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Document 62013CC0088

Conclusões do advogado-geral Jääskinen apresentadas em 13 de Fevereiro de 2014.
Philippe Gruslin contra Beobank SA.
Pedido de decisão prejudicial: Cour de cassation - Bélgica.
Reenvio prejudicial - Liberdade de estabelecimento - Livre prestação de serviços - Organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM) - Diretiva 85/611/CEE - Artigo 45.º - Conceito de ‘pagamentos aos participantes’ - Entrega aos participantes de certificados de partes nominativas.
Processo C-88/13.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2014:79

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NIILO JÄÄSKINEN

apresentadas em 13 de fevereiro de 2014 ( 1 )

Processo C‑88/13

Philippe Gruslin

contra

Beobank SA/NV (ex‑Citibank Belgium SA)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (Bélgica)]

«Diretiva 85/611/CEE — Organismos de investimento coletivo de valores mobiliários (OICVM) — Meios disponíveis para efetuar «pagamentos aos participantes» no Estado‑Membro de comercialização nos termos do artigo 45.o da Diretiva 85/611 — Entrega de certificados de participação»

I – Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (Bélgica) diz respeito à interpretação do artigo 45.o da Diretiva 85/611/CEE, de 20 de dezembro de 1985, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM) ( 2 ). O órgão jurisdicional nacional pergunta se, nos casos em que as unidades de participação de um OICVM tenham sido comercializadas num Estado‑Membro diferente daquele onde aquele se encontra situado, o artigo 45.o da Diretiva 85/611 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «pagamentos aos participantes» abrange também a entrega de certificados de participação aos participantes (a seguir «certificados de participação») pelo representante do OICVM naquele outro Estado‑Membro (a seguir «representante»).

2.

Para se poder pronunciar no presente caso, o Tribunal de Justiça terá de examinar dois aspetos. Em primeiro lugar, o titular das unidades de participação (a seguir «participante») num unit trust que foram comercializadas num Estado‑Membro diferente daquele em que o unit trust está situado pode invocar o artigo 45.o da Diretiva 85/611 perante o representante designado pelo unit trust para assegurar a prestação dos serviços mencionados no artigo 45.o da Diretiva 85/611 no Estado‑Membro de comercialização quando não exista um vínculo contratual relacionado com o referido unit trust entre o representante e o participante? Em segundo lugar, o artigo 45.o da Diretiva 85/611 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «pagamentos aos participantes» também abrange a entrega de certificados de participação pelo referido representante aos participantes?

3.

A Diretiva 85/611 reflete uma matéria ainda pouco explorada pelo Tribunal de Justiça. Existe jurisprudência em que a diretiva assume alguma relevância, especialmente no domínio do imposto sobre o valor acrescentado, mas, tanto quanto é do meu conhecimento, o Tribunal de Justiça nunca foi chamado a pronunciar‑se sobre a interpretação das disposições substantivas da diretiva ( 3 ).

II – Quadro jurídico, matéria de facto e questões prejudiciais

A – Disposições aplicáveis

4.

Tendo sido uma das primeiras medidas comunitárias relacionadas com os mercados de valores mobiliários, a Diretiva 85/611 visa estabelecer um quadro comunitário para a prestação de serviços relacionados com OICVM assente nos princípios do controlo pelo país de origem e do reconhecimento mútuo sem, contudo, efetuar uma harmonização completa das disposições jurídicas nacionais aplicáveis aos OICVM ( 4 ). De acordo com um dos primeiros comentários à Diretiva 85/611, esta mostrava o caminho a seguir para concretizar o tão esperado mercado único no setor dos serviços financeiros ( 5 ).

5.

A abordagem da Diretiva 85/611 para a prestação transfronteiriça de serviços de OICVM é explicada no quinto considerando, que tem a seguinte redação: «[c]onsiderando que a aplicação destas regras comuns constitui garantia suficiente para permitir, aos organismos de investimento coletivo situados num Estado‑Membro, sem prejuízo das disposições aplicáveis em matéria de movimentos de capitais comercializarem as suas partes sociais noutros Estados‑Membros, sem que estes últimos possam submeter estes organismos ou as suas partes sociais seja a que disposição for, salvo as que, nestes Estados, não abrangem domínios regulados pela presente diretiva; que é conveniente, todavia, prever que, se um organismo de investimento coletivo comercializar as suas partes sociais num Estado‑Membro que não aquele onde está situado, deve tomar todas as medidas necessárias para que os participantes neste outro Estados‑Membros possam exercer facilmente os seus direitos financeiros e dispor das informações necessárias;» (o sublinhado é meu).

6.

A Diretiva 85/611 é aplicável aos fundos comuns de investimento geridos por sociedades de gestão, unit trusts (que estão incluídos nos «fundos comuns de investimento» para efeitos da Diretiva 85/611) e às sociedades de investimento (artigo 1.o, n.o 3) ( 6 ). Assume especial importância o facto de os OICVM serem simultaneamente definidos por referência ao seu objetivo, que consiste no investimento coletivo dos capitais obtidos junto do público em valores mobiliários e/ou noutros ativos financeiros líquidos com base no princípio da repartição dos riscos, e por referência ao seu princípio operacional fundamental, que se baseia na obrigação dos OICVM de readquirir ou reembolsar as partes sociais, a pedido dos seus detentores, a cargo dos ativos dos organismos em causa (artigo 1.o, n.o 2).

7.

Há duas disposições da Diretiva 85/611 que se revestem de particular importância para o caso em apreço. Nos termos do artigo 44.o, um OICVM que comercializa as suas partes sociais num outro Estado‑Membro deve respeitar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas em vigor nesse Estado que não sejam abrangidas pelo domínio regulado pela diretiva (n.o 1). No entanto, qualquer OICVM pode fazer publicidade às suas partes sociais no Estado‑Membro de comercialização. Deve então respeitar as disposições que regulamentam a publicidade nesse Estado (n.o 2).

8.

O artigo 45.o da Diretiva 85/611, a disposição mais importante neste reenvio prejudicial, dispõe que «[n]a hipótese referida no artigo 44.o, o OICVM deve tomar interalia, as medidas necessárias, no respeito das disposições legislativas, regulamentares e administrativas em vigor no Estado‑Membro de comercialização, para que os pagamentos aos participantes, a reaquisição ou o reembolso das partes sociais bem como a difusão das informações que o OICVM deve prestar, sejam assegurados nesse Estado‑Membro, aos participantes».

9.

Segundo o despacho de reenvio, o artigo 130.o da Lei belga de 20 de julho de 2004 relativa a certas formas de gestão coletiva de portfólios de investimento (anteriormente, Lei de 4 de dezembro de 1990 relativa às operações financeiras e aos mercados financeiros, artigo 138.o) ( 7 ) dispõe que o organismo de investimento deve designar um organismo que assegure a distribuição aos participantes, a compra e venda ou recompra das unidades de participação bem como a difusão das informações que incumbem ao organismo de investimento coletivo. O despacho de reenvio esclarece ainda que esta legislação transpõe a Diretiva 85/611.

B – Matéria de facto e processo principal

10.

Em janeiro de 1996, P. Gruslin, que tem domicílio na Malásia e residência na Bélgica e que é o recorrente no processo principal, investiu num fundo de investimento regulado pelo direito luxemburguês designado fundo Citiportfolios. O fundo Citiportfolios é gerido pela sociedade Citiportfolios e o banco depositário é o Citibank Luxembourg, ambos constituídos nos termos do direito luxemburguês.

11.

O prospeto do fundo Citiportfolios foi distribuído na Bélgica pelo Citibank Belgium, atualmente Beobank SA/NV (a seguir «Beobank»), o recorrido no processo principal. O Citibank Belgium foi designado pela Citiportfolios, em conformidade com o segundo parágrafo do artigo 138.o da Lei belga de 4 de dezembro de 1990 relativa às operações financeiras e aos mercados financeiros, para prestar os serviços referidos no artigo 45.o da Diretiva 85/611. De acordo com as observações escritas apresentadas por P. Gruslin, este obteve o prospeto no serviço Citigold do Citibank Belgium em Waterloo.

12.

No entanto, para realizar o investimento, P Gruslin procedeu a subscrição direta no Luxemburgo no Citibank Luxembourg. O Citibank Belgium não interveio na qualidade de entidade local de subscrição, não celebrou qualquer contrato ou outro acordo jurídico com o recorrente e não recebeu qualquer comissão naquela qualidade. Porém, realizou uma transferência bancária para o Citiportfolios com vista ao pagamento da subscrição.

13.

Em 9 de setembro de 1996, o Citibank Luxembourg deu por terminadas, com efeitos a partir 17 de setembro de 1996, todas as suas contas e relações comerciais com P. Gruslin e convidou‑o a retirar todos os fundos e valores existentes nas suas contas. O Citibank Luxembourg informou P. Gruslin de que, caso não lhe fornecesse instruções quanto às operações a efetuar para a venda das unidades de participação no fundo Citiportfolios, as mesmas seriam inscritas em seu nome no registo de unidades de participação da entidade emissora. Em 14 de outubro de 1996, não tendo recebido instruções do recorrente, o Citibank Luxembourg procedeu à referida inscrição.

14.

Em dezembro de 1996, P. Gruslin solicitou ao Citibank Belgium a entrega de todos os seus certificados de participação ao portador ( 8 ) para fazer prova da titularidade das unidades de participação no fundo Citiportfolios. O Citibank Belgium respondeu que, uma vez que as unidades de participação tinham sido adquiridas ao Citibank Luxembourg, não tinha qualquer registo das mesmas e informou‑o de que se deveria dirigir diretamente ao Citibank Luxembourg. Na audiência, porém, o Citibank Belgium afirmou que tinha transmitido o pedido de P. Gruslin ao Citibank Luxembourg.

15.

Uma vez que o Citibank Belgium não entregou os certificados de participação solicitados, P. Gruslin instaurou vários processos judiciais nos tribunais belgas, requerendo, inter alia, que o Citibank Belgium fosse condenado a entregar‑lhe os certificados de participação referidos no prospeto do Citiportfolios. P. Gruslin invocou, em apoio da sua pretensão, a Diretiva 85/611.

16.

Em 11 de janeiro de 2011, a Cour d’appel de Bruxelles negou provimento ao recurso, tendo considerado que não era possível dar como provada a existência de uma relação contratual entre P. Gruslin e o Citibank Belgium, nem responsabilidade extracontratual deste último em relação à distribuição do prospeto do fundo Citiportfolios. P. Gruslin recorreu desta decisão para a Cour de cassation belga.

C – Questão prejudicial e processo perante o Tribunal de Justiça

17.

A Cour de cassation decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão, a título prejudicial, ao Tribunal de Justiça da União Europeia:

«O artigo 45.o da Diretiva [85/611] deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «pagamentos aos participantes» também abrange a entrega aos participantes de certificados de participação nominativos?»

18.

Apresentaram observações escritas P. Gruslin, o Beobank, os Governos belga e checo e a Comissão. Participaram na audiência que teve lugar em 27 de novembro de 2013 representantes de P. Gruslin, do Beobank e da Comissão.

III – Análise

A – Admissibilidade da questão prejudicial

19.

Nas suas observações escritas, a Comissão manifestou dúvidas quanto à admissibilidade da questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional nacional com base no facto de o recorrente ter adquirido as unidades de participação no fundo diretamente no Estado‑Membro em que o OICVM estava situado, neste caso o Luxemburgo. A Comissão considera que a aplicabilidade do artigo 45.o da Diretiva 85/611 pode depender da aquisição das unidades de participação através do representante do OICVM situado no Estado‑Membro de comercialização. A Comissão perguntou se, na ausência de tal ligação, a questão submetida é admissível.

20.

Porém, na audiência, a Comissão adotou uma posição diferente, alegando que não é necessário que exista uma relação jurídica prévia entre o participante e o representante para que o cumprimento das obrigações estabelecidas no artigo 45.o da Diretiva 85/611 seja exigível.

21.

Importa recordar que, no processo previsto no artigo 267.o TFUE, compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional determinar a necessidade do reenvio prejudicial e a pertinência das questões por ele submetidas ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se quando as questões submetidas digam respeito à interpretação do direito da UE ( 9 ). Consequentemente, as questões sobre a interpretação do direito da UE submetidas por um órgão jurisdicional nacional gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se poderá recusar a responder a uma questão prejudicial quando for manifesto que a interpretação do direito da UE solicitada não tem qualquer relação com os factos ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto ou de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe foram submetidas ( 10 ).

22.

No presente processo, a questão prejudicial, que tem por objeto a interpretação de uma disposição do direito da UE (o artigo 45.o da Diretiva 85/611), está relacionada com os factos ou objeto do litígio no processo principal. Com efeito, o artigo 45.o da Diretiva 85/611 está integrado na secção VIII da diretiva, que tem por título «Disposições especiais aplicáveis aos OICVM que comercializem as suas partes sociais em Estados‑Membros que não aqueles em que estão situados». O fundo Citiportfolios estava situado no Luxemburgo e as suas unidades de participação foram comercializadas na Bélgica mediante distribuição do respetivo prospeto e brochuras pelo Citibank Belgium. Por conseguinte, não se pode excluir a pertinência da Diretiva 85/611 no caso em apreço.

23.

Consequentemente, entendo que a questão submetida a título prejudicial é admissível.

B – Análise

24.

Para responder à questão prejudicial, é necessário clarificar o âmbito de aplicação do artigo 45.o da Diretiva 85/611, à luz do quinto considerando. Antes de me debruçar sobre este ponto, existe um aspeto prévio que é fundamental para que o Tribunal de Justiça se possa pronunciar: a Diretiva 85/611 regula o modo pelo qual os participantes fazem prova da titularidade das unidades de participação num fundo perante o OICVM, o seu representante no Estado‑Membro em que as unidades de participação são comercializadas e perante terceiros?

1. Prova da titularidade de unidades de participação em fundos perante o OICVM e o seu representante

25.

O modo de registo e a prova da titularidade de unidades de participação assume evidentemente especial importância nas relações dos participantes com a sociedade de gestão, neste caso a sociedade de gestão do Luxemburgo Citiportfolios, e o banco depositário, neste caso o Citibank Luxembourg. Na ausência de tal prova, não é possível exercer os direitos de propriedade. A questão da prova da titularidade das unidades de participação também se coloca em relação aos representantes do fundo e em relação a terceiros, de um modo geral, para fins de transações, sempre que as unidades de participação tenham sido comercializadas em Estados‑Membros diferentes daquele em que o fundo está situado.

26.

Relativamente a este último aspeto, basta referir que a Diretiva 85/611 se baseia no princípio de que os participantes realizam o valor económico do seu investimento através da reaquisição ou reembolso das suas unidades de participação pelo OICVM. Consequentemente, a forma de determinar a titularidade das unidades de participação para efeitos de transações não é particularmente relevante, ainda que a Diretiva 85/611 não proíba, de modo algum, a emissão das unidades de participação ou dos certificados que as representam como instrumentos negociáveis suscetíveis de serem vendidos a terceiros.

27.

O representante do Beobank mencionou, na audiência, que a prova da titularidade de um participante pode ser efetuada de várias formas. Em certos casos, pode depender da inscrição do participante num registo de participantes no fundo; noutros, a titularidade pode ser provada pela posse de certificados ao portador transmissíveis, cuja exibição legitima o exercício dos direitos. No entanto, chamo a atenção para o facto de a prova da titularidade de unidades de participação em unit trusts mediante a exibição de certificados ao portador ser cada vez menos comum. A titularidade de unidades de participação num unit trust pode ser igualmente provada através de certificados nominativos, cuja transmissão não é oponível à sociedade de gestão, ou as unidades de participação podem ser desmaterializadas, o que significa que os prestadores dos serviços financeiros mantêm contas onde as unidades de participação são inscritas.

28.

É evidente que não se coloca qualquer problema se o participante tiver adquirido as unidades de participação num fundo situado num Estado‑Membro diferente daquele em que foram comercializadas, por intermédio do representante nesse Estado‑Membro, tal como referido no artigo 45.o da Diretiva 85/611 ( 11 ). Contudo, o mesmo já não será verdade se o participante não tiver procedido à subscrição das unidades de participação através do representante, mas sim diretamente junto da sociedade de gestão no Estado‑Membro em que o fundo está situado. É exatamente este o problema suscitado no caso em apreço, ou seja, o facto de P. Gruslin ter adquirido as unidades de participação ao Citibank Luxembourg e não ao Citibank Belgium.

29.

Entendo que o meio de prova da titularidade de unidades de participação num unit trust depende simultaneamente do regulamento do fundo, que, nos termos do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 85/611, tem de ser aprovado pelas autoridades competentes do Estado‑Membro em que está situado, e o direito nacional aplicável, que, no presente caso, é o direito luxemburguês. Esta matéria não foi harmonizada pelo direito da UE.

30.

Com efeito, do ponto 1.10 do esquema A do anexo I da Diretiva 85/611 resulta que esta questão tem de ser regulada pelo regulamento do fundo e pela legislação nacional. Se assim não fosse, os participantes não poderiam, na prática, exercer os seus direitos ao abrigo da Diretiva 85/611. Contudo, na minha opinião, não existe qualquer base para interpretar esta ou qualquer outra disposição da diretiva no sentido de estabelecer requisitos obrigatórios quanto aos meios de prova ou registo da titularidade de unidades de participação em unit trusts nos Estados‑Membros ( 12 ).

31.

Neste aspeto, não concordo com a Comissão, na medida em que o seu representante na audiência defendeu que a Diretiva 85/611 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de exigir a entrega de certificados de participação aos participantes para que estes possam fazer prova da sua titularidade perante os representantes das sociedades de gestão no Estado‑Membro de comercialização com as quais não têm qualquer relação jurídica anterior. Segundo a Comissão, esta exigência era necessária do ponto de vista da livre circulação de capitais.

32.

Na minha opinião, a expressão «títulos originais ou certificados representativos destes títulos; inscrição em registo ou em conta» no ponto 1.10 do esquema A no anexo I da Diretiva 85/611 identifica quatro métodos diferentes de provar a titularidade das unidades de participação. Os dois primeiros, ou seja, certificados ao portador ou nominativos, são relevantes para os sistemas que (ainda) utilizam valores mobiliários físicos, enquanto os dois últimos, ou seja, a inscrição num registo de participantes ou numa conta de valores mobiliários, são relevantes para um sistema desmaterializado.

33.

É inconcebível que, em 1985, o legislador comunitário tivesse a intenção de estabelecer a obrigatoriedade do uso de certificados de participação físicos, numa altura em que os Estados‑Membros estavam já a adotar sistemas totalmente desmaterializados de gestão dos valores mobiliários ( 13 ). Relembro que a legislação em que se baseia o sistema SICOVAM francês foi adotada em 1980 ( 14 ). Além disso, na década de 80, muitos sistemas nacionais de gestão e compensação de valores mobiliários recorriam às chamadas Centrais de Depósito de Títulos (frequentemente designadas por «CDT»), onde eram guardados os valores mobiliários físicos. Em regra, estes valores não eram fisicamente deslocados para liquidar as transações e a prova da titularidade era efetuada com base em inscrições em contas de valores mobiliários mantidas pelas instituições financeiras. Parece ser esta a situação relativamente aos certificados de participação ao portador de P. Gruslin, que representavam as suas unidades de participação antes da conversão em unidades nominativas.

34.

Também discordo dos argumentos apresentados pela Comissão no sentido de que o princípio da livre circulação de capitais exige que sejam fornecidos aos participantes certificados de participação e meios que lhes permitam provar a titularidade das unidades de participação em causa perante os prestadores de serviços financeiros em Estados‑Membros diferentes daquele em que o fundo está situado. Com efeito, graças aos modernos métodos digitalizados de negociação, compensação e registo da titularidade dos valores mobiliários, a livre circulação de capitais é mais fácil do que nunca, não havendo necessidade de recorrer a métodos obsoletos, dispendiosos e pouco seguros baseados em certificados físicos.

35.

A estes fatores acrescentaria também os progressos tecnológicos associados à Internet. Para além de tornar mais fácil o acesso transfronteiriço a informações financeiras, a Internet também facilitou os pagamentos e as operações de investimento transfronteiriços. Atualmente, é possível efetuar transferências bancárias internacionais com rapidez e facilidade, a baixo custo, através da Internet. Os argumentos da Comissão no que respeita à necessidade de certificados de participação (físicos) são contrariados por estes desenvolvimentos contemporâneos. Os serviços dos representantes locais de OICVM são agora menos importantes para os investidores do que eram na década de 80.

36.

Por conseguinte, cabe aos Estados‑Membros e a cada um dos OICVM decidir se a prova da titularidade das unidades de participação é efetuada por meio de certificados de participação ao portador, certificados de participação nominativos, inscrição num registo de participantes ou inscrição numa conta de valores mobiliários.

37.

O representante no Estado‑Membro de comercialização de um OICVM está legalmente obrigado e, na minha opinião, autorizado, a certificar‑se de que as pessoas com quem lida são efetivamente participantes. Por outras palavras, na ausência de um vínculo contratual relevante relacionado com o unit trust entre o participante e o representante, o primeiro terá de fazer prova da sua titularidade perante o segundo, recorrendo aos meios previstos, para este efeito, no regulamento do fundo e na legislação nacional aplicável. A sociedade de gestão não poderia certamente autorizar o seu representante local a efetuar pagamentos ao participante e a proceder ao reembolso ou à reaquisição das suas unidades de participação sem tal prova ou, em alternativa, sem um pedido do participante manifestando a sua vontade de que a sociedade de gestão autorize o representante local a efetuar esses pagamentos ( 15 ).

2. O âmbito de aplicação do artigo 45.o da Diretiva 85/611

38.

A aplicabilidade dos artigos 44.° e 45.° da Diretiva 85/611 depende de as unidades de participação no fundo terem sido comercializadas num Estado‑Membro diferente daquele em que o unit trust está situado.

39.

Entendo que, na aceção do artigo 44.o, n.o 1, da Diretiva 85/611, o termo «comercialização» significa que é possível proceder à subscrição ou aquisição das unidades de participação no Estado‑Membro de comercialização sem que os investidores tenham de tomar quaisquer medidas fora do território desse Estado‑Membro. Se a comercialização for bem sucedida e resultar na subscrição das unidades de participação, a sociedade de gestão tem de designar um representante local para agir em seu nome para os efeitos mencionados no artigo 45.o da Diretiva 85/611, e a quem os participantes possam recorrer. No caso em apreço, é facto assente que era este tipo de relação que existia entre o Citiportfolios (Luxemburgo) e o Citibank Belgium.

40.

Para compreender o âmbito de aplicação do artigo 45.o da Diretiva 85/611, é necessário analisar a função que esta disposição desempenha no esquema geral da diretiva, não esquecendo que esta tem por objetivo a livre prestação de serviços transfronteiriços nesse setor.

41.

Mais uma vez, é útil fazer referência ao comentário à diretiva publicado pela Comissão em 1988, no qual se afirma que, em qualquer caso, o Estado‑Membro onde o OICVM comercializa as suas unidades de participação nunca pode, em circunstância alguma, invocar a regra prevista no artigo 45.o para o obrigar a manter um representante legal no seu território, dado que isso corresponderia a fazer depender o direito de um OICVM de comercializar as suas unidades de participação num Estado‑Membro diferente daquele em que está situado da posse de um estabelecimento nesse Estado‑Membro, o que contrariaria o conceito de prestação de serviços consagrado no Tratado. Consequentemente, para evitar qualquer ambiguidade, o requisito constante da versão original da proposta da Comissão de que os OICVM devem dispor de serviço financeiro no Estado‑Membro em que comercializa as suas unidades de participação, ainda que seja geralmente admitido que um serviço financeiro é simplesmente um serviço administrativo e, ao contrário de um representante legal, não pode ser equiparado a um estabelecimento ( 16 ).

42.

Além disso, as áreas de responsabilidade do Estado‑Membro de acolhimento (como os meios para efetuar os pagamentos, o reembolso ou a reaquisição de unidades de participação de um OICVM nos termos do artigo 45.o da Diretiva 85/611) são rigorosamente limitadas para evitar obstáculos à livre prestação de serviços entre os Estados‑Membros. Consequentemente, entendo que o artigo 45.o da Diretiva 85/611 não pode ser objeto de uma interpretação extensiva.

43.

Chamo ainda a atenção para o facto de a Diretiva 85/611 definir meticulosamente os direitos de informação dos participantes. Nesta matéria, remeto, em especial, para a secção VI da Diretiva 85/611, que contém disposições sobre o prospeto, relatórios periódicos e outras informações.

44.

Porém, ao contrário do que alega o Governo belga, a emissão de certificados de participação, ainda que sejam certificados nominativos, não pode ser considerada como cumprimento de uma obrigação de informação nos termos da Diretiva 85/611. É um ato que pode ser exigido ou permitido pelo regulamento do fundo ou pela legislação nacional para estabelecer ou provar a titularidade das unidades de participação.

45.

Tal como salientou o Beobank na audiência, a secção VI da Diretiva 85/611 cria, entre outras, a obrigação de publicar um prospeto, um relatório anual e um relatório semestral, bem como de publicar regularmente o preço de emissão, venda, reaquisição ou reembolso das suas unidades de participação. Todas estas informações refletem o que o legislador comunitário considerou necessário para permitir a um investidor tomar uma decisão bem fundamentada de investimento ou até mesmo de desinvestimento. Por outro lado, a secção VI da Diretiva 85/611 não diz respeito à prova da titularidade das unidades de participação.

46.

No meu entender, o conceito de «pagamentos aos participantes» do artigo 45.o da Diretiva 85/611 não abrange a emissão ou a entrega de certificados de participação. Neste caso, o termo pagamento diz respeito ao cumprimento de uma obrigação pecuniária, tal como o pagamento de juros ou dividendos gerados pelas unidades de participação ou, em caso de reembolso ou reaquisição das unidades, das quantias devidas ao participante.

47.

Tal como explicou o Beobank na audiência, o representante no Estado‑Membro de comercialização limita‑se a prestar um serviço financeiro, podendo ser qualificado como o agente responsável pelos pagamentos, no sentido de que paga aos participantes locais as quantias que lhes são devidas a partir do fundo. Os representantes esperam primeiro ser pagos pelo fundo e só depois efetuam quaisquer pagamentos relacionados com as unidades de participação. Além disso, fornecem as informações que os participantes têm direito a receber, transmitem pedidos de reembolso ou reaquisição ao depositário do fundo e pagam o preço das unidades de participação ao participante, mas apenas depois de receberem do fundo.

48.

Por outras palavras, o artigo 45.o da Diretiva 85/611 não impõe quaisquer obrigações autónomas aos representantes responsáveis pelo desempenho das funções nele previstas, pelo menos sem a cooperação do fundo e, mais precisamente, da sociedade de gestão ou do depositário, consoante os casos. Qualquer outra interpretação entraria em conflito com o princípio de que existe um serviço financeiro transfronteiriço prestado pelo OICVM do Estado‑Membro em que esse organismo está situado ao Estado‑Membro de comercialização. Assim, não se pode exigir aos representantes locais que efetuem pagamentos aos participantes, que readquiram ou reembolsem as unidades de participação ou até mesmo que disponibilizem as informações que os OICVM estão obrigados a fornecer caso o fundo não o faça. Inevitavelmente, portanto, o representante mencionado no artigo 45.o não pode ser obrigado a emitir ou entregar certificados de participação.

49.

Em conclusão, é impossível inferir da expressão «pagamentos aos participantes» constante do artigo 45.o da Diretiva 85/611 a imposição, ao representante local de um OICVM no Estado‑Membro de comercialização, da obrigação de entregar certificados de participação aos participantes.

IV – Conclusão

50.

Por conseguinte, proponho que seja dada a seguinte resposta à questão prejudicial submetida pela Cour de Cassation (Bélgica);

«O artigo 45.o da Diretiva 85/611/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM), deve ser interpretado no sentido de que o conceito de ‘pagamentos aos participantes’ não abrange a entrega de certificados de participação nominativos aos participantes.»


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) JO 1985, L 375, p. 3; EE 06 F3 p. 38; conforme alterada (a seguir «Diretiva 85/611»). O anexo da Diretiva 85/611 foi alterado pela Diretiva 2001/107/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de janeiro de 2002 (JO 2002, L 41, p. 20), tendo então passado a designar‑se «anexo I». A Diretiva OICVM foi substituída pela Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM) (JO L 302, p. 32). O caso sub judice é regulado pela Diretiva 85/611 ratione temporis.

( 3 ) V., recentemente, no domínio do IVA, por exemplo, o acórdão de 7 de março de 2013, Wheels Common Investment Fund Trustees e o. (C‑424/11); acórdão de 7 de março de 2013, GfBK (C‑275/11). V., recentemente, no domínio da livre circulação de capitais, o acórdão de 7 de junho de 2012, VBV‑Vorsorgekasse (C‑39/11).

( 4 ) V. Towards a European Market for the Undertakings for Collective Investment in Transferable Securities. Commentary on the provisions of Council Directive 85/611/EEC of 20 December 1985. Comissão das Comunidades Europeias, Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias (1988) p. 118. No entanto, este comentário, que foi escrito por J. Vandamme, ex‑diretor da divisão «Bolsas de Valores e Mercados de Valores Mobiliários» da Direção‑Geral das Instituições Financeiras e Direito das Sociedades, não representa necessariamente a posição da Comissão.

( 5 ) Ibid., p. 119.

( 6 ) Mais tarde, os OICVM foram expressamente excluídos do âmbito de aplicação da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos financeiros, que altera as Diretivas 85/611/CEE e 93/6/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 93/22/CEE do Conselho (JO L 145, p. 1). Esta Diretiva estabeleceu um quadro jurídico completo para os serviços de investimento ao nível da UE. O artigo 2.o, n.o 1, alínea h), da referida diretiva dispõe que a presente «diretiva não se aplica [...] [a]os organismos de investimento coletivo e fundos de pensões, coordenados ou não a nível comunitário, bem como aos depositários e gestores desses organismos».

( 7 ) Loi du 20 juillet 2004 relative à certaines formes de gestion collective de portefeuilles d’investissement (Moniteur belge, 9 de março de 2005, p. 9632); Loi du 4 décembre 1990 relative aux opérations financières et aux marchés financiers (Moniteur belge, 22 de dezembro de 1990, p. 23800).

( 8 ) Segundo o representante do Beobank presente na audiência, as unidades de participação de P. Gruslin eram originalmente representadas por certificados ao portador, que se encontravam depositados, em nome do Citibank Luxembourg, no órgão depositário central. A titularidade de P. Gruslin baseava‑se na inscrição nesta conta de valores naquele banco. Em outubro de 1996, os certificados ao portador foram convertidos em unidades de participação nominativas, que foram inscritas no nome de P. Gruslin no registo do fundo.

( 9 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2013, ProRail (C‑332/11, n.o 30 e jurisprudência aí referida); acórdão de 5 de dezembro de 2013, Nordecon e Ramboll Eesti (C‑561/12, n.o 29 e jurisprudência aí referida).

( 10 ) Acórdão ProRail, já referido, n.o 31 e jurisprudência aí referida; acórdão de 11 de abril de 2013, Della Rocca (C‑290/12, n.o 29 e jurisprudência aí referida); acórdão Nordecon e Ramboll Eesti, já referido, n.o 30; acórdão de 12 de dezembro de 2013, SOA Nazionale Costruttori (C‑327/12, n.o 21); acórdão de 12 de dezembro de 2013, Carratù (C‑361/12, n.o 23 e jurisprudência aí referida).

( 11 ) Segundo a Comunicação interpretativa da Comissão intitulada «Poderes respetivos mantidos pelo Estado‑Membro de origem e o Estado‑Membro de acolhimento na comercialização de OICVM de acordo com a secção VIII da Diretiva OICVM», COM/2007/0112 final, p. 6, nota 12, a comercialização «faz parte da missão das sociedades de gestão de OICVM, bem como, na maioria dos casos, de intermediários locais que atuam na qualidade de terceiros distribuidores».

( 12 ) A Comunicação interpretativa da Comissão, ibidem, deixa claro que os domínios abrangidos pela Diretiva 85/611 são limitados e não contém qualquer indicação de que a prova da titularidade de unidades de participação em unit trusts é regulada por essa diretiva. Chamo ainda a atenção para o facto de esta matéria continuar por regular na Diretiva 2009/65. V., em especial, o seu capítulo XI, que corresponde à secção VIII da Diretiva 85/611.

( 13 ) Para uma descrição atual da situação dos sistemas de desmaterialização e imobilização de valores mobiliários na Europa na década de 80, v. o relatório da Comissão Estatal finlandesa para o desenvolvimento da gestão de valores mobiliários, de 1986 (Arvopaperikäsittelyn kehittämistoimikunnan mietintö, KM 1986:32, Helsínquia 1986) p. 51‑84.

( 14 ) A organização francesa Sivocam (Société interprofessionnelle pour la compensation des valeurs mobilières) começou a proceder à desmaterialização de valores mobiliários em 1982. Em 2001, no seguimento da fusão com organizações similares de outros Estados‑Membros, passou a designar‑se Euroclear France.

( 15 ) Na audiência, o Beobank afirmou que, quando recebeu o pedido de entrega dos certificados de participação apresentado por P. Gruslin, transmitiu esse pedido ao Citibank Luxembourg. Na minha opinião, o artigo 45.o da Diretiva 85/611 não impunha tal obrigação ao Citibank Belgium.

( 16 ) Vandamme, op. cit., p. 93.

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