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Document 62012CJ0241

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 12 de dezembro de 2013.
Shell Nederland Verkoopmaatschappij BV e Belgian Shell NV.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Rechtbank te Rotterdam.
Ambiente — Resíduos — Conceito — Diretiva 2006/12/CE — Transferências de resíduos — Informação das autoridades nacionais competentes — Regulamento (CE) n.° 259/93 — Existência de uma ação, de uma intenção ou de uma obrigação de se desfazer de uma substância ou de um objeto.
Processos apensos C‑241/12 e C‑242/12.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2013:821

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

12 de dezembro de 2013 ( *1 )

«Ambiente — Resíduos — Conceito — Diretiva 2006/12/CE — Transferências de resíduos — Informação das autoridades nacionais competentes — Regulamento (CE) n.o 259/93 — Existência de uma ação, de uma intenção ou de uma obrigação de se desfazer de uma substância ou de um objeto»

Nos processos apensos C‑241/12 e C‑242/12,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Rechtbank te Roterdam (Países Baixos), por decisões de 11 de maio de 2012, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 18 de maio de 2012, nos processos penais contra

Shell Nederland Verkoopmaatschappij BV (C‑241/12),

Belgian Shell NV (C‑242/12),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, K. Lenaerts, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da primeira secção, A. Borg Barthet (relator), E. Levits e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 6 de março de 2013,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Shell Nederland Verkoopmaatschappij BV e da Belgian Shell NV, por R. Fibbe e R. Laan, advocaten,

em representação do Governo neerlandês, por M. de Ree e C. Wissels, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por A. Alcover San Pedro, D. Düsterhaus e P.‑J. Loewenthal, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 18 de junho de 2013,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do conceito de «resíduo», na aceção do Regulamento (CEE) n.o 259/93 do Conselho, de 1 de fevereiro de 1993, relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade (JO L 30, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 2557/2001 da Comissão, de 28 de dezembro de 2001 (JO L 349, p. 1, a seguir «Regulamento n.o 259/93»), e do Regulamento (CE) n.o 1013/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 junho de 2006, relativo a transferências de resíduos (JO L 190, p. 1).

2

Esses pedidos foram apresentados no âmbito de dois processos penais instaurados contra, respetivamente, a Shell Nederland Verkoopmaatschappij BV e a Belgian Shell NV (a seguir, conjuntamente, «Shell»), em razão do transporte de um carregamento de gasóleo com muito baixo teor de enxofre involuntariamente misturado com éter metil‑t‑butílico (a seguir «carregamento em causa») da Bélgica para os Países Baixos.

Quadro jurídico

Regulamento n.o 259/93

3

O sexto, nono e décimo oitavo considerandos do Regulamento n.o 259/2003 enunciam:

«Considerando que é importante organizar a fiscalização e o controlo das transferências de resíduos de um modo que atenda à necessidade de preservar, proteger e melhorar a qualidade do ambiente;

[...]

Considerando que as transferências de resíduos devem ser previamente notificadas às autoridades competentes, para que estas sejam devidamente informadas do tipo, trajeto e eliminação ou valorização dos resíduos de modo a que essas autoridades possam tomar todas as medidas necessárias à proteção da saúde humana e do ambiente, incluindo a possibilidade de apresentar objeções fundamentadas à transferência;

[...]

Considerando que, em caso de transferência ilícita, a pessoa responsável por esse ato deve aceitar os resíduos de volta e/ou eliminá‑los ou valorizá‑los de forma alternativa e ecologicamente correta e que, se tal não fizer, deverão ser, consoante o caso, as próprias autoridades competentes de expedição ou de destino a intervir».

4

Nos termos do artigo 2.o do Regulamento n.o 259/93, há que entender por:

«[…]

a)

Resíduos, os resíduos conforme definidos na alínea a) do artigo 1.o da Diretiva 75/442/CEE [do Conselho, de 15 de julho de 1975, relativa aos resíduos (JO L 194, p. 39; EE 15 F1 p. 129)];

[...]

h)

Destinatário, a pessoa ou a empresa para a qual os resíduos são transferidos, quer para valorização quer para eliminação;

i)

Eliminação, a eliminação conforme definida na alínea e) do artigo 1.o da Diretiva 75/442/CEE;

[...]

k)

Valorização, o aproveitamento conforme definido na alínea f) do artigo 1.o da Diretiva 75/442/CEE».

5

O título II do Regulamento n.o 259/93, intitulado «Transferência de resíduos entre Estados‑Membros», inclui um capítulo A relativo ao processo aplicável às transferências de resíduos destinados a ser eliminados, o qual contém o artigo 3.o deste regulamento. O n.o 1 deste artigo dispõe:

«Quando o notificador tiver a intenção de transferir resíduos para eliminação de um Estado‑Membro para outro e/ou de os fazer transitar por um ou vários outros Estados‑Membros, e sem prejuízo do n.o 2 do artigo 25.o e do n.o 2 do artigo 26.o, enviará uma notificação à autoridade competente de destino e cópias às autoridades competentes de expedição e de trânsito e ao destinatário.»

6

Por força do artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, a transferência de resíduos só pode ser efetuada após receção, pelo notificador, da autorização da autoridade competente de destino.

7

O título II, capítulo B, do Regulamento n.o 259/93 é relativo ao procedimento aplicável às transferências de resíduos destinados a serem valorizados. O artigo 6.o deste regulamento, incluído nesse capítulo, dispõe no seu n.o 1:

«Quando o notificador tiver a intenção de transferir resíduos destinados a valorização enumerados no Anexo III de um Estado‑Membro para outro, ou de os fazer transitar por um ou vários outros Estados‑Membros, e sem prejuízo do n.o 2 do artigo 25.o e do n.o 2 do artigo 26.o, notificará a autoridade competente de destino e enviará cópias dessa notificação às autoridades competentes de expedição e de trânsito e ao destinatário.»

8

Nos termos do artigo 26.o, n.o 1, do referido regulamento:

«São consideradas ilícitas todas as transferências de resíduos:

a)

Efetuadas sem a notificação de todas as autoridades competentes interessadas, nos termos do presente regulamento;

ou

b)

Efetuadas sem a autorização das autoridades competentes interessadas, nos termos do presente regulamento;

[...]»

Regulamento n.o 1013/2006

9

Nos termos do artigo 2.o do Regulamento n.o 1013/2006, entende‑se por «‘[r]esíduos’, os resíduos definidos na alínea a) do n.o 1 do artigo 1.o da Diretiva 2006/12/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2006, relativa aos resíduos (JO L 114, p. 9)]».

10

O artigo 61.o, n.o 1, deste regulamento prevê:

«O Regulamento (CEE) n.o 259/93 e a Decisão 94/774/CE são revogados com efeitos a partir de 12 de julho de 2007.»

11

O artigo 64.o, n.o 1, do referido regulamento dispõe:

«O presente regulamento entra em vigor três dias após a data da sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia.

1. É aplicável a partir de 12 de julho de 2007.»

Diretiva 2006/12

12

Os considerandos 2 a 4 e 6 da Diretiva 2006/12 enunciam:

«(2)

Qualquer regulamentação em matéria de gestão dos resíduos deverá ter como objetivo essencial a proteção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e depósito dos resíduos.

(3)

Para tornar mais eficaz a gestão dos resíduos no âmbito da Comunidade, é necessário dispor de uma terminologia comum e de uma definição de resíduos.

(4)

Sem prejuízo de exceções determinadas, deverá ser aplicada uma regulamentação eficaz e coerente da eliminação e da valorização dos resíduos aos bens móveis de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer.

[...]

(6)

Para alcançar um nível elevado de defesa do ambiente, é necessário que os Estados‑Membros […] zel[em] pela eliminação e valorização dos resíduos [...]»

13

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«1.   Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a)

‘Resíduo’: quaisquer substâncias ou objetos abrangidos pelas categorias fixadas no anexo I de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer;

b)

‘Produtor’: qualquer pessoa cuja atividade produza resíduos (produtor inicial) e/ou qualquer pessoa que efetue operações de pré‑tratamento, de mistura ou outras, que conduzam a uma alteração da natureza ou da composição desses resíduos;

c)

‘Detentor’: o produtor dos resíduos ou a pessoa singular ou coletiva que tem os resíduos na sua posse;

[...]

e)

‘Eliminação’: qualquer das operações previstas no anexo II A;

f)

‘Valorização’: qualquer das operações previstas no anexo II B;

[...]

2.   Para efeitos do disposto na alínea a) do n.o 1, a Comissão, nos termos do n.o 3 do artigo 18.o, elaborará uma lista dos resíduos pertencentes às categorias constantes do anexo I. Essa lista será reanalisada periodicamente e, se necessário, revista de acordo com o mesmo procedimento.»

14

O artigo 4.o da referida diretiva prevê:

«1.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para garantir que os resíduos sejam valorizados ou eliminados sem pôr em perigo a saúde humana e sem utilizar processos ou métodos suscetíveis de agredir o ambiente [...]

2.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para proibir o abandono, a descarga e a eliminação não controlada de resíduos.»

15

Nos termos do artigo 8.o da mesma diretiva:

«Os Estados‑Membros tomarão as disposições necessárias para que qualquer detentor de resíduos:

a)

Confie a sua manipulação a um serviço de recolha privado ou público ou a uma empresa que efetue as operações referidas no anexo II A ou II B,

ou

b)

Proceda ele próprio à respetiva valorização ou eliminação, em conformidade com o disposto na presente diretiva.»

16

O artigo 20.o da Diretiva 2006/12 prevê:

«A Diretiva 75/442/CEE é revogada, sem prejuízo das obrigações dos Estados‑Membros no que respeita aos prazos de transposição para o direito interno indicados na parte B do anexo III.

As remissões para a diretiva devem entender‑se como sendo feitas para a presente diretiva e ler‑se nos termos do quadro de correspondência constante do anexo IV.»

17

Em conformidade com o seu artigo 21.o, a Diretiva 2006/12 entrou em vigor em 17 de maio de 2006.

18

O anexo I desta diretiva enumera as seguintes categorias de resíduos:

«[...]

Q2

Produtos que não obedeçam às normas

[...]

Q4

Matérias acidentalmente derramadas, perdidas ou que sofreram qualquer outro incidente, incluindo quaisquer matérias, equipamentos, etc., contaminados na sequência do incidente em causa

[...]

Q7

Substâncias que se tornaram impróprias para utilização (por exemplo, ácidos contaminados, solventes contaminados, sais de têmpera esgotados, etc.)

[...]

Q14

Produtos que não tenham ou deixaram de ter utilidade para o detentor (por exemplo, materiais agrícolas, domésticos, de escritório, de lojas, de oficinas, etc., postos de parte).

[...]

Q16

Qualquer substância, matéria ou produto que não esteja abrangido pelas categorias acima referidas».

19

O anexo II B da referida diretiva inclui a seguinte lista das operações de valorização:

«R 1

Utilização principal como combustível ou outros meios de produção de energia.

R 2

Recuperação/regeneração de solvente.

R 3

Reciclagem/recuperação de compostos orgânicos que não são utilizados como solventes (incluindo as operações de compostagem e outras transformações biológicas).

R 4

Reciclagem/recuperação de metais e de ligas.

R 5

Reciclagem/recuperação de outras matérias inorgânicas.

R 6

Regeneração de ácidos ou de bases.

R 7

Recuperação de produtos utilizados na luta contra a poluição.

R 8

Recuperação de componentes de catalisadores.

R 9

Refinação de óleos e outras reutilizações de óleos.

R 10

Tratamento no solo em benefício da agricultura ou para melhorar o ambiente.

R 11

Utilização de resíduos obtidos em virtude das operações enumeradas de R 1 a R 10.

R 12

Troca de resíduos com vista a submetê‑los a uma das operações enumeradas de R 1 a R 11.

R 13

Acumulação de resíduos destinados a uma das operações enumeradas de R 1 a R 12 (com exclusão do armazenamento temporário, antes da recolha, no local onde esta é efetuada)».

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

20

Em 3 de setembro de 2006, a Shell procedeu, nos Países Baixos, ao carregamento de gasóleo com baixo teor de enxofre (a seguir «gasóleo TBTS») para um navio‑cisterna para posterior entrega a um cliente com sede na Bélgica (a seguir «cliente belga»).

21

Quando o carregamento em causa foi entregue a esse cliente, verificou‑se que, no momento do carregamento, os tanques desse navio‑cisterna continham resíduos de éter metil‑t‑butílico, com os quais o gasóleo TBTS se misturou.

22

Sendo o ponto de inflamação da mistura demasiado baixo para revenda como combustível para motores diesel em conformidade com o seu destino inicial, e não podendo o destinatário armazenar a mistura tendo em conta a sua licença ambiental, este restituiu o carregamento à Shell, a qual o transportou para os Países Baixos.

23

Perante o Rechtbank te Rotterdam, o Ministério Público sustenta que, no momento do seu transporte da Bélgica para os Países Baixos, o produto em questão constituía um resíduo e que, não tendo cumprido o procedimento de notificação previsto no artigo 15.o do Regulamento n.o 259/93, a Shell se tornou culpada de tráfico ilegal, na aceção do artigo 26.o, n.o 1, deste regulamento.

24

A Shell alega, pelo contrário, que o carregamento em causa não pode ser qualificado de resíduo.

25

Considerando que a resolução do litígio que lhe foi submetido depende da interpretação do conceito de «resíduo», na aceção dos Regulamentos n.os 259/93 e 1013/2006, o Rechtbank te Rotterdam decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Um carregamento de diesel deve ser [qualificado de] resíduo, na aceção dos Regulamentos n.o 259/93 e n.o 1013/2006, nas circunstâncias seguintes:

o carregamento consiste em [gasóleo TBTS], involuntariamente misturado com éter metil‑t‑butílico […];

depois de entregue ao comprador, verificou‑se que o produto, devido à mistura a que foi sujeito, não correspondia às especificações acordadas entre o vendedor e o comprador (produto ‘off spec’);

após reclamação do comprador, o carregamento, ao abrigo das cláusulas do contrato, é devolvido ao vendedor, que devolve o preço ao comprador;

o vendedor tem a intenção de introduzir o produto novamente no mercado, eventualmente misturando‑o com outro produto[?]

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a)

Nos factos descritos no número anterior pode determinar‑se um momento a partir do qual o produto passou a ser resíduo?

b)

O produto deixa de ser resíduo nalgum momento entre a entrega ao comprador e o momento em que foi de novo misturado pelo vendedor ou em seu nome e, se sim, em que momento?

3)

É relevante para a resposta à primeira questão:

que o produto possa continuar a ser utilizado da mesma forma como carburante tal como o [gasóleo TBTS], mas tenha deixado de cumprir os requisitos de segurança, devido ao seu ponto de inflamação ser mais baixo;

que o comprador não possa obter uma autorização ambiental para armazenar o produto resultante de uma nova mistura efetuada pelo vendedor;

que o produto não possa ser utilizado pelo comprador para a finalidade prevista no contrato: a venda como combustível diesel nas bombas;

que a vontade do comprador fosse ou não de devolver o produto ao vendedor nos termos do contrato;

que a vontade do vendedor fosse de facto no sentido de aceitar a devolução do produto com o objetivo de o reprocessar, misturando‑o de novo, e de o colocar novamente no mercado;

que o produto possa ou não ser transformado, seja na composição inicialmente prevista, seja num produto comercializável por um preço que se aproxime do valor de mercado original do carregamento de [gasóleo TBTS];

que o processo de transformação seja um processo de produção usual;

que o valor de mercado do produto no estado em que se encontrava no momento em que foi devolvido ao vendedor seja muito próximo do preço de um produto que corresponda às especificações acordadas;

que o produto devolvido ao vendedor no estado em que se encontrava no momento em que foi devolvido possa ser vendido no mercado sem ser sujeito a processamento;

que o comércio de produtos como o do carregamento em causa seja habitual e não seja considerado comércio de resíduos?»

26

Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 2 de julho de 2012, os processos C‑241/12 e C‑242/12 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

Quanto às questões prejudiciais

27

Com as suas questões prejudiciais, que importa examinar em conjunto, o Rechtbank te Rotterdam pergunta, no essencial, se deve ser qualificado de resíduo, na aceção dos Regulamentos n.os 259/93 e 1013/2006, um carregamento de gasóleo que, no momento do seu carregamento para um navio‑cisterna, foi acidentalmente misturado com outra substância, quando, após entrega ao comprador, se revelou que aquele não cumpre as especificações contratuais nem as exigências em matéria de segurança em razão do seu ponto de inflamação demasiado baixo, e que, devido à sua nova composição, não podia ser armazenado pelo comprador tendo em conta a sua licença ambiental nem por este vendido nas estações de serviço como combustível para motores diesel em conformidade com a sua finalidade, de modo que, mediante reclamação do comprador, foi restituído ao vendedor, que o tenciona repor no mercado após o ter misturado com outro produto.

28

Desde logo, importa referir que o Regulamento n.o 1013/2006, cuja interpretação é solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é aplicável ratione temporis aos litígios nos processos principais, uma vez que, como resulta dos autos, o carregamento em causa foi embarcado no navio com destino aos Países Baixos em setembro de 2006.

29

Com efeito, basta referir a este propósito que, em conformidade com o artigo 64.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1013/2006, este último passou a ser aplicável a partir de 12 de julho de 2007, data na qual, por outro lado, e como o seu artigo 61.o, n.o 1, prevê, foi por si revogado o Regulamento n.o 259/93.

30

Por conseguinte, há que examinar as questões prejudiciais à luz das disposições pertinentes do Regulamento n.o 259/93.

31

Como resulta do seu sexto considerando, o Regulamento n.o 259/93 tem por objetivo organizar a fiscalização e o controlo das transferências de resíduos de um modo que atenda à necessidade de preservar, proteger e melhorar a qualidade do ambiente.

32

Em especial, resulta dos artigos 3.°, n.o 1, e 6.°, n.o 1, do Regulamento n.o 259/93, lidos em conjugação com o nono considerando deste regulamento, que as transferências de um Estado‑Membro para outro e/ou o trânsito por um ou vários Estados‑Membros de resíduos destinados a serem eliminados ou valorizados devem ser objeto de uma notificação prévia às autoridades competentes, de modo a lhes permitir tomar as medidas necessárias para a proteção da saúde humana e do ambiente.

33

Nesse contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o carregamento em causa se insere no conceito de «resíduo», na aceção desse regulamento, a fim de determinar se, em aplicação das referidas disposições, a Shell era ou não obrigada a informar as autoridades neerlandesas da transferência desse carregamento da Bélgica para os Países Baixos.

34

Nos termos do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 259/93, lido em conjugação com o artigo 20.o da Diretiva 2006/12, devem ser entendidos como «resíduos» as substâncias ou objetos definidos no artigo 1.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, a saber, «quaisquer substâncias ou objetos abrangidos pelas categorias fixadas no anexo I [da referida diretiva] de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer».

35

Tendo em conta a categoria residual Q16, que figura no anexo I da Diretiva 2006/12, categoria que engloba «[q]ualquer substância, matéria ou produto que não esteja abrangido pelas categorias acima referidas», a lista das categorias de resíduos contida nesse anexo I tem principalmente caráter ilustrativo. O mesmo se diga relativamente à lista dos resíduos que pertencem às categorias enumeradas no referido anexo I estabelecida pela Comissão em aplicação do artigo 1.o, n.o 2, dessa diretiva.

36

Não deixa de ser verdade que o facto de uma substância ou objeto se inserir numa ou várias dessas categorias de resíduos, exceto a categoria Q16, constitui um primeiro indício a favor da sua qualificação de «resíduo», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12.

37

No entanto, em conformidade com uma jurisprudência constante, a qualificação de «resíduo» resulta, antes de mais, do comportamento do detentor e do significado da expressão «se desfazer» (v., neste sentido, acórdãos de 24 de junho de 2008, Commune de Mesquer, C-188/07, Colet., p. I-4501, n.o 53, e de 18 de dezembro de 2007, Comissão/Itália, C-263/05, Colet., p. I-11745, n.o 32).

38

Quanto à expressão «se desfazer», decorre igualmente dessa jurisprudência que essa expressão deve ser interpretada à luz do objetivo da Diretiva 2006/12, o qual, nos termos do considerando 2 da referida diretiva, consiste na proteção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, do transporte, do tratamento, do armazenamento e do depósito dos resíduos, bem como à luz do artigo 191.o, n.o 2, TFUE, o qual dispõe que a política da União Europeia no domínio do ambiente visa um elevado nível de proteção e se baseia, designadamente, nos princípios da precaução e da ação preventiva. Daqui decorre que os termos «se desfazer», e portanto o conceito de «resíduo», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12, não podem ser interpretados de modo restritivo (v., neste sentido, acórdão Commune de Mesquer, já referido, n.os 38 e 39).

39

Resulta das disposições da Diretiva 2006/12 que os termos «se desfazer» englobam simultaneamente a «eliminação» e a «valorização» de uma substância ou de um objeto, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alíneas e) e f), dessa diretiva (v., nesse sentido, acórdão de 18 de dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonie, C-129/96, Colet., p. I-7411, n.o 27).

40

Mais especificamente, a existência de um «resíduo», na aceção da Diretiva 2006/12, deve ser verificada à luz de todas as circunstâncias, tendo em conta o objetivo dessa diretiva e desde que isso não prejudique a eficácia desta (v. acórdãos de 15 de junho de 2000, ARCO Chemie Nederland e o., C-418/97 e C-419/97, Colet., p. I-4475, n.os 73, 88 e 97; de 18 de abril de 2002, Palin Granit e Vehmassalon kansanterveystyön kuntayhtymän hallitus, C-9/00, Colet., p. I-3533, n.o 24; e Comissão /Itália, já referido, n.o 41).

41

Certas circunstâncias podem constituir indícios da existência de uma ação, de uma intenção ou de uma obrigação de se desfazer de uma substância ou de um objeto, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12.

42

Em primeiro lugar, importa prestar uma atenção especial à circunstância de o objeto ou da substância em questão não ter ou ter deixado de ter utilidade para o seu detentor, de modo a constituir um encargo do qual este se procura desfazer (v., neste sentido, acórdão Palin Granit e Vehmassalon kansanterveystyön kuntayhtymän hallitus, já referido, n.o 37). Com efeito, sendo esse o caso, existe o risco de ver o detentor desfazer‑se do objeto ou da substância na sua posse de uma forma suscetível de causar prejuízo ao ambiente, designadamente abandonando‑o, rejeitando‑o ou eliminando‑o de modo descontrolado. Inserindo‑se no conceito de «resíduo», na aceção da Diretiva 2006/12, esse objeto ou essa substância está sujeito às disposições desta diretiva, o que implica que, em conformidade com o artigo 4.o da mesma diretiva, a sua valorização ou a sua eliminação deverá ser efetuada de modo a não ser posta em perigo a saúde humana e sem que sejam utilizados processos ou métodos suscetíveis de causar prejuízo ao ambiente.

43

No que diz respeito a uma eventual «obrigação de se desfazer» do carregamento em causa, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12, há, desde logo, que observar que não existe, a priori, nenhuma obrigação absoluta de eliminar este carregamento, a partir do momento em que não consista numa substância proibida ou ilegal ou seja composto por matérias de risco especificadas que o detentor esteja obrigado a eliminar (v., por analogia, acórdão de 1 de março de 2007, KVZ retec, C-176/05, Colet., p. I-1721, n.o 59). Com efeito, como resulta da decisão de reenvio, o referido carregamento podia ser vendido no mercado, sem ser objeto de tratamento, no estado em que se encontrava no momento da sua restituição à Shell.

44

Porém, nas suas observações escritas, a Comissão alegou que, uma vez que, por um lado, o carregamento em causa era impróprio para o consumo ao qual o cliente belga o destinava e, por outro, este último não estava autorizado a armazená‑lo, devido ao seu ponto de inflamação demasiado baixo, o mesmo representava, para esse cliente, um encargo do qual este tinha a intenção, ou mesmo a obrigação, de se desfazer.

45

Todavia, essas circunstâncias não permitem, por si só, concluir que este carregamento constituía um «resíduo», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12. Com efeito, importa antes de tal verificar se, com a devolução do referido carregamento à Shell, devido a este não cumprir as exigências contratuais, o cliente belga efetivamente se «[desfez]» deste, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12.

46

A este respeito, reveste uma importância especial a circunstância de o cliente belga ter devolvido à Shell o gasóleo TBTS não conforme, com vista a obter o seu reembolso, e isto ao abrigo do contrato de venda. Ora, tendo agido assim, não se pode considerar que esse cliente tenha pretendido que o carregamento em causa fosse sujeito a uma operação de eliminação ou de valorização e, portanto, não se «[desfez]» do mesmo, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/12. Além disso, importa acrescentar que, em circunstâncias como as dos processos principais, é fraco o risco de ver o detentor desfazer‑se desse carregamento de forma suscetível de causar um prejuízo ao ambiente. Por maioria de razão, o mesmo se diga quando, como no presente caso, a substância ou o objeto em causa tenham um valor comercial não negligenciável.

47

Nestas condições, resta determinar se a Shell teve ou não a intenção de «se desfazer» do carregamento em causa, no momento em que se revelou a sua não conformidade. Com efeito, tal intenção não pode ser imputada à Shell antes desse momento, na medida em que esta última não estava então ciente do facto de que detinha uma substância não conforme com os termos do contrato celebrado com o cliente belga.

48

A este respeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, ao qual incumbe verificar se o detentor do objeto ou da substância em questão tinha efetivamente a intenção de se «desfazer» da mesma, ter em conta todas as circunstâncias do caso em apreço, velando pelo respeito do objetivo visado pela Diretiva 2006/12, o qual consiste em assegurar que as operações de valorização e de eliminação serão executadas sem pôr em perigo a saúde humana e sem que sejam utilizados processos ou métodos suscetíveis de causar prejuízo ao ambiente.

49

Relativamente às circunstâncias, mencionadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo as quais, por um lado, o carregamento em causa podia ser vendido no mercado sem ser objeto de tratamento e no estado em que se encontrava no momento da sua restituição à Shell pelo cliente belga e, por outro, o valor comercial do carregamento em causa correspondia muito aproximadamente ao de um produto que satisfizesse as especificações convencionadas, importa sublinhar que, apesar de tenderem mais a refutar a ideia segundo a qual esse carregamento representava um encargo do qual a Shell se pretendia «desfazer», essas circunstâncias não podem assumir um caráter determinante, uma vez que não revelam qual era a intenção real da Shell.

50

De resto, há que recordar a este propósito que, por força de uma jurisprudência constante, o conceito de «resíduo» não deve ser entendido no sentido de que o mesmo exclui as substâncias e objetos com um valor económico e suscetíveis de reutilização económica (v., neste sentido, acórdão Palin Granit e Vehmassalon kansanterveystyön kuntayhtymän hallitus, já referido, n.o 29).

51

A circunstância de o comércio de produtos análogos ao carregamento em causa não ser, em geral, considerado um comércio de resíduos, apesar de constituir, igualmente, um elemento suscetível de indicar que esse carregamento não é um resíduo, também não permite excluir ter a Shell a intenção de se «desfazer» do mesmo.

52

Em contrapartida, a circunstância de a Shell ter aceitado a devolução do carregamento em causa com a intenção de o sujeitar a uma operação de mistura e de o recolocar no mercado reveste uma importância determinante no caso em apreço.

53

Com efeito, não seria de modo algum justificado sujeitar às disposições da Diretiva 2006/12, as quais visam assegurar que as operações de valorização ou de eliminação dos resíduos sejam executadas sem pôr em perigo a saúde humana e sem que sejam utilizados processos ou métodos suscetíveis de causar prejuízo ao ambiente, bens, substâncias ou produtos que o detentor pretende explorar ou comercializar em condições vantajosas e independentemente de qualquer operação de valorização. No entanto, atendendo à obrigação de proceder a uma interpretação lata do conceito de «resíduo», deve circunscrever‑se esta argumentação às situações nas quais a reutilização do bem ou da substância em questão é não apenas eventual mas certa, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, sem que seja necessário recorrer previamente a um dos procedimentos de valorização dos resíduos referidos no anexo II B da Diretiva 2006/12 (v., por analogia, acórdãos Palin Granit e Vehmassalon kansanterveystyön kuntayhtymän hallitus, já referido, n.o 36, e de 11 de setembro de 2003, e AvestaPolarit Chrome, C-114/01, Colet., p. I-8725, n.o 36).

54

Em face das considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 259/93 deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa nos processos principais, não se insere no conceito de «resíduo», na aceção dessa disposição, um carregamento de gasóleo acidentalmente misturado com outra substância, na condição de o detentor do mesmo ter realmente a intenção de recolocar esse carregamento no mercado misturado com outro produto, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

55

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 2.o, alínea a), do Regulamento (CEE) n.o 259/93 do Conselho, de 1 de fevereiro de 1993, relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 2557/2001 da Comissão, de 28 de dezembro de 2001, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa nos processos principais, não se insere no conceito de «resíduo», na aceção dessa disposição, um carregamento de gasóleo acidentalmente misturado com outra substância, na condição de o detentor do mesmo ter realmente a intenção de recolocar esse carregamento no mercado misturado com outro produto, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

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