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Document 62018TJ0516

Acórdão do Tribunal Geral (Segunda Secção alargada) de 12 de maio de 2021.
Grão-Ducado do Luxemburgo e o. contra Comissão Europeia.
Auxílios de Estado — Auxílio concedido pelo Luxemburgo à Engie — Decisão que declara o auxílio incompatível com o mercado interno e ilegal e que ordena a sua recuperação — Decisões fiscais antecipadas (tax rulings) — Recursos estatais — Vantagem — Efeito combinado de duas medidas fiscais — Isenção dos rendimentos de participações — Tributação das distribuições de lucros — Abuso de direito — Caráter seletivo — Quadro de referência — Constatação de uma derrogação — Comparabilidade das situações — Regime mãe‑filial — Grupo de sociedades — Recuperação — Harmonização indireta — Direitos processuais — Dever de fundamentação.
Processos T-516/18 e T-525/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:T:2021:251

(Processos T‑516/18 e T‑525/18)

Grão‑Ducado do Luxemburgo e o.

contra

Comissão Europeia

Acórdão do Tribunal Geral (Segunda Secção alargada) de 12 de maio de 2021

«Auxílios de Estado — Auxílio concedido pelo Luxemburgo à Engie — Decisão que declara o auxílio incompatível com o mercado interno e ilegal e que ordena a sua recuperação — Decisões fiscais antecipadas (tax rulings) — Recursos estatais — Vantagem — Efeito combinado de duas medidas fiscais — Isenção dos rendimentos de participações — Tributação das distribuições de lucros — Abuso de direito — Caráter seletivo — Quadro de referência — Constatação de uma derrogação — Comparabilidade das situações — Regime mãe‑filial — Grupo de sociedades — Recuperação — Harmonização indireta — Direitos processuais — Dever de fundamentação»

  1. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Intervenção do Estado em domínios que não foram objeto de harmonização na União Europeia — Fiscalidade direta — Inclusão — Competências dos Estados‑Membros — Limites

    (Artigos 4.° e 5.° TUE; Artigos 3.° a 5.° e 107.° TFUE)

    (cf. n.os 138‑152)

  2. Recurso de anulação — Fundamentos — Desvio de poder — Conceito

    (Artigo 263.o TFUE)

    (cf. n.os 157‑162)

  3. Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado — Análise da existência de uma vantagem seletiva — Fundamentação suficiente

    (Artigos 107.°, n.o 1, e 296.°, n.o 2, TFUE)

    (cf. n.os 168‑178)

  4. Auxílios concedidos pelos Estados — Análise da Comissão — Procedimento administrativo — Decisão de abertura do procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE — Análise da existência de uma vantagem seletiva — Evolução da posição da Comissão depois de terminado o procedimento — Admissibilidade — Requisitos — Apresentação, na decisão de abertura do procedimento, dos elementos‑chave tidos em conta pela Comissão na decisão final — Violação dos direitos processuais do Estado‑Membro em causa e da empresa interessada — Inexistência

    (Artigo 108.o, n.o 2, TFUE, Regulamento n.o 2015/1589 do Conselho, artigos 6.° e 9.°)

    (cf. n.os 192‑210)

  5. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Concessão de uma vantagem por parte do Estado, através de recursos estatais — Adoção de uma decisão fiscal antecipada (tax ruling) — Decisão que tem por efeito reduzir os encargos fiscais de uma empresa — Inclusão

    (Artigo 107.o, primeiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 214‑222)

  6. Recurso de anulação — Objeto — Decisão que assenta em vários pilares de raciocínio, sendo que cada um deles é suficiente para fundamentar a parte decisória — Rejeição dos argumentos relativos à procedência de um dos pilares de raciocínio — Consequências — Rejeição dos argumentos relativos aos outros pilares por serem inoperantes

    (Artigos 107.°, 108.° e 263.° TFUE)

    (cf. n.os 230‑232, 382)

  7. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Medidas fiscais — Análise conjunta dos critérios de seletividade e de vantagem económica — Admissibilidade

    (Artigo 107.o, primeiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 239‑252)

  8. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medida que confere um benefício fiscal — Sistema de tributação dos rendimentos das empresas — Montagem societária e financeira complexa — Quadro de referência para determinar a existência de uma vantagem seletiva — Obrigação de alargar o quadro de referência à diretiva sociedades‑mãe e filial numa situação puramente interna — Inexistência

    (Artigo 107.o, n.o 1, TFUE; Diretivas do Conselho 90/435 e 2011/96)

    (cf. n.os 270‑287)

  9. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medida que confere uma vantagem fiscal — Sistema de tributação dos rendimentos das empresas — Montagem societária e financeira complexa — Quadro de referência caracterizado pelo facto de os rendimentos de participações ao nível de uma sociedade‑mãe subordinada estarem isentos da tributação prévia dos lucros distribuídos ao nível de uma filial — Decisão fiscal antecipada (tax ruling) que derroga o quadro de referência no contexto de uma montagem societária e financeira complexa — Inclusão

    (Artigo 107.o, primeiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 292‑300, 327, 330‑335, 340‑345, 355‑357, 366‑382, 486)

  10. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medida que confere uma vantagem fiscal — Sistema de tributação dos rendimentos das empresas — Montagem societária e financeira complexa — Apreciação baseada na realidade económica e fiscal da montagem em vez de baseada na análise isolada de cada uma das operações da referida montagem — Admissibilidade

    (Artigo 107.o, primeiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 311‑326)

  11. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Apreciação à luz do artigo 107.o, n.o 1, TFUE — Tomada em consideração de uma prática anterior — Exclusão

    (Artigo 107.o, primeiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.o 347)

  12. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medida que confere um benefício fiscal — Sistema de tributação dos rendimentos das empresas — Montagem societária e financeira complexa — Não aplicação pela administração fiscal de disposições nacionais relativas ao abuso de direito em matéria fiscal — Consequência — Tratamento fiscal preferencial concedido a certas empresas — Inclusão

    (Artigo 107.o, primeiro parágrafo, TFUE)

    (cf. n.os 408‑411, 414‑436, 440‑449, 453‑463, 466‑472)

  13. Livre circulação de pessoas — Liberdade de estabelecimento — Legislação fiscal — Sistema de tributação dos rendimentos das empresas — Montagem societária e financeira complexa proibida devido ao seu caráter abusivo — Violação da liberdade de estabelecimento — Inexistência

    (Artigo 49.o TFUE)

    (cf. n.os 474‑476)

  14. Auxílios concedidos pelos Estados — Análise por parte da Comissão — Medida de aplicação de um regime geral entendida como um auxílio individual — Caráter admissível da falta de qualificação prévia desse regime como regime de auxílios

    [Artigo 107.o, n.o 1, TFUE; Regulamento n.o 2015/1589 do Conselho, artigo 1.o, alíneas d) e e)]

    (cf. n.o 485)

  15. Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Violação do princípio da segurança jurídica — Inexistência

    (Artigo 108.o, n.o 2, TFUE; Regulamento n.o 2015/1589 do Conselho, artigo 16.o)

    (cf. n.os 498‑503)

  16. Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Eventual confiança legítima do beneficiário — Inexistência

    (Artigo 108.o, n.o 2, TFUE; Regulamento n.o 2015/1589 do Conselho, artigo 16.o)

    (cf. n.os 505‑508)

Resumo

Decisões fiscais antecipadas concedidas pelo Luxemburgo às sociedades do grupo Engie: o Tribunal Geral da União Europeia declara a existência de uma vantagem fiscal

O Tribunal Geral sublinha que o tratamento fiscal preferencial foi nomeadamente subsequente à não aplicação de uma medida nacional relativa ao abuso de direito

Entre 2008 e 2014, as autoridades fiscais luxemburguesas adotaram duas séries de decisões fiscais antecipadas (tax rulings, a seguir «DFA») respeitantes a montagens societárias e financeiras relativas a transferências de atividades entre sociedades do grupo Engie, todas residentes no Luxemburgo.

Esquematicamente, as transações no âmbito de cada montagem efetuavam‑se em três etapas sucessivas. Em primeiro lugar, uma sociedade holding transferia ativos para uma filial. Em segundo lugar, para financiar os ativos transferidos, essa filial subscrevia, junto de uma sociedade intermédia, um empréstimo sem juros obrigatoriamente convertível em ações (a seguir «ZORA»). Além de o empréstimo concedido não gerar juros periódicos, a filial que subscrevia um ZORA procedia ao seu reembolso, no momento da respetiva conversão, através da emissão de ações cujo montante correspondia ao montante nominal do empréstimo, acrescido de um prémio que era, no essencial, constituído pelo conjunto dos lucros realizados pela filial durante o período do empréstimo (a seguir «acréscimos sobre o ZORA»). Em terceiro lugar, a sociedade intermédia financiava o empréstimo concedido à filial celebrando com a sociedade holding um contrato de venda a prazo pré‑pago nos termos do qual a sociedade holding pagava a essa sociedade intermédia um montante igual ao montante nominal do empréstimo em troca da aquisição dos direitos sobre as ações que a filial emitiria aquando da conversão do ZORA. Assim, se a filial realizasse lucros durante a vigência do ZORA em causa, a sociedade holding seria titular dos direitos sobre o conjunto das ações emitidas, as quais, além do montante nominal do empréstimo, integrariam o valor dos lucros eventualmente realizados.

Estas montagens foram avalizadas por várias DFA. No plano fiscal, ao abrigo das DFA, só era tributada uma margem dos lucros da filial previamente acordada com a administração fiscal luxemburguesa. Depois de ter pedido informações às autoridades luxemburguesas sobre as referidas DFA, a Comissão deu início a um procedimento formal de investigação no termo do qual constatou que decorria das montagens validadas pela administração fiscal que a quase totalidade dos lucros realizados pelas filiais estabelecidas no Luxemburgo não era tributada. Consequentemente, numa decisão adotada em 2018 (a seguir «decisão recorrida»), a Comissão concluiu que essas DFA constituíam auxílios de Estado incompatíveis com o mercado interno e ilegais e que os mesmos deveriam ser recuperados pelas autoridades luxemburguesas junto dos seus beneficiários.

O Grão‑Ducado do Luxemburgo (processo T‑516/18) e as sociedades do grupo Engie (processo T‑525/18) interpuseram recurso de anulação da decisão impugnada perante o Tribunal Geral.

No seu acórdão, o Tribunal Geral validou a abordagem da Comissão que consistiu em apreender a realidade económica e fiscal perante uma montagem societária e financeira complexa, em vez de adotar uma abordagem formalista que consistiria em tomar isoladamente em conta cada uma das operações de montagem. Além disso, o Tribunal Geral considera que a Comissão concluiu acertadamente pela concessão de uma vantagem seletiva devido à não aplicação das disposições nacionais em matéria de abuso de direito.

Apreciação do Tribunal Geral

Uma vez que a tributação direta é da competência exclusiva dos Estados‑Membros, o Tribunal Geral recordou que, ao examinar a questão de saber se as DFA estavam em conformidade com as regras em matéria de auxílios de Estado, a Comissão não procedeu a nenhuma «harmonização fiscal disfarçada», tendo antes exercido a competência que lhe é conferida pelo direito da União. Com efeito, uma vez que a Comissão é competente para zelar pelo respeito do artigo 107.o TFUE, não pode ser acusada de ir além das suas competências quando examina decisões fiscais antecipadas a fim de verificar se as mesmas constituem um auxílio de Estado e, em caso de resposta afirmativa, averiguar se este último é compatível com o mercado interno. Assim, ao verificar se as DFA em causa eram conformes às regras em matéria de auxílios de Estado, a Comissão não fez mais do que proceder a uma apreciação da tributação dita «normal», definida pelo direito fiscal luxemburguês, como aplicado pelas autoridades fiscais luxemburguesas.

O Tribunal Geral também julgou improcedentes os fundamentos relativos a erros de apreciação e de direito quanto à identificação de uma vantagem seletiva na origem de um auxílio de Estado.

No contexto da análise destes fundamentos começaram por ser rejeitados os argumentos atinentes à demonstração da existência de uma confusão entre as condições relativas à constatação de uma vantagem e à demonstração da seletividade das DFA. A este respeito, o Tribunal Geral recorda que, tendo em conta a natureza fiscal das DFA, estas duas condições podem ser apreciadas simultaneamente. Com efeito, em matéria fiscal, a análise da vantagem e a análise da seletividade coincidem uma vez que estes dois critérios implicam demonstrar que a medida fiscal contestada conduz a uma redução do montante do imposto de que normalmente o beneficiário da medida seria devedor por força do regime fiscal comum, também aplicável aos outros contribuintes que se encontram na mesma situação. Ora, no caso em apreço, o Tribunal Geral constatou que a Comissão procurou demonstrar que as DFA conduziam a uma redução do montante do imposto que normalmente seria devido por força do regime fiscal comum e que, consequentemente, essas medidas constituíam uma derrogação das regras fiscais aplicáveis aos outros contribuintes que se encontravam numa situação factual e jurídica comparável.

Em seguida, o Tribunal Geral julgou improcedentes os argumentos relativos à inexistência de uma vantagem fiscal seletiva ao nível das sociedades holding à luz de um quadro de referência restrito estabelecido com base nas disposições fiscais luxemburguesas relativas à tributação das distribuições de lucros e à isenção dos rendimentos de participações ( 1 ). No que diz respeito à definição desse quadro de referência, tendo observado que decorre da análise dessas disposições fiscais que a isenção dos rendimentos de participações só é aplicável aos rendimentos que não foram deduzidos do rendimento tributável das filiais, o Tribunal Geral declarou que a Comissão não cometeu qualquer erro de direito ao constatar que a isenção dos rendimentos de participações ao nível de uma sociedade‑mãe depende da tributação, ao nível da sua filial, dos lucros por esta distribuídos. Quanto à identificação de uma derrogação ao quadro de referência definido, o Tribunal Geral sublinha que, contrariamente a uma abordagem formalista que consistiria em considerar isoladamente cada uma das operações que compõem a montagem financeira criada, havia que ultrapassar as aparências jurídicas para apreender a realidade económica e fiscal da referida montagem. No caso em apreço, o Tribunal Geral observa que as DFA em causa validam diferentes transações que formam um todo, o qual, de forma circular e interdependente, implica a transferência de um setor de atividade e do respetivo financiamento entre três sociedades pertencentes ao mesmo grupo. Essas transações foram concebidas para serem efetuadas em três etapas sucessivas mas interdependentes, que implicam a intervenção de uma sociedade holding, de uma sociedade intermédia e de uma filial. Nestas condições, o Tribunal Geral considera que a Comissão concluiu corretamente que a administração fiscal luxemburguesa tinha derrogado o quadro de referência ao autorizar a isenção ao nível das sociedades holding de rendimentos de participações que, de um ponto de vista económico, correspondiam a um montante que, no contexto de uma montagem societária e financeira, era deduzido a título de encargo ao nível das filiais ( 2 ). Tendo em conta os nexos estabelecidos pela Comissão no que respeita a esta montagem, o Tribunal Geral declarou que a Comissão não cometeu nenhum erro de direito ao identificar, ao nível das sociedades holding, o efeito combinado da dedutibilidade de um rendimento ao nível de uma filial e da sua posterior isenção ao nível da sua sociedade‑mãe.

Depois de rejeitar os argumentos baseados, por um lado, na falta de demonstração pela Comissão de uma violação das disposições fiscais nacionais e, por outro, na falta de identificação das sociedades a quem foi recusado um tratamento fiscal idêntico para uma mesma montagem financeira, o Tribunal conclui que a Comissão demonstrou a seletividade das DFA à luz do quadro de referência restrito.

Na decisão impugnada, a Comissão também constatou a natureza seletiva das DFA à luz da disposição relativa ao abuso de direito, enquanto parte integrante do sistema luxemburguês de tributação das sociedades. Tendo em conta o caráter inédito deste raciocínio destinado a demonstrar a seletividade das DFA, o Tribunal considerou oportuno examinar a procedência dos argumentos invocados a este respeito. Neste contexto, e uma vez que a Comissão demonstrou que estavam reunidos os critérios previstos pelo direito luxemburguês para que fosse constatada a existência de um abuso de direito ( 3 ), o Tribunal Geral considerou que era incontestável que o grupo Engie tinha beneficiado de um tratamento fiscal preferencial devido à não aplicação nas DFA da disposição relativa ao abuso de direito. Com efeito, à luz do objetivo prosseguido pela disposição relativa ao abuso de direito, a saber, a luta contra os comportamentos abusivos em matéria fiscal, a Engie e em especial as sociedades holding envolvidas, estavam numa situação factual e jurídica comparável à de todos os contribuintes luxemburgueses, que não podem legitimamente esperar beneficiar da não aplicação da disposição relativa ao abuso de direito nos casos em que estejam preenchidos os requisitos para a sua aplicação. Por conseguinte, o Tribunal Geral decidiu que a Comissão demonstrou de forma juridicamente bastante a existência de uma derrogação ao quadro de referência, o qual inclui a disposição relativa ao abuso de direito.


( 1 ) Artigos 164.° e 166.° da Lei Relativa ao Imposto sobre o Rendimento.

( 2 ) Trata‑se dos acréscimos sobre o ZORA deduzidos pela filial como encargos.

( 3 ) Os requisitos para identificar um abuso de direito são, em primeiro lugar, a utilização de uma forma jurídica de direito privado, em segundo lugar, a redução da carga fiscal, em terceiro lugar, a utilização de uma via jurídica inadequada e, em quarto lugar, a ausência de motivos não fiscais.

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