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Document 62020CJ0673

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 9 de junho de 2022.
EP contra Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques (INSEE).
Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Nacional do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte residente num Estado‑Membro — Artigo 9.° TUE — Artigos 20.° e 22.° TFUE — Direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no Estado‑Membro de residência — Artigo 50.° TUE — Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica — Consequências da saída de um Estado‑Membro da União — Eliminação dos cadernos eleitorais no Estado‑Membro de residência — Artigos 39.° e 40.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Validade da Decisão (UE) 2020/135.
Processo C-673/20.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:449

Processo C‑673/20

EP

contra

Préfet du Gers

e

Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal judiciaire d’Auch (Tribunal Judicial de Auch, França)]

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 9 de junho de 2022

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Nacional do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte residente num Estado‑Membro — Artigo 9.o TUE — Artigos 20.° e 22.° TFUE — Direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no Estado‑Membro de residência — Artigo 50.o TUE — Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica — Consequências da saída de um Estado‑Membro da União — Eliminação dos cadernos eleitorais no Estado‑Membro de residência — Artigos 39.° e 40.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Validade da Decisão (UE) 2020/135»

  1. Cidadania da União — Disposições do Tratado — Nacionalidade de um Estado‑Membro — Saída do Reino Unido da União Europeia e da Euratom — Consequências — Perda do estatuto de cidadão da União — Nacionais do Reino Unido que exerceram o seu direito de residir num Estado‑Membro antes do termo do período de transição — Perda do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no seu Estado‑Membro de residência — Nacionais privados de qualquer direito de voto no Reino Unido por força do direito desse Estado — Falta de incidência

    [Artigos 9.° e 50.°, n.os 1 e 3, TUE; artigos 18.°, primeiro parágrafo, 20.°, n.os 1 e 2, alínea b), 21.°, n.o 1.°, e 22.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 39.° e 40.°; Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigos 2.°, alínea e), 3.°, n.o 1, 10.°, alíneas a) e b), 13.° a 39.°, 126.°, 127.°, n.o 1, alínea b), e 185.°, quarto parágrafo]

    (cf. n.os 46‑52, 65‑75, 80, 81, 83 e disp. 1)

  2. Estados‑Membros — Retirada da União Europeia — Decisão de um Estado‑Membro de iniciar o procedimento de retirada — Caráter unilateral — Tramitação processual — Efeitos

    (Artigo 50.o, n.os 1, 2 e 3, TUE)

    (cf. n.os 53, 54)

  3. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Atos adotados pelas instituições — Pedido de apreciação da compatibilidade com os Tratados de um acordo internacional celebrado pela União — Admissibilidade

    [Artigo 19.o, n.o 3, alínea b), TUE; artigo 267.o, primeiro parágrafo, alínea b), TFUE]

    (cf. n.os 84‑85)

  4. Cidadania da União — Disposições do Tratado — Nacionalidade de um Estado‑Membro — Saída do Reino Unido da União Europeia e da Euratom — Decisão 2020/135 — Validade — Nacionais do Reino Unido que exerceram o seu direito de residir num Estado‑Membro antes do termo do período de transição — Inexistência de direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no seu país de residência — Violação do princípio da proporcionalidade — Inexistência — Nacionais privados de qualquer direito de voto no Reino Unido por força do direito desse Estado — Falta de incidência

    (Artigos 9.° e 50.°, n.o 3, TUE; artigos 20.° e 22.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 40.o, Decisão 2020/135 do Conselho)

    (cf. n.os 91‑102, disp. 2)

Resumo

EP, uma nacional do Reino Unido residente em França desde 1984, foi eliminada dos cadernos eleitorais franceses na sequência da entrada em vigor, em 1 de fevereiro de 2020, do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (a seguir «Acordo de saída») ( 1 ).

EP contestou essa eliminação no tribunal judiciaire d’Auch (Tribunal Judicial de Auch, França) pelo facto de já não poder votar em França, devido à perda do seu estatuto de cidadã da União na sequência da saída do Reino Unido da União, nem no Reino Unido, pelo facto de já não gozar do direito de voto e de elegibilidade nesse Estado ( 2 ). Segundo EP, esta perda viola os princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade, constituindo igualmente uma discriminação entre os cidadãos da União e uma violação da sua liberdade de circulação.

O órgão jurisdicional de reenvio considera que a aplicação a EP das disposições do Acordo de saída constitui uma violação desproporcionada do direito fundamental de voto desta última. A este respeito, interroga‑se sobre a questão de saber se o artigo 50.o TUE ( 3 ) e o Acordo de saída devem ser interpretados no sentido de que derrogam a cidadania da União dos nacionais do Reino Unido que, embora continuando sujeitos à lei desse Estado, se instalaram no território de outro Estado‑Membro há mais de quinze anos e estão, por isso, privados de qualquer direito de voto. Em caso afirmativo, pergunta em que medida se deve considerar que as disposições pertinentes do Acordo de saída ( 4 ) e do TFUE ( 5 ) permitem a esses nacionais conservar os direitos de cidadania da União de que beneficiavam antes da saída do Reino Unido da União. Questiona‑se igualmente sobre a validade do Acordo de saída e, por conseguinte, sobre a validade da Decisão 2020/135 do Conselho relativa à celebração desse acordo ( 6 ).

No seu acórdão, o Tribunal de Justiça declara, por um lado, que as disposições pertinentes do TUE ( 7 ) e do TFUE ( 8 ), lidas em conjugação com o Acordo de saída, devem ser interpretadas no sentido de que, desde a saída do Reino Unido da União, os nacionais desse Estado que exerceram o seu direito de residir num Estado‑Membro antes do termo do período de transição previsto nesse acordo deixaram de beneficiar do estatuto de cidadão da União. Mais concretamente, já não gozam do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no seu Estado‑Membro de residência, incluindo quando estão igualmente privados, por força do direito do Estado de que são nacionais, do direito de voto nas eleições organizadas por esse Estado. Por outro lado, o Tribunal de Justiça não identifica nenhum elemento suscetível de afetar a validade da Decisão 2020/135.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça recorda que a cidadania da União exige, em conformidade com o artigo 9.o TUE e o artigo 20.o, n.o 1, TFUE, a posse da nacionalidade de um Estado‑Membro e que exista, portanto, um vínculo indissociável e exclusivo entre a posse da nacionalidade de um Estado‑Membro e a aquisição, mas também a conservação, do estatuto de cidadão da União.

À cidadania da União estão ligados uma série de direitos ( 9 ), nomeadamente o direito fundamental e individual de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros. Em particular, no que respeita aos cidadãos da União que residem num Estado‑Membro de que não são nacionais, esses direitos compreendem o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no Estado‑Membro onde residem, direito que é igualmente reconhecido pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ( 10 ). Em contrapartida, nenhuma destas disposições consagra esse direito a favor dos nacionais de Estados terceiros. Por conseguinte, o facto de um particular ter exercido, quando o Estado de que é nacional era um Estado‑Membro, o seu direito de circular e de permanecer livremente no território de um outro Estado‑Membro não é suscetível de lhe permitir conservar o estatuto de cidadão da União e todos os direitos que lhe são associados pelo Tratado FUE se, na sequência da saída do seu Estado de origem da União, este deixar de possuir a nacionalidade de um Estado‑Membro.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça recorda que, por força da sua decisão soberana, tomada ao abrigo do artigo 50.o, n.o 1, TUE, de se retirar da União, o Reino Unido deixou, desde 1 de fevereiro de 2020, de ser membro desta, pelo que os seus nacionais passaram a ter a nacionalidade de um Estado terceiro e já não a de um Estado‑Membro. Ora, a perda da nacionalidade de um Estado‑Membro implica, para qualquer pessoa que não possua igualmente a nacionalidade de outro Estado‑Membro, a perda automática do seu estatuto de cidadão da União. Consequentemente, esta pessoa já não beneficia do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no seu Estado‑Membro de residência.

A este respeito, o Tribunal de Justiça precisa que, sendo a perda do estatuto de cidadão da União para um nacional do Reino Unido uma consequência automática da decisão tomada soberanamente pelo Reino Unido de se retirar da União, nem as autoridades competentes dos Estados‑Membros nem os órgãos jurisdicionais dos mesmos podem ser obrigados a proceder a uma análise individual das consequências da perda do estatuto de cidadão da União para as pessoas em causa, à luz do princípio da proporcionalidade.

Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça salienta que o Acordo de saída não contém nenhuma disposição que mantenha, para além da saída do Reino Unido da União, a favor dos nacionais do Reino Unido que exerceram o seu direito de residir num Estado‑Membro antes do termo do período de transição, o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no seu Estado‑Membro de residência.

Embora este acordo preveja o princípio da manutenção da aplicabilidade do direito da União ao Reino Unido durante o período de transição, o seu artigo 127.o, n.o 1, alínea b), exclui todavia expressamente, em derrogação deste princípio, a aplicação no Reino Unido e no seu território das disposições do TFUE e da Carta ( 11 ) relativas ao direito de voto e de elegibilidade dos cidadãos da União para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais no seu Estado‑Membro de residência durante esse período. É certo que esta exclusão menciona, literalmente, o Reino Unido e «o território desse Estado» sem mencionar expressamente os nacionais deste último. Todavia, tendo em conta o artigo 127.o, n.o 6, do Acordo de saída, a referida exclusão deve ser entendida no sentido de que se aplica igualmente aos nacionais do Reino Unido que exerceram o seu direito de residir num Estado‑Membro em conformidade com o direito da União antes do termo do período de transição. Por conseguinte, os Estados‑Membros deixaram de ser obrigados, a partir de 1 de fevereiro de 2020, a equiparar os nacionais do Reino Unido residentes no seu território aos nacionais de um Estado‑Membro no que respeita à concessão do direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais.

Uma interpretação contrária do artigo 127.o, n.o 1, alínea b), do Acordo de saída, que consistisse em limitar a sua aplicação apenas ao território do Reino Unido e, portanto, apenas aos cidadãos da União que residiam nesse Estado durante o período de transição, criaria, de resto, uma assimetria entre os direitos conferidos por este acordo aos nacionais do Reino Unido e aos cidadãos da União. Com efeito, essa assimetria seria contrária ao objetivo do acordo, que é de garantir uma proteção recíproca dos cidadãos da União e dos nacionais do Reino Unido que exerceram os seus respetivos direitos à livre circulação antes do termo do período de transição.

No que respeita ao período que começou no termo do período de transição, o Tribunal de Justiça precisa que o direito de voto e de elegibilidade dos nacionais do Reino Unido nas eleições municipais no Estado‑Membro de residência não entra no âmbito de aplicação da parte II do Acordo de saída, que prevê regras destinadas a proteger, após 1 de janeiro de 2021, de forma recíproca e igual, os cidadãos da União e os nacionais do Reino Unido ( 12 ) que exerceram os seus direitos à livre circulação antes do termo do período de transição.

Por último, o artigo 18.o, primeiro parágrafo, e o artigo 21.o, primeiro parágrafo, TFUE ( 13 ), que o Acordo de saída torna aplicáveis durante o período de transição e posteriormente, não podem ser interpretados no sentido de que obrigam os Estados‑Membros a continuar a conceder, após 1 de fevereiro de 2020, aos nacionais do Reino Unido que residam no seu território o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais organizadas nesse território que concedem aos cidadãos da União.

Em quarto e último lugar, no que respeita à validade da Decisão 2020/135, o Tribunal de Justiça declara que esta decisão não é contrária ao direito da União ( 14 ). Em particular, nenhum elemento permite considerar que a União, enquanto parte contratante no Acordo de saída, excedeu os limites do seu poder de apreciação na condução das relações externas, ao não ter exigido que um direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais no Estado‑Membro de residência fosse previsto em benefício dos nacionais do Reino Unido que exerceram o seu direito de residir num Estado‑Membro antes do termo do período de transição.


( 1 ) Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 7).

( 2 ) Por força de uma norma de direito do Reino Unido segundo a qual um nacional desse Estado que resida há mais de 15 anos no estrangeiro deixa de ter o direito de participar nas eleições no Reino Unido.

( 3 ) O artigo 50.o TUE é relativo ao direito e às condições de retirada de um Estado‑Membro da União Europeia.

( 4 ) Artigos 2.°, 3.°, 10.°, 12.° e 127.° do Acordo de saída.

( 5 ) Artigos 18.°, 20.° e 21.° TFUE.

( 6 ) Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020, relativa à celebração do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 1).

( 7 ) Artigo 9.o TUE, relativo à cidadania europeia, e artigo 50.o TUE, relativo ao direito e às condições de retirada de um Estado‑Membro da União da Europeia.

( 8 ) Artigo 20.o TFUE, relativo à cidadania da União, artigo 21.o TFUE, relativo à liberdade de circulação e à liberdade de instalação dos cidadãos da União, e artigo 22.o TFUE, relativo aos direitos de voto e de elegibilidade dos cidadãos da União.

( 9 ) Por força do artigo 20.o, n.o 2, e dos artigos 21.° e 22.° TFUE.

( 10 ) Artigo 40.o da Carta.

( 11 ) Artigos 20.o, n.o 2, alínea b), e 22.° TFUE, e artigos 39.° e 40.° da Carta.

( 12 ) Artigo 10.o, alíneas a) e b), do Acordo de saída.

( 13 ) O artigo 18.o TFUE é relativo à proibição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade e o artigo 21.o TFUE diz respeito à liberdade de circulação e à liberdade de instalação dos cidadãos da União.

( 14 ) No caso em apreço, ao artigo 9.o TUE, aos artigos 18.°, 20.°, 21.° e 22.° TFUE, bem como ao artigo 40.o da Carta.

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