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Document 62000CJ0129

Acórdão do Tribunal de 9 de Dezembro de 2003.
Comissão das Comunidades Europeias contra República Italiana.
Incumprimento de Estado - Interpretação contrária ao direito comunitário de uma lei nacional pela jurisprudência e pela prática administrativa - Condições de repetição do indevido.
Processo C-129/00.

Colectânea de Jurisprudência 2003 I-14637

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2003:656

62000J0129

Acórdão do Tribunal de 9 de Dezembro de 2003. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Italiana. - Incumprimento de Estado - Interpretação contrária ao direito comunitário de uma lei nacional pela jurisprudência e pela prática administrativa - Condições de repetição do indevido. - Processo C-129/00.

Colectânea da Jurisprudência 2003 página 00000


Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Partes


No processo C-129/00,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por E. Traversa, na qualidade de agente, assistido por P. Biavati, avvocato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Italiana, representada por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

que tem por objecto fazer declarar que, ao manter em vigor o artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428, de 29 de Dezembro de 1990, intitulada «Disposizioni per l'adempimento di obblighi derivanti dall'appartenenza dell'Italia alle Comunità europee (legge comunitaria per il 1990)» [disposições de execução das obrigações que decorrem da integração da Itália nas Comunidades Europeias (lei comunitária para o ano de 1990)] (GURI n._ 10, de 12 de Janeiro de 1991, suplemento ordinário, p. 5), tal como interpretado e aplicado pela Administração e pelos órgãos jurisdicionais, o qual impõe um regime probatório da repercussão sobre terceiros dos impostos cobrados em violação das normas comunitárias que torna o exercício do direito ao reembolso desses impostos praticamente impossível ou, pelo menos, excessivamente difícil para o contribuinte, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(tribunal pleno),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, C. Gulmann, J. N. Cunha Rodrigues e A. Rosas, presidentes de secção, D. A. O. Edward, A. La Pergola, J.-P. Puissochet (relator), R. Schintgen, F. Macken, N. Colneric e S. von Bahr, juízes,

advogado-geral: L. A. Geelhoed,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 2 de Abril de 2003,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 3 de Junho de 2003,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 4 de Abril de 2000, a Comissão das Comunidades Europeias intentou, nos termos do artigo 226._ CE, uma acção visando fazer declarar que, ao manter em vigor o artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428, de 29 de Dezembro de 1990, intitulada «Disposizioni per l'adempimento di obblighi derivanti dall'appartenenza dell'Italia alle Comunità europee (legge comunitaria per il 1990)» [disposições de execução das obrigações que decorrem da integração da Itália nas Comunidades Europeias (lei comunitária para o ano de 1990)] (GURI, suplemento ordinário n._ 10, de 12 de Janeiro de 1991, p. 5, a seguir «Lei n._ 428/1990»), tal como interpretado e aplicado pela Administração e os órgãos jurisdicionais, o qual impõe um regime probatório da repercussão sobre terceiros dos impostos cobrados em violação das normas comunitárias que torna o exercício do direito ao reembolso desses impostos praticamente impossível ou, pelo menos, excessivamente difícil para o contribuinte, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE.

O direito nacional

2 A Lei n._ 428/1990 introduziu na legislação fiscal regras especiais em matéria de «restituição de imposições consideradas incompatíveis com as normas comunitárias». O artigo 29._, n._ 2, da referida lei dispõe nesta matéria:

«Devolver-se-ão os direitos aduaneiros de importação, os impostos de fabrico, os impostos sobre o consumo, a imposição sobre o açúcar e as imposições estatais cobradas em conformidade com disposições nacionais incompatíveis com normas comunitárias, a não ser que o encargo correspondente tenha sido repercutido sobre outros sujeitos.»

3 Anteriormente, esta matéria era regulada pelo artigo 19._, primeiro parágrafo, do Decreto-Lei n._ 688, de 30 de Setembro de 1982 (GURI n._ 270, de 30 de Setembro de 1982, p. 7072), convertido em lei pela Lei n._ 873, de 27 de Novembro de 1982 (GURI n._ 328, de 29 de Novembro de 1982, a seguir «Decreto-Lei n._ 688/1982». Esta dispunha:

«Qualquer pessoa que tenha pago indevidamente direitos aduaneiros de importação, impostos de fabrico, impostos de consumo ou imposições estatais [...] tem direito ao reembolso dos montantes pagos se provar documentalmente que o encargo correspondente não foi repercutido, de qualquer forma, sobre terceiros, salvo caso de erro material.»

Antecedentes

4 O artigo 19._ do Decreto-Lei n._ 688/1982 esteve na origem de dois acórdãos do Tribunal de Justiça. O primeiro (acórdão de 9 de Novembro de 1983, San Giorgio, 199/82, Recueil, p. 3595) foi proferido na sequência de um reenvio prejudicial e o segundo (acórdão de 24 de Março de 1988, Comissão/Itália, 104/86, Colect., p. 1799) no âmbito de uma acção de incumprimento intentada pela Comissão contra a República Italiana.

5 Neste último acórdão, o Tribunal de Justiça decidiu:

«6 [...] na falta de regulamentação comunitária em matéria de restituição de impostos nacionais cobrados em violação do direito comunitário cabe aos Estados-Membros assegurar o reembolso desses impostos, nos termos das disposições do seu direito interno. Além disso, o direito comunitário não exige a restituição de impostos indevidamente cobrados em condições que implicariam um enriquecimento sem causa dos contribuintes; assim, não exclui que se tenha em conta o facto de a carga desses impostos poder ter sido repercutida sobre outros operadores económicos ou sobre os consumidores.

7 Finalmente, convém lembrar, como o Tribunal declarou no acórdão [San Giorgio], proferido precisamente a propósito do artigo 19._ do decreto-lei em causa, que são incompatíveis com o direito comunitário quaisquer meios de prova cujo efeito seja o de tornar impossível na prática ou excessivamente difícil a obtenção do reembolso de impostos cobrados em violação do direito comunitário, e que é esse o caso, designadamente, de presunções ou regras de prova que imponham ao contribuinte o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos sobre outros sujeitos, ou de limitações específicas quanto aos meios de prova a apresentar, como a exclusão de qualquer meio de prova que não a documental.

[...]

11 A disposição em litígio da legislação italiana impõe aos operadores o ónus da prova de um facto negativo, na medida em que devem provar, contra simples afirmações da Administração, a não repercussão sobre outros sujeitos da carga fiscal indevidamente paga, e isto unicamente através de provas documentais. Essa disposição é contrária às regras de direito comunitário, tal como resultam da jurisprudência do Tribunal.»

6 Posteriormente, o artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990 deu, por sua vez, origem a questões prejudiciais, a que o Tribunal de Justiça respondeu no acórdão de 9 de Fevereiro de 1999, Dilexport (C-343/96, Colect., p. I-579). O órgão jurisdicional de reenvio mencionava que a referida disposição era aplicada pelos órgãos jurisdicionais italianos no sentido de que, para se opor ao reembolso de direitos aduaneiros ou impostos indevidamente pagos, a Administração pode basear-se na presunção de que estes direitos e impostos são normalmente repercutidos sobre terceiros.

7 O Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:

«52 Se, como considera o órgão jurisdicional nacional, existe uma presunção de repercussão sobre terceiros dos direitos e imposições ilegalmente reclamados ou indevidamente cobrados, e se impuser ao requerente o ónus de ilidir esta presunção para obter o reembolso da imposição, deve considerar-se que as disposições em questão são contrárias ao direito comunitário.

53 Se, pelo contrário, tal como sustenta o Governo italiano, competir à Administração demonstrar, por todos os meios de prova geralmente admitidos pelo direito nacional, que a imposição foi repercutida sobre outras pessoas, deverá considerar-se que as disposições em questão não são contrárias ao direito comunitário.

54 Deve, pois, responder-se [...] que o direito comunitário se opõe a que um Estado-Membro submeta o reembolso de direitos aduaneiros e de imposições contrários ao direito comunitário a uma condição, tal como a ausência de repercussão destes direitos ou imposições sobre terceiros, cabendo ao recorrente fazer a prova de que esta condição está preenchida.»

Procedimento pré-contencioso

8 A Comissão considera no essencial, tal como o órgão jurisdicional de reenvio no processo que deu origem ao acórdão Dilexport, já referido, que, como interpretado e aplicado pela Administração e pelos órgãos jurisdicionais italianos, o disposto no artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990 conduz ao mesmo resultado que o antigo artigo 19._ do Decreto-Lei n._ 688/1982.

9 Após ter dado à República Italiana oportunidade para apresentar observações, a Comissão emitiu, em 17 de Setembro de 1997, um parecer fundamentado convidando este Estado-Membro a cumprir no prazo de dois meses as obrigações para ele decorrentes do Tratado. Insatisfeita com a resposta dada pelas autoridades italianas por carta de 25 de Novembro de 1997, a Comissão decidiu intentar a presente acção.

Argumentação das partes

10 A Comissão alega que, no acórdão de 14 de Janeiro de 1997, Comateb e o. (C-192/95 a C-218/95, Colect., p. I-165, n._ 25), o Tribunal de Justiça recordou que, em matéria de impostos indirectos, não pode aceitar-se a presunção de que o sujeito passivo repercute o imposto a jusante da cadeia de vendas, obrigando-o a provar o contrário se quiser obter o reembolso de um imposto dessa natureza.

11 Ora, a Comissão expõe que a jurisprudência da Corte suprema di cassazione (Itália) conduz à instituição de uma presunção desse tipo em prejuízo dos sujeitos passivos que reclamem o reembolso de impostos incompatíveis com o direito comunitário, referidos no artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990. Os fundamentos das decisões proferidas na matéria por esse órgão jurisdicional variam, mas assentam, no essencial, na análise de que, salvo circunstâncias excepcionais, as sociedades comerciais repercutem os impostos indirectos sobre a sua clientela. A fundamentação mais elaborada que a Corte suprema di cassazione utilizou para chegar a essa conclusão, designadamente no acórdão de 28 de Março de 1996, n._ 2844, assenta nas seguintes considerações:

- o importador não era um particular, mas uma sociedade comercial ou industrial;

- a empresa possuía uma gestão normal, que não correspondia a situações de défice ou de insolvência que permitissem colocar a hipótese de venda a um preço inferior ao do custo;

- a imposição indevida fora cobrada por todas as alfândegas italianas, o que não podia deixar de ter criado um clima de confiança quanto à legalidade da imposição;

- a imposição indevida foi aplicada durante um longo período e sem qualquer contestação.

12 Segundo a Comissão, a Corte suprema di cassazione baseia-se também no pressuposto de que as empresas comerciais normalmente repercutem sobre terceiros os impostos indirectos para considerar que os pedidos judiciais formulados pela Administração para obter a apresentação de documentos contabilísticos das empresas em causa ou a respectiva inspecção não têm carácter exclusivamente exploratório, o que os torna ilegítimos, constituindo antes um meio válido de lhes permitir provar que tal repercussão se verificou.

13 Acresce que a Corte suprema di cassazione considera, com base no artigo 116._ do código de processo civil italiano, que a não apresentação de documentos contabilísticos na sequência de tal pedido, mais a presunção de que os impostos são normalmente repercutidos, comprova ter sido esse o caso. A Comissão refere que solução idêntica é aplicada mesmo quando a empresa que não apresenta tais documentos alega que estes não foram guardados devido à expiração do prazo de conservação obrigatória de dez anos previsto no código civil italiano. Ora, tendo em conta o prazo de vários anos que pode decorrer entre o pedido judicial de apresentação de documentos contabilísticos e a decisão jurisdicional na matéria, é excessiva para as empresas a obrigação de guarda desses documentos para além do prazo legal de conservação, designadamente devido aos custos elevados e aos problemas de armazenamento daí resultantes. Constitui, portanto, um obstáculo suplementar ao reembolso efectivo dos impostos contrários ao direito comunitário.

14 A Comissão refere que inúmeros órgãos jurisdicionais que decidem quanto ao mérito aplicam estes princípios, da mesma maneira que determinados peritos designados nos processos judiciais para examinar os documentos contabilísticos dos sujeitos passivos e determinar se estes repercutiram, ou não, os impostos em causa. Apresentou, a este respeito, alguns exemplos.

15 Ora, esta abordagem instituiu de facto uma presunção de repercussão sobre terceiros, pelos sujeitos passivos, dos impostos contrários ao direito comunitário de que estes pedem o reembolso, presunção essa que lhes cabe, depois, refutar fazendo a prova contrária, em violação do que o Tribunal de Justiça decidiu no n._ 52 do Acórdão Dilexport, já referido.

16 A Comissão acrescenta que o raciocínio em causa é ilógico porque parte da premissa de que as empresas repercutem normalmente os impostos indirectos para chegar a uma presunção que tem exactamente o mesmo conteúdo que essa premissa. Os elementos por vezes utilizados nessa fundamentação, relativos à qualidade de empresa e à inexistência de insolvabilidade do requerente, da mesma forma que a aplicação generalizada e duradoura das imposições contestadas, não são de forma alguma pertinentes. Assim, um empresário que não repercuta os impostos sobre terceiros pode apenas ter um lucro menor, mas não vai necessariamente à falência. É arbitrário deduzir da inexistência de insolvabilidade a existência de repercussão dos impostos.

17 A Comissão refere que a Administração italiana também não respeita os princípios aplicáveis ao reembolso de impostos contrários ao direito comunitário. As circulares do Ministro das Finanças n._ 21/2/VII, de 11 de Março de 1994, e n._ 480/VIII, de 12 de Abril de 1995, referem, no essencial, que a repercussão dos impostos sobre terceiros fica provada se tais impostos não tiverem sido contabilizados logo no ano do seu pagamento enquanto adiantamentos ao Tesouro Público por impostos não devidos, como créditos no activo do balanço da empresa que reclama o seu reembolso. A falta de tal contabilização demonstra que a empresa considerou esses impostos como custos normais, repercutindo-os necessariamente. A Comissão considera que esta abordagem conduz à imposição às empresas de uma obrigação excessiva, sobretudo tratando-se de anos anteriores à verificação da não conformidade desses impostos com o direito comunitário.

18 A Comissão alega que, ainda que determinados contribuintes acabem por obter ganho de causa no juiz de mérito, à custa, na sua opinião, de processos longos e dispendiosos, esta circunstância é insuficiente para concluir pelo cumprimento do princípio da efectividade, segundo o qual as modalidades processuais nacionais aplicadas aos pedidos fundados nos direitos de que os particulares gozam ao abrigo do direito comunitário não devem tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício desses direitos. Até agora, os recursos com ganho de causa de determinados contribuintes, que lhes permitiram, segundo o Governo italiano, obter entre 1992 e 2000 o reembolso de 120 mil milhões de ITL, fora juros e despesas, foram insignificantes quando comparados com os montantes objecto, nesta matéria, de processos contenciosos. A Comissão alega que o princípio da efectividade apenas é respeitado se for excepção o indeferimento dos pedidos de reembolso e sustenta que o exercício dos direitos fundados no Tratado não pode ser entravado por medidas gerais baseadas numa presunção de abuso de direito.

19 O Governo italiano critica a Comissão por se entregar a especulações e negligenciar os dados reais. Só a efectiva verificação de que os contribuintes que pagaram impostos contrários ao direito comunitário não conseguem, ou conseguem com muita dificuldade, obter o reembolso pode ser considerada violação do princípio da efectividade. A este respeito, para além do montante das quantias reembolsadas a título principal referidas no número anterior, o Governo italiano invoca 17 acórdãos ou decisões de diferentes órgãos jurisdicionais de mérito, que deram ganho de causa aos contribuintes, obtendo força de caso julgado.

20 Quanto à eventual medida de instrução do Tribunal de Justiça destinada a quantificar a percentagem de pedidos de reembolso satisfeitos relativamente à totalidade de pedidos apresentados, o Governo italiano sustenta que a aplicação de tal medida equivale a transferir para o Tribunal de Justiça o ónus da prova do incumprimento que a Comissão alega e que esta devia ter provado durante a fase pré-contenciosa.

21 A título subsidiário, o Governo italiano analisa, quanto ao respectivo princípio, as modalidades de exercício do direito à repetição do indevido criticadas pela Comissão, sublinhando, em primeiro lugar, que a Comissão admite que o texto do artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990 é em si mesmo compatível com o direito comunitário. Em sua opinião, este texto impõe que a Administração demonstre que o contribuinte repercutiu o imposto sobre terceiros para não ser obrigada a reembolsar o respectivo montante.

22 O Governo italiano recorda, em segundo lugar, que, no n._ 25 do acórdão Comateb e o., já referido, o Tribunal de Justiça decidiu que «a repercussão efectiva, parcial ou total [de um imposto indirecto] depende de vários factores que acompanham cada transacção comercial e a diferenciam de outras situações em contextos diversos» e que «[e]m consequência, o problema da existência ou não de repercussão de cada imposição indirecta constitui questão de facto da competência do juiz nacional, que goza de liberdade na apreciação das provas». O Governo italiano alega que, nas suas conclusões no processo que deu lugar ao acórdão Dilexport, já referido, o advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer acrescentou que o juiz nacional podia utilizar todos os meios de prova admitidos em direito interno para provar os factos. Este governo expõe que a Corte suprema di cassazione não é juiz de mérito, mas que se limita a definir determinados princípios gerais de administração da prova, em função de circunstâncias processuais que podem consideravelmente variar segundo os litígios. O juiz de mérito pode perfeitamente admitir mecanismos dedutivos como meio de prova. As decisões judiciais favoráveis aos contribuintes pronunciadas pela presente instância limitam-se a declarar que a Administração não provou a repercussão dos impostos.

23 Quanto à administração, sobre quem impende o ónus dessa prova, é legítimo que exija o acesso às contas do requerente, pois só essa medida de instrução lhe permitirá carrear essa prova, de forma alguma tendo tal acesso, consequentemente, carácter exploratório. Quando o requerente não apresenta espontaneamente as suas contas, é normal que, se intentar acção judicial, a Administração solicite essa apresentação pela mesma via. É este o sentido das duas circulares ministeriais referidas no n._ 17 do presente acórdão e criticadas pela Comissão. O Governo italiano esclarece que o juiz apenas considera a falta de apresentação das contas como argumento a favor da Administração se o pedido de apresentação desses documentos tiver sido entregue antes de expirado o prazo legal de conservação. Neste caso, mesmo que o juiz apenas se pronuncie sobre o referido pedido depois de expirado esse prazo, o dever de lealdade no processo impõe que o contribuinte conserve as contas e as apresente na sequência da decisão judicial de aceder a esse pedido (acórdão da Corte suprema di cassazione de 18 de Novembro de 1994, n._ 9797).

24 O Governo italiano acrescenta que, embora sejam por vezes necessários processos longos para obter o reembolso, os inconvenientes decorrentes dessa duração são compensados pela atribuição de juros sobre os montantes devidos.

Apreciação do Tribunal de Justiça

25 Como o recorda uma jurisprudência assente, não existindo regulamentação comunitária em matéria de restituição de impostos nacionais indevidamente cobrados, compete à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regulamentar as vias processuais das acções judiciais destinadas a garantir a protecção dos direitos que decorrem, para os cidadãos, do direito comunitário, desde que, por um lado, essas vias não sejam menos favoráveis do que as das acções análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e, por outro, não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade) (v., designadamente, acórdãos de 16 de Dezembro de 1976, Rewe, 33/76, Colect., p. 814, n._ 5, e de 24 de Setembro de 2002, Grundig Italiana, C-255/00, Colect., p. I-8003, n._ 33).

26 Quanto ao artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990, como recordado no n._ 7 do presente acórdão e tendo em conta as divergências de interpretação desta disposição, o acórdão Dilexport, já referido, proferido no contexto de um processo prejudicial em que competia ao juiz nacional decidir o litígio, referiu que, se existir uma presunção de repercussão sobre terceiros dos direitos e imposições ilegalmente reclamados ou indevidamente cobrados e se for imposto ao requerente o ónus de ilidir esta presunção para obter o reembolso da imposição, deve considerar-se que a disposição em questão é contrária ao direito comunitário.

27 No âmbito da presente acção por incumprimento, compete em contrapartida ao Tribunal de Justiça determinar por si se, tendo em conta os elementos invocados pela Comissão, a aplicação feita pelas autoridades italianas do artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990 leva efectivamente a instituir tal presunção ou de outra forma conduz a tornar o exercício do direito ao reembolso destes impostos praticamente impossível ou excessivamente difícil, hipóteses estas em que haverá que declarar o incumprimento da República Italiana.

28 A acusação feita pela Comissão para fundamentar a sua acção tem três aspectos. Em primeiro lugar, vários órgãos jurisdicionais italianos, em particular, de forma constante, a Corte suprema di cassazione, consideram demonstrada a repercussão dos impostos sobre terceiros pelo mero facto de o requerente ser uma empresa comercial, acrescentando por vezes como fundamento que a empresa não está falida e que o imposto foi cobrado durante anos, sem contestação, na totalidade do território nacional. Em segundo lugar, a Administração exige sistematicamente a apresentação dos documentos contabilísticos do requerente. Os órgãos jurisdicionais chamados a intervir em caso de oposição do requerente dão provimento a esse pedido, invocando o mesmo tipo de fundamentos atrás referidos, e interpretam de forma desfavorável ao requerente a não apresentação dos referidos documentos mesmo quando o prazo de conservação destes já expirou. Em terceiro lugar, a Administração considera que a não contabilização do montante dos impostos em causa logo no ano do seu pagamento enquanto adiantamentos ao Tesouro Público por impostos não devidos, como créditos no activo do balanço da empresa que reclama o seu reembolso, prova que os referidos impostos foram repercutidos sobre terceiros.

29 O incumprimento de um Estado-Membro pode em princípio ser declarado qualquer que seja o órgão do Estado cuja acção ou omissão esteja na origem do incumprimento, ainda que se trate de uma instituição constitucionalmente independente (acórdão de 5 de Maio de 1970, Comissão/Bélgica, 77/69, Recueil, p. 237, n._ 5, Colect. 1969-1970, p. 335).

30 O alcance das disposições legislativas, regulamentares ou administrativas nacionais deve ser apreciado tendo em conta a interpretação que delas fazem os órgãos jurisdicionais nacionais (v., designadamente, acórdão de 8 de Junho de 1994, Comissão/Reino Unido, C-382/92, Colect., p. I-2435, n._ 36).

31 No caso em apreço, está em causa o artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990, que prevê o reembolso dos impostos cobrados em conformidade com disposições nacionais incompatíveis com normas comunitárias, a não ser que o encargo correspondente tenha sido repercutido sobre outros sujeitos. Esta disposição é em si mesma neutra à luz do direito comunitário quer quanto ao ónus da prova de que o imposto foi repercutido sobre outras pessoas quer quanto às modalidades de prova admitidas para esse fim. O seu alcance deve ser determinado tendo em conta a interpretação, que os órgãos jurisdicionais nacionais lhe dão.

32 A este respeito, não podem ser tomadas em conta as decisões judiciais isoladas ou francamente minoritárias num contexto jurisprudencial marcado por diversa orientação, ou ainda uma interpretação desmentida pelo órgão jurisdicional nacional supremo. O mesmo não sucede com uma interpretação jurisprudencial significativa não desmentida pelo referido órgão jurisdicional supremo, ou mesmo por este confirmada.

33 Quando uma legislação nacional é objecto de interpretações jurisprudenciais divergentes susceptíveis de ser tidas em conta, conduzindo umas a uma aplicação da referida legislação compatível com o direito comunitário, outras a uma aplicação com este incompatível, há que declarar que, no mínimo, essa legislação não é suficientemente clara para assegurar uma aplicação compatível com o direito comunitário.

34 No caso em apreço, o Governo italiano não contesta que alguns acórdãos da Corte suprema di cassazione conduzem, com base num raciocínio dedutivo, à conclusão de que, salvo prova em contrário, as empresas comerciais que se encontram em situação normal repercutem a jusante da cadeia de vendas os impostos indirectos, em particular se estes são cobrados na totalidade do território nacional durante um período apreciável e sem contestação. O Governo italiano limita-se, com efeito, a expor que inúmeros juízes chamados a decidir a questão de mérito não se contentam com esta fundamentação para considerar provada a repercussão e a fornecer exemplos de contribuintes que obtiveram o reembolso de impostos contrários ao direito comunitário, por a Administração não ter sido capaz nesses casos de provar ao órgão jurisdicional chamado a decidir que os contribuintes tinham repercutido os referidos impostos.

35 Ora, a fundamentação seguida nos acórdãos invocados da Corte suprema di cassazione assenta ela própria numa premissa que é uma mera presunção, a saber, que os impostos indirectos são em princípio repercutidos a jusante da cadeia de vendas pelos operadores económicos quando têm a possibilidade de o fazer. Os outros elementos eventualmente tomados em consideração, a saber, o carácter comercial da actividade do contribuinte e o facto de a sua situação financeira não se ter degradado, bem como a cobrança do imposto em causa na totalidade do território nacional durante um período apreciável e sem contestação, apenas permitem, com efeito, concluir que uma empresa que exerceu a sua actividade neste contexto repercutiu efectivamente os impostos em causa se nos basearmos na premissa de que qualquer operador económico actua dessa maneira, salvo em circunstâncias particulares como a não verificação de um ou outro dos referidos elementos. No entanto, como o Tribunal de Justiça já decidiu (v. acórdãos San Giorgio, já referido, n.os 14 e 15; de 25 de Fevereiro de 1988, Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, Colect., p. 1099, n._ 17; Comissão/Itália, já referido, n._ 7; e Comateb e o., já referido, n._ 25), e pelas razões económicas recordadas pelo advogado-geral nos n.os 73 a 80 das suas conclusões, essa premissa não se verifica em determinado número de circunstâncias, constituindo uma simples presunção, que não pode ser admitida no contexto do exame de pedidos de reembolso de impostos indirectos contrários ao direito comunitário.

36 Quanto à exigência de apresentação dos documentos contabilísticos da empresa que pede o reembolso de impostos contrários ao direito comunitário, colocada como condição prévia a qualquer reembolso, há que ter em conta as considerações a seguir expendidas.

37 Uma exigência deste tipo, relativa aos anos para os quais é pedido o reembolso e formulada no decurso do período durante o qual os documentos devem obrigatoriamente ser conservados, não pode ser considerada em si mesma como uma inversão, em prejuízo dos sujeitos passivos, do ónus da prova da não repercussão dos impostos sobre terceiros. Com efeito, esses documentos contêm dados factuais neutros a partir dos quais, designadamente, a Administração pode tentar demonstrar que os impostos foram repercutidos sobre outros sujeitos (v., neste sentido, acórdão de 2 de Outubro de 2003, Weber's Wine World e o., C-147/01, ainda não publicado na Colectânea, n._ 115). Nestas condições, salvo circunstâncias excepcionais que o requerente possa invocar, a não apresentação dos documentos contabilísticos quando pedidos pela Administração pode ser considerada, por esta ou pelo juiz, como um elemento a ter em conta na demonstração de que os impostos foram repercutidos sobre terceiros. Contudo, este elemento não é por si só suficiente para presumir que os referidos impostos foram repercutidos sobre terceiros, nem, por maioria de razão, para fazer recair sobre o requerente o ónus da prova dessa presunção, obrigando-o a provar o contrário (v., neste sentido, acórdão Weber's Wine World e o., já referido, n._ 116).

38 Em qualquer caso, nas situações em que Administração pede a apresentação desses documentos depois de expirado o respectivo prazo de conservação legal e em que o sujeito passivo não os tenha apresentado, o facto de daí retirar a conclusão de que este a repercutiu os impostos em causa sobre terceiros, ou de tirar essa mesma conclusão com reserva de prova em contrário feita pelo sujeito passivo, significaria instituir uma presunção em prejuízo deste, de que resultaria ser excessivamente difícil o exercício do direito ao reembolso dos impostos contrários ao direito comunitário.

39 No que respeita à circunstância de a Administração considerar que a repercussão de um imposto fica provada quando o montante desse imposto não for contabilizado logo no ano do seu pagamento enquanto adiantamentos ao Tesouro Público por impostos não devidos, como crédito no activo do balanço da empresa que pede o seu reembolso, há que tecer as seguintes considerações.

40 Esta fundamentação leva a instituir uma presunção em prejuízo do requerente. Com efeito, tendo em conta as condições em que ocorre o pedido de reembolso do imposto, inscrever o montante deste imposto logo no ano do seu pagamento pressupõe que o sujeito passivo considera poder contestar imediatamente o seu pagamento com grandes possibilidades de êxito, ao passo que, de acordo com a própria redacção do artigo 29._, n._ 1, da Lei n._ 428/1990, dispõe de um prazo de vários anos para apresentar esse pedido. Além disso, o sujeito passivo pode muito bem, mesmo se contestar o pagamento do imposto, considerar as suas possibilidade de êxito insuficientemente certas para assumir o risco de contabilizar o correspondente montante no activo. A este respeito, tendo em conta as dificuldades em obter desfecho favorável a um pedido de reembolso nas condições expostas no presente processo, tal inscrição pode ser contrária aos princípios de boa contabilidade. Além do mais, considerar demonstrada a repercussão do imposto sobre terceiros pelo facto de o seu montante não ter sido inscrito como crédito no activo assenta já na presunção de que os impostos indirectos são normalmente repercutidos a jusante da cadeia de vendas, presunção que foi declarada contrária ao direito comunitário no âmbito do exame do primeiro aspecto criticado pela Comissão.

41 Face às considerações que precedem, há que declarar que, ao não alterar o artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428/1990, que é interpretado e aplicado pela Administração e por uma parte significativa dos órgãos jurisdicionais, incluindo a Corte suprema di cassazione, de forma tal que o exercício do direito ao reembolso de impostos cobrados em violação da regras comunitária se torna excessivamente difícil para o contribuinte, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

42 Por força do disposto no artigo 69._, n._ 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. No caso vertente, a República Italiana foi vencida e a Comissão requereu a sua condenação nas despesas. Há, portanto, que condenar esse Estado-Membro nas despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(tribunal pleno)

decide:

1) Ao não alterar o artigo 29._, n._ 2, da Lei n._ 428, de 29 de Dezembro de 1990, intitulada «Disposizioni per l'adempimento di obblighi derivanti dall'appartenenza dell'Italia alle Comunità europee (legge comunitaria per il 1990)» [disposições de execução das obrigações que decorrem da integração da Itália nas Comunidades Europeias (lei comunitária para o ano de 1990)], que é interpretado e aplicado pela Administração e por uma parte significativa dos órgãos jurisdicionais, incluindo a Corte suprema di cassazione (Itália), de forma tal que o exercício do direito ao reembolso de impostos cobrados em violação da regras comunitária se torna excessivamente difícil para o contribuinte, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE.

2) A República Italiana é condenada nas despesas.

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