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Document 62020CJ0377

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 12 de maio de 2022.
Servizio Elettrico Nazionale SpA e o. contra Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato e o.
Reenvio prejudicial — Concorrência — Posição dominante — Exploração abusiva — Artigo 102.° TFUE — Incidência de uma prática sobre o bem‑estar dos consumidores e sobre a estrutura do mercado — Prática de exclusão abusiva — Capacidade da prática para produzir um efeito de exclusão — Recurso a meios diferentes daqueles que decorrem de uma concorrência pelo mérito — Impossibilidade para um hipotético concorrente igualmente eficaz de replicar a prática — Existência de uma intenção anticoncorrencial — Abertura à concorrência do mercado da venda de eletricidade — Transferência de informações comercialmente sensíveis no interior de um grupo de empresas com o objetivo de manter uma posição dominante no mercado herdada de um monopólio legal — Imputabilidade do comportamento da filial à sociedade‑mãe.
Processo C-377/20.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:379

Processo C‑377/20

Servizio Elettrico Nazionale SpA e o.

contra

Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato e o.

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato)

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 12 de maio de 2022

«Reenvio prejudicial — Concorrência — Posição dominante — Exploração abusiva — Artigo 102.o TFUE — Incidência de uma prática sobre o bem‑estar dos consumidores e sobre a estrutura do mercado — Prática de exclusão abusiva — Capacidade da prática para produzir um efeito de exclusão — Recurso a meios diferentes daqueles que decorrem de uma concorrência pelo mérito — Impossibilidade para um hipotético concorrente igualmente eficaz de replicar a prática — Existência de uma intenção anticoncorrencial — Abertura à concorrência do mercado da venda de eletricidade — Transferência de informações comercialmente sensíveis no interior de um grupo de empresas com o objetivo de manter uma posição dominante no mercado herdada de um monopólio legal — Imputabilidade do comportamento da filial à sociedade‑mãe»

  1. Posição dominante — Abuso — Proibição — Finalidade — Sanção das práticas suscetíveis de causar, mesmo que indiretamente um prejuízo aos consumidores ao pôr em causa uma estrutura de concorrência efetiva — Necessidade de demonstrara a existência de um prejuízo direto causado aos consumidores — Inexistência — Justificação das práticas pelos seus efeitos positivos para os consumidores — Requisitos

    [Artigo 3.o, n.o 1, alínea b), e 102.° TFUE; Protocolo n.o 27 anexado aos Tratados UE e FUE]

    (cf. n.os 44‑47, disp. 1)

  2. Concorrência — Regras da União — Aplicação pelas autoridades nacionais da concorrência — Decisão que declara uma infração e aplica uma coima — Decisão que se apoia em elementos de prova suficientes para demonstrar a existência da infração contestada — Obrigações probatórias da empresa em posição dominante que contesta a realidade da infração — Alcance

    (Artigo 102.o TFUE)

    (cf. n.os 46‑48, 84‑86, 103, disp. 1, 4)

  3. Concorrência — Regras da União — Aplicação pelas autoridades nacionais da concorrência — Procedimento administrativo — Decisão que declara uma infração e aplica uma coima — Obrigação para a autoridade da concorrência de ouvir a empresa em questão — Necessidade de examinar com cuidado e imparcialidade todos os elementos do caso vertente

    [Artigo 102.o TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União, artigo 41.o, n.os 1 e 2, alínea a)]

    (cf. n.o 52)

  4. Posição dominante — Abuso — Conceito — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de exclusão — Caráter suficiente de um efeito potencial — Ónus da prova contrária que incumbe à empresa em posição dominante — Prova da inexistência de efeitos de exclusão concretos — Elemento insuficiente por si só

    (Artigo 102.o TFUE)

    (cf. n.os 53‑55, 56‑58, disp. 2)

  5. Posição dominante — Abuso — Conceito — Conceito objetivo que visa os comportamentos suscetíveis de influenciar a estrutura do mercado e que tem por efeito criar obstáculos à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência — Tomada em conta da existência de uma intenção anticoncorrencial — Inexistência de necessidade — Valor de circunstância factual

    (Artigo 102.o TFUE)

    (cf. n.os 60‑64, disp. 3)

  6. Posição dominante — Abuso — Conceito — Conceito objetivo que visa os comportamentos suscetíveis de influenciar a estrutura do mercado e que tem por efeito criar obstáculos à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência — Obrigações que incumbem à empresa dominante — Exercício da concorrência unicamente pelo mérito — Critérios de apreciação — Conformidade do comportamento em causa com outras regras jurídicas — Falta de pertinência — Exploração de recursos ou de meios próprios para a detenção de tal posição dominante

    (Artigo 102.o TFUE)

    (cf. n.os 67‑69, 73‑78)

  7. Posição dominante — Abuso — Posição dominante com origem num monopólio legal ao qual é posto fim no âmbito da abertura à concorrência do mercado em questão — Transferência de informações comercialmente sensíveis no interior de um grupo de sociedades com vista a conservar essa posição dominante — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de exclusão — Análise do concorrente igualmente eficaz — Comportamento que consiste na exploração de meios próprios à detenção de uma posição dominante necessariamente insuscetível de ser adotada por tal concorrente — Caráter abusivo — Justificação objetiva

    (Artigo 102.o TFUE)

    (cf. n.os 71, 78‑86, 91, 92, 103, disp. 4)

  8. Concorrência — Regras da União — Aplicação pelas autoridades nacionais da concorrência — Decisão que declara uma infração e aplica uma coima — Imputação das práticas de uma filial à sua sociedade‑mãe — Decisão que se apoia de maneira exclusiva na presunção ilidível do exercício efetivo de uma influência determinante — Admissibilidade — Alcance do dever de fundamentação

    [Artigo 102.o TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 41.°, n.os 1 e 2, alínea c), e 51.°, n.o 1]

    (cf. n.os 105‑112, 115‑120, 123, disp. 5)

Resumo

O Tribunal de Justiça precisa os critérios para qualificar de abusiva uma posição dominante em matéria de práticas de exclusão, com fundamento nos efeitos anticoncorrenciais do comportamento de um operador histórico no contexto da liberalização do mercado da eletricidade

O processo inscreve‑se no contexto da liberalização progressiva do mercado da venda de energia elétrica em Itália.

Embora, desde 1 de julho de 2007, todos os utilizadores da rede elétrica italiana, incluindo as famílias e as pequenas e médias empresas, podem escolher o seu fornecedor, num primeiro momento, foi feita uma distinção entre clientes elegíveis para escolherem um fornecedor no mercado livre e clientes do mercado protegido, compostos por particulares e por pequenas empresas que continuavam a estar abrangidos por um regime regulamentado, a saber, o servizio di maggior tutela (serviço de melhor proteção), que comporta, designadamente, proteções especiais em matéria de preços. Foi apenas num segundo momento que estes últimos foram autorizados a participar no mercado livre.

Com vista à liberalização do mercado, a ENEL, uma empresa até então verticalmente integrada e titular do monopólio na produção de energia elétrica em Itália e que opera na distribuição desta, foi sujeita a um processo de dissociação das atividades de distribuição e de venda, bem como das marcas (unbundling). No termo desse processo, as diferentes fases foram atribuídas a filiais distintas. Assim, foi confiado à E‑Distribuzione o serviço de distribuição, a EE foi encarregada do fornecimento de eletricidade no mercado livre e à Servizio Elettrico Nazionale (a seguir «SEN») foi atribuída a gestão do serviço de melhor proteção.

Ao termo de um inquérito conduzido pela Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM), na sua qualidade de autoridade nacional da concorrência, esta adotou, em 20 de dezembro de 2018, uma decisão na qual declarou que era imputável à SEN e à Enel Energia, a partir do mês de janeiro de 2012 e até ao mês de maio de 2017, um abuso de posição dominante, em violação do artigo 102.o TFUE e, em consequência, aplicou‑lhes solidariamente uma coima num montante de mais de 93 milhões de euros. O comportamento censurado consistiu em pôr em prática uma estratégia de exclusão que visava transferir a clientela da SEN, enquanto gestor histórico do mercado protegido, para a Enel Energia, que opera no mercado livre, com vista a suprir uma partida massiva dos clientes da SEN para novos fornecedores quando da abertura posterior à concorrência do mercado em questão. Para esse fim, segundo a decisão da AGCM, os clientes do mercado protegido foram, designadamente, convidados pela SEN a dar o seu consentimento em receber propostas comerciais relativas ao mercado livre segundo modalidades discriminatórias para as propostas dos concorrentes do grupo ENEL.

O montante da coima foi reduzido para a quantia de cerca de 27,5 milhões de euros em execução das decisões judiciais proferidas em primeira instância no âmbito de recursos interpostos pela ENEL e suas duas filiais da decisão da AGCM. O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), no qual estas mesmas sociedades interposto recurso, submeteu ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação e à aplicação do artigo 102.o TFUE em matéria de práticas de exclusão.

Com o seu acórdão, o Tribunal de Justiça fornece precisões sobre as condições nas quais o comportamento de uma empresa pode ser considerado, com fundamento nos seus efeitos anticoncorrenciais, constitutivo de um abuso de posição dominante, quando esse comportamento assenta na exploração de recursos ou de meios próprios à detenção de tal posição no contexto da liberalização de um mercado. Nesta ocasião, o Tribunal de Justiça delimita os critérios de apreciação pertinentes bem como o alcance do ónus da prova que incumbe à autoridade nacional da concorrência em questão que tenha adotado uma decisão com fundamento no artigo 102.o TFUE.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em resposta às questões relativas ao interesse protegido pelo artigo 102.o TFUE, o Tribunal precisa, em primeiro lugar, os elementos próprios para caracterizar a exploração abusiva de uma posição dominante. Para este efeito, observa, por um lado, que o bem‑estar dos consumidores, tanto intermediários como finais, deve ser visto como o que constitui o objetivo último que justifica a intervenção do direito da concorrência para reprimir a exploração abusiva de uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. No entanto, uma autoridade da concorrência respeita o ónus da prova que lhe incumbe, se demonstrar que uma prática de uma empresa em posição dominante é suscetível de pôr em causa, recorrendo a recursos ou a meios diferentes dos que regem uma competição normal, uma estrutura de concorrência efetiva, sem que seja necessário que esta demonstre que a referida prática tem, além disso, capacidade para causar um prejuízo direto aos consumidores. A empresa dominante em causa pode, no entanto, escapar à proibição enunciada no artigo 102.o TFUE, demonstrando que o efeito de exclusão que pode resultar da prática em causa é contrabalançado, ou mesmo superado, por efeitos positivos para os consumidores.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça recorda que só se pode considerar que um comportamento de uma empresa em posição dominante tem caráter abusivo na condição de se ter demonstrado a sua capacidade para restringir a concorrência, concretamente, para produzir os efeitos de exclusão censurados. Em contrapartida, essa qualificação não se exige que se demonstre que o resultado esperado de tal comportamento, que visava excluir os seus concorrentes do mercado em questão tenha sido alcançado. Nestas condições, a prova produzida por uma empresa em posição dominante da inexistência de efeitos de exclusão concretos não pode ser considerada suficiente, por si só, para afastar a aplicação do artigo 102.o TFUE. Em contrapartida, este elemento pode constituir um indício da incapacidade do comportamento em causa para produzir os efeitos de exclusão alegados, desde que seja corroborado por outros elementos de prova destinados a demonstrar essa incapacidade.

Em segundo lugar, no que respeita às dúvidas manifestadas pelo órgão jurisdicional quanto a ter em conta uma eventual intenção da empresa em causa, o Tribunal recorda que a existência de uma prática de exclusão abusiva por uma empresa em posição dominante deve ser apreciada com fundamento na capacidade dessa prática para produzir efeitos anticoncorrenciais. Daqui decorre que uma autoridade da concorrência não é obrigada a provar a intenção da empresa em causa de excluir os seus concorrentes através de meios ou de recursos diferentes dos que regulam uma concorrência pelo mérito. O Tribunal precisa, porém, que a prova de tal intenção constitui, no entanto, uma circunstância factual suscetível de ser tida em conta para efeitos da determinação de um abuso de posição dominante.

Em terceiro lugar, o Tribunal fornece os elementos de interpretação solicitados pelo órgão jurisdicional nacional com vista à aplicação do artigo 102.o TFUE a fim de distinguir, de entre as práticas levadas a cabo por uma empresa em posição dominante que assentam na exploração lícita à margem do direito da concorrência, de recursos ou de meios próprios à detenção de tal posição, aquelas que poderiam escapar à proibição enunciada neste artigo, na medida em que estariam abrangidas por uma concorrência normal, e aquelas que, pelo contrário, seriam de considerar «abusivas» na aceção desta disposição.

A este respeito, o Tribunal começa por recordar que o caráter abusivo dessas práticas pressupõe que estas tenham tido a capacidade para produzir os efeitos de exclusão descritos na decisão impugnada. É certo que empresas em posição dominante, independentemente das causas de tal posição, podem defender‑se dos seus concorrentes, mas devem, porém, fazê‑lo recorrendo unicamente a meios próprios de uma concorrência «normal», isto é, baseada no mérito. Ora, uma prática que não pode ser adotada por um hipotético concorrente igualmente eficaz no mercado em causa, na medida em que assenta na exploração de recursos ou de meios próprios à detenção de uma posição dominante, não se pode considerar abrangida por uma concorrência baseada no mérito. Nestas condições, quando uma empresa perde o monopólio legal que detinha anteriormente num mercado, esta deve abster se, durante toda a fase de liberalização desse mercado, de recorrer a meios de que dispunha ao abrigo do seu antigo monopólio e que, a esse título, não estão disponíveis para os seus concorrentes, para conservar, de outro modo que através do seu próprio mérito, uma posição dominante no mercado em causa recentemente liberalizado.

No entanto, tal prática pode, porém, escapar à proibição enunciada no artigo 102.o TFUE se a empresa em posição dominante em questão demonstrar que essa prática era, quer objetivamente justificada por circunstâncias externas à empresa e proporcionada a essa justificação, quer contrabalançada ou mesmo superada por ganhos em termos de eficácia que aproveitam de modo igual aos consumidores.

Em quarto e último lugar, convidado pelo órgão jurisdicional nacional a precisar as condições que permitem imputar a responsabilidade do comportamento de uma filial à sua sociedade‑mãe, o Tribunal declara que, quando uma posição dominante é explorada de forma abusiva por uma ou várias filiais pertencentes a uma unidade económica, a existência dessa unidade é suficiente para considerar que a sociedade mãe é, também ela, responsável por esse abuso. A existência de tal unidade deve ser presumida se, no momento dos factos, pelo menos praticamente a totalidade do capital dessas filiais era detida, direta ou indiretamente, pela sociedade mãe. Em tais condições, a autoridade da concorrência não tem de apresentar qualquer prova suplementar, a menos que a sociedade mãe demonstre que não tinha o poder de definir os comportamentos das suas filiais, agindo estas de maneira autónoma.

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