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Document 62017CC0235

Conclusões do advogado-geral H. Saugmandsgaard Øe apresentadas em 29 de novembro de 2018.
Comissão Europeia contra Hungria.
Incumprimento de Estado — Artigo 63.° TFUE — Livre circulação de capitais — Artigo 17.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de propriedade — Regulamentação nacional que extingue ex lege e sem indemnização os direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas e silvícolas anteriormente adquiridos por pessoas coletivas ou por pessoas singulares que não possam demonstrar um vínculo familiar próximo com o proprietário.
Processo C-235/17.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2018:971

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE

apresentadas em 29 de novembro de 2018 ( 1 )

Processo C‑235/17

Comissão Europeia

contra

Hungria

«Incumprimento de Estado — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas — Legislação nacional que suprime, sem prever indemnização, os direitos que anteriormente se constituíram em benefício de pessoas coletivas ou singulares que não possam provar uma relação de parentesco próxima com o proprietário das terras — Competência do Tribunal de Justiça para, de forma autónoma, declarar verificada uma violação do artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

I. Introdução

1.

Na presente ação por incumprimento, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que a Hungria — tendo especialmente em atenção as disposições em vigor desde 1 de janeiro de 2013 da termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény (Lei n.o LV de 1994 relativa aos terrenos produtivos; a seguir «Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos»), as disposições pertinentes da mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvény (Lei n.o CXXII de 2013 relativa à venda de terrenos agrícolas e silvícolas; a seguir «Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas»), assim como determinadas disposições da mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvénnyel összefüggő egyes rendelkezésekről és átmeneti szabályokról szóló 2013. évi CCXII. törvény (Lei n.o CCXII de 2013, que adota diversas disposições e medidas transitórias no que respeita à [Lei de 2013 sobre os terrenos agrícolas], a seguir «Lei de 2013 relativa às medidas transitórias») e, por último, o artigo 94.o, n.o 5, da ingatlan‑nyilvántartásról szóló 1997. évi CXLI. törvény (Lei n.o CXLI de 1997, relativa ao registo predial, a seguir «Lei do registo predial»), ao restringir os direitos de usufruto e de uso sobre os terrenos agrícolas e silvícolas ( 2 ) de modo manifestamente desproporcionado — não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos direitos à liberdade de estabelecimento (artigo 49.o TFUE) e à livre circulação de capitais (artigo 63.o TFUE) e do direito fundamental de propriedade (artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a seguir «Carta»).

2.

A incompatibilidade da legislação controvertida com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.o TFUE já deu azo ao Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth ( 3 ) e sobre ela me debrucei nas conclusões que apresentei nesses dois processos apensos ( 4 ). Essa problemática não dará, portanto, lugar a novas considerações da minha parte, não podendo o Tribunal de Justiça, em conformidade com esse acórdão, mais fazer do que confirmar a violação do direito da União quanto a esse aspeto.

3.

Posto isto, o interesse do presente processo não reside aí. Recordo que nesse acórdão, o Tribunal de Justiça também tinha sido questionado sobre a compatibilidade dessa legislação com o artigo 17.o da Carta. O Tribunal de Justiça, contudo, não considerou ser necessário abordar a questão. Ora, segundo a Comissão, o Tribunal de Justiça deveria, no presente caso, pronunciar‑se sobre essa disposição, e isso independentemente do exame relativo às liberdades de circulação.

4.

Nas presentes conclusões, explicarei as razões pelas quais, em meu entender, o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre o artigo 17.o da Carta, como pede a Comissão. A título subsidiário, exporei as razões pelas quais, em meu entender, um exame da legislação controvertida à luz dessa disposição, de qualquer modo, seria excessivo. Por último, a título infinitamente subsidiário, procederei à análise dessa legislação à luz do referido artigo 17.o, análise essa que me levará a concluir pela incompatibilidade da referida legislação com o direito fundamental de propriedade garantido por este artigo.

II. O direito húngaro

A. A legislação relativa à aquisição de terrenos agrícolas

5.

A Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos estabelece a proibição de as pessoas singulares que não têm a nacionalidade húngara, com exceção das que dispõem de uma autorização de residência permanente ou que possuem o estatuto de refugiado, e de as pessoas coletivas, tanto estrangeiras como húngaras, adquirirem terrenos agrícolas.

6.

Esta lei foi modificada, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2002, pela termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény módosításáról szóló 2001. évi CXVII. Törvény (Lei n.o CXVII de 2001 que modifica a [Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos]), para também impedir a possibilidade de contratualmente se constituir um direito de usufruto sobre os terrenos agrícolas em benefício de pessoas singulares que não possuem a nacionalidade húngara ou de pessoas coletivas. O artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos passava, portanto, a dispor, na sequência dessas modificações, que «[p]ara efeitos da constituição contratual de um direito de usufruto ou de um direito de utilização, são aplicáveis as disposições do Capítulo II relativas às restrições à aquisição de propriedades. […]».

7.

O artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos foi, posteriormente, alterado pela egyes agrár tárgyú törvények módosításáról szóló 2012. évi CCXIII. Törvény (Lei n.o CCXIII de 2012 que modifica determinadas leis relativas à agricultura). Na sua nova versão, que integra essa alteração e entrou em vigor em 1 de janeiro de 2013, o referido artigo 11.o, n.o 1, dispunha que «[o] direito de usufruto constituído por contrato é nulo, exceto se constituído em benefício de parente próximo».

8.

A Lei n.o CCXIII de 2012 que modifica determinadas leis relativas à agricultura também incorporou na Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos um novo artigo 91.o, n.o 1, nos termos do qual «[e]m 1 de janeiro de 2033 extinguem‑se ex lege os direitos de usufruto vigentes em 1 de janeiro de 2013 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não tenham uma relação familiar próxima, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado que ultrapasse a data de 30 de dezembro de 2032».

9.

A Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas foi adotada em 21 de junho de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013. O artigo 37.o, n.o 1, desse diploma mantém a regra segundo a qual é nulo o direito de usufruto ou de uso contratualmente constituído sobre esses terrenos, exceto se o tiver sido em benefício de um familiar próximo.

10.

O artigo 5.o, n.o 13, da referida lei define o conceito de «[f]amiliares próximos» no sentido de se referir «aos cônjuges, ascendentes em linha direta, filhos adotivos, filhos próprios e filhos do cônjuge, pais adotivos, sogros e irmãos».

11.

A Lei de 2013 relativa às medidas transitórias foi adotada em 12 de dezembro de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013. O artigo 108.o, n.o 1, dessa lei, que revogou o artigo 91.o, n.o 1, da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos, estabelece «[e]m 1 de maio de 2014 extinguem‑se ex lege os direitos de usufruto e de uso vigentes em 30 de abril de 2014 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não sejam familiares próximos, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado que ultrapasse a data de 30 de abril de 2014».

12.

O artigo 94.o da Lei do registo predial determina:

«1.   A fim de proceder ao cancelamento, do registo predial, da inscrição dos direitos de usufruto e de uso que se extingam por força do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 relativa às medidas transitórias] (a seguir, para efeitos deste artigo, conjuntamente “direitos de usufruto”), até 31 de outubro de 2014, a autoridade responsável pelo registo predial notifica a pessoa singular titular do direito de usufruto para declarar, no prazo de 15 dias a partir da receção da notificação em formulário aprovado por decisão ministerial, que tem com a pessoa que figura como proprietário do imóvel identificado nos documentos com base nos quais foi feito o registo uma relação de familiar próximo. Após 31 de dezembro de 2014 não serão admitidos quaisquer pedidos de justificação de extemporaneidade.

[…]

3.   Quando da declaração resultar que não existe relação de familiar próximo ou o titular não apresentar a declaração dentro do prazo, a autoridade responsável pelo registo predial cancela oficiosamente, dentro dos seis meses seguintes ao termo do prazo indicado para apresentar a declaração e o mais tardar até 31 de julho de 2015, a inscrição do direito de usufruto no registo predial.

[…]»

B. O direito civil

13.

As disposições da polgári törvénykönyvről szóló 1959. évi IV. törvény (Lei n.o IV de 1959 que institui o Código Civil, a seguir «antigo Código Civil») permaneceram em vigor até 14 de março de 2014.

14.

O artigo 215.o do antigo Código Civil determinava:

«(1)   Se para a entrada em vigor do contrato for necessário o acordo de terceiros ou a aprovação das autoridades, esse contrato ou acordo só poderá entrar em vigor depois de dado esse acordo ou essa aprovação, embora as partes fiquem vinculadas pelas respetivas declarações. As partes ficam libertas do seu compromisso se o terceiro ou a autoridade em causa não se pronunciarem dentro do prazo conjuntamente fixado pelas partes.

[…]

(3)   Na falta do acordo ou da aprovação necessários, aplicar‑se‑ão ao contrato os efeitos jurídicos da invalidade.

[…]»

15.

O artigo 237.o do antigo Código Civil previa:

«(1)   Caso o contrato seja inválido será restabelecida a situação que existia antes da sua celebração.

(2)   Caso não seja possível restabelecer a situação que existia antes da celebração do contrato, o Tribunal poderá declarar o contrato aplicável até se pronunciar. Um contrato inválido pode ser declarado válido se a sua invalidade for sanada, especialmente por meio da supressão do benefício desproporcionado em caso de desproporção das prestações das partes num contrato usurário. Nesses casos, deverá ser ordenada a restituição da prestação que, eventualmente, não tenha tido contraprestação.»

16.

As disposições da polgári törvénykönyvről szóló 2013. évi V. törvény (Lei n.o V de 2013 que institui o Código Civil, a seguir «novo Código Civil») entraram em vigor em 15 de março de 2014.

17.

Os artigos 6:110 e 6:111 do novo Código Civil, inscritos no seu Capítulo XIX, intitulado «Efeitos jurídicos da invalidade», estão redigidos nos seguintes termos:

«Artigo 6:110 [Validação do contrato pelo tribunal com efeitos retroativos]

(1)   Um contrato inválido pode ser validado pelo Tribunal, com efeitos que se retroagem à data da sua celebração, se

a)

o prejuízo decorrente da invalidade puder ser sanado através de uma adequada modificação do contrato, ou se

b)

a causa de invalidade tiver, entretanto, desaparecido.

(2)   Caso o contrato inválido seja validado, os contraentes são obrigados a cumprir as suas obrigações mútuas nele previstas e, em caso de rutura do contrato posteriormente à declaração de validade, devem responder como se o contrato fosse válido desde a sua celebração.

Artigo 6:111 [Validade do contrato decorrente da vontade das partes]

(1)   Um contrato torna‑se válido com efeitos que se retroagem à data da sua celebração se as partes eliminarem a causa de invalidade ou se confirmarem, em caso de desaparecimento dessa causa por qualquer outra razão, a respetiva vontade de celebrar o contrato.

(2)   Caso um contrato inválido seja validado, os contraentes são obrigados a cumprir as suas obrigações mútuas nele previstas e, em caso de rutura do contrato posteriormente à sua validação, devem responder como se o contrato fosse válido desde a sua celebração.

(3)   Caso as partes venham a eliminar a causa de invalidade e acordem na sua validade futura, tudo o que até esse momento tenha sido realizado estará sujeito aos efeitos jurídicos da invalidade.»

III. Matéria de facto e fase pré‑contenciosa

18.

Na Hungria, a aquisição de terrenos agrícolas por cidadãos estrangeiros é, desde há muito, objeto de restrições. A Lei n.o I de 1987, relativa à terra ( 5 ), determinava assim que as pessoas singulares ou coletivas estrangeiras só podiam adquirir a propriedade dessas terras por compra, permuta ou doação se para tal tivessem sido previamente autorizados pelo Governo húngaro.

19.

Mais tarde, o Decreto do Governo n.o 171 de 27 de dezembro de 1991 ( 6 ), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1992, afastou completamente a hipótese de as pessoas que não têm nacionalidade húngara, com exceção das que possuam uma autorização de residência permanente ou o estatuto de refugiado, adquirirem terrenos agrícolas. A Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos veio posteriormente alargar essa proibição às pessoas coletivas, tanto estrangeiras como húngaras.

20.

Este quadro legal, porém, não impunha restrições especiais à constituição de direitos de usufruto sobre os terrenos agrícolas.

21.

Todavia, na sequência de uma modificação da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos ( 7 ), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2002, as restrições relativas à aquisição de terrenos agrícolas foram alargadas à constituição de tais direitos de usufruto sobre essas terras. Consequentemente, nem as pessoas singulares de outra nacionalidade nem as pessoas coletivas podiam adquirir tais direitos.

22.

No âmbito da adesão da Hungria à União Europeia, esse Estado‑Membro beneficiou de um período transitório que lhe permitiu manter em vigor durante um período de dez anos a contar da data de adesão, ou seja, até 30 de abril de 2014, as restrições relativas à aquisição de terrenos agrícolas. Todavia, esse mesmo Estado‑Membro foi obrigado a autorizar, a partir de 1 de maio de 2004, os cidadãos da União que vivem e exercem a sua atividade na Hungria há mais de três anos a adquirir terrenos agrícolas nas mesmas condições que os nacionais húngaros ( 8 ).

23.

Perto do termo desse período transitório, o legislador húngaro aprovou uma nova alteração à Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos ( 9 ) que proíbe de um modo geral, a partir de 1 de janeiro de 2013, a constituição de direitos de usufruto sobre os terrenos agrícolas, exceto entre parentes próximos. A Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas, adotada em finais do ano de 2013 e que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2014, manteve essa proibição ( 10 ).

24.

As normas que entraram em vigor em 1 de janeiro de 2013 previam que os direitos de usufruto vigentes nessa data que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não tenham uma relação familiar próxima, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado que ultrapasse a data de 31 de dezembro de 2032 deviam ser suprimidos ex lege dentro de um período transitório de vinte anos. Esses direitos deviam, portanto, extinguir‑se de pleno direito o mais tardar em 1 de janeiro de 2033.

25.

No entanto, o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, que entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013, diminuiu substancialmente o referido período transitório. De acordo com esta disposição, os direitos de usufruto existentes a 30 de abril de 2014 deveriam então extinguir‑se de pleno direito em 1 de maio de 2014, com exceção dos decorrentes de contratos celebrados entre parentes próximos.

26.

Em 17 de outubro de 2014, a Comissão enviou à Hungria uma notificação de para cumprir por considerar nomeadamente ( 11 ) que, ao suprimir certos direitos de usufruto anteriormente constituídos sobre os terrenos agrícolas este Estado‑Membro violou os artigos 49.o e 63.o TFUE bem como o artigo 17.o da Carta. Este Estado‑Membro respondeu a essa notificação por ofício datado de 18 de dezembro de 2014, no qual contestava as referidas infrações.

27.

Não satisfeita com a resposta, a Comissão formulou, em 19 de junho de 2015, um parecer fundamentado no qual mantinha que, ao suprimir ex lege, nos termos do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, determinados direitos de usufruto com efeitos a partir de 1 de maio de 2014, a Hungria violou as referidas disposições do ordenamento jurídico da União. Esse Estado‑Membro respondeu por ofícios datados de 9 de outubro de 2015 e de 18 de abril de 2016, nos quais concluía pela inexistência dos referidos incumprimentos.

28.

Paralelamente, o órgão jurisdicional que submeteu ao Tribunal de Justiça os pedidos de decisão prejudicial que estiveram na origem do Acórdão SEGRO e Horváth submeteu ao Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional, Hungria) pedidos que versam, nomeadamente, sobre a compatibilidade do referido artigo 108.o, n.o 1, com a lei fundamental húngara.

29.

No seu Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) declarou que essa disposição viola parcialmente a referida lei fundamental, porquanto o legislador nacional não previu mecanismos indemnizatórios para os proprietários dos terrenos sobre os quais os direitos de usufruto suprimidos haviam sido constituídos e incumbiu‑o de, até 31 de dezembro de 2015, pôr cobro a essa situação. Esse mesmo órgão jurisdicional negou provimento ao recurso quanto ao mais. O prazo dado pelo Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) ao legislador húngaro terminou sem que este último tenha tomado as medidas exigidas.

IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

30.

A presente ação por incumprimento deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de maio de 2017.

31.

Na sua petição, a Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

declarar que, ao adotar uma legislação que restringe o usufruto sobre os terrenos agrícolas, a Hungria não respeitou as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 49.o e 63.o TFUE, bem como do artigo 17.o da Carta, e

condenar a Hungria nas despesas.

32.

A Hungria pede ao Tribunal de Justiça que:

negue provimento à ação da Comissão, por improcedente, e

condene a Comissão nas despesas.

33.

Em 9 de julho de 2018 teve lugar uma audiência de alegações, na qual a Comissão e a Hungria se fizeram representar.

V. Análise

A. Quanto à admissibilidade

34.

O Governo húngaro não alegou, na contestação ou na tréplica, a inadmissibilidade da presente ação por incumprimento. Todavia, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os requisitos de admissibilidade dessa ação são de ordem pública, pelo que o Tribunal de Justiça deve examiná‑los oficiosamente ( 12 ).

35.

Ora, de uma leitura comparada do parecer fundamentado e da petição resulta que a Comissão, neste segundo documento, parece ter ampliado o objeto do litígio, conforme havia sido delimitado no primeiro, em violação da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, que proíbe esse alargamento ( 13 ).

36.

A este propósito, observo que a Comissão, nesse parecer fundamentado, tinha criticado a Hungria por ter suprimido ex lege, nos termos do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, os direitos de usufruto constituídos sobre terrenos agrícolas entre pessoas que não são parentes próximos e existentes em 30 de abril de 2014.

37.

Em contrapartida, resulta do petitum apresentado na introdução da petição inicial, reproduzido no n.o 1 das presentes conclusões, que a Comissão tem em vista, na sua ação, um maior numero de disposições nacionais do que as indicadas no parecer fundamentado, sendo algumas relativas não à supressão de direitos de usufruto pré‑existentes sobre terrenos agrícolas, mas à constituição de direitos sobre esses terrenos ( 14 ). Além disso, na parte conclusiva da petição, a Comissão acusa a Hungria não de ter «suprimido» direitos de usufruto constituídos anteriormente, mas, de uma forma mais geral, de ter «restringido» os direitos de usufruto sobre os referidos terrenos.

38.

Estes elementos vão no sentido de indicar que, para além da supressão ex lege de certos direitos de usufruto existentes sobre os terrenos agrícolas, resultante do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, a Comissão também pretende obter a condenação da Hungria por esta ter limitado a possibilidade de, no futuro, se poderem constituir esses direitos em benefício exclusivo dos parentes próximos do proprietário das terras.

39.

Interrogada na audiência quanto a este aspeto, a Hungria referiu entender a ação intentada pela Comissão como relativa, no essencial, à supressão ex lege dos direitos de usufruto anteriormente constituídos. Porém, esse Estado‑Membro considera que a petição da Comissão, dada a ambiguidade exposta nos três números anteriores das presentes conclusões, não foi apresentada de forma coerente e compreensível. Por seu lado, essa instituição alegou que não pretendia modificar o objeto do litígio conforme delimitado no parecer fundamentado: apenas está em causa a supressão de direitos de usufruto pré‑existentes.

40.

Em meu entender, a ambiguidade da petição da Comissão não é de dimensão que justifique que a ação seja julgada inadmissível no seu conjunto. A Hungria pôde exercer os seus direitos de defesa e chegou mesmo a admitir ter compreendido a essência dessa ação, ou seja, a supressão ex lege, prevista no artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, dos direitos de usufruto, constituídos sobre terrenos agrícolas em beneficio de pessoas que não possuem laços de parentesco próximos com o proprietário das terras, existentes em 30 de abril de 2014. Por conseguinte, sou de opinião que a presente ação é admissível apenas na medida em que tem por objeto esta problemática e que, por conseguinte, é inadmissível quanto ao demais.

B. Quanto à primeira crítica (compatibilidade da legislação controvertida com os artigos 49.o e 63.o TFUE)

41.

Através da sua primeira crítica, a Comissão solicita, no essencial, ao Tribunal de Justiça que declare a incompatibilidade do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias com a liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.o TFUE e a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.o TFUE.

42.

A este propósito, recordo que, no Acórdão SEGRO e Horváth, o Tribunal de Justiça já havia sido questionado sobre a compatibilidade da legislação controvertida com essas duas liberdades de circulação. O Tribunal de Justiça considerou contudo que essa legislação devia ser exclusivamente analisada na perspetiva apenas da livre circulação de capitais ( 15 ).

43.

No presente processo, todavia, a Comissão sustenta que o Tribunal de Justiça deve agora examinar a legislação controvertida sob a ótica das duas liberdades de circulação invocadas.

44.

Com efeito, essa legislação poderia, em função consoante o caso, violar uma ou outra dessas liberdades. A este propósito, alguns desses particulares afetados tinham adquirido direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas na Hungria com objetivos especulativos, enquanto outros exerciam a sua atividade económica através desse direito. Ora, enquanto a primeira hipótese tem que ver com a liberdade de circulação de capitais, a segunda é relativa à liberdade de estabelecimento. Neste contexto, se no Acórdão SEGRO e Horváth, o Tribunal de Justiça, atentas as circunstâncias em causa nos processos que estiveram na origem desse acórdão, se pôde limitar a examinar a referida legislação na perspetiva apenas da liberdade de circulação de capitais, no presente caso não o pode fazer. No âmbito da presente ação por incumprimento, que tem caráter objetivo ( 16 ), essa mesma legislação devia ser examinada genericamente, tendo em atenção todas as liberdades passíveis de ter aplicação nessas diferentes hipóteses.

45.

Em contrapartida o Governo húngaro é de opinião que, no presente processo, não há necessidade de se adotar, quanto a este aspeto, uma perspetiva diferente da adotada no Acórdão SEGRO e Horváth.

46.

Compartilho da opinião do segundo. Em meu entender, no caso em apreço, importa igualmente examinar a legislação controvertida na perspetiva apenas da liberdade de circulação de capitais garantida pelo artigo 63.o TFUE.

47.

É verdade que essa legislação dá lugar a um cúmulo de liberdades de circulação potencialmente aplicáveis ( 17 ): por um lado, um particular que tenha adquirido um direito de usufruto sobre um terreno agrícola para efeitos do exercício da sua atividade económica podia invocar a liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.o TFUE pois «o direito de adquirir, explorar e alienar bens imóveis no território de outro Estado‑Membro constitui o complemento necessário» dessa liberdade ( 18 ); por outro, em conformidade com uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as disposições nacionais que regem os investimentos de caráter imobiliário têm que ver com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.o TFUE, mesmo quando esses investimentos se destinam a permitir o exercício de uma atividade económica ( 19 ).

48.

Todavia, numa tal situação de cúmulo de liberdades aplicáveis, o Tribunal de Justiça, pelo menos na sua jurisprudência recente, verifica se uma dessas duas liberdades é secundária relativamente à outra e se pode ser‑lhe associada. Se assim for, o Tribunal de Justiça procede de acordo com o adágio «o acessório segue o principal» e examina a legislação controvertida na perspetiva apenas da liberdade dominante ( 20 ). Nesse âmbito, a existência de uma relação «principal/subordinada» entre as liberdades em questão é apreciada em função não da situação dos particulares afetados pelo litígio, mas do objeto da legislação nacional em causa ( 21 ).

49.

Ora, relativamente a uma disposição como o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, o aspeto dessa disposição relativo à livre circulação de capitais prevalece sobre o relativo à liberdade de estabelecimento. Com efeito, essa disposição é relativa à propriedade fundiária e aplica‑se de um modo geral ao usufruto sobre terrenos agrícolas, sem, portanto, estar limitada às situações em que esse direito se constitui para efeitos do exercício de uma atividade económica ( 22 ). Neste contexto, as eventuais restrições à liberdade de estabelecimento resultantes dessa mesma disposição eram uma consequência inelutável da restrição à livre circulação de capitais. Por outras palavras, as eventuais restrições à liberdade de estabelecimento são indissociáveis das relativas à livre circulação de capitais ( 23 ).

50.

Por conseguinte, não há que proceder a um exame autónomo da legislação controvertida na perspetiva do artigo 49.o TFUE ( 24 ). Contrariamente ao alegado pela Comissão, o caráter objetivo da ação por incumprimento não justifica que o Tribunal de Justiça se afaste da sua jurisprudência no que toca ao cúmulo de liberdades aplicáveis. Para além de ser dificilmente conciliável com o imperativo de uma gestão prudente dos seus recursos, recordo que o Tribunal de Justiça não determina a relação «principal/subordinada» entre as liberdades, de forma subjetiva, em função da situação dos particulares abrangidos pelo litígio, mas de maneira objetiva, à luz do objeto da legislação controvertida. Observo, de resto, que o Tribunal de Justiça utilizou esta jurisprudência num número significativo de acórdãos em que concluiu pela existência de incumprimentos ( 25 ).

51.

Uma vez feita esta precisão, recordo que no Acórdão SEGRO e Horváth, o Tribunal de Justiça considerou que uma disposição como o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias não só impede a livre circulação de capitais, como também pode ser indiretamente discriminatória em razão da nacionalidade ou da origem dos capitais.

52.

Além disso, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça recusou que essa disposição pudesse encontrar justificação nos fundamentos invocados pelo Governo húngaro para a defender ( 26 ), dado nomeadamente o seu caráter desproporcionado.

53.

Não é, portanto, necessário, nas presentes conclusões, debruçarmo‑nos sobre a compatibilidade da referida legislação com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.o TFUE. Quanto a este aspeto, a primeira crítica da Comissão é incontestavelmente procedente, pelos fundamentos expostos no Acórdão SEGRO e Horváth, e aproveito para remeter o leitor para os referidos fundamentos bem como para as conclusões que nesses processos apresentei ( 27 ).

54.

É verdade que a Comissão, na sua petição, alegou uma violação dos princípios gerais do direito da União, que são os da segurança jurídica e da confiança legítima, por na legislação nacional em causa não estar previsto, no quadro da supressão ex lege dos direitos de usufruto em causa, nem período transitório nem qualquer indemnização ( 28 ). Todavia, dessa petição resulta que a Comissão invoca os referidos princípios «a título cautelar», ou seja, como simples argumentos adicionais para efeitos da análise da compatibilidade desta legislação controvertida com as liberdades de circulação invocadas. uma vez que a sua primeira crítica é procedente por outras razões, o Tribunal de Justiça não terá que se pronunciar sobre os princípios em questão ( 29 ). De resto, a Comissão, na audiência, confirmou que não pretendia obter uma apreciação autónoma desses princípios e alegou, também, que o respeito dos referidos princípios não podia ser controlado independentemente da apreciação ao abrigo das liberdades de circulação. Estou inteiramente de acordo com esse entendimento, como mais adiante explicarei ( 30 ).

C. Quanto à segunda crítica (compatibilidade da legislação controvertida com o artigo 17.o da Carta)

55.

Através da sua segunda crítica, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça, no essencial, que declare que o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias é contrário ao direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

1.   Argumentação das partes

56.

A Comissão alega que os direitos fundamentais garantidos pela Carta são aplicáveis sempre que uma legislação nacional interfira no âmbito de aplicação do direito da União. Ora, é o que se passa quando essa legislação é suscetível de restringir uma ou mais das liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE e o Estado‑Membro em causa invoca razões imperiosas de interesse geral para justificar essa restrição.

57.

Além disso, não tendo o Tribunal de Justiça abordado a questão do respeito dos direitos fundamentais no Acórdão SEGRO e Horváth, seria obrigado a pronunciar‑se sobre ela no âmbito da presente ação.

58.

A este respeito, a Comissão alega que o direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o da Carta abrange os direitos de usufruto suprimidos pela legislação controvertida. Com efeito, esse artigo abrange de um modo geral todos os direitos com valor patrimonial dos quais decorra, atento o ordenamento jurídico, uma posição jurídica adquirida que permita um exercício autónomo desses direitos pelo respetivo titular e em seu benefício.

59.

A ingerência nesse direito verificar‑se‑ia, à semelhança de uma expropriação, em caso de supressão, revogação ou privação de facto de um bem, mesmo quando essa supressão apenas abrangesse, como no presente caso, dois dos três elementos constitutivos da propriedade, ou seja, o uso e a posse.

60.

Ora, a supressão em causa no presente processo não pode ser justificada. A mesma assenta, por um lado, na errónea presunção geral de que todos os contratos de usufruto celebrados entre pessoas que não sejam parentes o foram para escapar às regras que restringem a aquisição da propriedade de terrenos agrícolas. Por outro lado, a referida supressão alegadamente tem uma natureza inesperada e imprevisível, não tendo ficado previsto o período transitório necessário ao mesmo tempo que se encurtou o anterior período de vinte anos anteriormente concedido aos investidores. Além disso, mesmo que se considerasse justificada, essa supressão não era proporcionada.

61.

O governo húngaro alega por seu lado não ser necessário proceder a uma apreciação separada da legislação controvertida à luz da Carta.

62.

De qualquer modo e em primeiro lugar, do Acórdão n.o 25 de 21 de julho de 2015 do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) resulta que a supressão ex lege de direitos de usufruto em causa não foi considerada comparável a uma expropriação. Além disso, essa supressão encontrava justificação no interesse geral. Por outro lado, as normas de direito civil, que estabelecem a obrigação de o proprietário chegar a acordo com o antigo usufrutuário, acordo esse cujo cumprimento pode ser imediatamente exigido quando da extinção do direito de usufruto, permitem a obtenção de uma compensação equitativa, global e em tempo útil pelas perdas sofridas.

63.

Em segundo lugar, os direitos de usufruto em causa no presente processo não podiam estar cobertos pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta, pois teriam sido obtidos ilegalmente e de má fé.

2.   Análise

a)   Considerações preliminares

64.

A segunda crítica da Comissão é notável. Com efeito, tanto quanto é do meu conhecimento, é a primeira vez que essa instituição pede ao Tribunal de Justiça que declare que um Estado‑Membro incumpriu uma disposição da Carta ( 31 ). Uma crítica desse tipo estava, porém, anunciada. Desde a sua comunicação de 2010 relativa à aplicação da Carta, a Comissão havia indicado que intentaria, «sempre que necessário, processos de infração contra os Estados‑Membros por não respeitarem a Carta no âmbito da aplicação do direito da União» ( 32 ). Contudo, até ao momento, essa instituição tinha feito prova de uma aparente contenção ( 33 ).

65.

O presente processo é o primeiro de uma série ( 34 ) em que a Comissão pede ao Tribunal de Justiça, num primeiro fundamento, que se pronuncie sobre a compatibilidade de uma legislação de um Estado‑Membro com as liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE e em seguida, em fundamento distinto, um exame da mesma legislação ao abrigo da Carta.

66.

A admissibilidade dessa ação não suscita problemas na perspetiva do artigo 258.o TFUE ( 35 ). Nos termos desse artigo, a Comissão pode intentar uma ação com o objetivo de obter a declaração de que um Estado‑Membro «não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados». Entre as obrigações em questão incluem‑se incontestavelmente os direitos garantidos pela Carta, cuja força obrigatória resulta da remissão feita pelo artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, que lhe confere «o mesmo valor jurídico que os Tratados».

67.

Isto posto, o Tribunal de Justiça apenas tem competência para declarar o incumprimento dos direitos garantidos pela Carta se as disposições desta vincularem esse Estado‑Membro na situação em causa ( 36 ). Por conseguinte, o presente processo suscita de novo a questão da competência do Tribunal de Justiça para ajuizar do respeito, pelos Estados‑Membros, dos direitos fundamentais que fazem parte do ordenamento jurídico da União.

68.

Importa não perder de vista o contexto em que se inscreve esta questão. No essencial, a medida da vinculação dos Estados‑Membros, nos termos do direito da União, às exigências em matéria de proteção dos direitos fundamentais é uma problemática de ordem constitucional, delicada e fundamental, que toca à repartição de competências na União. Impor aos Estados‑Membros que nas suas atuações respeitem os direitos fundamentais conforme previstos no ordenamento jurídico da União tem por efeito limitar as abordagens políticas e legislativas disponíveis nesses mesmos Estados‑Membros, enquanto o poder da União para determinar a extensão das possibilidades aumenta correlativamente. Os direitos fundamentais têm, portanto, um potencial de centralização ( 37 ). Além disso, no plano institucional, está em jogo a medida em que o Tribunal de Justiça, enquanto órgão jurisdicional de última instância, tem competência para substituir os órgãos jurisdicionais constitucionais nacionais e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ( 38 ) na fiscalização das regulamentações e ações dos Estados‑Membros à luz dos direitos fundamentais.

69.

Certamente preocupados com estas problemáticas, os autores da Carta tiveram o cuidado de limitar expressamente as circunstâncias em que este diploma se aplica às legislações nacionais. Em conformidade com o disposto no artigo 51.o, n.o 1, da Carta, as suas disposições têm por destinatários os Estados‑Membros «apenas quando apliquem o direito da União». Além disso, a Carta e os Tratados esclarecem que a referida Carta não alarga o âmbito de aplicação do direito da União para lá das competências da União, nem lhe cria quaisquer novas atribuições ou competências, nem modifica as atribuições e competências definidas nos Tratados ( 39 ).

70.

No seu Acórdão Åkerberg Fransson ( 40 ), o Tribunal de Justiça declarou que «[o]s direitos fundamentais garantidos pela Carta devem, por conseguinte, ser respeitados quando uma legislação nacional se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União» e que «não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicados», pelo que «a aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta». Ao proceder a esta declaração, o Tribunal de Justiça afirmou a existência de uma «continuidade histórica» ( 41 ) entre a sua jurisprudência relativa à invocabilidade dos direitos fundamentais considerados princípios gerais do direito da União e o âmbito de aplicação da Carta.

71.

A este respeito, recordo que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as situações em que os Estados‑Membros estão vinculados pelos direitos fundamentais que fazem parte do ordenamento jurídico da União podem habitualmente classificar‑se em — pelo menos — duas categorias.

72.

Segundo jurisprudência constante desde o Acórdão Wachauf ( 42 ), esses direitos fundamentais vinculam os Estados‑Membros quando aplicam regulamentações da União, de tal forma que estes são obrigados, na medida do possível, a aplicar essas regulamentações em condições que não violem os referidos direitos ( 43 ).

73.

Por outro lado, em conformidade com a jurisprudência decorrente do Acórdão ERT ( 44 ), quando um Estado‑Membro, por meio de uma legislação nacional, derroga o direito da União e invoca uma justificação aceite por esse ordenamento jurídico para a defender, só poderá beneficiar dessa justificação se a referida legislação respeitar esses mesmos direitos fundamentais.

74.

A Comissão baseia a sua segunda crítica nesta última orientação jurisprudencial. Segundo entende, o artigo 17.o, n.o 1, da Carta é aplicável no presente caso, porquanto a Hungria, através da legislação controvertida, derrogou a liberdade de estabelecimento e a livre circulação de capitais.

75.

Contudo, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que examine a questão de uma eventual violação da Carta não no quadro de uma possível justificação da legislação controvertida ao abrigo das liberdades de circulação invocadas — que é objeto da primeira crítica — mas independentemente dessa questão, a fim de obter uma declaração autónoma de incumprimento da Carta. Com efeito, essa instituição entende, no essencial, que, quando uma legislação nacional que derroga uma liberdade de circulação é também passível de restringir os direitos fundamentais garantidos pela Carta, a eventual violação da Carta deve ser apreciada separadamente.

76.

Não compartilho deste entendimento. Como já afirmei nos processos apensos SEGRO e Horváth ( 45 ), em consonância com a jurisprudência «ERT», a questão de uma potencial violação de um direito fundamental garantido pela Carta, bem como a do respeito dos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima invocados pela Comissão na sua primeira acusação ( 46 ), não pode ser examinada pelo Tribunal de Justiça independentemente da questão da violação das liberdades de circulação. Considero, portanto, ser necessário expor mais detalhadamente, nas presentes conclusões, as razões que subjazem à minha posição.

b)   A «razão de ser» e os limites da jurisprudência «ERT»

77.

Importa recordar que o processo que esteve na origem do Acórdão ERT dizia respeito a uma legislação grega que atribuía a um operador nacional um monopólio sobre a rádio e a televisão. Nesse contexto, foram submetidas ao Tribunal de Justiça uma série de questões relativas à compatibilidade desse monopólio com o ordenamento jurídico da União bem como com o artigo 10.o da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais ( 47 ), que garante o direito à liberdade de expressão.

78.

A legislação em causa implicava efeitos discriminatórios em prejuízo das emissões originárias de outros Estados‑Membros. Era, portanto, incompatível com a livre circulação de serviços prevista no artigo 59.o CE (atual artigo 56.o TFUE), a não ser que pudesse beneficiar de uma das justificações expressamente previstas nos artigos 56.o e 66.o CE ( 48 ), ou seja, a ordem, a segurança e a saúde públicas ( 49 ).

79.

Nesta fase, o artigo 10.o da CEDH interessava ao Tribunal de Justiça. Ao mesmo tempo que recordava não lhe competir apreciar, à luz dessa Convenção, as regulamentações nacionais que não integram o âmbito de aplicação do direito da União ( 50 ), o Tribunal de Justiça considerou que, nesse caso, lhe cabia abordar a questão dos direitos fundamentais ( 51 ).

80.

Mais precisamente, tendo a República Helénica invocado as disposições conjugadas dos artigos 56.o e 66.o CE para justificar a legislação em causa, o Tribunal de Justiça entendeu que «esta justificação, prevista pelo direito comunitário» devia ser «interpretada à luz dos princípios gerais de direito e, nomeadamente, dos direitos fundamentais». Consequentemente, essa legislação só poderia beneficiar das exceções previstas nessas disposições «se se conformar com os direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça» ( 52 ), incluindo a liberdade de expressão, consagrada no artigo 10.o da CEDH, integrado no ordenamento jurídico comunitário enquanto princípio geral de direito ( 53 ). Por outras palavras, o respeito dos direitos fundamentais fazem parte dos requisitos a cumprir para beneficiar das justificações decorrentes da ordem, da segurança e da saúde públicas ( 54 ).

81.

À primeira vista, a jurisprudência do Acórdão «ERT» não tem na sua origem uma lógica tão evidente como a que subjaz ao Acórdão Wachauf ( 55 ), relativa aos casos em que os Estados‑Membros aplicam o direito da União.

82.

Com efeito, a jurisprudência «Wachauf» integra‑se plenamente na lógica que levou o Tribunal de Justiça a reconhecer os direitos fundamentais como parte integrante do ordenamento jurídico da União ( 56 ): por um lado, é necessário proteger os particulares contra as intrusões ilegítimas da União nos seus direitos; por outro, os Estados‑Membros não podem rever a ação da União à luz do seu próprio modelo constitucional sem pôr em causa a unidade, o primado e a efetividade do direito da União. Os modelos nacionais são, portanto, postos de parte, mas, em contrapartida, o Tribunal de Justiça incorpora os direitos fundamentais que se inspiram nas «tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros» nos princípios gerais de direito cujo respeito assegura ( 57 ). Ora, como a concretização da maior parte das políticas da União depende dos Estados‑Membros, é indispensável alargar a aplicação dos direitos fundamentais reconhecidos pelo ordenamento jurídico da União a esses mesmos Estados quando atuam como «agentes» da União. Quando se executa uma política da União, esta é responsável por garantir que os Estados‑Membros não violam direitos fundamentais em seu nome ( 58 ).

83.

Em contrapartida, numa situação como a em causa no acórdão «ERT», através da legislação nacional em causa o Estado‑Membro em causa põe em prática não uma política da União, mas uma política nacional, que é abrangida pelas suas competências ( 59 ). Acontece simplesmente que, ao atuar desse modo, esse Estado‑Membro «esbarra» — voluntariamente ou não — com uma norma do direito da União, como as liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE, e tenta justificar‑se ( 60 ).

84.

Isto posto, existem, a meu ver, três justificações normativas, conexas embora distintas, que estão subjacentes à jurisprudência «ERT» e que constituem a sua «razão de ser».

85.

Antes de mais, a medida em que os Estados‑Membros podem validamente derrogar as liberdades de circulação é incontestavelmente uma questão de direito da União ( 61 ). A dimensão dessa possibilidade depende da interpretação das disposições dos Tratados relativas a essas liberdades e não pode ser determinada por cada Estado‑Membro em função dos seus próprios valores sem pôr em causa a efetividade e a aplicação uniforme das referidas liberdades em todos os Estados‑Membros. Essa mesma possibilidade deve ser enquadrada na perspetiva dos princípios e valores da União ( 62 ).

86.

Em seguida, o Acórdão ERT reflete o princípio segundo o qual o direito da União, incluindo as disposições dos Tratados relativas às liberdades de circulação, deve ser sempre interpretado em conformidade com os direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça. Com efeito, se o Tribunal de Justiça considerasse admissível, à luz dessas liberdades, uma legislação nacional que violasse esses mesmos direitos fundamentais, isso traduzir‑se‑ia em aceitar que, contrariamente ao princípio de interpretação aqui evocado, as liberdades em questão poderiam ter um sentido que tolera essas violações ( 63 ).

87.

Por último, uma análise a título dos direitos fundamentais é, em determinadas circunstâncias, indispensável para resolver o litígio em matéria de liberdades de circulação. Com efeito, certas justificações estão inextricavelmente ligadas a questões de direitos fundamentais. É o que se passa, em especial, quando um Estado‑Membro invoca, a título de justificação, um fundamento relacionado com a segurança pública ou um direito fundamental do seu ordenamento jurídico nacional ( 64 ). Consideremos, por exemplo, o processo que esteve na origem do Acórdão Society for the Protection of Unborn Children Ireland (SPUC) ( 65 ). Recordo que, nesse processo, estava em causa uma legislação irlandesa que proibia a divulgação de informações sobre as possibilidades da prática do aborto — constitucionalmente proibida na Irlanda até uma data recente — disponíveis noutros Estados‑Membros. Admitindo que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça tivesse considerado, contrariamente ao que decidiu, que essa legislação constituía um entrave à livre circulação de serviços, o Tribunal de Justiça deveria debruçar‑se sobre a justificação da Irlanda fundada no direito à vida, conforme concebido na Constituição irlandesa. Nesse quadro, teria sido particularmente difícil, nos planos metodológico e normativo, não ponderar esse direito com a liberdade de expressão ( 66 ).

88.

Nos seus acórdãos subsequentes, em particular no Acórdão Familiapress ( 67 ), o Tribunal de Justiça estendeu a jurisprudência «ERT» às situações em que um Estado‑Membro procura justificar uma derrogação às liberdades de circulação invocando não uma exceção expressamente prevista no Tratado FUE — ordem, segurança e saúde públicas —, mas uma das justificações não escritas permitidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça — denominadas «exigências imperativas», «razões imperiosas de interesse geral» ou ainda «objetivos de interesse geral».

89.

Tratou‑se de um alargamento notável, em meu entender justificado. Com efeito, não há que distinguir consoante um Estado‑Membro invoque uma exceção expressamente prevista no Tratado FUE ou uma justificação não escrita ( 68 ). Num caso como no outro, baseia‑se numa disposição do Tratado FUE que permite essa derrogação — no âmbito das justificações não escritas, é a própria regra da livre circulação — e a lógica é idêntica: esta disposição é «interpretada à luz dos princípios gerais do direito, nomeadamente dos direitos fundamentais» ( 69 ).

90.

Das considerações que precedem resulta que a jurisprudência «ERT» assenta numa interpretação das disposições dos Tratados relativas às liberdades de circulação na perspetiva dos direitos fundamentais. O exame dos direitos fundamentais visa esclarecer a questão do respeito dessas liberdades de circulação ( 70 ). Esta jurisprudência permite rejeitar uma justificação apresentada por um Estado‑Membro devido a uma violação de um direito fundamental integrado no ordenamento jurídico da União ( 71 ).

91.

Assim, no âmbito da jurisprudência «ERT», as questões dos direitos fundamentais e das liberdades de circulação estão inextricavelmente ligadas. Daqui decorre que não é possível, em meu entender, tanto no plano metodológico como no plano normativo, dissociar essas duas questões, como sugere a Comissão no presente processo.

92.

Nos acórdãos do Tribunal de Justiça proferidos até hoje proferidos, a entrada em vigor da Carta não pôs em causa esta análise. A este propósito, recordo que o Tribunal de Justiça confirmou no Acórdão Pfleger e o. ( 72 ) que a jurisprudência «ERT» continua a aplicar‑se no âmbito da Carta. Mais exatamente, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou «[o] emprego, por um Estado‑Membro, de exceções previstas pelo direito da União para justificar um entrave a uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado [TFUE] “aplica o direito da União”, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta» ( 73 ).

93.

Nos Acórdãos Berlington Hungary e o. ( 74 ), AGET Iraklis ( 75 ) e Global Starnet ( 76 ), proferidos com base na Carta, o Tribunal de Justiça fez uma aplicação absolutamente ortodoxa da jurisprudência «ERT», ao atender aos direitos fundamentais no âmbito da análise de uma possível justificação das regulamentações nacionais em causa na perspetiva das liberdades de circulação aplicáveis.

94.

Na verdade, no Acórdão Pfleger e o. ( 77 ), o Tribunal de Justiça separou, no plano formal, a questão da conformidade da legislação nacional em causa com os artigos 15.o a 17.o da Carta da questão das liberdades de circulação. Todavia, em meu entender, não é possível retirar conclusões unívocas desse acórdão. Por um lado, a legislação nacional em causa era passível de ser justificada na perspetiva das liberdades de circulação, tendo o Tribunal de Justiça remetido ao órgão jurisdicional de reenvio o cuidado de proceder à análise da proporcionalidade ( 78 ). Nesse contexto, justificava‑se uma análise adicional da referida legislação à luz das disposições da Carta numa perspetiva «ERT». Por outro lado, o Tribunal de Justiça esvaziou a necessidade de se proceder a um exame distinto dessas disposições da Carta in concreto, ao indicar que, se a legislação nacional devesse constituir uma restrição desproporcionada à livre prestação de serviços, seria automaticamente incompatível com essas disposições, não sendo, por isso, tal exame necessário ( 79 ). Por conseguinte, tal como indiquei nas conclusões que apresentei nos processos SEGRO e Horváth ( 80 ), o Acórdão Pfleger e o. ( 81 ) cria no máximo uma dúvida quanto à possibilidade de se examinar uma alegada violação da Carta independentemente da questão da violação das liberdades de circulação.

c)   As considerações que, em meu entender, deveriam levar o Tribunal de Justiça a não ir além da jurisprudência «ERT»

95.

A meu ver, a segunda crítica da Comissão não resulta da simples lógica da jurisprudência «ERT». Trata‑se, em minha opinião, de um novo alargamento — ou mesmo de uma desvirtuação — dessa jurisprudência.

96.

O que a Comissão pede ao Tribunal de Justiça é, nem mais nem menos, que, a propósito de uma legislação nacional que já é contrária ao direito primário da União, se pronuncie sobre um direito fundamental garantido pela Carta. Ao aceitar ou, pelo contrário, declinar a sua competência para se pronunciar sobre a segunda crítica da Comissão, o Tribunal de Justiça optará entre duas filosofias distintas quanto ao lugar dos direitos fundamentais nos casos de «derrogação».

97.

De acordo com uma primeira filosofia — a que resulta do Acórdão ERT — o Tribunal de Justiça, nos casos de «derrogação», não resolve verdadeiramente um problema de direitos fundamentais, à semelhança de um Tribunal Constitucional; apenas aborda esse problema se isso for necessário para verificar se um Estado‑Membro tem fundamento para derrogar, especificamente, uma liberdade de circulação. Dito de outro modo, o Tribunal de Justiça pronuncia‑se sobre as questões de direitos fundamentais quando estes integram o âmbito do direito da União, inclusive na sua dimensão funcional.

98.

De acordo com uma segunda filosofia — sugerida no presente caso pela Comissão — a fiscalização do respeito dos direitos fundamentais é distinta da questão da conformidade com as liberdades de circulação. A restrição às referidas liberdades funciona como uma porta de entrada no âmbito de aplicação da Carta. Ao entreabrir essa porta, o Estado‑Membro obriga‑se a respeitar o catálogo dos direitos fundamentais que constam da Carta, sendo o Tribunal de Justiça competente para autonomamente se pronunciar sobre a compatibilidade da legislação nacional em causa com cada um deles.

99.

Para a Comissão, nos processos como o ora em apreço, era necessário proceder a um exame das legislações dos Estados‑Membros na perspetiva da Carta, a fim de se garantir o respeito do Estado de Direito nesses Estados. A conclusão, nesses processos, de que houve uma violação da Carta constituiria, para os particulares afetados pelas legislações em questão, uma concretização desse Estado de Direito. Além disso, essa aplicação da Carta aumentava a sua visibilidade e implicava uma legitimação do direito da União aos olhos de todos os cidadãos da União.

100.

Em meu entender, o Tribunal de Justiça deve cingir‑se à primeira filosofia e não se aventurar no terreno para onde a Comissão o pretende levar.

101.

Em primeiro lugar, importa recordar que, no ordenamento jurídico da União, o respeito da repartição de competências entre a União e os Estados‑Membros é uma dimensão do Estado de Direito tão importante quanto a promoção de uma política de direitos fundamentais ( 82 ). Está em jogo a legitimidade de uma intervenção do Tribunal de Justiça, ao abrigo dos direitos fundamentais cujo respeito assegura, numa política nacional.

102.

Em meu entender, de um ponto de vista de uma justa repartição das competências, quanto mais a União dispuser, em conformidade com as suas competências, de uma política e de instrumentos que estabeleçam normas comuns num domínio, maior legitimidade terá para impor o respeito dos direitos fundamentais como previstos no direito da União. Ora, recordo que, numa situação de derrogação, o Estado‑Membro em causa atua, teoricamente, num domínio em que não existe qualquer instrumento da União que unifique, harmonize ou mesmo coordene a questão. Esse Estado‑Membro põe em prática uma política nacional que é da sua competência. Por mais importante que seja, só é aplicável uma liberdade de circulação, ou seja, uma norma de harmonização negativa. Dito de outro modo, o direito da União vem enquadrar a competência dos Estados‑Membros para pôr em prática as suas opções ao nível das políticas nacionais, embora estes não retirem essa competência do direito da União ( 83 )e esse direito não defina o seu exercício ( 84 ).

103.

Apesar disso, como sublinhado nos n.os 85 a 87 das presentes conclusões, a jurisprudência «ERT» possui justificações normativas: (1) o imperativo de garantir a uniformidade e a efetividade das liberdades de circulação (2) a obrigação de interpretar o Tratado FUE, em todas as circunstâncias, de forma respeitadora dos direitos fundamentais e (3) a necessidade de se pronunciar sobre esses direitos para decidir o litígio relativo a essas liberdades.

104.

Todavia, se se adotar a filosofia proposta pela Comissão no presente processo, essas justificações não vingam: (1) dificilmente se pode sustentar que existe um risco para a uniformidade e a efetividade das liberdades de circulação a que importa pôr cobro — de qualquer modo, a legislação nacional não é compatível com essas liberdades (2) já não se trata de interpretar o Tratado FUE à luz dos direitos fundamentais, mas de aplicar autonomamente um direito fundamental e (3) não é necessária uma intervenção no domínio dos direitos fundamentais para decidir o litígio relativo a essas liberdades. Só fica, portanto, o argumento do «âmbito de aplicação do direito da União», entendido não na sua dimensão funcional, mas de um modo puramente formal: há derrogação ao direito da União, a Carta é, portanto, aplicável. Ora, não estou certo de que este argumento assente numa justificação normativa suficiente que permita legitimar a fiscalização de uma política nacional, por parte do Tribunal de Justiça, ao abrigo dos direitos fundamentais cujo respeito este Tribunal assegura ( 85 ).

105.

Em segundo lugar, a entrada em vigor da Carta não pode justificar um alargamento da competência do Tribunal de Justiça em matéria de direitos fundamentais nas situações de «derrogação». A este propósito, só posso recordar que, precisamente, a Carta não devia ampliar as competências da União ( 86 ). Uma ampliação da jurisprudência «ERT» seria, de resto, um contrassenso histórico, tendo em conta o processo de adoção desse instrumento.

106.

Com efeito, importa recordar que o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, nos termos do qual esta só vincula os Estados‑Membros quando «apliquem» o direito da União, foi objeto de um processo de elaboração no mínimo acalorado, durante o qual transpareceu o receio de a Carta ser amplamente utilizada pelo Tribunal de Justiça para controlar as legislações nacionais ( 87 ). O resultado, como todos sabemos, é ambíguo: por um lado, a letra dessa disposição, na sua versão definitiva, parece excluir as situações de «derrogação» embora, por outro, as anotações à Carta ( 88 ) mencionem o Acórdão ERT. Desse processo resulta, todavia, claramente um desejo de prudência na aplicação da Carta às políticas nacionais: esta aplica‑se sobretudo às instituições, órgãos e organismos da União e «apenas» em casos limitados aos Estados‑Membros. Tendo em atenção os termos escolhidos pelo legislador da União para o referido artigo 51.o, n.o 1, e apesar das anotações relativas à Carta, essa prudência é real, muito especialmente no que respeita às situações de «derrogação».

107.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça podia legitimamente afirmar, no Acórdão Åkerberg Fransson ( 89 ), a continuidade da sua competência em matéria de direitos fundamentais ( 90 ), e garantir assim uma apreciada coerência entre o âmbito de aplicação da Carta e o dos princípios gerais do direito da União. Em contrapartida, dificilmente seria conforme à vontade dos autores da Carta ir além do que se fazia anteriormente à sua existência em situações de «derrogação». Em especial, não estou certo de que examinar uma legislação nacional à luz dos direitos fundamentais garantidos pela Carta quando isso não é necessário para resolver a questão das liberdades de circulação esteja em conformidade com a lógica subjacente ao limite que esses mesmos autores colocaram ao seu artigo 51.o, n.o 1. Seria ainda menos conforme a essa lógica, por exemplo, aproveitar a oportunidade de um entrave à livre circulação de mercadorias para rever uma legislação nacional, de forma distinta e autónoma, na perspetiva de um direito fundamental reconhecido aos trabalhadores, como o artigo 31.o da Carta («Condições de trabalho justas e equitativas»).

108.

Em terceiro lugar, recorde‑se que, na União, os direitos fundamentais são objeto de um sistema de proteção a diversos níveis, que implicam as constituições nacionais e a CEDH, na qual todos os Estados‑Membros são partes ( 91 ).

109.

Assim, o facto de o Tribunal de Justiça, numa situação de «derrogação», não se pronunciar sobre uma questão de direitos fundamentais não significa, no plano sistemático, que haja lacunas na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos da União. Estes dispõem das vias de recurso nacionais e, esgotadas estas, podem interpor recurso para o TEDH.

110.

A intervenção do Tribunal de Justiça em matéria de direitos fundamentais devia, portanto, limitar‑se aos domínios que são verdadeiramente da sua responsabilidade, ou seja, em primeiro lugar, a ação da própria União e dos Estados‑Membros quando põem em prática as suas políticas ( 92 ). Na matéria, o Tribunal de Justiça deve cumprir a sua função com o maior vigor ( 93 ). Em contrapartida, em situação de «derrogação» será verdadeiramente da responsabilidade da União e do Tribunal de Justiça intervir quando isso não seja necessário para regular a questão das liberdades de circulação e garantir a unidade ou a eficácia do direito da União?

111.

Enquanto intérprete supremo do direito da União, cabe ao Tribunal de Justiça garantir o respeito desses direitos na esfera de competência da União ( 94 ). O Tribunal de Justiça, contrariamente aos Tribunais Constitucionais nacionais e ao Tribunal EDH, não tem mandato específico para punir as eventuais violações dos direitos fundamentais cometidas pelos Estados‑Membros. Assim, só o posso aconselhar, em situações de «derrogação», a interpretar de forma estrita a sua competência na matéria.

112.

O conjunto destas considerações leva‑me a propor ao Tribunal de Justiça, a título principal, que rejeite a segunda crítica da Comissão.

d)   A título subsidiário: o caráter excessivo de uma apreciação distinta do artigo 17.o da Carta no presente processo

113.

Admitindo que o Tribunal de Justiça se declara competente para se pronunciar sobre a segunda crítica da Comissão, concluo, a título subsidiário, que um exame separado do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias à luz do artigo 17.o da Carta será, de qualquer modo, subsidiário.

114.

Com efeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma legislação nacional restritiva das liberdades de circulação também restringe os direitos consagrados no artigo 15.o («Liberdade profissional e direito de trabalhar»), no artigo 16.o («Liberdade de empresa») e no artigo 17.o («Direito de propriedade») da Carta. Além disso, na medida em que essa restrição não encontra justificação nessas liberdades de circulação, também não é admissível, por força do artigo 52.o, n.o 1, da Carta ( 95 ), por referência aos referidos artigos 15.o, 16.o e 17.o ( 96 ).

115.

A Comissão alega, no entanto, que, embora uma análise distinta ao abrigo dos artigos 15.o e 16.o da Carta geralmente não se justifique — na medida em que o conteúdo desses artigos coincide com o das liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE —, essa análise é no presente caso necessária, dado o conteúdo do artigo 17.o da Carta ser mais amplo que o da livre circulação de capitais ou da liberdade de estabelecimento.

116.

Este argumento não me convence. De imediato, observo que, na jurisprudência evocada no n.o 114 das presentes conclusões, o Tribunal de Justiça não distinguiu entre os artigos 15.o, 16.o e 17.o da Carta, a meu ver por uma razão simples: o direito de propriedade é um direito económico protegido, à semelhança da liberdade profissional e da liberdade de empresa, a título das liberdades de circulação, pelo que os seus conteúdos respetivos se sobrepõem, se não integralmente, pelo menos amplamente ( 97 ). Em especial, como já referi no âmbito da análise da primeira crítica ( 98 ), as legislações nacionais que restringem o acesso à propriedade, nomeadamente rural, ou regulamentam a sua utilização consubstanciam restrições à livre circulação de capitais (a título principal) e à liberdade de estabelecimento (a título acessório).

117.

Ora, relativamente a uma disposição como o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, há efetivamente uma sobreposição integral entre o direito de propriedade e a livre circulação de capitais.

118.

Com efeito, no Acórdão SEGRO e Horváth, o Tribunal de Justiça considerou que «pelo seu próprio objeto», uma legislação que prevê a extinção dos direitos de usufruto adquiridos contratualmente sobre terrenos agrícolas restringe a livre circulação de capitais, dado que essa legislação «priva o interessado tanto da possibilidade de continuar a gozar do direito que adquiriu […] como da possibilidade de o alienar» ( 99 ). Ora, esses mesmos motivos conduzem à conclusão de que a legislação controvertida acarreta uma «privação de propriedade» proibida pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta ( 100 ).

119.

Além disso, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que a legislação controvertida não se pode justificar, ao abrigo dos artigos 63.o e 65.o TFUE, tendo em conta, nomeadamente, elementos suscetíveis de demonstrar precisamente a incompatibilidade dessa legislação com os artigo 17.o e 52.o, n.o 1, da Carta, ou seja, por um lado, o facto de que poderiam ter sido adotadas medidas menos atentatórias dos direitos de usufruto em causa para pôr em prática os objetivos prosseguidos pela Hungria ( 101 ) e, por outro, a inexistência de um mecanismo indemnizatório adequado destinado aos titulares de usufrutos afetados ( 102 ).

120.

Por outras palavras, as análises a efetuar para demonstrar tanto uma ingerência nos direitos garantidos pelo artigo 63.o TFUE e pelo artigo 17.o da Carta como a impossibilidade de justificar essa ingerência repousam nos mesmos elementos, que conduzem a um resultado substancialmente idêntico.

121.

Neste contexto, a artificialidade que resultaria de um exame distinto da legislação controvertida na perspetiva do artigo 17.o da Carta além do exame previamente realizado a título do artigo 63.o TFUE também decorre do facto de as partes aduzirem, no âmbito da segunda crítica, fundamentalmente os mesmos argumentos que já haviam aduzido no âmbito da primeira crítica — ou seja, limitam‑se a para eles remeter.

122.

Também não fiquei convencido com o argumento da Comissão segundo o qual um exame distinto da legislação controvertida ao abrigo do artigo 17.o da Carta era indispensável para garantir aos particulares uma melhor posição perante os órgãos jurisdicionais nacionais, em especial caso seja intentada uma qualquer ação de indemnização contra o Estado húngaro.

123.

Com efeito, tenho fortes dúvidas de que um eventual acórdão do Tribunal de Justiça no qual este declarasse um incumprimento do artigo 17.o da Carta traga qualquer valor acrescentado aos particulares. Os seus interesses já estão protegidos pelo artigo 63.o TFUE, que é uma norma de efeito direto invocável perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Este último artigo «censura» à legislação controvertida os mesmos obstáculos já punidos pelo referido artigo 17.o — a privação de propriedade sem pagamento de indemnização — e confere‑lhes correlativamente o direito a uma compensação justa pela sua privação. Em suma, o Tribunal de Justiça não falharia na sua missão de proteção dos direitos que os particulares retiram do direito da União se não se pronunciasse sobre este último artigo. Em especial, quanto a eventuais ações de indemnização contra o Estado, as condições previstas pelo direito da União na matéria ( 103 ) já são suscetíveis de estar preenchidas atenta a incompatibilidade da legislação controvertida com o artigo 63.o TFUE. Neste contexto, multiplicar as normas de direito da União invocadas não permitirá aos referidos particulares alegar um maior prejuízo.

124.

Este exame da legislação controvertida à luz do artigo 17.o, n.o 1, da Carta, também não pode, em meu entender, ser levado a cabo com o único objetivo de permitir que, numa eventual ação por incumprimento motivada pela não execução de um acórdão que tenha declarado um incumprimento, a Comissão pugne pela aplicação à Hungria de uma coima ou de uma sanção pecuniária mais elevadas. Como as liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE são normas fundamentais de direito primário da União, a violação de uma dessas liberdades é já considerada, por si só, «grave» para efeitos do cálculo das sanções pecuniárias ( 104 ). Não vejo o que, no presente processo, uma declaração de incumprimento do direito de propriedade poderia acrescentar à equação.

125.

Por último, um exame autónomo do referido artigo 17.o, n.o 1 da Carta não é necessário porquanto o procedimento por incumprimento é um processo objetivo e, a esse título, cabe à Comissão determinar as regras alegadamente violadas pelo Estado‑Membro, sendo o Tribunal de Justiça apenas obrigado a examinar se o incumprimento existe, ou não ( 105 ).

126.

A este respeito, recorde‑se que o processo instituído pelo artigo 258.o TFUE visa declarar verificado um comportamento de um Estado‑Membro que viola o direito da União. O objetivo desse processo é lograr a eliminação efetiva desses incumprimentos e das respetivas consequências ( 106 ). Ora, no presente caso, como me encarreguei de demonstrar, o artigo 63.o TFUE e o artigo 17.o, n.o 1 da Carta protegem os mesmos interesses e punem os mesmos obstáculos da legislação nacional. Por conseguinte, para cumprir esse objetivo basta responder na perspetiva apenas do primeiro artigo.

127.

De resto, tanto quanto é do meu conhecimento, no âmbito do reenvio prejudicial, o Tribunal de Justiça não examina uma legislação nacional na perspetiva da Carta a título subsidiário, quando essa legislação já é contrária a outra norma do ordenamento jurídico material da União ( 107 ). O Acórdão SEGRO e Horváth dá‑nos um exemplo dessa perspetiva. Trata‑se, a meu ver, de uma boa política jurisdicional ( 108 ), e seria lastimável, em meu entender, que a ela se renunciasse no âmbito de uma ação de incumprimento.

e)   A título infinitamente subsidiário: análise da legislação controvertida na perspetiva do artigo 17.o da Carta

128.

Para o caso de o Tribunal de Justiça não compartilhar do meu ponto de vista e optar por examinar a legislação controvertida na perspetiva do artigo 17.o da Carta, apresento, a título infinitamente subsidiário, as seguintes observações.

1) Considerações preliminares

129.

O direito fundamental de propriedade figura, desde há muito, entre os princípios gerais do direito da União cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça ( 109 ). Esse direito passou a estar inscrito no artigo 17.o, da Carta, cujo n.o 1 ( 110 ) determina que «[t]odas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral».

130.

As anotações relativas à Carta esclarecem que, nos termos do seu artigo 52.o, n.o 3, o direito de propriedade consagrado no seu artigo 17.o, n.o 1, tem o mesmo sentido e alcance que o garantido no artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH ( 111 ). Importa, portanto, para efeitos da interpretação do primeiro, atermo‑nos à aceção que o Tribunal EDH dá ao segundo ( 112 ).

131.

Tendo em atenção esses dois textos, exporei, no seguimento das presentes conclusões, os motivos pelos quais, segundo entendo, os direitos de usufruto suprimidos nos termos do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias são «bens» (2), que foram «legalmente adquiridos» (3), correspondendo a legislação controvertida a uma ingerência nesses direitos que se traduz numa «privação da propriedade» (4) que não se justifica (5).

2) Quanto ao conceito de «bem»

132.

De acordo com a jurisprudência do Tribunal EDH relativa ao artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH e a do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 17.o, n.o 1, da Carta, o conceito de «bem» protegido pelo direito fundamental de propriedade tem uma dimensão autónoma, ou seja, independente das qualificações acolhidas na ordem jurídica interna, e não está limitada à propriedade stricto sensu ( 113 ).

133.

Segundo o Tribunal EDH, para se determinar se uma pessoa dispõe de um «bem», há que examinar se as circunstâncias, consideradas globalmente, tornaram essa pessoa titular de um «interesse substancial» protegido pelo artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH. Estão assim protegidos não apenas os «bens atuais», mas também todos os «valores patrimoniais», incluindo os créditos por força dos quais a pessoa em causa pode pelo menos pretender, atento o ordenamento jurídico interno, ter uma esperança legítima e razoável de entrar na fruição efetiva de um direito de propriedade ( 114 ).

134.

O Tribunal de Justiça considera, por seu lado, que os «bens» a que se refere o artigo 17.o, n.o 1, da Carta são todos os «direitos que possuem valor patrimonial» dos quais decorre, tendo em conta a ordem jurídica, «uma posição jurídica adquirida que permite o exercício autónomo destes direitos pelo e a favor do seu titular» ( 115 ). Embora este critério difira na sua formulação do definido pelo Tribunal CEDH, os interesses garantidos são, no meu entender, substancialmente os mesmos.

135.

Em consonância com este critério aceite pelo Tribunal, a fim de determinar se os direitos de usufruto em causa no presente processo são «bens» protegidos, há que verificar se estão preenchidas duas condições, ou seja, por um lado, se esses direitos têm valor patrimonial e, por outro, se desses direitos decorre uma posição jurídica adquirida que permita o exercício autónomo desses direitos pelo e em benefício do seu titular.

136.

Quanto à primeira condição, observo, à semelhança da Comissão, que o direito de usufruto confere ao seu titular um domínio parcial sobre a coisa de outrem. Com efeito, permite que se sirva dela (usus) e que receba os seus frutos (fructus) ficando o direito de dispor da coisa (abusus) para o proprietário — que, assim diminuído nas suas prerrogativas, é denominado nu‑proprietário ( 116 ). A esse título, o usufruto é normalmente considerado um desmembramento do direito de propriedade ou um direito real limitado que deve ser qualificado de servidão pessoal ( 117 ).

137.

Um direito que assim permite o gozo de uma coisa constitui incontestavelmente, para o seu titular, um elemento de riqueza e, portanto, possui valor patrimonial. Além disso, os direitos de usufruto em causa no presente processo são relativos, recordo‑o, a terrenos agrícolas e permitem a exploração desses terrenos. Esses direitos têm, portanto, um valor patrimonial substancial. A este respeito, contrariamente ao que o Governo húngaro parece sugerir, a circunstância de os usufrutos em causa terem sido constituídos por contrato e só conferirem, por definição, um domínio parcial dos terrenos em causa, é destituída de pertinência ( 118 ).

138.

Esta interpretação não é posta em causa pelo argumento, apresentado pelo Governo húngaro na audiência, segundo o qual tais direitos de usufruto são intransmissíveis e não têm, portanto, segundo esse governo, valor de mercado.

139.

Com efeito, as eventuais restrições de origem legal ou contratual relativas à transmissibilidade desses direitos de usufruto ( 119 ) não afetam o seu caráter patrimonial. A este propósito, basta observar que os direitos em questão foram efetivamente cedidos, no quadro de uma relação contratual, pelos proprietários dos terrenos aos usufrutuários. Como reconhecido pelo governo húngaro na audiência, a constituição desses direitos deu lugar a uma contrapartida financeira. Estas circunstâncias são, por si só, demonstrativas desse caráter patrimonial ( 120 ).

140.

Quanto à segunda condição, é inútil recordar que, na medida em que o usufruto é um direito real, os direitos que confere ao seu titular são direitos exclusivos, ou seja, universalmente oponíveis ( 121 ). Por conseguinte, dos direitos de usufruto em causa no presente processo decorre manifestamente uma posição jurídica adquirida que permite o exercício autónomo desses direitos pelos e a favor dos seus titulares.

3) Quanto ao requisito da aquisição legal dos bens em causa

141.

Recordo que, segundo o Governo húngaro, os direitos de usufruto suprimidos pela legislação controvertida não beneficiam da proteção prevista no artigo 17.o, n.o 1, da Carta, dado que a sua aquisição era ilegal e inválida ab initio à luz das normas de direito civil aplicáveis.

142.

Com efeito, por um lado, na medida em que os direitos foram constituídos antes de 1 de janeiro de 2002 em benefício de não residentes, a sua aquisição por essas pessoas estava sujeita, nos termos da legislação nacional aplicável em matéria de fiscalização cambial, a uma autorização por parte da autoridade responsável em matéria cambial, ou seja, o Banco Nacional da Hungria. No entanto, de uma indicação fornecida por esta última entidade resultava que, no que se refere à aquisição de direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas, nunca foi requerida qualquer autorização cambial. Ora, na falta dessa autorização, os usufrutos nunca poderiam ter sido legalmente constituídos.

143.

Por outro lado, os contratos pelos quais se constituíram os referidos usufrutos foram celebrados com fraude à lei, a fim de se contornar a proibição legal de aquisição de terrenos agrícola por pessoas singulares que não possuem a nacionalidade húngara e por pessoas coletivas.

144.

A este respeito, decorre da letra do artigo 17.o, n.o 1, da Carta que esta disposição apenas protege os bens «legalmente adquiridos». Esta condição não figura no texto do artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH. Por conseguinte, não deve, segundo penso, ser interpretada de forma demasiado ampla — salvo a ficar abaixo do limiar de proteção oferecido por esta última disposição. Assim, em meu entender, esta mesma condição deve considerar‑se satisfeita quando for razoável considerar que a aquisição dos bens em causa foi válida e legal, até à adoção das medidas de ingerência controvertidas, à luz das expectativas legítimas dos titulares desses bens.

145.

No presente caso, em que se trata da alegada invalidade ab initio da aquisição dos direitos de usufruto suprimidos pela legislação controvertida, em primeiro lugar, não estou convencido que a Governo húngaro tenha verdadeiramente demonstrado a interpretação das normas de direito civil que propõe.

146.

Com efeito, relativamente ao facto de os titulares dos direitos de usufruto suprimidos não terem obtido uma autorização por parte da autoridade responsável pela fiscalização cambial, resulta efetivamente do artigo 215.o, n.os 1 e 3, do antigo Código Civil que, se for necessária a aprovação de uma autoridade pública para que um contrato entre em vigor, se essa aprovação não for obtida, os efeitos jurídicos da referida invalidade aplicam‑se a esse contrato.

147.

Porém, por um lado, como a Comissão defende, e como o próprio Governo húngaro admitiu na sua resposta ao parecer fundamentado, não existe nenhuma decisão de um órgão jurisdicional húngaro no sentido de considerar que a falta de uma autorização de troca de divisas é um vício suscetível de implicar que um contrato de usufruto é nulo ab initio.

148.

Por outro lado, a Comissão alega que da jurisprudência dos órgãos jurisdicionais húngaros relativa ao artigo 237.o, n.os 1 e 2, do antigo Código Civil resulta que, antes de declarar que um determinado contrato é nulo, o órgão jurisdicional deve em primeiro lugar verificar se é possível validar o contrato em questão, que é o que acontece quando o motivo de invalidade desaparece após a sua conclusão, nomeadamente em caso de alteração das normas aplicáveis. Ora, a obrigação de obter uma autorização de câmbio foi revogada com efeitos a partir de 16 de junho de 2001 para a aquisição de valores patrimoniais ( 122 ). Por conseguinte, mesmo admitindo que os contratos pelos quais os usufrutos em questão foram constituídos possam, em determinada altura, ter sido inválidos por falta dessa autorização, os mesmos podiam ter sido retroativamente validados com efeitos a essa data ( 123 ). Esta interpretação parece‑me absolutamente razoável.

149.

Quanto ao alegado fundamento de nulidade decorrente do facto de terem sido contornadas as restrições atinentes à aquisição de terrenos agrícolas, também aqui o Governo húngaro não reportou a existência de uma decisão judicial nacional que, por esse motivo, tivesse declarado a ilicitude de um direito de usufruto. Em contrapartida, a Comissão fundou‑se num acórdão da Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) no qual este órgão jurisdicional considerou, no essencial, que a simples constituição de um direito de usufruto sobre terrenos agrícolas não pode, por si só, ser vista como um contorno dessas restrições.

150.

Em segundo lugar, mesmo que a interpretação das normas de direito civil nacional sugerida pelo Governo húngaro fosse correta, isso não obstava a que os usufrutos em causa fossem considerados bens «legalmente adquiridos», atentas as legítimas expectativas que as circunstâncias tenham podido criar no espírito dos seus titulares.

151.

A este respeito, recordo que, após as alterações legislativas introduzidas nos anos de 1991 e 1994 com o objetivo de impedir a aquisição de terrenos agrícolas por pessoas singulares que não tivessem nacionalidade húngara e por pessoas coletivas, qualquer pessoa tinha, muito provavelmente, liberdade para adquirir um direito de usufruto sobre esses terrenos. Foi só a partir de 1 de janeiro de 2002 que a Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos foi modificada para também afastar a possibilidade de contratualmente se constituir um direito de usufruto sobre os terrenos agrícolas em benefício dessas pessoas singulares ou coletivas. Ora, os direitos objeto da presente ação são os constituídos antes dessa data.

152.

Assim, como alegado pela Comissão, os direitos de usufruto em causa tinham sido constituídos — pelo menos aparentemente — de forma legal e inscritos sem reservas no registo predial pelas autoridades públicas competentes. Este registo é uma circunstância decisiva ( 124 ), dada a sua importância no plano probatório ( 125 ) e no plano da oponibilidade a terceiros dos direitos em questão ( 126 ). Além disso, ninguém tinha posto em causa a legalidade desses direitos até à adoção da legislação controvertida — ou seja, potencialmente durante inúmeros anos ( 127 ).

153.

O Governo húngaro não pode, neste contexto, contestar a existência dessas expectativas legítimas invocando a má‑fé dos titulares dos usufrutos em causa. Com efeito, a má‑fé não se presume, tem de ser provada ( 128 ). Como alegado pela Comissão, esse governo não se pode limitar a abstratamente afirmar, sem proceder a um exame individual, que todos os usufrutuários que não são parentes próximos do proprietário da terra e que só se limitaram a utilizar as possibilidades que lhe foram fornecidas pelo quadro legal existente, procederam de má‑fé.

4) Quanto ao conceito de «privação da propriedade»

154.

À semelhança do artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH ( 129 ), o artigo 17.o, n.o 1, da Carta inclui três normas distintas, nomeadamente, uma regra geral (primeiro período, «Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens […]»), uma regra relativa à privação da propriedade (segundo período, «Ninguém pode ser privado da sua propriedade […]») e uma regra relativa à legislação do uso dos bens (terceiro período, «A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei […]»).

155.

Como já indiquei, a legislação controvertida implica, em meu entender, uma ingerência no direito fundamental de propriedade dos titulares dos direitos de usufruto afetados por ela, que se traduz numa privação dessa propriedade (segundo período do referido artigo 17.o, n.o 1).

156.

Com efeito, da jurisprudência do TEDH resulta que essa privação existe em caso de transferência de propriedade resultante de uma expropriação formal do bem ( 130 ).

157.

Ora, por um lado, a legislação controvertida, ao suprimir ex lege determinados direitos de usufruto existentes sobre os terrenos agrícolas, expropriou os titulares dos referidos direitos. Essas pessoas foram efetivamente privadas do direito de usarem (usus) e fruírem (fructus) dos terrenos em causa ( 131 ).

158.

Por outro lado, consecutivamente à supressão dos direitos de usufruto em questão, os atributos de propriedade de que essas mesmas pessoas fruíam sobre os terrenos agrícolas em causa (usus e fructus) foram transferidos — ou, mais precisamente, regressaram — para os proprietários dos terrenos. Como a Comissão justamente defende, o facto de essa transferência ter beneficiado não o próprio Estado, mas um dos particulares — os referidos proprietários — é irrelevante ( 132 ).

159.

Por conseguinte, em meu entender, ambas as componentes da privação de um bem — expropriação e transferência — estão presentes no presente caso.

5) Quanto à possibilidade de justificação dessa privação de propriedade

160.

A questão de uma possível justificação da legislação controvertida apela, preliminarmente, a uma clarificação da metodologia a aplicar.

161.

A este respeito, no quadro do artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH, o critério de justificação de uma medida que implica privação da propriedade consiste em verificar, antes de mais, conforme previsto na norma, se essa privação ocorreu por razões de «utilidade pública» e «nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional».

162.

Em seguida, em conformidade com as exigências decorrentes da jurisprudência do TEDH, importa determinar se o legislador nacional conseguiu um «justo equilíbrio entre as exigências de interesse geral da comunidade e os imperativos da proteção dos direitos fundamentais do individuo», o que implica verificar se existe uma «relação de proporcionalidade razoável entre os meios utilizados e o objetivo prosseguido pelas medidas que privam as pessoas da sua propriedade» ( 133 ).

163.

Para determinar se a privação de propriedade em causa respeita o justo equilíbrio pretendido, o Tribunal de Justiça deve designadamente apurar se não onera o particular afetado com um «encargo desproporcionado» ( 134 ). Para verificar se é esse o caso, o TEDH tem em atenção as condições de ressarcimento ( 135 ). Segundo jurisprudência constante desse órgão jurisdicional, sem o pagamento de uma«quantia que tenha uma relação razoável com o valor do bem» ( 136 ), uma privação da propriedade constitui normalmente algo de excessivo e o não pagamento de uma qualquer indemnização só em circunstâncias excecionais se poderia justificar no âmbito do 1.o ( 137 ). Além disso, para cumprir a exigência de proporcionalidade, a indemnização deve ter lugar num prazo razoável ( 138 ).

164.

No sistema da Carta, as coisas parecem complicar‑se. Por um lado, nos termos do seu artigo 17.o, n.o 1, uma medida que implique privação de propriedade só pode ocorrer (1) por razões de utilidade pública (2) nos casos e condições previstos por lei e (3) mediante «justa» indemnização paga «em tempo útil» — estes dois últimos elementos correspondem a uma codificação das exigências impostas pela jurisprudência do TEDH.

165.

Por outro lado, o artigo 52.o, n.o 1, da Carta aplica‑se enquanto «clausula geral de derrogação». Ora, de acordo com essa disposição, qualquer restrição ao exercício do direito de propriedade deve ser (4) prevista por lei (5) respeitar o «conteúdo essencial» desse direito e (6) observar o princípio da proporcionalidade, que por seu lado exige que essa restrição seja (a) necessária e (b) corresponda efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

166.

Todavia, dado o imperativo, resultante do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, de não se chegar a um nível de proteção inferior ao previsto pela CEDH, parece‑me possível agregar essas diversas condições do seguinte modo:

a privação da propriedade deve ser prevista por lei [condições (2) e (4)],

prosseguir um objetivo de interesse geral [condições (1) e (6.b)],

ser proporcionada a esse objetivo [condição (6.a)], e

deve dar lugar a uma indemnização, a pagar num prazo razoável, que esteja em adequada correspondência com o valor do bem [condições (3) e (5) ( 139 )].

167.

Há, pois, no presente caso, que examinar a legislação controvertida à luz dessas quatro condições.

i) A exigência de legalidade

168.

Em conformidade com a jurisprudência do TEDH, a expressão «prevista por lei» implica que as condições e as modalidades da privação da propriedade em questão devem estar definidas em normas jurídicas internas suficientemente acessíveis, precisas e previsíveis ( 140 ).

169.

No presente caso, a legislação controvertida enuncia de forma acessível, precisa e previsível a supressão dos direitos de usufruto constituídos sobre terrenos agrícolas em benefício de pessoas que não sejam parentes próximos do proprietário dos terrenos. Além disso, a lei húngara define com precisão as pessoas que possuem uma tal relação de parentesco ( 141 ). Considero, portanto, que esta primeira condição se encontra satisfeita.

ii) A existência de um objetivo de interesse geral

170.

No que respeita à existência de uma razão «de utilidade pública» suscetível de justificar a privação em causa, o TEDH reconhece aos Estados uma ampla margem de apreciação. Esse órgão jurisdicional respeita a forma como o legislador nacional concebe os imperativos de «utilidade pública», salvo se a sua apreciação se revelar «manifestamente desprovida de uma fundamentação razoável» ( 142 ).

171.

Recordo que o Governo húngaro invocou três objetivos diferentes para justificar a legislação controvertida, ou seja, um objetivo de política agrícola, a vontade de punir as violações da legislação nacional em matéria de controlo de câmbios e o objetivo de, ao abrigo da ordem pública, lutar contra práticas de aquisição abusivas ( 143 ).

172.

Dada a margem de apreciação de que devem dispor os Estados‑Membros na matéria, esses objetivos podem, segundo entendo, considerar‑se objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, na aceção dos artigos 17.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta.

iii) A proporcionalidade da legislação controvertida

173.

Regra geral, o Tribunal de Justiça deveria, à semelhança do TEDH, reconhecer uma margem de apreciação ao legislador nacional no que respeita à proporcionalidade de uma privação de propriedade ( 144 ).

174.

Isto posto, mesmo tendo em atenção essa margem de apreciação, considero que a privação de propriedade controvertida não pode ser considerada proporcionada face aos objetivos prosseguidos pela Hungria.

175.

Por um lado, o ónus da prova da proporcionalidade da supressão ex lege dos direitos de usufruto em causa recaía, em meu entender, sobre esse Estado‑Membro. Ora, este não apresentou verdadeiramente elementos para o efeito, antes se tendo limitado, no essencial, a sustentar a ilegalidade dos direitos de usufruto em questão.

176.

Por outro lado, e de todo o modo, a Comissão alegou que um certo número de medidas menos drásticas que essa supressão ex lege teria permitido atingir os objetivos prosseguidos pela Hungria. Relativamente ao objetivo de política agrícola, teria sido possível exigir do usufrutuário que mantivesse a afetação agrícola da terra em questão, eventualmente assegurando ele próprio e de forma efetiva a exploração, em condições suscetíveis de garantir a sua viabilidade. No que respeita ao objetivo de punir eventuais violações da legislação nacional em matéria de controlo de câmbios, simples coimas seriam suficientes. Quanto ao objetivo de, a título da ordem pública, lutar contra práticas de aquisição abusivas, é insuscetível de justificar a supressão dos direitos de usufruto em causa sem um exame casuístico do seu caráter realmente fraudulento ( 145 ). De resto, em minha opinião, esses objetivos não justificavam a supressão dos direitos de usufruto em questão concedendo um período transitório tão curto ( 146 ).

iv) As modalidades de indemnização

177.

Recordo que a legislação controvertida não prevê mecanismos de indemnização específicos para os usufrutuários expropriados. Estes apenas podem requerer uma indemnização aos proprietários das terras no quadro do acordo a encontrar quando da extinção do usufruto, nos termos das disposições de direito civil ( 147 ).

178.

A Comissão e o Governo húngaro estão em desacordo quanto às regras específicas que se devem aplicar e ao alcance da indemnização a pagar pelo proprietário que pode ser obtida pelo usufrutuário. A primeira considera que se trata do artigo 5:150, n.o 2, do novo Código Civil ( 148 ), que se cinge a prever o reembolso, uma vez extinto o usufruto, dos custos dos trabalhos de renovação e reparação extraordinários efetuados pelo usufrutuário e que em princípio incumbem ao proprietário. Em contrapartida, o segundo alega que as disposições do artigo 6:180, n.o 1, desse código ( 149 ), relativo às consequências da impossibilidade jurídica de execução de um contrato, são aplicáveis, eventualmente completadas por um regulamento nos termos do referido artigo 5:150, n.o 2. No máximo, segundo esse governo, o usufrutuário podia obter uma indemnização equivalente a uma proporção da contrapartida financeira que inicialmente tinha pago pelo usufruto e dos investimentos que realizou — ferramentas, plantações, etc. — e que beneficiam a propriedade. A Comissão responde que, de qualquer modo, essa indemnização não cobriria nem os investimentos não diretamente quantificáveis e que o usufrutuário realizou na esperança de continuar com o gozo da terra, nem os lucros cessantes.

179.

Em meu entender, independentemente de qual seja o artigo do Código Civil húngaro aplicável, as regras de indemnização previstas não estão em conformidade com as exigências do artigo 17.o, n.o 1, da Carta — e isto, aqui também, apesar da margem de apreciação que se deve reconhecer aos Estados‑Membros na matéria.

180.

Com efeito, antes do mais, as normas de direito civil invocadas fazem recair sobre os usufrutuários afetados o ónus da cobrança da indemnização que lhes é devida, por meio de processos que se podem revelar demorados e dispendiosos ( 150 ). Ora, a jurisprudência do Tribunal EDH vai no sentido de considerar que uma legislação nacional que não impõe o pagamento automático da indemnização necessária e que obriga o particular afetado a concretizar o seu direito através de um processo judicial como esse não cumpre as exigências do artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH ( 151 ).

181.

Em seguida, essas mesmas normas de direito civil não oferecem ao usufrutuário a garantia de que obterá uma indemnização que esteja em adequada correspondência com o valor do seu bem ( 152 ). Permitem‑lhe, na melhor das hipóteses, recuperar uma parte da contrapartida inicialmente paga — que, portanto, não tem em consideração o valor efetivo do usufruto no momento da respetiva supressão ex lege — e o montante de alguns investimentos feitos no terreno. Além disso, na medida em que, no presente caso, os bens expropriados aos usufrutuários constituíam o respetivo «instrumento de trabalho» a indemnização deve necessariamente incluir essa perda específica, o que implica compensar não apenas os prejuízos ocorridos no momento da supressão, mas também uma avaliação razoável da perda da parte adicional dos rendimentos futuros que tirariam da exploração da terra caso os seus direitos não tivessem sido suprimidos ( 153 ).

182.

Por último, regras de indemnização como estas fazem correr pelo usufrutuário o risco de que o proprietário esteja insolvente e não possa pagar essa indemnização ( 154 ).

183.

Atento tudo o que precede, penso que o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias é incompatível com o artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

VI. Conclusão

184.

Atento o conjunto das considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que:

1)

Ao suprimir ex lege, em conformidade com o artigo 108.o, n.o 1, da mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvénnyel összefüggő egyes rendelkezésekről és átmeneti szabályokról szóló 2013. évi CCXII. törvény (Lei n.o CCXII de 2013, que institui diversas disposições e medidas transitórias no que respeita à Lei n.o CXXII de 2013 relativa à venda de terrenos agrícolas e silvícolas), os direitos de usufruto e os direitos de uso dos terrenos agrícolas e silvícolas, anteriormente constituídos em benefício de pessoas coletivas ou singulares que não pudessem demonstrar uma relação de parentesco próxima com o proprietário das terras, a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.o TFUE.

2)

A ação é julgada improcedente quanto ao demais.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Por razões de comodidade, nas presentes conclusões utilizarei, por um lado, os termos «usufruto» ou «direitos de usufruto» para designar indiferentemente quer os direitos de usufruto stricto sensu quer os direitos de uso e, por outro lado, a expressão «terreno agrícola» para designar os terrenos agrícolas e os terrenos silvícolas.

( 3 ) C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, a seguir «Acórdão SEGRO e Horváth».

( 4 ) Conclusões nos processos apensos SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410).

( 5 ) Artigo 38.o, n.o 1, da földről szóló 1987. évi I. törvény (Lei n.o I de 1987, relativa à terra), conforme regulamentada pelo 26/1987. (VII. 30.) MT rendelet a földről szóló 1987. évi I. törvény végrehajtásáról (Decreto n.o 26 do Conselho de Ministros, de 30 de julho de 1987, relativo à aplicação da Lei n.o I de 1987 relativa à terra) e posteriormente pelo a földről szóló 1987. évi I. törvény végrehajtásáról rendelkező 26/1987. (VII. 30.) MT rendelet módosításáról szóló 73/1989. (VII. 7.) (Decreto n.o 73 do Conselho de Ministros, de 7 de julho de 1989).

( 6 ) Artigo 1.o, n.o 5, do a külföldiek ingatlanszerzéséről 171/1991. (XII. 27.) Korm. (Decreto do Governo n.o 171, de 27 de dezembro de 1991).

( 7 ) Lei modificada pela Lei n.o CXVII de 2001 que altera a [Lei de 1994 relativa às terras produtivas].

( 8 ) Em conformidade com o disposto no Capítulo 3, ponto 2, do anexo X do Ato relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33) bem como na Decisão 2010/792/UE da Comissão, de 20 de dezembro de 2010, que prorroga o período transitório respeitante à aquisição de prédios rústicos na Hungria (JO 2010, L 336, p. 60).

( 9 ) Lei n.o CCXIII de 2012 que modifica certas leis relativas à agricultura.

( 10 ) Em conformidade com o disposto no artigo 37.o, n.o 1, dessa lei.

( 11 ) Na notificação para cumprir, a Comissão também criticou a Hungria por, em conformidade com o artigo 60.o, n.o 5, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, ter autorizado, a partir de 25 de fevereiro de 2014, a resolução unilateral dos contratos de arrendamento de terrenos agrícolas anteriores a 27 de julho de 1994 com duração superior a vinte anos. A Comissão parece ter renunciado a esta acusação, que não consta do parecer fundamentado.

( 12 ) V., designadamente, Acórdãos de 9 de setembro de 2004, Comissão/Grécia (C‑417/02, EU:C:2004:503, n.o 16), de 1 de fevereiro de 2007, Comissão/Reino‑Unido (C‑199/04, EU:C:2007:72, n.o 20), e de 22 de fevereiro de 2018, Comissão/Polónia (C‑336/16, EU:C:2018:94, n.o 42). A jurisprudência do Tribunal de Justiça não é estática quanto à questão de saber se a apreciação oficiosa dos fundamentos de inadmissibilidade de ordem pública tem natureza facultativa ou obrigatória. Todavia, tanto o caráter imperativo das normas de ordem pública como considerações relativas à igualdade dos sujeitos de direito perante o juiz e à paridade de meios militam em favor da natureza obrigatória (v. Clausen, F., Les moyens d’ordre public devant la Cour de justice da União européenne, Thèses, Bruylant, 2018, p. 455 a 472).

( 13 ) O objeto de uma ação intentada ao abrigo do artigo 258.o TFUE fica delimitado pelo procedimento pré‑contencioso previsto nessa disposição e, portanto, deixa de poder ser alargado quando do processo judicial. O parecer fundamentado da Comissão e a ação devem basear‑se nos mesmos fundamentos e argumentos, pelo que o Tribunal de Justiça não pode examinar uma acusação que não tenha sido formulada no parecer fundamentado [v., designadamente, Acórdãos de 9 de fevereiro de 2006, Comissão/Reino‑Unido (C‑305/03, EU:C:2006:90, n.o 22), de 29 de abril de 2010, Comissão/Alemanha (C‑160/08, EU:C:2010:230, n.o 43), e de 10 de maio de 2012, Comissão/Países Baixos (C‑368/10, EU:C:2012:284, n.o 78)].

( 14 ) Com efeito, o artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994, na versão em vigor em 1 de janeiro de 2013, e o artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas, dizem respeito à constituição de (novos) direitos de usufruto sobre os terrenos agrícolas.

( 15 ) V. n.os 50 a 60 desse acórdão.

( 16 ) Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a ação por incumprimento tem caráter objetivo. Cabe à Comissão apreciar a oportunidade de atuar contra um Estado‑Membro e determinar as disposições que teriam sido violadas, competindo ao Tribunal de Justiça apurar se o incumprimento existe, ou não (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de junho de 1988, Comissão/Reino‑Unido, 416/85, EU:C:1988:321, n.o 9, de 11 de agosto de 1995, Comissão/Alemanha, C‑431/92, EU:C:1995:260, n.o 22, e de 8 de dezembro de 2005, Comissão/Luxemburgo, C‑33/04, EU:C:2005:750, n.o 66).

( 17 ) V., neste sentido, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 55.

( 18 ) Acórdãos de 30 de maio de 1989, Comissão/Grécia (305/87, EU:C:1989:218, n.o 22), e de 5 de março de 2002, Reisch e o. (C‑515/99, C‑519/99 a C‑524/99 e C‑526/99 a C‑540/99, EU:C:2002:135, n.o 29).

( 19 ) V., designadamente, Acórdãos de 5 de março de 2002, Reisch e o. (C‑515/99, C‑519/99 a C‑524/99 e C‑526/99 a C‑540/99, EU:C:2002:135, n.os 28 a 31), de 23 de setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg (C‑452/01, EU:C:2003:493, n.o 24), e de 25 de janeiro de 2007, Festersen (C‑370/05, EU:C:2007:59, n.os 22 a 24). V. igualmente as Conclusões que apresentei nos processos apensos SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.os 48 a 63).

( 20 ) V., designadamente, Acórdãos de 3 de outubro de 2006, Fidium Finanz (C‑452/04, EU:C:2006:631, n.o 34), e de 17 de setembro de 2009, Glaxo Wellcome (C‑182/08, EU:C:2009:559, n.o 37).

( 21 ) V., designadamente, Acórdãos de 17 de setembro de 2009, Glaxo Wellcome (C‑182/08, EU:C:2009:559, n.o 36), de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport‑ és Divatkereskedelmi (C‑385/12, EU:C:2014:47, n.o 21), e SEGRO e Horváth, n.o 53.

( 22 ) V., por analogia, Acórdão de 17 de setembro de 2009, Glaxo Wellcome (C‑182/08, EU:C:2009:559, n.os 49 a 52).

( 23 ) V., neste sentido, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 55.

( 24 ) Para o caso de o Tribunal de Justiça não concordar comigo, considero que, de qualquer modo, as considerações constantes do Acórdão SEGRO e Horváth relativas à livre circulação de capitais podem ser transpostas para a liberdade de estabelecimento, quer se trate da existência de uma restrição quer da falta de justificação.

( 25 ) V., entre inúmeros exemplos, Acórdãos de 9 de junho de 1982, Comissão/Itália (95/81, EU:C:1982:216, n.o 30); de 4 de junho de 2002, Comissão/Portugal (C‑367/98, EU:C:2002:326, n.o 56); de 28 de setembro de 2006, Comissão/Países Baixos (C‑282/04 e C‑283/04, EU:C:2006:608, n.o 43); de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08, EU:C:2010:412, n.o 80), e de 10 de maio de 2012, Comissão/Bélgica (C‑370/11, não publicado, EU:C:2012:287, n.o 21).

( 26 ) Trata‑se, por um lado, de uma razão imperiosa de interesse geral que consiste em reservar a propriedade dos terrenos agrícolas para aqueles que os trabalham e impedir a aquisição desses terrenos para fins puramente especulativos bem como permitir a sua exploração por novas empresas, facilitar a criação de propriedades com uma dimensão que permita uma produção agrícola viável e concorrencial e evitar uma fragmentação das propriedades agrícolas, bem como um êxodo geral e um despovoamento das zonas rurais. Por outro lado, o Governo húngaro invoca o artigo 65.o TFUE e, mais precisamente, a vontade de punir as violações da regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios, bem como de lutar, ao abrigo da ordem pública, contra práticas de aquisição abusivas.

( 27 ) Conclusões nos processos apensos SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.os 31 a 118).

( 28 ) V. Acórdão de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o. (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.os 74 a 88 e 92).

( 29 ) Se necessário, a exposição constante dos n.os 173 a 182 das presentes conclusões relativa ao direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o da Carta pode ser transposta para esses princípios.

( 30 ) V. n.os 76 e seguintes das presentes conclusões.

( 31 ) Além disso, e salvo erro da minha parte, em toda a história dos processos por incumprimento, essa mesma instituição só uma vez apresentou um pedido para que fosse declarado que houve uma violação de um direito fundamental reconhecido pelo ordenamento jurídico da União, no processo que esteve na origem do Acórdão de 27 de abril de 2006, Comissão/Alemanha (C‑441/02, EU:C:2006:253). A jurisprudência do Tribunal de Justiça inclui, todavia, alguns acórdãos em que os direitos fundamentais são invocados em apoio de uma interpretação da norma jurídica alegadamente violada pelo Estado‑Membro.

( 32 ) «Estratégia para a aplicação efetiva da Carta dos Direitos Fundamentais pela União Europeia», [COM (2010) 0573 final, p. 10].

( 33 ) Os diversos relatórios anuais da Comissão sobre a aplicação da Carta evocam a abertura de diversos procedimentos pré‑contenciosos relativos à violação da Carta por alguns Estados‑Membros. Porém, nenhum desses processos chegou ao Tribunal de Justiça. V. Łazowski, A., «Decoding a Legal Enigma: the Charter of Fundamental Rights of the European Union and infringement proceedings», ERA Forum, 2013, n.o 14, p. 573 a 587, que observa que essa contenção da Comissão decorria indubitavelmente de uma sua opção estratégica, relacionada com a falta de clareza que rodeia a questão da aplicação da Carta aos Estados‑Membros.

( 34 ) V., para além do presente processo, os processos pendentes Comissão/Hungria, C‑66/18 e Comissão/Hungria, C‑78/18.

( 35 ) A mesma conclusão se impõe, em meu entender, no que respeita aos direitos fundamentais reconhecidos como princípios gerais do direito da União. V. Barav, A., «Failure of Member States to Fulfil their Obligations under Community Law», Common Market Law Review, 1975, n.o 12, p. 369 a 383, p. 377.

( 36 ) Uma ação por incumprimento só se pode fundar numa obrigação em vigor e aplicável ratione temporis à situação em causa, é evidente que o Tribunal de Justiça só pode declarar que houve um incumprimento dos direitos reconhecidos pela Carta relativamente a factos ocorridos após esta ter adquirido força obrigatória — ou seja, em 1 de dezembro de 2009, data de entrada em vigor do Tratado de Lisboa. É o que se passa no presente caso, pois este processo diz respeito aos efeitos do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, disposição aprovada e entrada em vigor após essa data (v., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.os 38 a 49).

( 37 ) V., designadamente, von Bogdandy, A., «The European Union as a Human Rights Organization? Human Rights and the core of the European Union», Common Market Law Review, 2000, n.o 37, p. 1307 a 1338, p. 1316 e 1317, bem como Dougan, M. «Judicial review of Member State action under the General principles and the Charter: Defining the “Scope of Union Law”», Common Market Law Review, 2015, n.o 52, p. 1201 a 1246, p. 1204 a 1210.

( 38 ) A seguir «TEDH»

( 39 ) V. artigo 6.o, n.o 1, TUE, artigo 51.o, n.o 2, da Carta, e declaração sobre a Carta dos direitos fundamentais da União Europeia anexa ao Tratado FUE.

( 40 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013 (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 21).

( 41 ) Dougan, M., op. cit., p. 1206.

( 42 ) Acórdão de 13 de julho de 1989 (5/88, EU:C:1989:321, n.os 17 a 19).

( 43 ) Essa jurisprudência abrange tanto a aplicação dos regulamentos (Acórdão de 24 de março de 1994, Bostock, C‑2/92, EU:C:1994:116) quanto a transposição das diretivas (Acórdão de 10 de julho de 2003, Booker Aquaculture et Hydro Seafood, C‑20/00 e C‑64/00, EU:C:2003:397) ou a das decisões‑quadro (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198) ou ainda a execução das obrigações decorrentes dos Tratados (Acórdão de 5 de dezembro de 2017, M.A.S. e M.B., C‑42/17, EU:C:2017:936). Para um debate aprofundado desta linha jurisprudencial, v. Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Ispas (C‑298/16, EU:C:2017:650, n.os 32 a 65).

( 44 ) Acórdão de 18 de junho de 1991 (C‑260/89, EU:C:1991:254, n.os 43 a 45), a seguir «Acórdão ERT».

( 45 ) C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.o 121.

( 46 ) V. n.o 54 das presentes conclusões.

( 47 ) Assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

( 48 ) Mais exatamente, essas justificações constam do artigo 56.o CE (atual artigo 52.o TFUE) e passaram a ser aplicáveis à livre prestação de serviços por força da remissão efetuada pelo artigo 66.o CE (atual artigo 62.o TFUE).

( 49 ) Acórdão ERT, n.o 26.

( 50 ) A expressão foi utilizada pela primeira vez pelo Tribunal de Justiça alguns anos antes, no Acórdão de 30 de setembro de 1987, Demirel (12/86, EU:C:1987:400).

( 51 ) Acórdão ERT, n.o 42.

( 52 ) Acórdão ERT, n.o 43 (sublinhado por mim).

( 53 ) V. Acórdão ERT, n.o 44.

( 54 ) V., neste sentido, Acórdão ERT, n.o 45.

( 55 ) Acórdão de 13 de julho de 1989 (5/88, EU:C:1989:321).

( 56 ) Movimento iniciado com os Acórdãos de 12 de novembro de 1969, Stauder (29/69, EU:C:1969:57), de 17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft (11/70, EU:C:1970:114), e de 14 de maio de 1974, Nold/Comissão (4/73, EU:C:1974:51).

( 57 ) V., neste sentido, Acórdãos de 17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft (11/70, EU:C:1970:114, n.o 3); de 13 de dezembro de 1979, Hauer (44/79, EU:C:1979:290, n.o 14); de 26 de fevereiro de 2013, Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.o 60), e de 6 de março de 2014, Siragusa (C‑206/13, EU:C:2014:126, n.os 31 e 32).

( 58 ) Weiler, J.H.H. e Lockhart, N.J.S. («“Taking rights seriously” seriously: the European court and its fundamental rights jurisprudence — part II», Common Market Law Review, 1995, n.o 32, p. 579 a 627, em especial p. 583 e 610.

( 59 ) Por esta razão, a jurisprudência «ERT» está longe de ser tão consensual como a jurisprudência «Wachauf». O Tribunal de Justiça é, assim, regularmente convidado a abandonar a jurisprudência «ERT» (v. Jacobs, F.G., «Human Rights in the European Union: the role of the Court of Justice», European Law Review, 2001, n.o 26, p. 331 a 341; Huber, P.M., «The Unitary Effect of the Community’s Fundamental Rights: The ERT‑Doctrine Needs to be Reviewed», European Public Law, 2008, n.o 14, p. 323 a 333; Kühn, Z., «Wachauf and ERT: On the Road from the Centralised to the Decentralised System of Judicial Review», D. Poiares Maduro, M., Azoulai, L. (eds), The Past and Future of EU Law, Oxford and Portland, Oregon, 2010, p. 151 a 161, em especial p. 157.) ou a fazer prova de prudência na sua aplicação (v. Weiler, J. H. H., «Fundamental rights and fundamental boundaries», The constitution of Europe, Chapitre 3, Cambridge University Press, 1999, que sugere ao Tribunal de Justiça que se limite a recordar aos Estados‑Membros as suas obrigações nos termos da CEDH, bem como Snell, J., «Fundamental Rights Review of National Measures: Nothing New under the Carta?», European Public Law, 2015, volume 21, n.o 2, p. 285 a 308, em especial p. 306).

( 60 ) De acordo com uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros, mesmo quando atuam no âmbito das suas competências exclusivas, devem, no seu exercício, respeitar o direito da União e, em especial, as liberdades de circulação previstas nos Tratados. V., designadamente, Acórdãos de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello (C‑148/02, EU:C:2003:539, n.o 25), de 11 de dezembro de 2007, International Transport Workers’ Federation e Finnish Seamen’s Union (C‑438/05, EU:C:2007:772, n.o 40), e de 5 de junho de 2018, Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:385, n.os 37 e 38).

( 61 ) V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2013:747, n.o 45); Tridimas, T., The General Principles of EU Law, Oxford University Press, 2a Edição, 2006, p. 325; Craig, P., «The ECJ and ultra vires action: a conceptual analysis», Common Market Law Review, 2011, n.o 48, p. 395 a 437, em especial p. 431; Eriksen, C.C., Stubberud, J.A., «Legitimacy and the Charter of Fundamental Rights Post‑Lisbon», Andenas, M., Bekkedal, T., Pantaleo, L., The Reach of Free Movement, Springler, 2017, p. 229 a 252, em especial p. 240.

( 62 ) V. Conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven no processo Society for the Protection of Unborn Children Ireland (C‑159/90, não publicadas, EU:C:1991:249, n.o 31); Weiler, J.H.H., Fries, S.C., «A human right policy for the European Community and Union: The question of competences», Alston, P. (ed.), The EU and Human Rights, Oxford University Press, 1999, p. 163, bem como Dougan, M. op. cit., p. 1216, sublinhando que as jurisprudências «Wachauf» e «ERT» acabam por estar relacionadas pelo mesmo imperativo de unidade e efetividade do direito da União.

( 63 ) V. Conclusões do advogado‑geral G. Tesauro no processo Familiapress (C‑368/95, EU:C:1997:150, n.o 26) e Eeckhout, P., «The EU Charter of Fundamental Rights and the Federal Question», Common Market Law Review, 2002, n.o 39, p. 945 a 994, em especial p. 978.

( 64 ) Hipótese em causa, designadamente, nos Acórdãos de 12 de junho de 2003, Schmidberger (C‑112/00, EU:C:2003:333), e de 14 de outubro de 2004, Omega (C‑36/02, EU:C:2004:614).

( 65 ) Acórdão de 4 de outubro de 1991 (C‑159/90, EU:C:1991:378).

( 66 ) V. Eeckhout, P., op. cit., p. 978 (o exemplo é retirado desse artigo), e Von Danwitz, T., Paraschas, K., «A Fresh Start for the Charter: Fundamental Questions on the Application of the European Charter of Fundamental Rights», Fordham International Law Journal, 2017, n.o 35, p. 1396 a 1425, em especial p. 1406.

( 67 ) Acórdão de 26 de junho de 1997 (C‑368/95, EU:C:1997:325, n.o 24).

( 68 ) V., contra, Besselink, L.F.M., «The member States, the National Constitutions and the Scope of the Charter», Maastricht Journal, 2001, n.o 8, p. 68 a 80, em especial p. 77.

( 69 ) Acórdão de 26 de junho de 1997, Familiapress (C‑368/95, EU:C:1997:325, n.o 24). V., da mesma opinião, Tridimas, T., op. cit., p. 326.

( 70 ) Esse caráter funcional resulta das Conclusões do advogado‑geral G. Tesauro no processo Familiapress (C‑368/95, EU:C:1997:150, n.o 26): «[…] consideramos que o problema da compatibilidade da legislação nacional em causa com o artigo 10.o da [CEDH], que foi invocado durante o processo, merece uma resposta por parte do Tribunal de Justiça. E isto, bem entendido, na hipótese de este concluir que a legislação em causa se pode justificar com base nas exigências imperativas que acabaram de ser analisadas. E isto, bem entendido, na hipótese de este concluir que a legislação em causa se pode justificar com base nas exigências imperativas que acabaram de ser analisadas».

( 71 ) V. as Conclusões que apresentei nos processos apensos SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.o 129).

( 72 ) Acórdão de 30 de abril de 2014 (C‑390/12, EU:C:2014:281).

( 73 ) Acórdão de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.o 36).

( 74 ) Acórdão de 11 de junho de 2015 (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.os 74 a 91).

( 75 ) Acórdão de 21 de dezembro de 2016 (C‑201/15, EU:C:2016:972, n.os 61 a 70 e 102 a 103).

( 76 ) Acórdão de 20 de dezembro de 2017 (C‑322/16, EU:C:2017:985, n.os 44 a 50).

( 77 ) Acórdão de 30 de abril de 2014 (C‑390/12, EU:C:2014:281).

( 78 ) Acórdão de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.os 48 a 55).

( 79 ) V. Acórdão de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.os 59 e 60).

( 80 ) C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.o 141.

( 81 ) Acórdão de 30 de abril de 2014 (C‑390/12, EU:C:2014:281).

( 82 ) V. Conclusões do advogado‑geral E. Sharpston no processo Ruiz Zambrano (C‑34/09, EU:C:2010:560, n.o 162), bem como Weiler, J.H.H., Fries, S.C., op. cit. p. 152.

( 83 ) As situações de «derrogações» devem, portanto, distinguir‑se daquelas em que uma regulamentação da União deixa uma margem de discricionariedade aos Estados‑Membros: a aplicação dos direitos fundamentais da União neste último contexto justifica‑se plenamente, porquanto essa margem se inscreve no quadro de uma política da União [v., neste sentido, Acórdãos de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 68), e de 9 de março de 2017, Milkova (C‑406/15, EU:C:2017:198, n.os 52 e 53)] e o legislador da União não pretendeu conferir aos Estados‑Membros um poder discricionário para violar os direitos fundamentais.

( 84 ) Esclareço assim que, no presente processo, nenhuma norma da União é aplicada, no sentido rigoroso do termo, pela regulamentação controvertida. Em especial, esta não procede da aplicação do anexo X do ato relativo às condições de adesão à União Europeia, entre outros, da Hungria, pois esse ato era relativo às condições de aquisição da propriedade e não do usufruto. Também não se trata de uma incorreta transposição da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado [CE, artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO 1988, L 178, p. 5), na medida em que, nomeadamente, essa diretiva já não está em vigor.

( 85 ) V. igualmente Eeckhout, P., «The EU Charter of Fundamental Rights and the Federal Question», Common Market Law Review, 2002, n.o 39, p. 945 a 994, p. 975.

( 86 ) V. n.o 69 das presentes conclusões.

( 87 ) V. em especial a nota do Praesidium da Convenção com data de 15 de fevereiro de 2000 (CARTA 4123/1/00 REV 1) que indica que a Carta só devia aplicar‑se aos Estados‑Membros quando transpõem ou aplicam o direito da União, e isto motivado pela preocupação de evitar que esses Estados fiquem obrigados por esse instrumento quando atuam no seu próprio domínio de competência. As sucessivas redações variaram entre a «aplicação do direito da União» (CARTA 4149/00 e CARTA 4235/00) e o «âmbito de aplicação do direito da União» (CARTA 4316/00).

( 88 ) Anotações relativas à [Carta] (JO 2007, C 303, p. 17).

( 89 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013 (C‑617/10, EU:C:2013:105).

( 90 ) V. n.o 70 das presentes conclusões.

( 91 ) V. XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), palavras introdutórias de, J.M. Sauvé, proferidas em 30 de maio de 2012 em Talin (Estónia), que pôs a ênfase nos três movimentos surgidos no continente europeu em conexão com os direitos fundamentais, ou seja, a expansão dos direitos, a multiplicação das fontes e a pluralidade de intérpretes.

( 92 ) V. n.o 82 das presentes conclusões. Esse controlo da execução das políticas da União pelos Estados‑Membros implica o das vias jurídicas previstas por esses Estados, com base no artigo 19.o TUE, a fim de garantir que os sujeitos de direito têm, nos domínios cobertos pelo direito da União, uma possibilidade efetiva de contestar judicialmente a legalidade de qualquer medida nacional que dê execução a esse direito. V., nesse sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117, n.os 29 a 37)].

( 93 ) A própria afirmação de que a Comissão iniciará, «sempre que necessário, processos de infração contra os Estados‑Membros por não respeitarem a Carta no âmbito da aplicação do direito da União», evocada no n.o 64 das presentes conclusões, inscrevia‑se num contexto em que essa instituição pretendia garantir que a ação da União deve ser irrepreensível em matéria de direitos fundamentais, devendo a Carta constituir um guia para as políticas da União e para a respetiva aplicação pelos Estados‑Membros [V. «Estratégia para a aplicação efetiva da Carta dos Direitos Fundamentais pela União Europeia», COM (2010) 0573 final, p. 4].

( 94 ) V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Ruiz Zambrano (C‑34/09, EU:C:2010:560, n.o 155).

( 95 ) Nos termos dessa disposição «[q]ualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros».

( 96 ) V. Acórdãos de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.os 57 a 60); de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o. (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.os 90 e 91); de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis (C‑201/15, EU:C:2016:972, n.os 102 e 103), e de 20 de dezembro de 2017, Global Starnet (C‑322/16, EU:C:2017:985, n.o 50).

( 97 ) Kovar, R., «Droit de propriété», Répertoire du droit européen, janeiro de 2007, § 4, e Gauthier, C., Platon, S., Szymczak, D., Droit européen des droits de l’Homme, Sirey, 2017, p. 215.

( 98 ) V. jurisprudência evocada no n.o 47 das presentes conclusões.

( 99 ) Acórdão SEGRO e Horváth, n.os 62 e 63.

( 100 ) V. n.os 157 a 159 das presentes conclusões.

( 101 ) V., por um lado, n.os 92 e 106 de SEGRO e Horváth e, por outro, n.o 176 das presentes conclusões.

( 102 ) V., por um lado, n.o 91 do Acórdão SEGRO e Horváth e, por outro, n.os 179 a 182 das presentes conclusões.

( 103 ) A norma de direito da União violada deve ter por objeto conferir direitos aos particulares, a violação dessa norma deve ser suficientemente caracterizada e deve existir um nexo de causalidade direta entre essa violação e o prejuízo sofrido. V. Acórdão de 5 de março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79, n.o 51) e para uma aplicação recente, Acórdão de 4 de outubro de 2018, Kantarev (C‑571/16, EU:C:2018:807, n.o 94).

( 104 ) V., designadamente, Acórdão de 30 de maio de 2013, Comissão/Suécia (C‑270/11, EU:C:2013:339, n.o 49). V. igualmente a comunicação da Comissão relativa à aplicação do artigo 228.o do Tratado CE [SEC (2005) 1658], n.o 16.1: «Para avaliar a importância das disposições comunitárias que constituíram o objeto da infração, a Comissão tomará mais em consideração a natureza e o alcance destas do que a hierarquia da norma cujo incumprimento foi declarado. […] [A]s violações dos direitos fundamentais e das quatro liberdades fundamentais consagradas no Tratado devem ser consideradas graves e ser objeto de uma sanção pecuniária adequada a essa gravidade» (sublinhado meu).

( 105 ) V. a jurisprudência da nota 16 das presentes conclusões.

( 106 ) V. Acórdãos de 12 de julho de 1973, Comissão/Alemanha (70/72, EU:C:1973:87, n.o 13), e de 16 de outubro de 2012, Hungria/Eslováquia (C‑364/10, EU:C:2012:630, n.o 68).

( 107 ) V., designadamente, Acórdãos de 6 de novembro de 2012, K (C‑245/11, EU:C:2012:685); de 18 de abril de 2013, Irimie (C‑565/11, EU:C:2013:250); de 4 de julho de 2013, Gardella (C‑233/12, EU:C:2013:449, n.os 37 a 41); de 5 de junho de 2014, Mahdi (C‑146/14 PPU, EU:C:2014:1320, n.o 64); de 4 de setembro de 2014, Zeman (C‑543/12, EU:C:2014:2143, n.o 39); de 4 de fevereiro de 2015, Melchior (C‑647/13, EU:C:2015:54, n.o 29); de 25 de junho de 2015, Loutfi Management Propriété intellectuelle (C‑147/14, EU:C:2015:420, n.o 27), e de 10 de setembro de 2015, Wojciechowski (C‑408/14, EU:C:2015:591, n.o 53).

( 108 ) Nem que seja pelo facto de a interpretação do conteúdo de um direito fundamental, que é um norma hierarquicamente suprema, e que vincula nomeadamente o legislador da União na sua competência normativa, não ser anódina.

( 109 ) Acórdãos de 14 de maio de 1974, Nold/Comissão (4/73, EU:C:1974:51), e de 13 de dezembro de 1979, Hauer (44/79, EU:C:1979:290).

( 110 ) O artigo 17.o, n.o 2, da Carta é relativo à proteção da propriedade intelectual e não está, portanto, em causa no presente processo.

( 111 ) Esta disposição, sob a epígrafe «Proteção da propriedade», determina que «[q]ualquer pessoa singular ou coletiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional. As condições precedentes entendem‑se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas».

( 112 ) V. Acórdãos de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.o 356), e de 13 de junho de 2017, Florescu e o. (C‑258/14, EU:C:2017:448, n.o 49).

( 113 ) Relativamente à jurisprudência do TEDH, v., nesse sentido, TEDH, 23 de fevereiro de 1995, Gasus Dosier‑ und Fördertechnik GmbH c. Países‑Baixos, CE:ECHR:1995:0223JUD001537589, § 53, TEDH,12 de dezembro de 2002, Wittek c. Alemanha, CE:ECHR:2002:1212JUD003729097, § 42, TEDH, e 18 de novembro de 2010, Consorts Richet e Le Ber c. França, CE:ECHR:2010:1118JUD001899007, § 89. Para a jurisprudência do Tribunal de Justiça, v., nesse sentido, Acórdão de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich (C‑283/11, EU:C:2013:28, n.o 34).

( 114 ) V., nesse sentido, TEDH, 29 de novembro de 1991, Pine Valley Developments Ltd e outros c. Irlanda, CE:ECHR:1991:1129JUD001274287, § 51, 20 de novembro de 1995, Pressos Compania Naviera S.A. e outros c. Bélgica, CE:ECHR:1995:1120JUD001784991, § 29, e 18 de abril de 2002, Ouzounis e outros c. Grécia, CE:ECHR:2002:0418JUD004914499, § 24.

( 115 ) Acórdãos de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich (C‑283/11, EU:C:2013:28, n.o 34), e de 3 de setembro de 2015, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Comissão (C‑398/13 P, EU:C:2015:535, n.o 60).

( 116 ) No que respeita ao direito de uso, só o usus é transferido para o seu titular, conservando o proprietário o fructus e o abusus.

( 117 ) V., para uma exposição das características do usufruto, conforme historicamente previsto em direito romano e no direito dos diferentes Estados‑Membros, as Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Goed Wonen (C‑326/99, EU:C:2001:115, n.os 54 a 56).

( 118 ) A título exemplificativo, no âmbito do artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH, o TEDH classificou como «bens» usufrutos (TEDH, 12 de dezembro de 2002, Wittek c. Alemanha, CE:ECHR:2002:1212JUD003729097, § 43 e 44, bem como TEDH, 16 de novembro de 2004, Bruncrona c. Finlândia, CE:ECHR:2004:1116JUD004167398, § 78), outras formas de servidões (Comissão EDH, 13 de dezembro de 1984, S c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1984:1213DEC001074184, p. 238 e 239), ou ainda um direito pessoal de fruir a coisa resultante de um contrato de arrendamento (TEDH, 24 de junho de 2003, Stretch c. Reino‑Unido, CE:ECHR:2003:0624JUD004427798, § 35).

( 119 ) A este respeito, sublinho que em numerosos ordenamentos jurídicos nacionais a cessão do direito de usufruto está excluída por lei, ou no mínimo sujeita ao acordo do proprietário. Além disso, enquanto servidão pessoal, o usufruto é, na melhor das hipóteses, vitalício, pelo que não é transmissível por morte aos herdeiros do usufrutuário, antes regressando ao seu proprietário. V. Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Goed Wonen (C‑326/99, EU:C:2001:115, n.o 56).

( 120 ) V., por analogia, Acórdão de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich (C‑283/11, EU:C:2013:28, n.o 35). Por outras palavras, a circunstância de o usufruto não poder ser cedido pelo usufrutuário a terceiros não o transforma num direito extrapatrimonial destituído de valor quantificável.

( 121 ) V. Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Goed Wonen (C‑326/99, EU:C:2001:115, n.o 56).

( 122 ) V. artigo 1.o do Decreto n.o 88 de 15 de junho de 2001 que regulamenta a Lei n.o XCV de 1995 sobre as divisas.

( 123 ) Os artigos 6:110 e 6:111 do novo Código Civil mantêm essa solução.

( 124 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 103. V., igualmente, TEDH, 29 de novembro de 1991, Pine Valley Developments Ltd e outros c. Irlanda, CE:ECHR:1991:1129JUD001274287, § 51, e TEDH, 22 de julho de, 2008, Köktepe c. Turquia, CE:ECHR:2008:0722JUD003578503, § 89: «o requerente adquiriu de boa‑fé o terreno controvertido em 1993, terreno esse que, até então, estava indiscutivelmente qualificado como terreno agrícola […] e que estava isento de qualquer inscrição restritiva no registo predial, que é o único que faz fé no ordenamento jurídico turco […]. A aquisição do terreno pelo requerente não padecia, portanto, de qualquer irregularidade suscetível de lhe ser oposta; se assim não fosse, a Direção‑Geral dos títulos e do cadastro não lhe teria entregue o título de propriedade devidamente emitido […]» (sublinhado por nós).

( 125 ) Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, da Lei do registo predial «até prova em contrário, presume‑se que um dado imobiliário inscrito no registo existe e que um dado imobiliário cancelado no registo não existe».

( 126 ) O artigo 3.o da Lei relativa ao registo predial, revogado com efeitos a partir de 15 de março de 2014 pelo artigo 12.o, alínea a) da Lei n.o CCIV de 2013 que modifica a [Lei relativa ao registo predial], previa até essa data que um direito só se constitui com a sua inscrição nesse registo e que qualquer modificação pressupõe uma nova inscrição.

( 127 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.os 109 e 110. V. igualmente TEDH, 23 de setembro de 2014, Valle Pierimpiè Società Agricola S.p.a. c. Itália, CE:ECHR:2014:0923JUD004615411, § 48 à 51.

( 128 ) V., nesse sentido, Acórdão SEGRO e Horváth, n.os 116, 117 e 121.

( 129 ) V. TEDH, 23 de setembro de 1982, Sporrong e Lönnroth c. Suécia, CE:ECHR:1982:0923JUD000715175, § 67, 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, § 37, e 12 de dezembro de 2002, Wittek c. Alemanha, CE:ECHR:2002:1212JUD003729097, § 41.

( 130 ) V., nesse sentido, TEDH, 23 de setembro de 1982, Sporrong e Lönnroth c. Suécia, CE:ECHR:1982:0923JUD000715275, § 62 e 63, bem como 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, § 40.

( 131 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 63.

( 132 ) O TEDH reconheceu assim como casos de «transferência de propriedade» e, portanto, de «privação» a obrigação, imposta a um particular, de ceder o seu imóvel a outro particular (v. TEDH, 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, 21 de fevereiro de 1990, Håkansson e Sturesson c. Suécia, CE:ECHR:1990:0221JUD001185585 bem como 10 de julho de 2014, Milhau c. França, CE:ECHR:2014:0710JUD000494411).

( 133 ) V., designadamente, TEDH, 23 de setembro de 1982, Sporrong e Lönnroth c. Suécia, CE:ECHR:1982:0923JUD000715175, § 69, TEDH, bem como 12 de dezembro de 2002, Wittek c. Alemanha, CE:ECHR:2002:1212JUD003729097, § 53.

( 134 ) V., designadamente, TEDH, 12 de dezembro de 2002, Wittek c. Alemanha, CE:ECHR:2002:1212JUD003729097, § 54.

( 135 ) V., designadamente, TEDH, 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, § 54. É de notar que o artigo 1.o du Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH não inclui qualquer referência a uma tal indemnização. Não obstante, conforme assinalado pelo TEDH nesse acórdão, a inexistência de uma obrigação de indemnizar tornaria a proteção do direito de propriedade «amplamente ilusória e ineficaz». Este órgão jurisdicional resolveu assim o silêncio da norma ao considerar que a necessidade de uma indemnização «decorre implicitamente do artigo 1.o do Protocolo n.o 1 considerado no seu conjunto» (TEDH, 8 de julho de 1986, Lithgow e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0708JUD000900680, § 109).

( 136 ) O artigo 1.o do Protocolo Adicional n.o 1 à CEDH não garante o direito a uma indemnização integral, já que objetivos legítimos de utilidade pública podem militar em favor de um reembolso inferior a todo o seu valor comercial. Além disso, o TEDH reconhece ao Estado, na matéria, um amplo poder de apreciação (TEDH, 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, § 54).

( 137 ) V., designadamente, TEDH, 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, § 54, 9 de dezembro de 1994, Les saints monastères c. Grécia, CE:ECHR:1994:1209JUD001309287, § 71, bem como 23 de novembro de 2000, ex‑Rei da Grécia e outros c. Grécia, CE:ECHR:2000:1123JUD002570194, § 89.

( 138 ) V., designadamente, TEDH, 21 de fevereiro de 1997, Guillemin c. França, CE:ECHR:1997:0221JUD001963292, § 54.

( 139 ) Com efeito, segundo penso, as condições (3) e (5) são consubstanciais. Uma medida que acarreta privação de propriedade não pode respeitar o conteúdo essencial do direito de propriedade se não previr, como contrapartida a essa expropriação, uma justa indemnização a pagar num prazo razoável — salvo ocorrência de circunstâncias excecionais.

( 140 ) V., nesse sentido, TEDH, 1 de dezembro de 2005, Păduraru c. Roménia, CE:ECHR:2005:1201JUD006325200, § 77.

( 141 ) V. artigo 5.o, n.o 13, da Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas.

( 142 ) V., nomeadamente, TEDH, 21 de fevereiro de 1986, James e outros c. Reino‑Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, § 46, TEDH, 22 de junho de 2004, Broniowski c. Polónia, CE:ECHR:2004:0622JUD003144396, § 149, bem como, TEDH, 14 de fevereiro de 2006, Lecarpentier e outro c. France, CE:ECHR:2006:0214JUD006784701, § 44.

( 143 ) V. a nota 26 das presentes conclusões.

( 144 ) V., por analogia, Acórdão de 13 de junho de 2017, Florescu e o. (C‑258/14, EU:C:2017:448, n.o 57).

( 145 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.os 92, 93, 106, 121 e 122.

( 146 ) Recordo que esse período transitório, inicialmente fixado em 20 anos, acabou por sofrer uma redução para quatro meses e 15 dias (v. n.os 24 e 25 das presentes conclusões).

( 147 ) Como referido nos n.os 29 e 62 das presentes conclusões, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) declarou, no seu Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, que essas formas de indemnização eram compatíveis com a lei fundamental húngara desde que o proprietário possa, por seu lado, beneficiar de uma indemnização do Estado.

( 148 ) Nos temos desta disposição «quando da extinção do usufruto, o usufrutuário pode exigir do proprietário, ao abrigo das disposições relativas ao enriquecimento sem causa, um reembolso correspondente ao aumento do valor do bem na sequência dos trabalhos extraordinários de recuperação ou reparação que realizou por sua conta».

( 149 ) Nos temos desta disposição «[s]e a responsabilidade pela impossibilidade de execução do contrato não puder ser imputada a nenhuma das partes, a contrapartida pecuniária pelo serviço prestado antes da cessão do contrato será objeto de uma compensação. Se a outra parte não tiver prestado o serviço correspondente à contrapartida pecuniária já paga, esta deverá ser reembolsada». Como a Comissão observa, é no mínimo curioso, atenta a argumentação da Hungria sobre a alegada invalidade ab initio dos contratos de usufruto em causa, que esta aqui invoque as regras de direito civil relativas à execução impossível de um contrato — teoricamente válido — e não as relativas à restitutio in integrum em caso de nulidade do contrato.

( 150 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 91.

( 151 ) V., nesse sentido, TEDH, 30 de maio de 2000, Carbonara e Ventura c. Itália, CE:ECHR:2000:0530JUD002463894, § 67, bem como 9 de outubro de 2003, Biozokat A.E. c. Grécia, CE:ECHR:2003:1009JUD006158200, § 29. V. igualmente Kjølbro, J.F., Den Europæiske Menneskerettighedskonvention: for praktikere, 4. udgave, p. 1230.

( 152 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 91.

( 153 ) V., por analogia, TEDH, 12 de junho de 2003, Lallement c. França, CE:ECHR:2003:0612JUD004604499, § 10.

( 154 ) V., por analogia, Acórdão SEGRO e Horváth, n.o 91. Quanto ao argumento da Hungria segundo o qual as pessoas privadas do seu direito de usufruto podiam continuar a fruir dos terrenos agrícolas em questão celebrando, por exemplo, um contrato de arrendamento rural com os proprietários das terras, basta observar, à semelhança da Comissão, que essa solução não oferece qualquer garantia aos primeiros, pois nada obriga os segundos a celebrar tal contrato.

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