 ) rege os motivos para a exclusão dos operadores económicos da participação nos procedimentos de contratação pública.

    2.

    Esses operadores, todavia, podem apresentar provas de que as medidas que tomaram são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade, não obstante terem incorrido num desses motivos de exclusão. A autocorreção admitida pelo n.o 6 do artigo 57.o é uma das inovações da Diretiva 2014/24, em relação à Diretiva 2004/18/CE ( 3 ) que a precedeu.

    3.

    O Tribunal de Justiça já examinou diversas vezes o artigo 57.o da Diretiva 2014/24, também no que respeita ao seu n.o 6 ( 4 ). Em contrapartida, não se pronunciou sobre a possibilidade de a autoridade adjudicante exigir a iniciativa do operador económico para beneficiar da autocorreção, como acontece neste processo.

    I. Direito aplicável

    A.   Direito da União

    1. Diretiva 2014/24

    4.

    Os considerandos 101 e 102 dispõem:

    «(101)

    As autoridades adjudicantes deverão, além disso, poder excluir os operadores económicos que se tenham revelado pouco fiáveis, por exemplo na sequência de infrações de obrigações ambientais ou sociais, incluindo as regras em matéria de acessibilidade de pessoas com deficiência ou outras formas de falta profissional grave, como a violação das regras da concorrência ou dos direitos de propriedade intelectual […].

    Tendo em conta que a autoridade adjudicante será responsável pelas consequências da sua decisão eventualmente errada, as autoridades adjudicantes […] [d]everão […] ter a possibilidade de excluir os candidatos ou proponentes cujo desempenho no âmbito de anteriores contratos públicos tenha acusado deficiências graves no que se refere aos requisitos essenciais, por exemplo, falhas na entrega ou execução, deficiências significativas do produto ou do serviço prestado que os tornem inutilizáveis para o fim a que se destinavam, ou conduta ilícita que levante sérias dúvidas quanto à fiabilidade do operador económico. O direito nacional deverá prever uma duração máxima para essas exclusões.

    Ao aplicar motivos facultativos de exclusão, deverá prestar‑se especial atenção ao princípio da proporcionalidade. […]

    (102)

    Deverá contudo prever‑se a possibilidade de os operadores económicos poderem adotar medidas de execução destinadas a remediar as consequências de quaisquer infrações penais ou faltas graves e a prevenir eficazmente a repetição de tais faltas […]. Se tais medidas proporcionarem garantias suficientes, o operador económico em questão deverá deixar de estar excluído por esses motivos apenas. Os operadores económicos deverão ter a possibilidade de solicitar que sejam examinadas as medidas de execução tomadas com vista a uma eventual admissão ao procedimento de contratação. No entanto, deverá ser deixada ao critério dos Estados‑Membros a determinação das exatas condições processuais e materiais aplicáveis nesses casos. Em particular, os Estados‑Membros são livres de decidir se querem deixar ao cuidado das autoridades adjudicantes as avaliações pertinentes ou confiar essa tarefa a outras autoridades a nível central ou não central».

    5.

    Nos termos do artigo 18.o, n.o 1 («Princípios da contratação»):

    «As autoridades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não‑discriminação e atuam de forma transparente e proporcionada.

    […]»

    6.

    Nos termos do artigo 56.o, n.o 1 («Princípios gerais»):

    «Os contratos são adjudicados com base nos critérios estabelecidos em conformidade com os artigos 67.o a 69.o, desde que a autoridade adjudicante tenha verificado, em conformidade com os artigos 59.o a 61.o, que estão preenchidas todas as seguintes condições:

    […]

    b)

    A proposta foi apresentada por um proponente que não se encontra excluído em conformidade com o artigo 57.o […]».

    7.

    O artigo 57.o («Motivos de exclusão») dispõe:

    «[…]

    4.   As autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados‑Membros a excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação, numa das seguintes situações:

    […]

    c)

    Se a autoridade adjudicante puder demonstrar, por qualquer meio adequado, que o operador económico cometeu qualquer falta profissional grave que põe em causa a sua idoneidade;

    […]

    g)

    Se o operador económico tiver acusado deficiências significativas ou persistentes na execução de um requisito essencial no âmbito de um contrato público anterior, um anterior contrato com uma autoridade adjudicante ou um anterior contrato de concessão, tendo tal facto conduzido à rescisão antecipada desse anterior contrato, à condenação por danos ou a outras sanções comparáveis;

    h)

    Se o operador económico tiver sido considerado responsável por declarações falsas ao prestar as informações requeridas para a verificação da ausência de motivos de exclusão ou o cumprimento dos critérios de seleção, tiver retido essas informações ou não puder apresentar os documentos comprovativos exigidos nos termos do artigo 59.o; ou

    i)

    Se o operador económico tiver diligenciado no sentido de influenciar indevidamente o processo de tomada de decisão da autoridade adjudicante, de obter informações confidenciais suscetíveis de lhe conferir vantagens indevidas no concurso, ou tiver prestado, com negligência, informações erróneas suscetíveis de influenciar materialmente as decisões relativas à exclusão, seleção ou adjudicação.

    […]

    6   Qualquer operador económico que se encontre numa das situações referidas nos n.os 1 e 4 pode fornecer provas de que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade não obstante a existência de uma importante causa de exclusão. Se essas provas forem consideradas suficientes, o operador económico em causa não é excluído do procedimento de contratação.

    […]

    As medidas tomadas pelos operadores económicos são avaliadas tendo em conta a gravidade e as circunstâncias específicas da infração penal ou falta cometida. […]

    […]

    7   Os Estados‑Membros devem especificar as condições de aplicação do presente artigo por meio de disposições legislativas, regulamentares ou administrativas e tendo em conta o direito da União. […]»

    8.

    O artigo 59.o («Documento Europeu Único de Contratação Pública») estabelece:

    «1.   No momento da apresentação dos pedidos de participação ou das propostas, as autoridades adjudicantes devem aceitar o Documento Europeu Único de Contratação Pública (DEUCP), constituído por uma declaração sob compromisso de honra atualizada, como elemento de prova preliminar, em substituição dos certificados emitidos por autoridades públicas ou por terceiros, confirmando que o operador económico em causa satisfaz qualquer uma das seguintes condições:

    a)

    Não se encontra numa das situações referidas no artigo 57.o, que determinam a exclusão obrigatória ou facultativa dos operadores económicos;

    […]

    4.   A autoridade adjudicante pode solicitar aos proponentes e candidatos a apresentação da totalidade ou de parte dos documentos comprovativos, a qualquer momento do procedimento, se entender que tal é necessário para assegurar a correta tramitação do procedimento.

    […]»

    2. Regulamento de Execução (UE) 2016/7 ( 5 )

    9.

    Nos termos do artigo 1.o:

    «A partir da data de entrada em vigor das medidas nacionais de transposição da Diretiva [2014/24] e, o mais tardar, a partir de 18 de abril de 2016, é utilizado o formulário‑tipo que figura no anexo 2 do presente regulamento, para efeitos de elaboração do Documento Europeu Único de Contratação Pública a que se refere o artigo 59.o da Diretiva [2014/24]. As instruções para a sua utilização constam do anexo 1 do presente regulamento.»

    B.   Direito belga

    10.

    O artigo 61.o, § 2, n.o 4, do koninklijk besluit van 15 juli 2011 plaatsing overheidsopdrachten klassieke sectoren refere ( 6 ):

    «Em conformidade com o artigo 20.o da lei, pode ser excluído em qualquer fase do procedimento, o candidato ou proponente que […] tenha cometido uma falta profissional grave.»

    11.

    O artigo 70.o da wet van 17 juni 2016 inzake overheidsopdrachten dispõe ( 7 ):

    «Qualquer candidato ou proponente que se encontre numa das situações a que se referem os artigos 67.o ou 69.o pode fornecer provas de que as medidas que tomou são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade, não obstante a existência de uma importante causa de exclusão. Se a autoridade adjudicante considerar que esta prova é suficiente, o candidato ou proponente em causa não fica excluído do procedimento de adjudicação.

    Para o efeito, o operador económico deve provar que ressarciu ou que tomou medidas para ressarcir eventuais danos causados pela infração penal ou pela falta grave, esclareceu integralmente os factos e as circunstâncias através de uma colaboração ativa com as autoridades responsáveis pelo inquérito e tomou as medidas concretas técnicas, organizativas e de pessoal adequadas para evitar outras infrações penais ou faltas graves.

    […]»

    II. Matéria de facto e questões prejudiciais

    12.

    Em maio de 2016, a Administração flamenga ( 8 ) abriu um concurso público para adjudicação do contrato de obras X40/N60/54, relativo à reparação do nó Nieuwe Steenweg (N60) e das vias de acesso e saída da E17 em De Pinte ( 9 ).

    13.

    O anúncio de abertura do concurso fazia referência formal à aplicação dos motivos de exclusão do artigo 61.o, § 1 e § 2, do Decreto Real de 15 de julho de 2011, entre os quais se encontrava uma falta profissional grave anteriormente cometida ( 10 ).

    14.

    A autoridade adjudicante, por decisão de 13 de outubro de 2016, decidiu excluir do procedimento um dos proponentes (o agrupamento temporário de empresas Norré Behaegel‑RTS infra BVBA; a seguir «RTS‑Norré»), por terem os seus membros cometido anteriormente faltas profissionais graves ( 11 ).

    15.

    O contrato foi adjudicado a outro proponente, que tinha apresentado a proposta economicamente mais vantajosa.

    16.

    As empresas membros do RTS‑Norré recorreram da decisão de 13 de outubro de 2016 para o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica). Alegaram que, antes da sua exclusão, lhes devia ter sido permitido fazer prova de que tinham tomado medidas corretivas demonstrativas da sua fiabilidade, ao abrigo do artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24. Segundo o seu entendimento, esta disposição era diretamente aplicável.

    17.

    Alegaram também que o organismo recorrido tinha atuado com negligência e tinha violado vários princípios: o da audição da parte interessada (audi et alteram partem), o da transparência, o da concorrência leal e o da igualdade (uma vez que elas próprias tinham sido tratadas de modo desigual em comparação com os seus «colegas europeus»).

    18.

    A autoridade adjudicante contestou a alegada atribuição de efeito direto ao artigo 57.o da Diretiva 2014/24; rejeitou, designadamente, o caráter incondicional, claro e preciso do seu n.o 6. Salientou, no que respeita às medidas corretivas, que cabe aos Estados‑Membros especificar as condições de aplicação dessa disposição.

    19.

    A título subsidiário, acrescentou que a decisão impugnada não viola o regime de adoção, por iniciativa própria, das medidas corretivas que constam da Diretiva 2014/24 ( 12 ).

    20.

    O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a interpretação do artigo 57.o, n.o 4, alíneas c) e g), em conjugação com os n.os 6 e 7 da Diretiva 2014/24. Mais concretamente, pretende saber se essas disposições:

    Permitem excluir um proponente, sem lhe dar oportunidade de fornecer provas de fiabilidade, quando, de acordo com a autoridade adjudicante, tiver cometido uma falta profissional grave e não tiver indicado por iniciativa própria as medidas corretivas tomadas.

    São diretamente aplicáveis, no caso de se oporem à exigência de o proponente fornecer as provas por sua própria iniciativa.

    21.

    Nestas condições, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «Deve o disposto no artigo 57.o, n.o 4, [alíneas] c) e g), em conjugação com os n.os 6 e 7 da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma aplicação destas normas por força da qual o operador económico está obrigado a fornecer provas, por iniciativa própria, das medidas que tomou para demonstrar a sua fiabilidade?

    Em caso afirmativo, as disposições do artigo 57.o, n.o 4, alíneas c) e g), em conjugação com os n.os 6 e 7 da [Diretiva 2014/24], assim interpretadas, têm efeito direto?»

    III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

    22.

    O presente pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de maio de 2019.

    23.

    Apresentaram observações escritas RTS‑Norré, os Governos da Áustria, Bélgica, Hungria e Estónia e a Comissão.

    IV. Análise

    A.   Esclarecimentos preliminares

    24.

    A resposta às duas questões prejudiciais exige, antes de mais, esclarecer qual a diretiva aplicável neste processo.

    25.

    Dos autos resulta que não é aplicável a Diretiva 2014/24 (à qual diz respeito o reenvio), mas sim a anteriormente em vigor (Diretiva 2004/18), para a qual remetia o anúncio de abertura do concurso.

    26.

    Esse concurso teve lugar em duas fases:

    O «anúncio de pré‑informação» foi publicado em 17 de outubro de 2015 ( 13 ) e nele era referida a Diretiva 2004/18 como base legal do procedimento.

    O «anúncio do concurso» foi publicado em 13 de maio de 2016 ( 14 ) e nele também é referida como aplicável a Diretiva 2004/18, ao mesmo tempo que se advertem as partes dos motivos de exclusão do Decreto Real de 15 de julho de 2011, que transpôs a Diretiva 2004/18.

    27.

    O prazo de transposição da Diretiva 2014/24 expirou, nos termos do disposto no seu artigo 90.o, em 18 de abril de 2016, data em que foi revogada a Diretiva 2004/18.

    28.

    Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, «a diretiva aplicável no domínio dos processos de adjudicação de contratos públicos é, em princípio, a que está em vigor no momento em que a entidade adjudicante faz essa escolha. Em contrapartida, são inaplicáveis as disposições de uma diretiva cujo prazo de transposição expirou após esse momento» ( 15 ).

    29.

    Como o anúncio do concurso, neste processo, foi «necessariamente posterior ao momento em que a entidade adjudicante escolheu o tipo de procedimento que entendeu adotar e dirimiu definitivamente a questão de saber se existia ou não uma obrigação de proceder à abertura prévia de um concurso para a adjudicação do contrato público em causa» ( 16 ), o que ocorreu antes de 18 de abril de 2016, era aplicável ratione temporis a Diretiva 2004/18.

    30.

    Assim, tanto da jurisprudência do Tribunal de Justiça como, especificamente, dos anúncios de pré‑informação e do concurso se infere que o procedimento de contratação pública devia respeitar, neste caso, as disposições da Diretiva 2004/18. Corolário disto é o facto de as questões prejudiciais incidirem sobre a interpretação de disposições do direito da União (a Diretiva 2014/24) irrelevantes para a decisão da causa ( 17 ).

    31.

    As considerações que farei a seguir terão, assim, caráter subsidiário, apenas no caso de o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerar que, por razões inerentes ao seu direito interno, tem de aplicar, ainda assim, a Diretiva 2014/24.

    B.   Quanto à primeira questão prejudicial

    1. Critérios de interpretação textual e contextual

    a) Teor literal do artigo 57.o, n.os 6 e 7, da Diretiva 2014/24

    32.

    A Diretiva 2004/18 não previa a possibilidade de um operador económico que incorre num dos motivos de exclusão demonstrar que tinha tomado medidas corretivas. No entanto, o seu artigo 51.o permitia que a autoridade adjudicante convidasse as empresas a apresentarem documentos sobre a sua situação pessoal ( 18 ).

    33.

    A Diretiva 2014/24, pelo contrário, dedica a essas medidas ( 19 ) uma disposição (o artigo 57.o, n.o 6), que, todavia, apenas inclui algumas indicações, nomeadamente a propósito do seu objeto ( 20 ) ou da necessidade de fundamentar uma avaliação negativa ( 21 ). Quanto ao restante, remete‑se para as condições de aplicação concretizadas pelos Estados‑Membros.

    34.

    Com efeito, nos termos do n.o 7 do artigo 57.o, «[o]s Estados‑Membros devem especificar as condições de aplicação do presente artigo por meio de disposições legislativas, regulamentares ou administrativas e tendo em conta o direito da União».

    35.

    A liberdade dos Estados‑Membros, nesta matéria, reflete‑se a dois níveis:

    O geral, nos termos do qual beneficiam de uma certa margem de apreciação para «determinar as condições de aplicação dos motivos facultativos de exclusão previstos no artigo 57.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24» ( 22 ).

    O específico, relativo ao momento e à forma de apresentação das provas da reabilitação. Quanto a estas, o considerando 102 da Diretiva 2014/24 dispõe que «deverá ser deixada ao critério dos Estados‑Membros a determinação das exatas condições processuais e materiais aplicáveis nesses casos».

    36.

    Assim, nada impede que um Estado‑Membro imponha ao interessado a iniciativa neste âmbito. Ao pedido do operador de que sejam examinadas as medidas tomadas refere‑se, precisamente, o considerando 102 da Diretiva ( 23 ).

    37.

    Como já tive oportunidade de referir ( 24 ), o que o n.o 6 do artigo 57.o visa é que a autoridade adjudicante «pondere as provas apresentadas por quem alegue ter recuperado a sua fiabilidade». O papel da autoridade adjudicante «nesta ponderação das provas é […] passivo, relativamente ao ativo, que pertence ao operador económico […]».

    38.

    Em suma, o teor literal do artigo 57.o, n.os 6 e 7, da Diretiva 2014/24 não se opõe a que um Estado‑Membro preveja que um operador económico que pretenda participar num procedimento de contratação pública, não obstante ter incorrido num dos motivos de exclusão, tenha de fornecer motu proprio, para demonstrar a sua fiabilidade, a prova das medidas corretivas por ele tomadas.

    b) Contexto do artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24

    39.

    A interpretação sistemática ou contextual do artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24 conduz ao mesmo resultado.

    40.

    Por um lado, nos termos do artigo 56.o, n.o 3, dessa diretiva, as autoridades adjudicantes podem pedir aos operadores económicos que apresentem, acrescentem, clarifiquem ou completem a informação ou documentação pertinente (seja sobre a proposta ou sobre o candidato) num prazo adequado.

    41.

    A disposição redigida nesses termos não impõe um dever, isto é, uma obrigação positiva de pedir a informação à qual alude o seu n.o 1, alínea b). De facto, o próprio artigo permite uma disposição diferente na norma de transposição nacional.

    42.

    Por outro lado, o artigo 59.o da Diretiva 2014/24 prevê que o próprio interessado certifique, através do Documento Europeu Único de Contratação Pública (a seguir «DEUCP»), que não se encontra em nenhuma das situações de exclusão.

    43.

    O DEUCP é, assim, uma declaração formal do operador económico segundo a qual o motivo de exclusão relevante não lhe é aplicável, ou que, sendo‑o, corrigiu a sua conduta para recuperar a credibilidade perdida.

    44.

    O DEUCP, cujo regime é estabelecido pelo Regulamento de Execução 2016/7:

    Coloca o operador económico que o subscreve na posição de identificar por si próprio se incorreu num dos motivos de exclusão, quer sejam os obrigatórios, quer sejam outros constantes da legislação nacional ou que estejam especificados no anúncio ou no caderno de encargos.

    Em caso afirmativo, obriga esse operador a declarar quais as medidas corretivas que tomou, preenchendo os números correspondentes do «formulário‑tipo» ( 25 ).

    45.

    A utilização do DEUCP não dispensa o proponente de fornecer provas posteriores, sendo este um dos compromissos que deve assumir. O artigo 59.o, n.o 1, da Diretiva 2014/24 refere que o DEUCP «inclui uma declaração formal segundo a qual o operador económico poderá, mediante pedido e sem demora, apresentar esses documentos comprovativos».

    46.

    Assim, o artigo 59.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24 permite à autoridade adjudicante pedir aos proponentes a apresentação da totalidade ou de parte dos documentos comprovativos (que se mencionavam ou aos quais se fazia referência no DEUCP) em qualquer fase do procedimento, se entender que tal é necessário para assegurar a correta tramitação do procedimento.

    47.

    Este poder converte‑se numa obrigação, nos termos da mesma disposição, para o proponente ao qual decidiu adjudicar o contrato: a autoridade adjudicante deve agora exigir‑lhe que apresente os documentos comprovativos atualizados (em conformidade com o artigo 60.o e, se for caso disso, com o artigo 62.o).

    48.

    Destas considerações deduzo que, analisadas as suas disposições sob um ponto de vista sistemático e no seu contexto, a Diretiva 2014/24 e o Regulamento de Execução 2016/7 enunciam uma preferência manifesta sobre o momento e a forma em que o operador económico deve alegar que tomou as medidas corretivas: deve fazê‑lo utilizando o DEUCP ou por qualquer outro meio, mas sempre ao apresentar a sua proposta.

    49.

    Em consonância com esta regra, se o legislador ou uma entidade adjudicante nacionais exigem que o operador económico, numa primeira fase, alegue (e, eventualmente, apresente ( 26 ) os documentos comprovativos) ter tomado medidas corretivas, essa exigência respeita a Diretiva 2014/24.

    c) O artigo 69.o, em especial

    50.

    O RTS‑Norré sugere que se interprete o artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24 por analogia com o regime das propostas anormalmente baixas (artigo 69.o). O órgão jurisdicional de reenvio também refere este critério hermenêutico no seu despacho ( 27 ).

    51.

    Não concordo com essa sugestão, uma vez que o artigo 69.o da Diretiva 2014/24 prevê propostas que, noutras das suas disposições, são consideradas «irregulares» ( 28 ), mas que podem ser admissíveis. Aí não está em causa a fiabilidade do operador económico, mas sim a viabilidade material da sua proposta.

    52.

    A analogia não deve ser utilizada se a regra aplicável possuir, em si mesma, como entendo que acontece neste caso, elementos suficientes para a interpretar sem necessidade de recorrer a outra regra alegadamente análoga. Muito menos quando esta segunda tem uma finalidade diferente: o artigo 69.o da Diretiva 2014/24 visa proteger os candidatos de decisões arbitrárias da autoridade adjudicante, num contexto muito diferente do artigo 57.o, n.o 6.

    2. Objetivo do artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24

    53.

    A regra que permite aos operadores económicos alegar e demonstrar a sua credibilidade, não obstante a existência de causas de exclusão, favorece à primeira vista e, antes de mais, esses operadores. Assim, é lógico que a alegação e a prova das medidas corretivas recaiam sobre os interessados em participar no procedimento de contratação.

    54.

    Além disso, essa regra revela outra vertente, que diz respeito à autoridade adjudicante. Esta, nos termos do artigo 56.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2014/24, deve adjudicar o contrato depois de verificar se a proposta foi apresentada por um proponente idóneo (isto é, que não se encontre excluído em conformidade com o artigo 57.o).

    55.

    Cabe à autoridade adjudicante verificar se existem motivos de exclusão ( 29 ) e, em caso afirmativo, se o operador económico não fiável alegou ser, ainda assim, merecedor de confiança devido às medidas que tomou ( 30 ).

    56.

    Para efetuar essa verificação, a autoridade adjudicante tem de se basear, em primeiro lugar, nos dados que lhe são fornecidos pelos proponentes. O artigo 57.o, n.o 4, alínea h), da Diretiva 2014/24 refere a hipótese de o operador ter retido as informações requeridas para a verificação da ausência de motivos de exclusão, ou não poder apresentar os documentos comprovativos exigidos nos termos do artigo 59.o Ambas as circunstâncias seriam suficientes para o excluir da participação no procedimento de adjudicação ( 31 ).

    57.

    Poderia parecer desproporcionado exigir a quem recorre a um procedimento de contratação que comprove a sua proposta, motu proprio, com os correspondentes certificados, a prova documental de todos os elementos enumerados no artigo 59.o, n.o 1, da Diretiva 2014/24. Além disso, seria desnecessário para assegurar a correta tramitação do procedimento e incoerente com a introdução do DEUCP na legislação europeia dos contratos públicos.

    58.

    Em contrapartida, não considero desproporcionada a exigência de que a proposta a apresentar seja acompanhada pelo enunciado e descrição das medidas corretivas, se o proponente pretende beneficiar das mesmas. Esse requisito é, para ele, um ónus na aceção processual do termo ( 32 ).

    59.

    A autoridade adjudicante necessita, repito, ter conhecimento dessas medidas a fim de as avaliar e formar a sua convicção sobre a credibilidade de um adjudicatário que, a priori, não é fiável. Mas isso não significa que, na falta de indicações do proponente, deva averiguar oficiosamente se este tomou ou não essas medidas.

    60.

    O Tribunal de Justiça refere no Acórdão Vossloh que o operador económico:

    «deve fornecer à autoridade adjudicante os elementos de prova que permitam comprovar o seu caráter suficiente com vista à sua admissão ao procedimento de contratação»;

    e que se «pretend[e] demonstrar a sua fiabilidade, apesar da existência de uma importante causa de exclusão, deve colaborar de forma efetiva com as autoridades a quem foram confiadas essas funções respetivas, quer seja a autoridade adjudicante quer seja a autoridade responsável pelo inquérito» ( 33 ).

    61.

    No entanto, o mesmo acórdão matiza o dever de colaborar: limita‑se «às medidas que são estritamente necessárias à prossecução efetiva do objetivo previsto pelo exame da fiabilidade do operador económico indicado no artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24» ( 34 ).

    62.

    Analisarei em seguida essa exigência de proporcionalidade, depois de abordar as que decorrem dos princípios da transparência e da igualdade.

    3. Limites à regra da apresentação por iniciativa própria

    63.

    As disposições legais, regulamentares ou administrativas instituídas pelos Estados‑Membros no âmbito do artigo 57.o, n.o 7, devem respeitar, em cumprimento desta disposição, o direito da União. Esse dever implica respeitar os princípios do direito da União aplicáveis aos contratos públicos. Além do mais, o apelo à proporcionalidade surge expressamente, no n.o 6 desse artigo, para a avaliação das medidas corretivas.

    a) Transparência e igualdade

    64.

    O princípio da transparência, que se traduz na obrigação de indicar de forma clara as condições de aptidão dos proponentes, está associado ao da igualdade de tratamento entre estes, a ponto de o Tribunal de Justiça considerar que um é corolário do outro ( 35 ).

    65.

    Assim, todos os proponentes devem estar numa situação de igualdade quanto ao conhecimento das condições do concurso. Daí a necessidade de indicar com clareza os motivos de exclusão, designadamente, os que são facultativos, uma vez que o seu regime e a sua aplicação uniformes não são especificados pelo direito da União, mas sim pelas regras de cada Estado‑Membro ( 36 ).

    66.

    Indicado um motivo de exclusão no anúncio do concurso, os princípios da transparência e da igualdade não impedem que uma regra nacional exija ao operador económico, para neutralizar esse motivo, que apresente com a sua proposta (isto é, por iniciativa própria) a prova das medidas corretivas.

    67.

    Deste modo, todos os candidatos podem saber, em igualdade de condições, se, por terem incorrido no motivo de exclusão indicado, têm de alegar numa primeira fase a sua credibilidade recuperada perante a autoridade adjudicante, que deve selecionar um deles.

    68.

    Segundo o Tribunal de Justiça, não se pode impor aos proponentes que declarem por iniciativa própria circunstâncias que se verificam em relação a eles, quando tal obrigação «não figure no direito nacional aplicável nem no anúncio de concurso, nem no caderno de encargos». Nesse caso, a obrigação não constitui uma condição claramente definida e violar‑se‑iam os princípios da transparência e da igualdade de tratamento ( 37 ).

    69.

    A contrario, o dever de comunicar as referidas circunstâncias será legítimo, se figurar «no direito nacional aplicável, […] no anúncio de concurso [ou] no caderno de encargos».

    70.

    Essa jurisprudência não se opõe, assim, a um modelo de relação entre a autoridade adjudicante e o operador económico que faça recair sobre este último, de um modo geral, o ónus de alegar e, se for caso disso, apresentar prova das medidas corretivas por ele adotadas, se quiser beneficiar delas para neutralizar o motivo de exclusão descrito no anúncio do concurso.

    71.

    Um «operador económico razoavelmente informado e normalmente diligente» ( 38 ) pode, hipoteticamente, não se aperceber da existência de requisitos materiais da proposta que não tenham sido publicados. Em contrapartida, uma vez advertido acerca dos concretos motivos de exclusão no anúncio do concurso, os princípios da transparência e da publicidade não são violados pelo facto de esse operador dever alegar (e, se for caso disso, provar) que, não obstante ter incorrido num deles, sanou a sua falta de credibilidade.

    72.

    Esse mesmo operador não pode ignorar que, mesmo que o anúncio do concurso não contenha uma referência explícita às medidas corretivas, tem a possibilidade de beneficiar delas, nos termos da Diretiva 2014/24.

    73.

    Tal ocorre, por maioria de razão, desde a existência do DEUCP, que, como já referi, inclui números específicos para a declaração (e descrição) das medidas de reabilitação. Recorde‑se que a utilização do DEUCP é praticamente obrigatória em quase todos os procedimentos abrangidos pela Diretiva 2014/24 ( 39 ).

    b) Proporcionalidade

    74.

    Nos termos do primeiro considerando da Diretiva 2014/24, o princípio da proporcionalidade aplica‑se aos procedimentos de adjudicação de contratos públicos. O considerando 101 reitera‑o, especificamente, ao fazer referência aos motivos facultativos de exclusão.

    75.

    O artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24 inclui uma referência expressa à proporcionalidade na avaliação das medidas de reabilitação que os operadores económicos aleguem ter tomado.

    76.

    Assim, é lógico que o Tribunal de Justiça tenha referido que «[…] as regras destinadas a especificar as condições de aplicação do artigo 57.o da referida diretiva, não devem exceder o necessário para alcançar os objetivos pretendidos pela mesma diretiva […]» ( 40 ).

    77.

    Assim, é importante que o princípio da proporcionalidade seja chamado à colação quando a autoridade adjudicante tem de avaliar a suficiência das medidas de corretivas e os próprios motivos de exclusão, evitando, quanto a estes, que pequenas irregularidades, não repetidas, possam conduzir à exclusão, salvo em circunstâncias excecionais ( 41 ).

    78.

    Pode pedir‑se à autoridade adjudicante que aplique esse mesmo princípio relativamente à exigência de que o proponente alegue na sua proposta, não obstante ter incorrido num motivo facultativo de exclusão, ter retificado posteriormente a sua conduta e, por conseguinte, ter recuperado a sua fiabilidade?

    79.

    Em princípio, a autoridade adjudicante deve limitar‑se a verificar se o proponente cumpriu esse requisito. Não se pode considerar desproporcionada uma decisão em que se rejeite a candidatura de um operador económico que, incumprindo o seu dever, tenha omitido na sua proposta que sobre ele impende uma causa de exclusão. Assim sucederá, por exemplo, quando não informa que cometeu anteriormente uma falta profissional grave.

    80.

    Nesse caso, o que determina a exclusão não será tanto a falta de alegação, como a própria existência do motivo de exclusão (por exemplo, a falta profissional grave) cuja alteração, traduzida numa medida corretiva adequada, o operador económico não revelou.

    81.

    Pelo contrário, haverá situações nas quais se pode admitir uma maior flexibilidade, por aplicação dos critérios que o Tribunal de Justiça consagrou no Acórdão Pizzo, para os proponentes estabelecidos noutros Estados‑Membros, «na medida em que os seus níveis de conhecimento do direito nacional e da sua interpretação, bem como da prática das autoridades nacionais, não pode ser comparado com o dos proponentes nacionais» ( 42 ).

    82.

    Nessas situações, «os princípios da igualdade de tratamento e da proporcionalidade devem ser interpretados no sentido de que não se opõem ao facto de se permitir ao operador económico que regularize a situação e cumpra a referida obrigação dentro de um prazo fixado pela entidade adjudicante» ( 43 ).

    83.

    No Acórdão de 14 de dezembro de 2016, Conexxion Taxi Services, o Tribunal de Justiça retomou esta ideia, baseada na menor familiaridade do operador económico estabelecido noutro Estado‑Membro com os termos e formas de aplicação da regulamentação nacional relevante, por ser estrangeiro ( 44 ).

    84.

    Considero que este critério será igualmente aplicável quando o motivo de exclusão que impende sobre o operador económico não se deduza claramente dos documentos relativos ao procedimento. É coerente com os princípios da igualdade e da proporcionalidade que, nesse contexto, se permita ao operador económico sanar a falta inicial de referência a esse motivo (e às subsequentes medidas corretivas).

    c) Direito de defesa

    85.

    No despacho de reenvio, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) dá a entender que pode qualificar‑se de «autoacusação» o facto de os proponentes terem de enumerar, motu proprio, as suas faltas graves e as medidas de reabilitação subsequentes ( 45 ).

    86.

    Nada obriga um operador económico a participar num procedimento de contratação pública. Ora, se o faz, deve respeitar as suas regras. Na Diretiva 2014/24 a relação entre os proponentes e a autoridade adjudicante deve pautar‑se pela boa‑fé, de modo que aqueles, precisamente pela fiabilidade que lhes é exigida, não podem ocultar a informação sobre as causas de exclusão em que tenham incorrido.

    87.

    Com efeito, o proponente deve fornecer a informação exigida para verificar a existência ou a inexistência de motivos de exclusão, não lhe sendo permitido retê‑la [é esta a expressão utilizada pelo artículo 57.o, n.o 4, alínea h), da Diretiva 2014/24] nem falseá‑la.

    88.

    Exigir a quem participa voluntariamente num procedimento de contratação pública que, para não ser excluído, comunique as suas faltas graves preexistentes (e as posteriores medidas corretivas, se for caso disso) não equivale a violar o direito a não se declarar culpado, ou de não se auto‑incriminar, aplicável noutros domínios da ordem jurídica.

    89.

    Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que a autoridade adjudicante está autorizada a pedir ao proponente a prova documental de uma medida de reabilitação, mesmo que isso lhe traga eventuais consequências desfavoráveis ( 46 ).

    90.

    Diferente é o facto de, devido à amplitude do conceito «falta profissional grave que põe em causa a sua idoneidade», o operador económico não poder determinar, com segurança, se uma das suas condutas no passado pode ser considerada como tal. A este respeito, tem razão o tribunal a quo ao sublinhar que, face à extensão do poder discricionário da autoridade adjudicante para a apreciar (considerando 101 da Diretiva 2014/24), nem sempre se afigurará fácil discernir se se verifica esse motivo de exclusão.

    91.

    Nessa hipótese, quando a qualificação da conduta como falta grave não seja previsível para o proponente em causa, não se poderá pedir‑lhe que a refira na sua proposta ou no DEUCP. Caberá então à autoridade adjudicante, a quem, em última análise, incumbe «demonstrar, por qualquer meio adequado, que o operador económico cometeu qualquer falta profissional grave», dar ao proponente a possibilidade de alegar o que considere conveniente sobre essa falta.

    92.

    Vimos anteriormente que, em conformidade com o princípio da transparência, os motivos de exclusão devem ser enunciados de tal forma que o operador económico possa identificar a respetiva subsunção e, se for caso disso, alegar tê‑los corrigido.

    93.

    Neste sentido, recordo que a exclusão autorizada pelo artigo 57.o, n.o 4, da Diretiva 2014/24 pode basear‑se tanto em deficiências na execução de contratos anteriores [alínea g)] como em faltas profissionais graves cometidas [alínea c)]. De acordo com a apreciação da autoridade adjudicante, esses dois motivos verificam‑se materialmente no presente processo e ambos são especificamente referidos na primeira questão prejudicial ( 47 ).

    94.

    Com efeito, o anúncio do concurso que está na origem da controvérsia, ao abrigo da Diretiva 2004/18, incluía como motivo de exclusão as faltas graves cometidas, também evocado pelo Decreto Real de 15 de julho de 2011. Foi esta a interpretação da autoridade adjudicante, que alegou esse motivo para afastar as empresas recorrentes do procedimento de contratação.

    95.

    Em suma, entendo que o artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24 não se opõe a que, se o motivo de exclusão for claramente indicado no anúncio do concurso, o operador económico tenha de alegar (e eventualmente provar) por sua própria iniciativa as medidas corretivas que tenha adotado.

    C.   Quanto à segunda questão prejudicial

    96.

    No caso de a resposta à primeira questão ser afirmativa, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24, podia ser alegado diretamente pelo operador económico contra a autoridade adjudicante ( 48 ).

    97.

    Aceitando‑se a minha proposta relativa à questão anterior, não seria necessário responder a esta. Assim, as considerações que se seguem são feitas a título duplamente subsidiário (já expus anteriormente por que razão a Diretiva 2014/24 não é aplicável no presente processo) ( 49 ).

    98.

    Na minha opinião, se fosse aplicável, podia reconhecer efeito direto ao artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24, para efeitos do pedido a decidir pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ( 50 ).

    99.

    Esse artigo confere aos proponentes um direito (o de alegar as medidas corretivas perante a autoridade adjudicante) que podem invocar nos tribunais nacionais e que estes devem tutelar.

    100.

    As divergências entre os intervenientes no processo prejudicial restringem‑se ao caráter incondicional e suficientemente preciso dessa disposição como elementos exigidos pela jurisprudência ( 51 ).

    101.

    Quanto à incondicionalidade, o direito consagrado no artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2014/24 não depende dos Estados‑Membros nem está sujeito, no que respeita ao seu conteúdo essencial, ao que estes estabeleçam.

    102.

    Quanto à precisão, é a própria disposição que dá indicações sobre o que, no mínimo, é preciso provar e, por conseguinte, avaliar ( 52 ). Indica, igualmente, com base em que critérios (gravidade e circunstâncias específicas) será efetuada a avaliação ( 53 ) e quais as consequências da avaliação positiva e da negativa ( 54 ). Estabelece também as situações em que não existe o direito a apresentar as medidas corretivas ( 55 ). Em suma, fixa os aspetos básicos do regime e do conteúdo desse direito.

    103.

    É certo que outros elementos, materiais ou processuais, são da competência dos Estados, em conformidade com a regra geral do artigo 57.o da Diretiva 2014/24. É o que acontece, por exemplo, no que respeita ao período máximo de exclusão ou ao momento e à forma de demonstrar a reabilitação.

    104.

    Quanto às modalidades e à data em que o proponente deve alegar, e se for caso disso, provar, as medidas corretivas, a decisão é deixada aos Estados. A alternativa entre avaliação oficiosa ou a requerimento de parte também não constitui uma condição essencial do direito que o artigo 57.o, n.o 6, da Diretiva 2104/24 confere aos proponentes.

    105.

    No entanto, a ausência de previsão nacional (legislativa, regulamentar ou administrativa) sobre o momento e a forma não se pode traduzir num prejuízo para os proponentes a ponto de eliminar o seu direito a alegar num tribunal nacional os benefícios de que gozam em matéria de medidas corretivas.

    V. Conclusão

    106.

    Atendendo a estas considerações, sugiro que o Tribunal de Justiça responda ao Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) da seguinte forma:

    «A Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE, não é aplicável, ratione temporis, aos factos do litígio principal, tal como resultam do pedido de decisão prejudicial.

    Subsidiariamente:

    O artigo 57.o, n.o 4, alíneas c) e g), em conjugação com os n.os 6 e 7, da Diretiva 2014/24, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um operador económico tenha de alegar e, se for caso disso, provar, por iniciativa própria, que as medidas corretivas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade apesar da existência de uma causa de exclusão em que tenha incorrido.

    Os operadores económicos que se encontrem numa das situações referidas nos n.os 1 e 4 do artigo 57.o da Diretiva 2014/24 podem invocar diretamente nos tribunais nacionais o direito que lhes confere o n.o 6.o desse mesmo artigo.»


    ( 1 ) Língua original: espanhol.

    ( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65).

    ( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114).

    ( 4 ) Acórdão de 24 de outubro de 2018, Vossloh Laeis (C‑124/17, EU:C:2018:855; a seguir «Acórdão Vossloh»); e de 19 de junho de 2019, Meca (C‑41/18, EU:C:2019:507).

    ( 5 ) Regulamento de Execução da Comissão de 5 de janeiro de 2016, que estabelece o formulário‑tipo do Documento Europeu Único de Contratação Pública (JO 2016, L 3, p. 16).

    ( 6 ) Decreto Real de 15 de julho de 2011 relativo aos contratos públicos nos setores clássicos (Belgisch Staatsblad, 9 augustus 2011, blz. 44862; a seguir «Decreto Real de 15 de julho de 2011»).

    ( 7 ) Lei de 17 de junho de 2016 relativa aos contratos públicos (Belgisch Staatsblad, 14 juli 2016, blz. 44219; a seguir «Lei de 17 de junho de 2016»), a qual entrou em vigor em 30 de junho de 2017.

    ( 8 ) Mais concretamente, a Secção de Estradas e Circulação Rodoviária da Flandres Oriental da Agência de Estradas e Trânsito da Região da Flandres, Bélgica.

    ( 9 ) O anúncio foi publicado em 11 de maio de 2016 no Bulletin der Aanbestedingen (Boletim de adjudicações) e em 13 de maio de 2016, no suplemento do Jornal Oficial da União Europeia dedicado aos concursos públicos europeus.

    ( 10 ) Este facto é confirmado pelo despacho de reenvio (n.o 3.3).

    ( 11 ) Essas violações suscitavam dúvidas quanto à capacidade das empresas RTS‑Norré para assegurar uma regular execução do contrato.

    ( 12 ) Na sua opinião, poderia ter apoio na Lei de 17 de junho de 2016, que prevê a obrigação de fornecer motu proprio a prova das medidas tomadas (mesmo que a referida lei não estivesse em vigor à data da abertura do concurso).

    ( 13 ) JO 2015/S 202‑365107.

    ( 14 ) JO 2016/S 092‑164635.

    ( 15 ) Acórdão de 28 de fevereiro de 2018, MA.T.I. SUD e Duemme SGR (C‑523/16 e C‑536/16, EU:C:2018:122, n.o 36). No mesmo sentido, os Acórdãos de 5 de outubro de 2000, Comissão/França (C‑337/98, EU:C:2000:543, n.os 36, 37, 41 e 42); de 11 de julho de 2013, Comissão/Países Baixos (C‑576/10, EU:C:2013:510, n.os 52 a 54); de 10 de julho de 2014, Impresa Pizzarotti (C‑213/13, EU:C:2014:2067, n.os 31 a 33); de 7 de abril de 2016, Partner Apelski Dariusz (C‑324/14, EU:C:2016:214, n.o 83); e de 27 de outubro de 2016, Hörmann Reisen (C‑292/15, EU:C:2016:817, n.os 31 e 32).

    ( 16 ) Ibidem, n.o 36.

    ( 17 ) Esta opinião é partilhada pelo Governo belga e pela Comissão Europeia na resposta às questões que lhes foram dirigidas pelo Tribunal de Justiça. O primeiro acrescenta, todavia, que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a autoridade adjudicante já tinha decidido de modo definitivo, no anúncio de pré‑informação, efetuar a abertura do concurso.

    ( 18 ) Houve um autor que sugeriu que este tipo de medidas poderia estar abrangido, no artigo 45.o da Diretiva 2004/18, pela derrogação por razões imperativas de interesse geral. V. Risvig Hamer, C., «Artigo 57.o», em Steinicke, M. e Vesterdorf, P. L., EU Public Procurement Law, C. H. Beck, Nomos, Hart, 2018, p. 643. O facto de não se encontrarem previstas não significava que essas medidas estivessem proscritas ou não pudessem produzir os seus efeitos sobre a fiabilidade do operador económico, ao abrigo de princípios como o da proporcionalidade.

    ( 19 ) Podem ser classificadas, indistintamente, como medidas corretivas, de reabilitação, sanação ou alteração.

    ( 20 ) N.o 6, segundo parágrafo.

    ( 21 ) N.o 6, terceiro parágrafo.

    ( 22 ) Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Tim (C‑395/18, EU:C:2020:58; a seguir «Acórdão Tim», n.o 34).

    ( 23 ) Os operadores económicos «deverão ter a possibilidade de solicitar que sejam examinadas as medidas de execução tomadas com vista a uma eventual admissão ao procedimento de contratação» (o sublinhado é meu).

    ( 24 ) Conclusões apresentadas no processo Vossloh Laeis (C‑124/17, EU:C:2018:316, n.os 48 e 49).

    ( 25 ) No anexo II (Formulário‑tipo do DEUCP) do Regulamento de Execução 2016/7 são enumerados os diversos motivos de exclusão em relação aos quais o operador económico deve responder. Quando algum deles lhe diz respeito, deve assinalar nas opções correspondentes se «tomou medidas para demonstrar a sua credibilidade não obstante a existência desse motivo de exclusão (autocorreção)» ou se «tomou medidas corretivas»; acrescenta‑se «em caso afirmativo, devem ser descritas as medidas tomadas».

    ( 26 ) Quem usa o DEUCP cumpre essa obrigação (sob reserva de posteriores verificações), se nele indicar as medidas tomadas, para o que deve preencher as opções ad hoc do formulário.

    ( 27 ) Despacho de reenvio, n.os 20 e 21.

    ( 28 ) Artigo 26.o, n.o 4, in fine, e artigo 35.o, n.o 5, segundo parágrafo.

    ( 29 ) É irrelevante, para o que interessa no caso vertente, que a autoridade adjudicante efetue ela própria essa verificação ou confie essa tarefa a outras autoridades a nível central ou não central (considerando 102 da Diretiva 2014/24).

    ( 30 ) Cabe igualmente às autoridades adjudicantes apreciar os riscos em que podem incorrer ao adjudicar um contrato a um operador cuja fiabilidade seja duvidosa (Acórdão Vossloh, n.os 24 e 26). A este respeito, o considerando 101 da Diretiva 2014/24 recorda que serão responsáveis pelas consequências das suas decisões eventualmente erradas.

    ( 31 ) Nos termos da alínea i) daquele mesmo número, é igualmente um motivo facultativo de exclusão do operador económico «[ter] prestado, com negligência, informações erróneas suscetíveis de influenciar materialmente as decisões relativas à exclusão, seleção ou adjudicação».

    ( 32 ) Um ónus na aceção processual do termo significa que, em virtude do princípio da preclusão, quem não cumpre o que é exigido pela disposição (neste caso, alegar a existência das medidas) perde a oportunidade de o fazer depois.

    ( 33 ) Acórdão Vossloh, n.o 27.

    ( 34 ) Ibidem, n.o 28.

    ( 35 ) Acórdão de 2 de junho de 2016, Pizzo (C‑27/15, EU:C:2016:404; a seguir «Acórdão Pizzo», n.o 36).

    ( 36 ) Esses mesmos princípios proíbem que a autoridade adjudicante recuse uma proposta que preencha os requisitos do anúncio de concurso, com base em motivos não previstos nesse anúncio ou no direito nacional aplicável [Acórdão de 16 de abril de 2015, Enterprise Focused Solutions (C‑278/14, EU:C:2015:228, n.os 26 e 28)].

    ( 37 ) Acórdão de 17 de maio de 2018, Specializuotas transportas (C‑531/16, EU:C:2018:324, n.os 24 e 26 e dispositivo).

    ( 38 ) É este o tipo de operador que o Tribunal de Justiça caracteriza no Acórdão Pizzo (n.o 36).

    ( 39 ) O recurso ao DEUCP daria lugar a um encargo administrativo desnecessário quando haja um único participante eventualmente predeterminado, ou em caso de urgência ou de características específicas relacionadas com a operação: v. anexo I do Regulamento de Execução 2016/7.

    ( 40 ) Acórdão Tim, n.o 45.

    ( 41 ) «Ao aplicar motivos facultativos de exclusão, deverá prestar‑se especial atenção ao princípio da proporcionalidade. Só em circunstâncias excecionais poderão as pequenas irregularidades conduzir à exclusão de um operador económico».

    ( 42 ) Acórdão Pizzo, n.o 46.

    ( 43 ) Ibidem, n.o 51 e n.o 2 do dispositivo. Quanto à obrigação de indicar determinados elementos na proposta, que não consta da própria documentação, mas que resulta da interpretação jurisprudencial, v. Despachos de 10 de novembro de 2016, Spinosa Costruzioni Generali e Melfi (C‑162/16, não publicado, EU:C:2016:870); Edra Costruzioni e Edilfac (C‑140/16, não publicado, EU:C:2016:868); e MB (C‑697/15, não publicado, EU:C:2016:867).

    ( 44 ) Acórdão de 14 de dezembro de 2016, Conexxion Taxi Services (C‑171/15, EU:C:2016:948, n.o 42).

    ( 45 ) Despacho de reenvio, n.o 18.

    ( 46 ) Por exemplo, quando «a transmissão desse documento [puder] facilitar a instauração de uma ação de responsabilidade civil […] contra o referido operador económico», por danos decorrentes, precisamente, do comportamento que é motivo de exclusão (Acórdão Vossloh, n.o 30).

    ( 47 ) No despacho de reenvio são detalhadamente transcritas (epígrafe 3.6) as numerosas deficiências na execução de obras análogas imputadas à RTS infra, mas sobretudo à Norré‑Behaegel, adjudicatárias dos respetivos contratos anteriores. A autoridade adjudicante qualificou esses factos de «incumprimentos graves e reiterados».

    ( 48 ) Embora a segunda questão prejudicial faça referências a outros números e alíneas, circunscreve‑se ao eventual efeito direto do n.o 6 do artigo 57.o (assim, na epígrafe 22 do despacho de reenvio).

    ( 49 ) N.os 24 a 31 das presentes conclusões.

    ( 50 ) Não é possível esclarecer se se verificam ou não as condições para que uma disposição produza efeito direto à margem do contexto particular em que a questão se coloca. Fazer decorrer de uma diretiva um mandato positivo exige um maior rigor textual do que se se recorrer a ela como defesa, para a anulação de uma decisão individual, ou para a fiscalização da compatibilidade de uma regulamentação nacional. No primeiro caso, o tribunal nacional necessita um apoio maior do que nos outros. V. Prechal, S., Directives in EC Law, Oxford EC Law Library, 2.a ed., 2005, pp. 250 a 254 e as referências à jurisprudência.

    ( 51 ) Esta jurisprudência tem início com o Acórdão de 5 de abril de 1979, Ratti (148/78, EU:C:1979:110), e é claramente ratificada no Acórdão de 19 de janeiro de 1982, Becker (8/81, EU:C:1982:7).

    ( 52 ) Segundo parágrafo do artigo 57.o, n.o 6.

    ( 53 ) Terceiro parágrafo do artigo 57.o, n.o 6.

    ( 54 ) Primeiro e terceiro parágrafos do artigo 57.o, n.o 6.

    ( 55 ) Quarto parágrafo do artigo 57.o, n.os 6 e 7.

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