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Document 62016CJ0558

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 1 de março de 2018.
    Processo instaurado por Doris Margret Lisette Mahnkopf.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Kammergericht Berlin.
    Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Sucessões e Certificado Sucessório Europeu — Âmbito de aplicação — Possibilidade de indicar a quota do cônjuge sobrevivo no Certificado Sucessório Europeu.
    Processo C-558/16.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2018:138

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

    1 de março de 2018 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Sucessões e Certificado Sucessório Europeu — Âmbito de aplicação — Possibilidade de indicar a quota do cônjuge sobrevivo no Certificado Sucessório Europeu»

    No processo C‑558/16,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha), por decisão de 25 de outubro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de novembro de 2016, no processo instaurado por

    Doris Margret Lisette Mahnkopf,

    sendo interveniente:

    Sven Mahnkopf,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

    composto por: M. Ilešič, presidente de secção, A. Rosas, C. Toader (relatora), A. Prechal e E. Jarašiūnas, juízes,

    advogado‑geral: M. Szpunar,

    secretário: K. Malacek, administrador,

    vistos os autos e após a audiência de 4 de outubro de 2017,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação do Governo alemão, por T. Henze e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, J. Van Holm e C. Pochet, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo helénico, por G. Papadaki e K. Karavasili, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo espanhol, por V. Ester Casas, na qualidade de agente,

    em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. Di Matteo, avvocato dello Stato,

    em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e M. Heller, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de dezembro de 2017,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 1.o, n.o 1, 67.o, n.o 1, e 68.o, alínea l), do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2012, L 201, p. 107).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo a um requerimento de elaboração de um Certificado Sucessório Europeu, instaurado por Doris Margret Lisette Mahnkopf na sequência do falecimento do seu marido, e relativo à sucessão deste.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    Regulamento n.o 650/2012

    3

    Os considerandos 7, 9, 11, 12 e 71 do Regulamento n.o 650/2012 têm a seguinte redação:

    «(7)

    É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça. No espaço europeu de justiça, os cidadãos devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessão. É necessário garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão.

    […]

    (9)

    O âmbito de aplicação do presente regulamento deverá abranger todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato.

    […]

    (11)

    O presente regulamento não deverá aplicar‑se a outros domínios do direito civil que não o direito sucessório. Por motivos de clareza, deverão ser explicitamente excluídas do âmbito de aplicação do presente regulamento algumas questões suscetíveis de serem entendidas como apresentando uma relação com matérias sucessórias.

    (12)

    Consequentemente, o presente regulamento não deverá ser aplicável a questões relacionadas com o regime de bens no casamento, incluindo as convenções antenupciais previstas nalguns sistemas jurídicos, na medida em que tais convenções não tratem de matérias sucessórias, nem a questões relacionadas com regimes de bens no âmbito de relações que se considere produzirem efeitos equiparados ao casamento. As autoridades que tratem de determinada sucessão ao abrigo do presente regulamento deverão, no entanto, em função da situação, ter em conta a liquidação de um eventual regime de bens no casamento ou regime de bens semelhante do falecido ao determinarem a herança do falecido e as quotas‑partes dos beneficiários.

    […]

    (71)

    O certificado deverá produzir os mesmos efeitos em todos os Estados‑Membros. Não deverá ser um título executivo em si mesmo, mas deverá ter força probatória e presumivelmente comprovar com precisão os elementos estabelecidos nos termos da lei aplicável à sucessão ou de qualquer outra lei aplicável a elementos especiais como a validade material de disposições por morte. […]»

    4

    Nos termos do artigo 1.o desse regulamento, com a epígrafe «Âmbito de aplicação»:

    «1.   O presente regulamento é aplicável às sucessões por morte. Não é aplicável às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

    2.   São excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento:

    […]

    d)

    As questões relacionadas com regimes matrimoniais e regimes patrimoniais no âmbito de relações que a lei aplicável considera produzirem efeitos comparáveis ao casamento;

    […]»

    5

    O artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do referido regulamento define o conceito de «sucessão» como abrangendo «qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento».

    6

    O artigo 21.o do mesmo regulamento, que prevê a regra geral relativa à lei aplicável à sucessão, enuncia, no seu n.o 1:

    «Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.»

    7

    O artigo 22.o do Regulamento n.o 650/2012, com a epígrafe «Escolha da lei», prevê, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

    «Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito.»

    8

    O artigo 23.o do regulamento, sob a epígrafe «Âmbito da lei aplicável», dispõe:

    «1.   A lei designada nos termos do artigo 21.o ou do artigo 22.o regula toda a sucessão.

    2.   Essa lei rege, nomeadamente:

    […]

    b)

    A determinação dos beneficiários, das respetivas quotas‑partes e das obrigações que lhes podem ser impostas pelo falecido, bem como a determinação dos outros direitos sucessórios, incluindo os direitos sucessórios do cônjuge ou parceiro sobrevivo;

    […]»

    9

    O capítulo VI do referido regulamento, intitulado «Certificado Sucessório Europeu», é composto pelos seus artigos 62.o a 73.o O artigo 62.o do Regulamento n.o 650/2012 estabelece:

    «1.   O presente regulamento cria um certificado sucessório europeu (a seguir designado “certificado”), que deve ser emitido para fins de utilização noutro Estado‑Membro e produzir os efeitos enunciados no artigo 69.o

    2.   O recurso ao certificado não é obrigatório.

    3.   O certificado não substitui os documentos internos utilizados para efeitos análogos nos Estados‑Membros. Todavia, uma vez emitido com vista a ser utilizado noutro Estado‑Membro, o certificado produz também os efeitos enunciados no artigo 69.o no Estado‑Membro cujas autoridades o emitiram por força do presente capítulo.»

    10

    O artigo 63.o deste regulamento, intitulado «Finalidade do certificado», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

    «1.   O certificado destina‑se a ser utilizado pelos herdeiros, pelos legatários que tenham direitos na sucessão […] que necessitem de invocar noutro Estado‑Membro a sua qualidade ou exercer os seus direitos de herdeiros ou legatários […]

    2.   O certificado pode ser utilizado, nomeadamente, para comprovar um ou mais dos seguintes elementos específicos:

    a)

    A qualidade e/ou direitos de cada herdeiro ou legatário, consoante o caso, mencionado no certificado e as respetivas quotas‑partes da herança;

    b)

    A atribuição de um bem ou bens determinados específicos que façam parte da herança ao herdeiro ou herdeiros ou ao legatário ou legatários, consoante o caso, mencionados no certificado;

    […]»

    11

    Nos termos do artigo 65.o, n.o 3, alínea d), do referido regulamento:

    «O pedido [de certificado] deve incluir as informações abaixo enunciadas, na medida em que sejam do conhecimento do requerente e em que a autoridade emissora delas necessite para poder atestar os elementos que o requerente pretende sejam atestados, e ser acompanhado de todos os documentos pertinentes, quer no original quer em cópias, que preencham as condições necessárias para comprovar a sua autenticidade, sem prejuízo do artigo 66.o, n.o 2:

    […]

    d)

    Dados relativos ao cônjuge ou parceiro do falecido e, eventualmente, ao(s) seu(s) ex‑cônjuge(s) ou ex‑parceiro(s): apelido (eventualmente apelido de solteiro), nome(s) próprio(s), sexo, local e data de nascimento, estado civil, nacionalidade, número de identificação (se disponível) e endereço;

    […]»

    12

    O artigo 67.o, n.o 1, do mesmo regulamento prevê:

    «A autoridade emissora deve emitir sem demora o certificado, segundo o procedimento previsto no presente capítulo, caso os elementos a atestar tenham sido estabelecidos nos termos da lei aplicável à sucessão ou de qualquer outra legislação aplicável a elementos específicos. Utilizará o formulário estabelecido de acordo com o procedimento consultivo a que se refere o artigo 81.o, n.o 2. […]»

    13

    O artigo 68.o do Regulamento n.o 650/2012, que rege o conteúdo do certificado, dispõe:

    «Tanto quanto seja necessário para a finalidade da emissão, o certificado inclui as seguintes informações:

    […]

    f)

    Dados relativos ao falecido: apelido (eventualmente, apelido de solteiro), nome(s) próprio(s), sexo, local e data de nascimento, estado civil, nacionalidade, número de identificação (se disponível), endereço à data do óbito e data e local do óbito;

    […]

    h)

    Informações sobre um eventual contrato matrimonial celebrado pelo falecido ou, se tal for o caso, sobre um contrato celebrado pelo falecido no contexto de uma relação considerada pela lei aplicável como tendo efeitos comparáveis ao casamento, e informações relativas ao regime matrimonial de bens ou regime de bens equivalente;

    […]

    l)

    A quota‑parte que cabe a cada herdeiro, bem como, se for caso disso, a lista dos bens e/ou direitos que cabem a um determinado herdeiro;

    […]»

    14

    O artigo 69.o desse regulamento, com a epígrafe «Efeitos do certificado», estabelece:

    «1.   O certificado produz efeitos em todos os Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer procedimento.

    2.   Presume‑se que o certificado comprova com exatidão os elementos estabelecidos nos termos da lei aplicável à sucessão ou de qualquer outra legislação aplicável a determinados elementos. Presume‑se que quem o certificado mencionar como herdeiro, legatário […] tem a qualidade mencionada no certificado e/ou é titular dos direitos ou dos poderes indicados no certificado e que não estão associadas a esses direitos ou poderes outras condições e/ou restrições para além das referidas no certificado.

    […]»

    Regulamento (UE) 2016/1103

    15

    Os considerandos 18 e 22 do Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 de junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais (JO 2016, L 183, p. 1), têm a seguinte redação:

    «(18)

    O âmbito de aplicação do presente regulamento deverá abarcar todos os aspetos de direito civil dos regimes matrimoniais, respeitantes tanto à gestão quotidiana dos bens dos cônjuges como à sua liquidação, decorrentes nomeadamente da separação do casal ou da morte de um dos seus membros. […]

    […]

    (22)

    Visto que já são reguladas pelo Regulamento (CE) n.o 4/2009 do Conselho[, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares (JO 2009, L 7, p.1)], as obrigações alimentares entre cônjuges deverão ser excluídas do âmbito de aplicação do presente regulamento, assim como as questões relativas à sucessão por morte de um cônjuge, pois já são abrangidas pelo Regulamento (UE) [n.o 650/2012].»

    16

    O artigo 1.o desse regulamento, com a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.o 2, alínea d):

    «São excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento:

    […]

    d)

    A sucessão por morte do cônjuge.»

    17

    O artigo 70.o do referido regulamento, com a epígrafe «Entrada em vigor», prevê, no seu n.o 2, segundo parágrafo, que só é aplicável a partir de 29 de janeiro de 2019, exceto no que respeita a determinadas disposições gerais e finais.

    Direito alemão

    18

    Nos termos do § 1371, n.o 1, do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil, a seguir «BGB»):

    «Caso a morte de um dos cônjuges ponha termo ao regime matrimonial de bens, a compensação por eventuais ganhos patrimoniais é concretizada através do aumento da quota hereditária do cônjuge sobrevivo em um quarto da herança; neste âmbito é irrelevante que os cônjuges tenham ou não obtido concretamente esses.»

    19

    O § 1931 do BGB prevê:

    «(1)

    Na qualidade de herdeiro legal, o cônjuge sobrevivo do de cujus tem direito a um quarto da herança em conjunto com a primeira classe de sucessíveis, e a metade da herança em conjunto com a segunda classe de sucessíveis ou avós. Caso tanto os avós como os descendentes dos avós ainda sejam vivos, o cônjuge tem também direito a receber metade da quota parte que seria atribuído aos descendentes nos termos do § 1926.

    […]

    (3)

    A disposição do § 1371 do BGB não é afetada.

    […]»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    20

    L. Mahnkopf faleceu em 29 de agosto de 2015. À data da morte, era casado com D. Mahnkopf. Os cônjuges, que possuíam a nacionalidade alemã, tinham residência habitual em Berlim (Alemanha). O de cujus, que não tinha feito disposições por morte, tinha como únicos herdeiros a sua mulher e o filho único do casal.

    21

    Os cônjuges estavam sujeitos ao regime legal da comunhão de adquiridos e não tinham celebrado convenção antenupcial. Além dos ativos que o de cujus possuía na Alemanha, a herança inclui igualmente metade na compropriedade de um bem imóvel na Suécia.

    22

    A pedido de D. Mahnkopf, o Amtsgericht Schöneberg (Tribunal de Primeira Instância de Schöneberg, Alemanha), o órgão jurisdicional competente para regular a sucessão de L. Mahnkopf, emitiu, em 30 de maio de 2016, um certificado sucessório nacional nos termos do qual o cônjuge sobrevivo e o descendente herdeiro herdavam cada um metade dos bens do de cujus, nos termos da devolução legal prevista pelo direito alemão. O órgão jurisdicional de reenvio expõe que a quota sucessória atribuída ao cônjuge sobrevivo resulta da aplicação do § 1931, n.o 1, do BGB, nos termos do qual à quota legal do cônjuge sobrevivo, que é de um quarto, acresce um quarto adicional quando os cônjuges vivam no regime de comunhão de adquiridos, como resulta do § 1371, n.o 1, do BGB.

    23

    Em 16 de junho de 2016, D. Mahnkopf pediu igualmente a um notário que lhe emitisse, em aplicação do Regulamento n.o 650/2012, um Certificado Sucessório Europeu que a nomeie e ao seu filho co‑herdeiros de metade da herança, cada um, em conformidade com a regra nacional da devolução legal. Pretendia utilizar o certificado sucessório para a transcrição do seu direito de propriedade do bem imóvel situado na Suécia. Esse notário transmitiu o pedido de D. Mahnkopf ao Amstgericht Schöneberg (Tribunal de Primeira Instância de Schöneberg).

    24

    Esse órgão jurisdicional indeferiu o pedido de Certificado Sucessório Europeu, pelo facto de a quota atribuída à esposa do de cujus resultar, no que se refere a um quarto da sucessão do de cujus, de um regime sucessório e, no que se refere a outro quarto da sucessão do de cujus, do regime matrimonial de bens previsto no § 1371, n.o 1, do BGB. Ora, a regra por força da qual este último quarto foi atribuído, que é relativa a um regime matrimonial de bens e não sucessório, não está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 650/2012.

    25

    D. Mahnkopf interpôs recurso dessa decisão para o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha). Nesse recurso completou igualmente o seu pedido inicial solicitando, a título subsidiário, que o Certificado Sucessório Europeu seja emitido com a referência aos seus direitos sucessórios resultantes, no que respeita a um quarto da sucessão do de cujus, da comunhão de adquiridos, a título de informação.

    26

    O órgão jurisdicional de reenvio expõe que a doutrina está dividida quanto à questão de saber se a regra enunciada no § 1371, n.o 1, do BGB é uma regra de direito sucessório ou uma regra relativa ao regime matrimonial de bens. Considera que, atendendo à sua finalidade, a saber, a repartição dos bens adquiridos quando a comunhão de bens chega ao fim por morte de um dos cônjuges, o § 1371, n.o 1, do BGB não é uma regra de sucessão «por morte», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012. Segundo aquele, a regra prevista nessa disposição deve ser sempre aplicável quando os efeitos do casamento, incluindo as questões do regime matrimonial de bens, são reguladas pelo direito alemão. Essa aplicação não estaria garantida se essa regra fosse qualificada de regra de direito sucessório, porque, em tal caso, o seu âmbito de aplicação estaria limitado às situações em que a sucessão é regulada pelo direito alemão, em conformidade com os artigos 21.o e 22.o do Regulamento n.o 650/2012.

    27

    O órgão jurisdicional de reenvio considera igualmente que, devido à falta de harmonização das disposições relativas aos regimes matrimoniais de bens na União, o aumento da quota sucessória legal do cônjuge sobrevivo, que resulta da aplicação de uma regra em matéria de regimes matrimoniais, no caso em apreço o § 1371, n.o 1, do BGB, não pode, regra geral, ser inscrito, mesmo a título puramente informativo, no Certificado Sucessório Europeu.

    28

    Todavia, considera que esse aumento podia ser indicado no Certificado Sucessório Europeu quando a lei sucessória aplicável, em conformidade com os artigos 21.o e 22.o do Regulamento n.o 650/2012, e a lei sobre o regime matrimonial de bens dos cônjuges sejam determinadas por aplicação do direito de um único Estado‑Membro, independentemente da norma de conflito aplicável. No caso em apreço, a lei aplicável à sucessão e a lei aplicável ao regime matrimonial de bens são determinadas exclusivamente nos termos do direito alemão.

    29

    A este respeito, esse órgão jurisdicional sustenta que os termos utilizados nos artigos 67.o, n.o 1, e 69.o, n.o 2, do Regulamento n.o 650/2012, em conformidade com os quais os elementos a atestar foram estabelecidos ao abrigo da lei aplicável à sucessão «ou de qualquer outra legislação aplicável a elementos específicos», permitem tal interpretação. Esta justificar‑se‑ia igualmente à luz do segundo período do considerando 12 do Regulamento n.o 650/2012 e da finalidade do Certificado Sucessório Europeu que visa simplificar e acelerar a execução transfronteiriça dos direitos sucessórios.

    30

    Nestas condições, o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Deve o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012 ser interpretado no sentido de que o âmbito de aplicação do regulamento (“sucessão por morte”) também abrange as disposições do direito nacional que, como o § 1371, n.o 1, do [BGB], regulam o regime matrimonial de bens após o falecimento de um cônjuge através do aumento da quota hereditária do outro cônjuge?

    2)

    Em caso de resposta negativa à primeira questão, devem os artigos 68.o, alínea l), e 67.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012 ser interpretados no sentido de que a quota‑parte que cabe ao cônjuge sobrevivo pode ser inteiramente incluída no Certificado Sucessório Europeu, ainda que a mesma resulte em parte de um aumento nos termos de uma disposição sobre um regime matrimonial de bens, como o § 1371, n.o 1, do BGB?

    Caso a resposta seja negativa, pode, no entanto, ser afirmativa a título excecional em relação a situações em que:

    a)

    o objetivo do certificado sucessório se limite a invocar direitos dos sucessores ao património do de cujus situado num determinado Estado‑Membro diferente, e

    b)

    a decisão em matéria de sucessões (artigos 4.o e 21.o do Regulamento n.o 650/2012) e as questões relativas ao regime matrimonial de bens devam ser apreciadas nos termos da mesma ordem jurídica — independentemente da norma de conflitos aplicável?

    3)

    Em caso de resposta negativa à primeira e […] segunda questões, deve o artigo 68.o, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012 ser interpretado no sentido de que a quota‑parte do cônjuge sobrevivo, aumentada nos termos de uma disposição sobre o regime matrimonial de bens, pode ser incluída no Certificado Sucessório Europeu, ainda que apenas a título informativo por causa desse aumento?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    31

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê, em caso de morte de um dos cônjuges, uma repartição fixa dos bens adquiridos através do aumento da quota sucessória do cônjuge sobrevivo está abrangida pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.

    32

    A título liminar, cumpre recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros a fim de determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme (Acórdão de 18 de outubro de 2016, Nikiforidis, C‑135/15, EU:C:2016:774, n.o 28 e jurisprudência referida), tendo em conta não só o seu teor mas também o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa (v., designadamente, Acórdão de 18 de maio de 2017, Hummel Holding, C‑617/15, EU:C:2017:390, n.o 22 e jurisprudência referida).

    33

    Segundo a sua redação, o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012 prevê que o mesmo é aplicável às sucessões por morte. O artigo 1.o, n.o 2, desse regulamento enumera de forma restritiva as matérias excluídas do âmbito de aplicação deste último, entre as quais figuram, na alínea d) dessa disposição, «a[s] questões relacionadas com regimes matrimoniais». O artigo 3.o, n.o 1, alínea a), do referido regulamento precisa que essas sucessões abrangem «qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento».

    34

    Resulta igualmente do considerando 9 do Regulamento n.o 650/2012 que o âmbito de aplicação do mesmo deverá abranger todas as questões de direito civil da sucessão por morte.

    35

    Quanto aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 650/2012, há que salientar que, segundo o seu considerando 7, este visa facilitar o bom funcionamento do mercado interno, suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que pretendam exercer os seus direitos decorrentes de uma sucessão transfronteiriça. Em especial, no espaço europeu de justiça, é necessário garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão.

    36

    Para este fim, o Regulamento n.o 650/2012 prevê a criação de um Certificado Sucessório Europeu que deve permitir a cada herdeiro, legatário ou a quem tenha direitos na sucessão mencionado nesse certificado demonstrar noutro Estado‑Membro a sua qualidade e os seus direitos sucessórios (v., neste sentido, Acórdão de 12 de outubro de 2017, Kubicka, C‑218/16, EU:C:2017:755, n.o 59).

    37

    No que diz respeito ao contexto da disposição em causa, resulta dos considerandos 11 e 12 do Regulamento n.o 650/2012 que este não deverá aplicar‑se a outros domínios do direito civil que não o direito sucessório e, em especial, a questões relacionadas com o regime de bens no casamento, incluindo as convenções antenupciais previstas nalguns sistemas jurídicos, na medida em que tais convenções não tratem de matérias sucessórias.

    38

    No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, em conformidade com o § 1371, n.o 1, do BGB, em caso de dissolução do regime da comunhão de adquiridos (Zugewinngemeinschaft), a quota legal do cônjuge sobrevivo na repartição dos bens adquiridos é acrescida de um quarto suplementar.

    39

    Nas suas observações, o Governo alemão sublinhou a este respeito que essa disposição do direito nacional relativa à liquidação de uma comunhão conjugal aplica‑se unicamente em caso de cessação do casamento por morte. Tem por objetivo repartir de forma fixa os bens adquiridos durante o casamento, compensando a situação de desvantagem que resulta da interrupção do regime legal da comunhão de adquiridos por morte de um cônjuge, evitando assim ter de determinar com precisão a composição e o valor do património no início e no fim do casamento.

    40

    Como salientou o advogado‑geral nos n.os 78 e 93 das suas conclusões, o § 1371, n.o 1, do BGB tem por objeto, segundo as informações de que o Tribunal de Justiça dispõe, não a partilha de elementos patrimoniais entre os cônjuges, mas a questão dos direitos do cônjuge sobrevivo quanto aos elementos já contabilizados na massa sucessória. Nestas condições, não se afigura que essa disposição tenha por finalidade principal a repartição dos elementos do património ou a liquidação do regime matrimonial, mas antes a determinação do quantum da quota sucessória a atribuir ao cônjuge sobrevivo relativamente aos demais herdeiros. Assim sendo, tal disposição respeita principalmente à sucessão do cônjuge falecido e não ao regime matrimonial. Por conseguinte, uma regra de direito nacional como a que está em causa no processo principal diz respeito a matéria sucessória para efeitos do Regulamento n.o 650/2012.

    41

    Por outro lado, esta interpretação não é rebatida pelo âmbito de aplicação do Regulamento 2016/1103. Com efeito, esse regulamento, ainda que adotado tendo em vista abranger, em conformidade com o seu considerando 18, todos os aspetos de direito civil dos regimes matrimoniais, respeitantes tanto à gestão quotidiana dos bens dos cônjuges como à sua liquidação, decorrentes nomeadamente da separação do casal ou da morte de um dos seus membros, exclui de forma expressa do seu âmbito de aplicação, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 2, alínea d), a «sucessão por morte do cônjuge».

    42

    Por último, como também salientou o advogado‑geral designadamente no n.o 102 das suas conclusões, a qualificação sucessória da quota atribuída ao cônjuge sobrevivo nos termos de uma disposição de direito nacional, como o § 1371, n.o 1, do BGB, permite incluir as informações relativas à referida quota no Certificado Sucessório Europeu, com todos os efeitos descritos no artigo 69.o do Regulamento n.o 650/2012. Segundo o artigo 69.o, n.o 1, desse regulamento, o Certificado Sucessório Europeu produz efeitos em todos os Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer procedimento. O n.o 2 desse artigo prevê que se presume que quem o certificado mencionar como legatário tem a qualidade e é titular dos direitos indicados no certificado e que não estão associadas a esses direitos ou poderes outras condições e/ou restrições para além das referidas nesse certificado (Acórdão de 12 de outubro de 2017, Kubicka, C‑218/16, EU:C:2017:755, n.o 60).

    43

    Por conseguinte, há que concluir que a realização dos objetivos do Certificado Sucessório Europeu seria consideravelmente entravada numa situação como a que está em causa no processo principal, se o referido certificado não incluir a informação completa relativa aos direitos do cônjuge sobrevivo respeitantes à massa sucessória.

    44

    Em face das considerações anteriores, há que responder à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê, em caso de morte de um dos cônjuges, uma repartição fixa dos bens adquiridos através do aumento da quota sucessória do cônjuge sobrevivo está abrangida pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.

    Quanto à segunda e terceira questões

    45

    Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda e terceira questões.

    Quanto às despesas

    46

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

     

    O artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, deve ser interpretado no sentido de que uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê, em caso de morte de um dos cônjuges, uma repartição fixa dos bens adquiridos através do aumento da quota sucessória do cônjuge sobrevivo está abrangida pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: alemão.

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