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Document 62009CJ0234

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 15 de Julho de 2010.
    Skatteministeriet contra DSV Road A/S.
    Pedido de decisão prejudicial: Vestre Landsret - Dinamarca.
    Código Aduaneiro Comunitário - Regulamento (CEE) n.º 2913/92 - Artigo 204.º, n.º 1, alínea a) - Regulamento (CEE) n.º 2454/93 - Artigo 859.º - Regime de trânsito externo - Expedidor autorizado - Constituição de uma dívida aduaneira - Documento de trânsito para mercadorias inexistentes.
    Processo C-234/09.

    Colectânea de Jurisprudência 2010 I-07333

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2010:435

    Processo C-234/09

    Skatteministeriet

    contra

    DSV Road A/S

    (Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vestre Landsret)

    «Código Aduaneiro Comunitário – Regulamento (CEE) n.° 2913/92 – Artigo 204.°, n.° 1, alínea a) – Regulamento (CEE) n.° 2454/93 – Artigo 859.° – Regime de trânsito externo – Expedidor autorizado – Constituição de uma dívida aduaneira – Documento de trânsito para mercadorias inexistentes»

    Sumário do acórdão

    União aduaneira – Regime de trânsito externo

    [Regulamento do Conselho nº 2913/92, artigo 204.º, n.° 1, a)]

    O artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 2913/92, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário, conforme alterado pelo Regulamento n.° 648/2005, deve ser interpretado no sentido de que não se aplica a uma situação em que um expedidor autorizado iniciou, por erro, dois regimes de trânsito externo para uma única e mesma mercadoria, pois o regime em duplicado, relativo a uma mercadoria inexistente, não é, nos termos dessa disposição, susceptível de desencadear a constituição de uma dívida aduaneira.

    A este respeito, um erro que consista em desencadear dois regimes de trânsito externo para uma única e mesma mercadoria não é susceptível de, pela sua própria natureza, pôr em causa os objectivos prosseguidos pelo referido artigo 204.° e justificar, assim, a constituição de uma dívida aduaneira. Em primeiro lugar, quanto ao objectivo de prevenir o risco de mercadorias não comunitárias serem introduzidas no circuito económico da União, observe‑se que, no caso de um regime aduaneiro de trânsito externo iniciado para uma mercadoria inexistente, não há o risco de essas mercadorias serem integradas no referido circuito económico, sem serem desalfandegadas, podendo originar concorrência desleal e o risco de perda de receitas fiscais. Em segundo lugar, o objectivo de garantir a aplicação diligente das regras do regime aduaneiro em causa não pode ser alcançado no caso de um regime de trânsito externo que não corresponda a uma mercadoria existente. Com efeito, não é possível executar correctamente esse regime, quando este deva ser aplicado a uma mercadoria inexistente. Acresce que a obrigação de apresentar as mercadorias na estância aduaneira de destino, quando as mercadorias abrangidas pelo regime de trânsito iniciado por erro não existem, equivaleria a impor ao responsável principal, contrariamente ao princípio ultra posse nemo obligatur, um dever que não lhe é possível cumprir.

    (cf. n.os 32 a 34, 37 a 38 e disp.)







    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

    15 de Julho de 2010 (*)

    «Código Aduaneiro Comunitário – Regulamento (CEE) n.° 2913/92 – Artigo 204.°, n.° 1, alínea a) – Regulamento (CEE) n.° 2454/93 – Artigo 859.° – Regime de trânsito externo – Expedidor autorizado – Constituição de uma dívida aduaneira – Documento de trânsito para mercadorias inexistentes»

    No processo C‑234/09,

    que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Vestre Landsret (Dinamarca), por decisão de 24 de Junho de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 26 de Junho de 2009, no processo

    Skatteministeriet

    contra

    DSV Road A/S,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz (relator), juízes,

    advogado‑geral: N. Jääskinen,

    secretário: C. Strömholm, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 22 de Abril de 2010,

    vistas as observações apresentadas:

    –        em representação da DSV Road A/S, por A. Hedetoft e L. Kjær, advokater,

    –        em representação do Governo dinamarquês, por R. Holdgaard, na qualidade de agente, assistido por P. Biering, advokat,

    –        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

    –        em representação da Comissão Europeia, por C. Hornstrup Bengtsson, B.‑R. Killmann e H. Støvlbæk, na qualidade de agentes,

    vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (JO L 302, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 648/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Abril de 2005 (JO L 117, p. 13, a seguir «código aduaneiro»).

    2        Foi apresentado no quadro de um litígio que opõe o Skatteministeriet (Ministério das Finanças) à DSV Road A/S (a seguir «DSV»), a propósito das consequências decorrentes do facto de terem sido iniciados dois regimes de trânsito externo para uma única e mesma mercadoria.

     Quadro jurídico

    3        O artigo 1.° do código aduaneiro estabelece:

    «A legislação aduaneira compreende o presente código e as disposições adoptadas a nível comunitário ou nacional em sua aplicação. O presente código aplica‑se sem prejuízo de disposições especiais estabelecidas noutros domínios:

    –      às trocas entre a Comunidade Europeia e países terceiros,

    –      às mercadorias abrangidas pelos Tratados que instituem, respectivamente, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica.»

    4        O artigo 4.° do código aduaneiro, nos seus n.os 9 e 10, determina:

    «Na acepção do presente código, entende‑se por:

    […]

    9)      Dívida aduaneira: a obrigação de uma pessoa pagar os direitos de importação (dívida aduaneira na importação) ou os direitos de exportação (dívida aduaneira na exportação) que se aplicam a uma determinada mercadoria ao abrigo das disposições comunitárias em vigor.

    10)      Direitos de importação:

    –        os direitos aduaneiros e os encargos de efeito equivalente previstos na importação de mercadorias,

    –        as imposições à importação instituídas no âmbito da política agrícola comum ou no âmbito de regimes específicos aplicáveis a determinadas mercadorias resultantes da transformação de produtos agrícolas.»

    5        O artigo 91.°, n.° 1, do código aduaneiro tem a seguinte redacção:

    «1.      O regime do trânsito externo permite a circulação de um ponto a outro do território aduaneiro da Comunidade:

    a)      De mercadorias não comunitárias, sem que fiquem sujeitas a direitos de importação e a outras imposições bem como a medidas de política comercial;

    […]»

    6        O artigo 92.° do código aduaneiro estabelece:

    «1.      O regime de trânsito externo termina e as obrigações do titular do regime ficam cumpridas quando as mercadorias ao abrigo do regime e os documentos exigidos são apresentados na estância aduaneira de destino, de acordo com as disposições do regime em questão.

    2.      As autoridades aduaneiras apuram o regime de trânsito externo quando puderem determinar, com base na comparação dos dados disponíveis na estância aduaneira de partida com os disponíveis na estância aduaneira de destino, que o regime terminou correctamente.»

    7        Nos termos do artigo 96.°, n.° 1, do código aduaneiro:

    «1.      O responsável principal é o titular do regime de trânsito comunitário externo, competindo‑lhe:

    a)      Apresentar as mercadorias intactas na estância aduaneira de destino no prazo prescrito, respeitando as medidas de identificação tomadas pelas autoridades aduaneiras;

    b)      Respeitar as disposições relativas ao regime do trânsito comunitário.

    […]»

    8        O artigo 204.°, n.° 1, do código aduaneiro prevê:

    «1.      É facto constitutivo da dívida aduaneira na importação:

    a)      O incumprimento de uma das obrigações que, para uma mercadoria sujeita a direitos de importação, derivam da sua permanência em depósito temporário ou da utilização do regime aduaneiro ao qual foi submetida ou

    […]

    em casos distintos dos referidos no artigo 203.°, salvo se se provar que o incumprimento ou a não observância não tiver reais consequências para o funcionamento correcto do depósito temporário ou do regime aduaneiro em questão.

    […]»

    9        O artigo 859.° do Regulamento (CEE) n.° 2454/93 da Comissão, de 2 de Julho de 1993, que fixa determinadas disposições de aplicação do Regulamento (CEE) n.° 2913/92 (JO L 253, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 2286/2003 da Comissão, de 18 de Dezembro de 2003 (JO L 343, p. 1, a seguir «regulamento de execução»), estabelece:

    «Consideram‑se, nomeadamente, sem reais consequências [no] funcionamento correcto do depósito temporário ou do regime aduaneiro considerado na acepção do n.° 1 do artigo 204.° do código aduaneiro, os seguintes incumprimentos ou não observâncias, desde que:

    –        não constituam uma tentativa de subtracção da mercadoria à fiscalização aduaneira,

    –        não impliquem negligência manifesta por parte do interessado,

    e

    –        sejam cumpridas a posteriori todas as formalidades necessárias à regularização da situação da mercadoria:

    […]

    2)      No caso de uma mercadoria sujeita a um regime de trânsito, o incumprimento de uma das obrigações decorrentes da utilização do regime, se estiverem preenchidas as seguintes condições:

    a)      A mercadoria sujeita ao regime tiver sido efectivamente apresentada intacta à estância de destino;

    b)      A estância de destino tiver assegurado que a mercadoria recebeu um destino aduaneiro ou foi colocada em depósito temporário na sequência da operação de trânsito; e

    c)      Se o prazo fixado em conformidade com o artigo 356.° não tiver sido respeitado e o n.° 3 do referido artigo não se aplicar, a mercadoria tiver sido apresentada à estância de destino dentro de um prazo razoável;

    […]»

    10      Nos termos do artigo 860.° do regulamento de execução, «[a]s autoridades aduaneiras consideram uma dívida aduaneira como constituída nos termos do n.° 1 do artigo 204.° do código [aduaneiro], salvo se a pessoa susceptível de ser o devedor provar que se encontram preenchidas as condições do artigo 859.°».

     Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    11      A DSV é uma empresa dinamarquesa de transporte e logística, que possui o estatuto de expedidor autorizado nos termos do artigo 372.°, n.° 1, alínea e), do regulamento de execução.

    12      O estatuto de expedidor autorizado permite‑lhe utilizar um procedimento simplificado para expedir mercadorias ao abrigo do regime de trânsito externo. Assim, o expedidor autorizado pode não apresentar fisicamente as mercadorias na estância aduaneira de partida, apenas tendo de registar electronicamente, antes da expedição, o pedido de trânsito comunitário, no centro das contribuições, através do novo sistema de trânsito informatizado (a seguir «NSTI»), um sistema electrónico de tratamento dos dados relativos às expedições de mercadorias entre Estados‑Membros.

    13      De acordo com as explicações dadas pela Comissão Europeia, o procedimento simplificado para os expedidores autorizados decompõe‑se nas seguintes fases: uma vez aceite a declaração electrónica do expedidor autorizado, que acarreta o levantamento das mercadorias, o NSTI atribui‑lhe um número de registo único, ou seja, o número de referência do movimento (NRM). Em seguida, as mercadorias são colocadas sob o regime de trânsito. O NSTI imprime o documento de acompanhamento de trânsito, que deve ir com as mercadorias e ser apresentado em todas as estâncias aduaneiras de passagem e na estância de destino. Quando imprime esse documento, a estância de partida envia simultaneamente à estância de destino declarada um aviso antecipado de chegada, que inclui informações retiradas da declaração, o que permite a esta estância controlar as mercadorias à chegada. Nesse momento, as mercadorias devem ser apresentadas na estância de destino, juntamente com o documento de acompanhamento. Através da introdução do número de referência do movimento, o sistema procura automaticamente o aviso antecipado de chegada correspondente à operação, sendo com base nesse aviso que será decidida uma eventual acção ou verificação, e envia um «aviso de chegada» à estância de partida. Após proceder aos controlos adequados, a estância de destino informa a estância de partida dos resultados desses controlos, indicando as eventuais irregularidades detectadas. Esta comunicação dos resultados dos controlos é obrigatória para o apuramento da operação de trânsito.

    14      A DSV expediu, em 2005, sob o regime de trânsito externo, dois lotes de mercadorias para a Rússia. Por erro, desencadeou, através do NSTI, dois regimes de trânsito para cada um dos dois lotes. Para o primeiro lote, os dois regimes de trânsito foram iniciados no mesmo dia – 12 de Agosto de 2005 – e, no que respeita ao segundo lote, o segundo regime de trânsito foi iniciado três dias após o primeiro, ou seja, a 10 de Outubro de 2005.

    15      Para a expedição dos dois lotes que correspondiam a mercadorias existentes, foi sempre utilizado o último documento de trânsito gerado pelo NSTI. As mercadorias foram apresentadas na estância de destino, de acordo com as regras do procedimento de trânsito externo, e, portanto, estes dois regimes de trânsito foram regularmente apurados.

    16      Em contrapartida, no que se refere aos dois regimes de trânsito em duplicado, que a DSV gerou por erro, não puderam ser regularmente apurados porquanto não havia mercadoria susceptível de ser apresentada na estância aduaneira de destino. As autoridades dinamarquesas, após terem solicitado à DSV que apresentasse uma prova alternativa do encerramento do trânsito e não tendo essa sociedade satisfeito o pedido, tomaram decisões em que consideraram que essa sociedade era devedora dos direitos aduaneiros e do imposto sobre o valor acrescentado relativos a essa operação de trânsito. Segundo essas decisões, para cada um desses regimes, tinha‑se constituído uma dívida aduaneira nos termos do artigo 204.° do código aduaneiro.

    17      A DSV contestou estas decisões no Landsskatteret (autoridade fiscal). Este confirmou‑as por decisões de 11 de Junho de 2007, pois não existia base jurídica na regulamentação aduaneira que permitisse anular um documento de trânsito e, portanto, a dívida aduaneira tinha‑se constituído por força do artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro.

    18      A DSV interpôs recurso dessas decisões para o Byret i Horsens (Tribunal de Primeira Instância de Horsens). Este, por decisão de 9 de Maio de 2008, ordenou o reembolso dos direitos aduaneiros e do imposto sobre o valor acrescentado. De acordo com esta decisão, não se constituiu uma dívida aduaneira nos termos do artigo 204.° do código aduaneiro, visto que, nas referidas condições, não houve trânsito de mercadorias na acepção do referido código.

    19      O Skatteministeriet decidiu submeter o litígio ao Vestre Landsret (Tribunal de Recurso para a Dinamarca Ocidental). Este decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)      O artigo 204.°, n.° 1, alínea a), [do código aduaneiro], conjugado com os artigos 92.° e 96.° e ainda com os artigos 1.° e 4.°, n.os 9 e 10, do [mesmo código] deve ser interpretado no sentido de que

    a)      se constitui uma dívida aduaneira no caso de, por erro do sistema NSTI causado por um expedidor autorizado, ter sido iniciado um regime de trânsito de mercadorias fisicamente inexistentes e de, em consequência, o regime de trânsito não ter terminado de acordo com as prescrições legais, ou

    b)      não se constitui uma dívida aduaneira, dado que se pressupõe que o regime de trânsito só se aplica a mercadorias com existência física, de modo que o erro originado no sistema NSTI por uma expedição de mercadorias fisicamente inexistentes não implica a sujeição a direitos aduaneiros?

    2)      No caso de resposta afirmativa à questão 1, alínea a), o conceito de ‘importação de mercadorias’ do artigo 4.°, n.° 10, [do código aduaneiro] assim como o conceito de ‘mercadoria’ do artigo 4.°, n.° 1, alínea a), do [mesmo código] devem ser interpretados no sentido de que abrangem tanto mercadorias fisicamente existentes como mercadorias fisicamente inexistentes?»

     Quanto às questões prejudiciais

    20      Com as suas duas questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro deve ser interpretado no sentido de que o facto de um expedidor autorizado ter iniciado, por erro, dois regimes de trânsito externo para uma única e mesma mercadoria desencadeia, para o regime de trânsito em duplicado, que é relativo a uma mercadoria inexistente, a constituição de uma dívida aduaneira nos termos dessa disposição.

    21      Segundo o artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro, uma dívida aduaneira na importação constitui‑se através do incumprimento de uma das obrigações que, para uma mercadoria sujeita a direitos de importação, derivam da utilização do regime aduaneiro ao qual foi submetida, salvo se se provar que o incumprimento não teve verdadeiras consequências no funcionamento correcto do regime aduaneiro em questão.

    22      As autoridades aduaneiras dinamarquesas consideram que, no presente caso, se constituiu uma dívida aduaneira por força do referido artigo 204.°

    23      No seu entender, por um lado, a condição que desencadeia a constituição de uma dívida aduaneira, ou seja, o incumprimento de uma obrigação decorrente do regime de trânsito externo, encontra‑se satisfeita, pois a DSV não apresentou na estância aduaneira de destino as mercadorias a que se aplicava esse regime de trânsito, tendo, por isso, faltado às obrigações que lhe incumbiam por força do artigo 96.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro.

    24      Por outro lado, a condição negativa, como enunciada no artigo 859.° do regulamento de execução, que exclui a constituição de uma dívida aduaneira quando o incumprimento não tiver verdadeiras consequências no funcionamento correcto do regime de trânsito externo, não se encontrava preenchida no processo principal.

    25      Embora se deva liminarmente declarar que uma situação como a em apreço no processo principal está abrangida pelas normas do código aduaneiro, importa recordar, a respeito da interpretação dessas disposições pelas autoridades aduaneiras dinamarquesas, que, com efeito, o artigo 859.° do regulamento de execução, conjugado com o seu artigo 860.°, cria um regime que rege de modo exaustivo dez incumprimentos, na acepção do artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro, que «não tiver[am] reais consequências para o funcionamento correcto do depósito temporário ou do regime aduaneiro em questão» (v. acórdão de 11 de Novembro de 1999, Söhl & Söhlke, C‑48/98, Colect., p. I‑7877, n.° 43).

    26      Ora, é certo que as circunstâncias do processo principal não integram nenhum desses dez incumprimentos elencados no artigo 859.° do regulamento de execução. Com efeito, o n.° 2, alínea a), desse artigo, que regula os incumprimentos associados à utilização de um regime de trânsito, prevê que a mercadoria colocada sob o regime de trânsito deve efectivamente ser apresentada na estância aduaneira de destino. Esta disposição impõe, portanto, uma condição que equivale à obrigação decorrente do artigo 96.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro e que a DSV não podia cumprir. Com efeito, do erro cometido pela DSV decorre necessariamente que, para um dos dois regimes de trânsito iniciados para uma única e mesma mercadoria, não há nenhuma mercadoria que possa ser apresentada na estância aduaneira de destino.

    27      Contudo, o artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro subordina a constituição de uma dívida aduaneira a um incumprimento relacionado com uma «mercadoria sujeita a direitos de importação». Assim, há que examinar se essa disposição permite atender aos elementos que caracterizam a situação específica do processo principal, isto é, ao facto de os dois regimes de trânsito terem sido iniciados, por erro, para uma única e mesma mercadoria.

    28      A este propósito, refira‑se, por um lado, que resulta da própria letra do artigo 204.° do código aduaneiro que essa disposição tem em vista uma situação em que uma «mercadoria» foi colocada num regime aduaneiro e em que não foi cumprida uma obrigação decorrente desse regime.

    29      Ora, no processo principal, em que é pacífico ter sido por erro que foram iniciados dois regimes de trânsito para uma única e mesma mercadoria, não existia, para um dos dois regimes desencadeados pela DSV, «mercadoria» relativamente à qual pudessem ser cumpridas as obrigações decorrentes do regime de trânsito externo.

    30      Por outro lado, cabe ainda sublinhar que o artigo 204.° do código aduaneiro visa assegurar uma correcta aplicação da regulamentação aduaneira. Com efeito, por força dos artigos 96.°, n.° 1, e 204.°, n.° 1, desse código, o responsável principal, na sua qualidade de titular do regime de trânsito comunitário externo, é o devedor da dívida aduaneira resultante do incumprimento das disposições desse regime. A responsabilidade assim imposta ao responsável principal visa assegurar uma aplicação diligente e uniforme das disposições desse regime e o bom andamento das operações de trânsito, no interesse da protecção dos interesses financeiros da União Europeia e dos seus Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdão de 3 de Abril de 2008, Militzer & Münch, C‑230/06, Colect., p. I‑1895, n.° 48).

    31      Além disso, a presença, no território aduaneiro da União, de mercadorias não comunitárias implica o risco de essas mercadorias acabarem por ser integradas, sem ser desalfandegadas, no circuito económico dos Estados‑Membros (v., por analogia, acórdão de 2 de Abril de 2009, Elshani, C‑459/07, Colect., p. I‑2759, n.° 32), risco que o artigo 204.° do código aduaneiro contribui para prevenir, como sublinha a Comissão.

    32      Ora, nas circunstâncias do processo principal, em que é certo terem sido desencadeados duas vezes, por erro, dois regimes de trânsito externo para uma única e mesma mercadoria, é evidente que estes dois objectivos que estão subjacentes ao artigo 204.° do código aduaneiro e justificam a constituição de uma dívida aduaneira não são afectados.

    33      Em primeiro lugar, quanto ao objectivo de prevenir o risco de mercadorias não comunitárias serem introduzidas no circuito económico da União, observe‑se que, no caso de um regime aduaneiro de trânsito externo iniciado para uma mercadoria inexistente, não há o risco de essas mercadorias serem integradas no referido circuito económico, sem serem desalfandegadas, podendo originar concorrência desleal e o risco de perda de receitas fiscais.

    34      Em segundo lugar, o objectivo de garantir a aplicação diligente das regras do regime aduaneiro em causa não pode ser alcançado no caso de um regime de trânsito externo que não corresponda a uma mercadoria existente. Com efeito, não é possível executar correctamente esse regime, quando este deva ser aplicado a uma mercadoria inexistente. Acresce que a obrigação de apresentar as mercadorias na estância aduaneira de destino, quando as mercadorias abrangidas pelo regime de trânsito iniciado por erro não existem, equivaleria a impor ao responsável principal, contrariamente ao princípio ultra posse nemo obligatur, um dever que não lhe é possível cumprir.

    35      Assim, se se acolhesse uma interpretação como a defendida pelo Governo dinamarquês, a aplicação do artigo 204.° do código aduaneiro apenas conduziria a punir o responsável principal pelo erro que cometeu ao desencadear os regimes de trânsito externo, e não pelo incumprimento das suas obrigações decorrentes desse regime.

    36      Resulta das considerações precedentes que o erro que consistiu em desencadear dois regimes de trânsito externo para uma única e mesma mercadoria não é susceptível de, pela sua própria natureza, pôr em causa os objectivos prosseguidos pelo artigo 204.° e justificar, assim, a constituição de uma dívida aduaneira. Além disso, também não é necessário punir esse erro através da constituição de uma dívida aduaneira a suportar pelo responsável principal. Como a Comissão sublinhou, esse erro pode efectivamente constituir um elemento relevante para efeitos da revogação do estatuto de expedidor autorizado, mas não pode fazer com que este se torne devedor de direitos aduaneiros.

    37      Por conseguinte, o artigo 204.° do código aduaneiro não é aplicável em circunstâncias como as do processo principal.

    38      Atento o que precede, deve responder‑se às questões colocadas que o artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do código aduaneiro deve ser interpretado no sentido de que não se aplica a uma situação como a em causa no processo principal, em que um expedidor autorizado iniciou, por erro, dois regimes de transito externo para uma única e mesma mercadoria, pois o regime em duplicado, relativo a uma mercadoria inexistente, não é, nos termos dessa disposição, susceptível de desencadear a constituição de uma dívida aduaneira.

     Quanto às despesas

    39      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

    O artigo 204.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 648/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Abril de 2005, deve ser interpretado no sentido de que não se aplica a uma situação como a em causa no processo principal, em que um expedidor autorizado iniciou, por erro, dois regimes de transito externo para uma única e mesma mercadoria, pois o regime em duplicado, relativo a uma mercadoria inexistente, não é, nos termos dessa disposição, susceptível de desencadear a constituição de uma dívida aduaneira.

    Assinaturas


    * Língua do processo: dinamarquês.

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