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Document 62018CJ0066
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 6 de outubro de 2020.
Comissão Europeia contra Hungria.
Incumprimento de Estado — Admissibilidade — Competência do Tribunal de Justiça — Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços — Artigo XVI — Acesso aos mercados — Lista de compromissos específicos — Requisito relativo à existência de uma autorização — Artigo XX, n.° 2 — Artigo XVII — Tratamento nacional — Prestador de serviços com sede num Estado terceiro — Regulamentação nacional de um Estado‑Membro que impõe condições para a prestação de serviços de ensino superior no seu território — Requisito de celebração de uma convenção internacional com o Estado da sede de prestador — Requisito relativo à prestação de formação no Estado da sede do prestador — Alteração das condições de concorrência em benefício dos prestadores nacionais — Justificação — Ordem pública — Prevenção das práticas enganosas — Artigo 49.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Diretiva 2006/123/CE — Serviços no mercado interno — Artigo 16.° — Artigo 56.° TFUE — Livre prestação de serviços — Existência de uma restrição — Justificação — Razão imperiosa de interesse geral — Ordem pública — Prevenção das práticas enganosas — Nível elevado de qualidade do ensino — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 13.° — Liberdade académica — Artigo 14.°, n.° 3 — Liberdade de criação de estabelecimentos de ensino — Artigo 16.° — Liberdade de empresa — Artigo 52.°, n.° 1.
Processo C-66/18.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 6 de outubro de 2020.
Comissão Europeia contra Hungria.
Incumprimento de Estado — Admissibilidade — Competência do Tribunal de Justiça — Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços — Artigo XVI — Acesso aos mercados — Lista de compromissos específicos — Requisito relativo à existência de uma autorização — Artigo XX, n.° 2 — Artigo XVII — Tratamento nacional — Prestador de serviços com sede num Estado terceiro — Regulamentação nacional de um Estado‑Membro que impõe condições para a prestação de serviços de ensino superior no seu território — Requisito de celebração de uma convenção internacional com o Estado da sede de prestador — Requisito relativo à prestação de formação no Estado da sede do prestador — Alteração das condições de concorrência em benefício dos prestadores nacionais — Justificação — Ordem pública — Prevenção das práticas enganosas — Artigo 49.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Diretiva 2006/123/CE — Serviços no mercado interno — Artigo 16.° — Artigo 56.° TFUE — Livre prestação de serviços — Existência de uma restrição — Justificação — Razão imperiosa de interesse geral — Ordem pública — Prevenção das práticas enganosas — Nível elevado de qualidade do ensino — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 13.° — Liberdade académica — Artigo 14.°, n.° 3 — Liberdade de criação de estabelecimentos de ensino — Artigo 16.° — Liberdade de empresa — Artigo 52.°, n.° 1.
Processo C-66/18.
Court reports – general
ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:792
Processo C‑66/18
Comissão Europeia
contra
Hungria
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 6 de outubro de 2020
«Incumprimento de Estado — Admissibilidade — Competência do Tribunal de Justiça — Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços — Artigo XVI — Acesso aos mercados — Lista de compromissos específicos — Requisito relativo à existência de uma autorização — Artigo XX, n.o 2 — Artigo XVII — Tratamento nacional — Prestador de serviços com sede num Estado terceiro — Regulamentação nacional de um Estado‑Membro que impõe condições para a prestação de serviços de ensino superior no seu território — Requisito de celebração de uma convenção internacional com o Estado da sede de prestador — Requisito relativo à prestação de formação no Estado da sede do prestador — Alteração das condições de concorrência em benefício dos prestadores nacionais — Justificação — Ordem pública — Prevenção das práticas enganosas — Artigo 49.o TFUE — Liberdade de estabelecimento — Diretiva 2006/123/CE — Serviços no mercado interno — Artigo 16.o — Artigo 56.o TFUE — Livre prestação de serviços — Existência de uma restrição — Justificação — Razão imperiosa de interesse geral — Ordem pública — Prevenção das práticas enganosas — Nível elevado de qualidade do ensino — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 13.o — Liberdade académica — Artigo 14.o, n.o 3 — Liberdade de criação de estabelecimentos de ensino — Artigo 16.o — Liberdade de empresa — Artigo 52.o, n.o 1»
Ação por incumprimento — Procedimento pré‑contencioso — Objeto — Prazos fixados ao Estado‑Membro — Exigência de prazos razoáveis — Critérios de apreciação — Incidência da brevidade dos prazos na admissibilidade do recurso — Requisitos — Prova de uma violação dos direitos de defesa do Estado‑Membro
(Artigo 258.o TFUE)
(cf. n.os 45‑47, 52)
Ação por incumprimento — Competência do Tribunal de Justiça — Ação destinada a obter a declaração do incumprimento de um acordo internacional — Acordos da União — Compromissos específicos assumidos no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) anexo ao Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio — Competência exclusiva da União — Inclusão
[Artigos 3.°, n.o 1, alínea e), 216.°, n.o 2, e 258.° TFUE]
(cf. n.os 68‑71, 73, 74)
Ação por incumprimento — Competência do Tribunal de Justiça — Ação destinada a obter a declaração do incumprimento por um Estado‑Membro de compromissos específicos assumidos no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) anexo ao Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) — Inclusão — Justificações — Responsabilidade internacional em que incorre a União em caso de violação por um Estado‑Membro das suas obrigações internacionais — Incidência da existência do sistema de resolução de litígios da OMC — Inexistência — Obrigação de a União respeitar as regras e os princípios do direito internacional geral e consuetudinário — Efeitos respetivos da declaração de um facto internacionalmente ilícito e da declaração de um incumprimento
(Artigo 258.o TFUE — Memorando de entendimento sobre as regras e processos que regem a resolução dos litígios, anexo ao Acordo que institui a OMC).
(cf. n.os 81, 84‑91)
Política comercial comum — Acordos internacionais — Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) anexo ao Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) — Regra do tratamento nacional — Limitações — Alcance — Compromisso específico em matéria de serviços de ensino superior com financiamento privado — Limitação relativa ao acesso ao mercado que visa um regime de autorização prévia — Extensão à regra do tratamento nacional — Requisito — Medida contrária às obrigações de acesso ao mercado e de tratamento nacional
[Acordo geral sobre o comércio de serviços (GATS), artigos XVI, XVII e XX]
(cf. n.os 107, 108, 112, 113)
Política comercial comum — Acordos internacionais — Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) anexo ao Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) — Regra do tratamento nacional — Compromisso específico em matéria de serviços de ensino superior com financiamento privado — Regulamentação nacional que subordina a prestação de tais serviços à existência de uma convenção internacional prévia — Alteração das condições de concorrência em benefício dos prestadores nacionais semelhantes — Inadmissibilidade — Justificações — Manutenção da ordem pública — Exclusão na falta de prova de uma ameaça real e suficientemente grave — Prevenção de práticas enganosas — Medida arbitrária e desproporcionada — Exclusão
[Acordo geral sobre o comércio de serviços (GATS), artigos XIV, alíneas a) e c), i), e XVII]
(cf. n.os 118, 120, 121, 128, 130, 135, ‑137)
Política comercial comum — Acordos internacionais — Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) anexo ao Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) — Regra do tratamento nacional — Compromisso específico em matéria de serviços de ensino superior com financiamento privado — Regulamentação nacional que subordina a prestação de tais serviços à prestação de uma formação no Estado de origem — Alteração das condições de concorrência em benefício dos prestadores nacionais semelhantes — Inadmissibilidade — Justificações — Manutenção da ordem pública — Exclusão na falta de prova de uma ameaça real e suficientemente grave — Prevenção de práticas enganosas — Exclusão
[Acordo geral sobre o comércio de serviços (GATS), artigos XIV, alíneas a) e c), i), e XVII]
(cf. n.os 147‑149, 154, 155)
Liberdade de estabelecimento — Disposições do Tratado — Âmbito de aplicação — Legislação nacional aplicável a todos os estabelecimentos de ensino superior — Inclusão
(Artigo 49.o TFUE)
(cf. n.os 159‑163)
Liberdade de estabelecimento — Restrições — Regulamentação nacional que subordina a prestação de serviços de ensino superior por estabelecimentos estrangeiros à prestação de uma formação no Estado de origem — Inadmissibilidade — Justificações — Manutenção da ordem pública — Exclusão na falta de prova de uma ameaça real, atual e suficientemente grave — Prevenção de práticas enganosas — Exclusão na falta de elementos de prova específicos e circunstanciados — Necessidade de assegurar um elevado nível de qualidade do ensino superior — Exclusão perante uma medida desadequada à prossecução desse objetivo
(Artigo 49.o TFUE)
(cf. n.os 170, 178, 179, 181, 182‑80, 185, 187, 188)
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Serviços no mercado interno — Diretiva 2006/123 — Âmbito de aplicação — Prestação de serviços de ensino superior mediante remuneração — Inclusão
(Artigo 57.o TFUE; Diretiva 2006/123 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 2.° e 4.°, n.o 1)
(cf. n.os 193‑195)
Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Serviços no mercado interno — Diretiva 2006/123 — Regulamentação nacional que subordina a prestação de serviços de ensino superior por estabelecimentos estrangeiros à prestação de uma formação no Estado de origem — Inadmissibilidade — Justificações — Razões de ordem pública e de segurança pública — Exclusão na falta de prova de uma ameaça real, atual e suficientemente grave
(Diretiva 2006/123 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 16.o, n.o 1, segundo parágrafo, e n.o 2)
(cf. n.os 198‑200, 203‑206)
Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Âmbito de aplicação — Aplicação do direito da União — Regulamentação nacional que participa da execução de obrigações de acordos internacionais celebrados pela União — Regulamentação nacional suscetível de entravar uma ou mais liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE — Estado‑Membro que invoca razões imperiosas de interesse geral reconhecidas pelo direito da União como justificação — Inclusão
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 51.o, n.o 1)
(cf. n.os 212‑215)
Ação por incumprimento — Compatibilidade de medidas nacionais com o direito da União — Acusação relativa à violação dos direitos garantidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União — Liberdade académica, liberdade de criar estabelecimentos de ensino e liberdade de empresa — Análise autónoma — Requisitos — Aplicabilidade da Carta
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 13.°, 14.°, n.o 3, 16.° e 51.°, n.o 1)
(cf. n.os 212‑215)
Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Liberdade académica — Alcance — Não consagração enquanto tal na Convenção Europeia dos Direitos do Homem — Tomada em consideração de recomendações de órgãos do Conselho da Europa e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) — Autonomia dos estabelecimentos de ensino superior — Inclusão
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 13.° e 52.°, n.o 3)
(cf. n.os 222‑227)
Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Liberdade académica — Liberdade de criar estabelecimentos de ensino e liberdade de empresa — Regulamentação nacional que subordina a prestação de serviços de ensino superior à prestação de uma formação no Estado de origem e à existência de uma convenção internacional prévia — Inadmissibilidade
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 13.°, 14.°, n.o 3, e 16.°)
(cf. n.os 228, 233, 234, 239‑242)
Resumo
Os requisitos previstos pela Hungria para autorizar os estabelecimentos de ensino superior estrangeiros a exercer as suas atividades no seu território são incompatíveis com o direito da União
No Acórdão Comissão/Hungria (Ensino Superior) (C‑66/18), proferido em 6 de outubro de 2020, a Grande Secção do Tribunal de Justiça julgou procedente a ação por incumprimento intentada pela Comissão Europeia contra aquele Estado‑Membro. O Tribunal de Justiça declarou, por um lado, que, ao sujeitar o exercício, na Hungria, de uma atividade de formação conducente à obtenção de um diploma de ensino superior, por parte dos estabelecimentos de ensino superior situados fora do Espaço Económico Europeu (EEE), à existência de uma convenção internacional que ligue a Hungria ao Estado terceiro no qual o estabelecimento em causa tem a sua sede, a Hungria não respeitou os compromissos assumidos, em matéria de tratamento nacional, por força do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) anexo ao Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) ( 1 ). Além disso, este requisito é contrário às disposições da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») relativas à liberdade académica, à liberdade de criar estabelecimentos de ensino superior e à liberdade de empresa ( 2 ).
Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou que, ao sujeitar o exercício, na Hungria, da atividade dos estabelecimentos de ensino superior estrangeiros, incluindo estabelecimentos com sede noutro Estado‑Membro do EEE, à condição de ministrarem uma formação de ensino superior no Estado da sua sede, a Hungria não respeitou os compromissos assumidos, em matéria de tratamento nacional, por força do GATS, bem como as suas obrigações decorrentes da liberdade de estabelecimento ( 3 ), da livre circulação de serviços ( 4 ), e das disposições da Carta acima referidas.
Em 4 de abril de 2017, a Hungria adotou, com urgência, uma lei que altera a Lei relativa ao Ensino Superior ( 5 ), apresentada como sendo destinada a garantir a qualidade das atividades de ensino superior e cujo principal objetivo era proceder a uma reformulação do regime de autorização aplicável aos estabelecimentos de ensino superior estrangeiros. Independentemente de terem ou não beneficiado de uma aprovação anterior, esses estabelecimentos passaram a estar sujeitos a novos requisitos, entre os quais os examinados pelo Tribunal de Justiça.
A Comissão intentou uma ação por incumprimento no Tribunal de Justiça contra a Hungria, alegando que a Lei de 2017 relativa ao Ensino Superior era incompatível tanto com os compromissos assumidos pela Hungria no âmbito do GATS como com a liberdade de estabelecimento, a livre circulação de serviços e as disposições da Carta relativas à liberdade académica, à liberdade de criar estabelecimentos de ensino superior e à liberdade de empresa.
O Tribunal de Justiça começou por julgar improcedentes os fundamentos de inadmissibilidade invocados pela Hungria. Com efeito, por um lado, no que respeita aos prazos curtos aplicados pela Comissão durante o procedimento pré‑contencioso, o Tribunal de Justiça, confirmando a sua jurisprudência na matéria ( 6 ), analisou a tramitação concreta desse procedimento e concluiu que a Hungria não tinha demonstrado a alegada violação dos direitos de defesa. Além disso, observou que os prazos controvertidos tinham sido fixados tendo em conta a entrada em vigor, num curto prazo, das disposições em causa, a qual foi inicialmente fixada em 1 de janeiro de 2018. Por outro lado, o Tribunal de Justiça considerou que o Governo húngaro não podia utilmente invocar a ilegitimidade das intenções políticas que atribui à Comissão, concretamente, a proteção dos interesses particulares da Central European University, uma vez que a oportunidade de intentar uma ação por incumprimento decorre apenas do poder discricionário de que a Comissão dispõe a este respeito, o qual escapa, enquanto tal, à fiscalização jurisdicional exercida pelo Tribunal de Justiça.
Em seguida, o Tribunal de Justiça declarou‑se competente para conhecer das acusações relativas a violações do direito da OMC. A este respeito, após ter recordado que qualquer acordo internacional celebrado pela União faz parte integrante do direito da União, o Tribunal de Justiça constatou que era esse o caso do acordo que institui a OMC, do qual o GATS faz parte. Posteriormente, no que respeita à articulação entre a competência exclusiva da União no domínio da política comercial comum e a competência alargada dos Estados‑Membros no domínio da educação, o Tribunal de Justiça precisou que os compromissos assumidos no quadro do GATS, incluindo os relativos à liberalização do comércio de serviços de ensino privados, fazem parte da política comercial comum. Por outro lado, respondendo à argumentação do Governo húngaro relativa ao caráter exclusivo da competência de interpretação, nomeadamente atribuída aos órgãos que constituem o sistema de resolução de litígios da OMC, o Tribunal de Justiça sublinhou que não só a existência do sistema de resolução de litígios próprio da OMC não se opõe a que, no âmbito de um processo por incumprimento, o Tribunal de Justiça se declare competente para conhecer das acusações relativas a violações do direito da OMC, no caso em apreço do GATS, como o exercício dessa competência é, além do mais, perfeitamente coerente com a obrigação que cada membro da OMC, de entre os quais a União, tem de velar pelo respeito das obrigações decorrentes do direito dessa organização A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinhou que a União pode ser internacionalmente responsabilizada por um eventual incumprimento, por parte de um Estado‑Membro, das obrigações que assumiu ao abrigo do GATS.
Nesta mesma perspetiva, o Tribunal de Justiça precisou as implicações concretas, no exercício da sua própria competência, das disposições das convenções internacionais que vinculam a União, bem como das regras e princípios do direito internacional geral consuetudinário, cujo caráter vinculativo para a União o Tribunal começou por recordar. Assim, à luz dos princípios de direito internacional geral codificados em matéria de responsabilidade do Estado por ato internacionalmente ilícito, o Tribunal de Justiça observou que a apreciação da atuação de um Estado‑Membro, que incumbe ao Tribunal no âmbito de um processo por incumprimento, embora seja feita à luz do direito da OMC, não vincula os outros membros da OMC, não sendo também suscetível de afetar a apreciação posterior que o Órgão de Resolução de Litígios (ORL) da OMC possa vir a ser chamado a efetuar. Assim, segundo o Tribunal de Justiça, nem a União nem o Estado‑Membro em causa podem invocar um acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no termo de um processo por incumprimento para se subtraírem à obrigação que lhes incumbe de cumprir as consequências jurídicas associadas pelo direito da OMC às decisões do ORL.
Tendo admitido a sua competência, o Tribunal de Justiça deu início à análise das acusações da Comissão. Em primeiro lugar, no que respeita à apreciação do requisito de existência de uma convenção internacional prévia à luz do artigo XVII do GATS relativo ao tratamento nacional, o Tribunal de Justiça começou por declarar que, no domínio dos serviços de ensino superior, a Hungria comprometeu‑se plenamente a conceder o tratamento nacional previsto nesse artigo, apesar de ter formulado uma reserva a respeito do compromisso assumido em matéria de acesso ao mercado (artigo XVI) no sentido de que a criação de estabelecimentos de ensino na Hungria continua sujeita a autorização prévia. Com efeito, segundo o direito da OMC, tal reserva de autorização prévia destinada a limitar o compromisso assumido em matéria de acesso ao mercado só pode valer em matéria de tratamento nacional na medida em que vise uma medida contrária quer à obrigação em matéria de acesso ao mercado quer à obrigação relativa ao tratamento nacional. Ora, no caso em apreço, o caráter geral da reserva de autorização prévia através da qual a Hungria pretendia limitar o seu compromisso relativo ao acesso ao mercado não tem nenhum caráter discriminatório, pelo que a Hungria não pode invocá‑la no que respeita à obrigação de tratamento nacional.
Em seguida, o Tribunal de Justiça precisou que a celebração de uma convenção internacional, como exigida pela Lei de 2017 relativa ao Ensino Superior, impõe aos prestadores estrangeiros em causa uma condição suplementar para que possam prestar serviços de ensino superior na Hungria, condição essa cujo preenchimento depende do poder discricionário das autoridades húngaras, o que basta para identificar uma alteração das condições de concorrência em detrimento dos estabelecimentos em causa e a favor dos estabelecimentos húngaros. Por último, o Tribunal de Justiça considerou que as explicações fornecidas pelo Governo húngaro a respeito dos objetivos prosseguidos pelo requisito em causa não eram suficientes para o justificar, à luz do artigo XIV do GATS. Com efeito, no que respeita ao facto de a Hungria invocar a proteção da ordem pública, este Estado‑Membro não demonstrou, de forma concreta e circunstanciada, a existência de uma ameaça real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade húngara. Além disso, na medida em que o requisito em causa se destina a prevenir práticas enganosas, o Tribunal de Justiça declarou que o mesmo constitui um meio de discriminação arbitrária devido ao caráter determinante da vontade política das autoridades húngaras para o cumprir. Por conseguinte, esta justificação da Hungria também não foi acolhida.
Além disso, e em todo o caso, o Tribunal de Justiça declarou o requisito em causa desproporcionado, observando que se aplicava de forma indiferenciada, incluindo a estabelecimentos já presentes no mercado húngaro.
Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça examinou o requisito de atividade de formação no Estado de origem. No que respeita, antes de mais, ao compromisso assumido pela Hungria nos termos do artigo XVII do GATS, o Tribunal de Justiça, depois de ter sublinhado a desvantagem concorrencial resultante do referido requisito para os estabelecimentos em causa, salientou, como anteriormente, o caráter insuficiente das explicações fornecidas pelo Governo húngaro quanto aos objetivos suscetíveis de justificar a sua necessidade. Por motivos análogos aos invocados na análise da primeira acusação, concluiu que, na medida em que se aplica a estabelecimentos de ensino superior estabelecidos num Estado terceiro membro da OMC, este requisito violava esta disposição. Por outro lado, na medida em que o referido requisito é aplicável a estabelecimentos de ensino que têm a sua sede noutro Estado‑Membro da União, o Tribunal de Justiça considerou que existia uma restrição injustificada tanto à liberdade de estabelecimento garantida pelo artigo 49.o TFUE como à livre circulação de serviços prevista no artigo 16.o da Diretiva relativa aos serviços. Por último, na medida em que o requisito em causa é descrito no sentido de que visa assegurar um nível elevado de qualidade do ensino superior, o Tribunal de Justiça observou que a atividade exigida, cuja qualidade deve ser demonstrada, em nada prejudica a qualidade do ensino ministrado na Hungria, pelo que esse objetivo não é suficiente para justificar o requisito em causa.
Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça analisou a questão de saber se os requisitos em causa, introduzidos pela Lei de 2017 relativa ao Ensino Superior, eram conformes com os artigos 13.°, 14.°, n.o 3, e 16.° da Carta. A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou, antes de mais, que, no que respeita às disposições controvertidas, a Hungria estava vinculada pela Carta na medida em que a execução de obrigações que lhe incumbem por força de um acordo internacional que faz parte integrante do direito da União, como o GATS, por um lado, e as restrições introduzidas por estas mesmas disposições às liberdades fundamentais, cujo caráter justificado sustentou em vão, por outro, inscrevem‑se no quadro da aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.
Examinando sucessivamente o alcance das garantias concedidas pelas referidas disposições da Carta, o Tribunal de Justiça sublinhou, no que respeita ao exercício da atividade dos estabelecimentos de ensino superior, que a liberdade académica não tinha apenas uma dimensão individual, na medida em que está associada à liberdade de expressão, e, mais especificamente no domínio da investigação, às liberdades de comunicação, de investigação e de difusão dos resultados assim adquiridos, tendo igualmente uma dimensão institucional e organizacional que encontra expressão na autonomia desses estabelecimentos. Ora, o Tribunal de Justiça constatou que as medidas controvertidas eram suscetíveis de pôr em perigo a atividade académica dos estabelecimentos de ensino superior estrangeiros em causa no território húngaro e, por conseguinte, de privar os universitários em causa da infraestrutura autónoma, necessária à condução das suas investigações científicas e ao exercício das suas atividades pedagógicas, pelo que as referidas medidas eram suscetíveis de limitar a liberdade académica protegida no artigo 13.o da Carta. Além disso, a criação desses estabelecimentos está abrangida pelos artigos 14.°, n.o 3, e 16.° da Carta e, por motivos análogos aos que acabam de ser evocados, as medidas controvertidas constituem uma ingerência nos direitos consagrados por essas disposições. Uma vez que estas diversas ingerências não encontraram justificações à luz do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, o Tribunal de Justiça declarou que a Hungria não tinha cumprido as disposições acima referidas.
( 1 ) Artigo XVII do GATS.
( 2 ) Artigos 13.°, 14.°, n.o 3, e 16.°, n.o 1
( 3 ) Artigo 49.o TFUE.
( 4 ) Artigo 16.o da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO 2006, L 376, p. 36, a seguir «Diretiva Serviços»).
( 5 ) Nemzeti felsőoktatásról szóló 2011. évi CCIV. törvény módosításáról szóló 2017. évi XXV. törvény (Lei n.o XXV de 2017, que altera a Lei n.o CCIV de 2011 relativa ao Ensino Superior Nacional) (a seguir «Lei de 2017 relativa ao Ensino Superior»).
( 6 ) V., em especial, Acórdão de 18 de junho de 2020, Comissão/Hungria (Transparência associativa) (C‑78/18, EU:C:2020:476, n.o 30 e jurisprudência referida) (v. igualmente comunicado de imprensa n.o 73/20).