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Documento 62023CJ0289
Judgment of the Court (Second Chamber) of 7 November 2024.#Agencia Estatal de la Administración Tributaria v A and and S.E.I v Agencia Estatal de la Administración Tributaria.#Requests for a preliminary ruling from the Juzgado de lo Mercantil no 1 de Alicante and Juzgado de lo Mercantil no 10 de Barcelona.#Reference for a preliminary ruling – Judicial cooperation in civil matters – Directive (EU) 2019/1023 – Procedures concerning restructuring, insolvency and discharge of debt – Article 1(4) – Subject matter and scope – Extension of procedures to insolvent natural persons who are not entrepreneurs – Article 20 – Access to discharge of debt – Article 23(1), (2) and (4) – Derogations – Exclusion of specific categories of debt from discharge of debt – Natural person who has become insolvent – Good faith of the debtor – Conditions for access to discharge of debt – Exclusion of claims governed by public law.#Joined Cases C-289/23 and C-305/23.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 7 de novembro de 2024.
Agencia Estatal de la Administración Tributaria contra A e S.E.I contra Agencia Estatal de la Administración Tributaria.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Juzgado de lo Mercantil de Alicante e pelo Juzgado de lo Mercantil de Barcelona.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Diretiva (UE) 2019/1023 — Processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas — Artigo 1.°, n.° 4 — Objeto e âmbito de aplicação — Extensão dos processos a pessoas singulares insolventes que não sejam empresários — Artigo 20.° — Acesso ao perdão — Artigo 23.°, n.os 1, 2 e 4 — Derrogações — Exclusão de determinadas categorias de dívida do perdão de dívidas — Pessoa singular em situação de insolvência — Boa‑fé do devedor — Condições de acesso ao perdão de dívidas — Exclusão dos créditos de direito público.
Processos apensos C-289/23 e C-305/23.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 7 de novembro de 2024.
Agencia Estatal de la Administración Tributaria contra A e S.E.I contra Agencia Estatal de la Administración Tributaria.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Juzgado de lo Mercantil de Alicante e pelo Juzgado de lo Mercantil de Barcelona.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Diretiva (UE) 2019/1023 — Processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas — Artigo 1.°, n.° 4 — Objeto e âmbito de aplicação — Extensão dos processos a pessoas singulares insolventes que não sejam empresários — Artigo 20.° — Acesso ao perdão — Artigo 23.°, n.os 1, 2 e 4 — Derrogações — Exclusão de determinadas categorias de dívida do perdão de dívidas — Pessoa singular em situação de insolvência — Boa‑fé do devedor — Condições de acesso ao perdão de dívidas — Exclusão dos créditos de direito público.
Processos apensos C-289/23 e C-305/23.
Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral
Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2024:934
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
7 de novembro de 2024 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Diretiva (UE) 2019/1023 — Processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas — Artigo 1.o, n.o 4 — Objeto e âmbito de aplicação — Extensão dos processos a pessoas singulares insolventes que não sejam empresários — Artigo 20.o — Acesso ao perdão — Artigo 23.o, n.os 1, 2 e 4 — Derrogações — Exclusão de determinadas categorias de dívida do perdão de dívidas — Pessoa singular em situação de insolvência — Boa‑fé do devedor — Condições de acesso ao perdão de dívidas — Exclusão dos créditos de direito público»
Nos processos apensos C‑289/23, [Corván] i e C‑305/23 [Bacigán] ( i ),
que têm por objeto dois pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de lo Mercantil n.o 1 de Alicante (Tribunal de Comércio n.o 1 de Alicante, Espanha) (C‑289/23) e pelo Juzgado de lo Mercantil n.o 10 de Barcelona (Tribunal de Comércio n.o 10 de Barcelona, Espanha) (C‑305/23), por decisões de 25 de abril de 2023 e de 2 de maio de 2023, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 25 de abril de 2023 e em 15 de maio de 2023, nos processos
Agencia Estatal de la Administración Tributaria
contra
A (C‑289/23),
e
S.E.I.
contra
Agencia Estatal de la Administración Tributaria (C‑305/23),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
composto por: F. Biltgen (relator), presidente da Primeira Secção, exercendo funções de presidente da Segunda Secção, M. L. Arastey Sahún, presidente da Quinta Secção, e J. Passer, juiz,
advogado‑geral: J. Richard de la Tour,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
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– |
em representação do Governo Espanhol, por A. Ballesteros Panizo e A. Gavela Llopis, na qualidade de agentes, |
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– |
em representação da Comissão Europeia, por J. L. Buendía Sierra, L. Malferrari e G. von Rintelen, na qualidade de agentes, |
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de maio de 2024,
profere o presente
Acórdão
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1 |
Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 4, e do artigo 23.o, n.os 1, 2 e 4, da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência) (JO 2019, L 172, p. 18). |
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2 |
Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem A (C‑289/22) e S.E.I. (C‑305/23) à Agencia Estatal de Administración Tributaria (Agência Nacional da Administração Tributária, Espanha) (a seguir «AEAT») a respeito de pedidos de perdão de dívidas apresentados por A e S.E.I. durante os processos de insolvência a eles respeitantes. |
Quadro jurídico
Direito da União
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3 |
Nos termos dos considerandos 21 e 78 a 81 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência:
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4 |
O artigo 1.o desta diretiva prevê: «1. A presente diretiva estabelece regras relativas: […]
[…] 2. A presente diretiva não se aplica aos processos a que se refere o n.o 1 do presente artigo respeitantes a devedores que sejam: […]
[…] 4. Os Estados‑Membros podem alargar a aplicação dos processos a que se refere o n.o 1, alínea b), às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários. […]» |
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5 |
O título III da referida diretiva, sob a epígrafe «Perdão de dívidas e inibições», inclui os artigos 20.o a 24.o desta. |
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6 |
O artigo 20.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Acesso ao perdão», enuncia: «1. Os Estados‑Membros asseguram que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida em conformidade com a presente diretiva. Os Estados‑Membros podem exigir que a atividade comercial, industrial ou artesanal, ou profissional por conta própria, à qual as dívidas de um empresário insolvente estão associadas, tenha cessado. 2. Os Estados‑Membros em que o perdão total da dívida tenha como condição o reembolso parcial da dívida pelo empresário asseguram que a obrigação de reembolso tenha por base a situação individual do empresário e, em especial, que seja proporcional aos seus rendimentos e ativos disponíveis ou suscetíveis de serem apreendidos durante o prazo para o perdão e tenha em conta o interesse equitativo dos credores. 3. Os Estados‑Membros asseguram que os empresários que tenham obtido o perdão das suas dívidas possam beneficiar de regimes nacionais vigentes que prevejam apoios empresariais para empresários, incluindo acesso a informações pertinentes e atualizadas sobre esses regimes.» |
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7 |
O artigo 23.o da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, sob a epígrafe «Derrogações», tem a seguinte redação: «1. Em derrogação dos artigos 20.o a 22.o, os Estados‑Membros mantêm ou introduzem disposições que recusem ou limitem ou revoguem o acesso ao perdão de dívidas ou que revoguem o benefício do perdão, ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total da dívida ou períodos de inibição mais prolongados se, de acordo com o direito nacional, o empresário insolvente tiver agido de forma desonesta ou de má‑fé para com os credores ou outras partes interessadas quando contraiu as dívidas, durante o processo de insolvência ou durante o reembolso das dívidas, sem prejuízo das disposições nacionais em matéria de ónus da prova. 2. Em derrogação dos artigos 20.o a 22.o, os Estados‑Membros podem manter ou introduzir disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas ou revoguem o benefício do perdão, ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total da dívida ou períodos de inibição mais prolongados em determinadas circunstâncias bem definidas e se tais derrogações forem devidamente justificadas, nomeadamente:
[…] 4. Os Estados‑Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados, nomeadamente no caso:
[…]» |
Direito espanhol
TRLC
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8 |
A lei aplicável rationae temporis aos litígios no processo principal é o Real Decreto Legislativo 1/2020 por el que se aprueba el texto refundido de la Ley Concursal (Decreto Real Legislativo n.o 1/2020, que aprova o Texto Consolidado da Lei da Insolvência), de 5 de maio de 2020 (BOE n.o 127, de 7 de maio de 2020, p. 31518), conforme alterado pela Ley 16/2022 de reforma del texto refundido de la Ley Concursal, aprobado por el Real Decreto Legislativo 1/2020, para la transposición de la Diretiva (UE) 2019/1023 [Lei 16/2022 que altera o Texto Consolidado da Lei da Insolvência, aprovado pelo Decreto Real Legislativo n.o 1/2020 para a transposição da Diretiva (UE) 2019/1023], de 5 de setembro de 2022 (BOE n.o 214, de 6 de setembro de 2022, p. 123682) (a seguir «TRLC»). |
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9 |
Nos termos do preâmbulo da Lei 16/2022: «[…] […] Quando o devedor insolvente é uma pessoa singular, o processo de insolvência visa identificar os devedores de boa‑fé e oferecer‑lhes uma exoneração parcial das suas dívidas, que lhes permita assim beneficiar de uma segunda oportunidade, evitando a sua passagem para a economia paralela ou para uma situação de marginalidade. […] A [Diretiva sobre reestruturação e insolvência] obriga todos os Estados‑Membros a instituir um mecanismo de segunda oportunidade para evitar que os devedores sejam tentados a deslocalizar‑se para outros países que já preveem esses mecanismos, com o custo que isso implicaria tanto para o devedor como para os seus credores. Paralelamente, a homogeneização neste ponto é considerada essencial para o funcionamento do mercado único europeu. Uma das alterações mais drásticas da nova regulamentação consiste no facto de, em vez de subordinar a obtenção da exoneração à satisfação de um determinado tipo de dívidas (como previa o artigo 487.o, n.o 2, do Texto Consolidado da Lei da Insolvência) se adotar um sistema de exoneração por mérito, no qual qualquer devedor, seja ou não empresário, desde que satisfaça o requisito de boa‑fé em que assenta este instituto, pode exonerar‑se de todas as suas dívidas, salvo aquelas que, excecionalmente e pela sua natureza especial, se considere que não podem legalmente ser objeto de exoneração. Mantém‑se a possibilidade, já aceite pelo legislador espanhol em 2015, de conceder a exoneração a qualquer devedor pessoa singular de boa‑fé, seja ou não empresário. […] A boa‑fé do devedor continua a ser a pedra angular da exoneração. Em conformidade com as recomendações dos organismos internacionais, estabelece‑se uma delimitação normativa da boa‑fé, por referência a determinados comportamentos objetivos enumerados de forma exaustiva (numerus clausus), sem recurso a padrões de comportamento vagos ou insuficientemente específicos, ou cuja prova imponha ao devedor um ónus incomportável. […] […] A exoneração de dívidas é alargada a todos os créditos no âmbito do processo coletivo e dos créditos sobre a massa insolvente. As exceções baseiam‑se, em certos casos, na importância especial da sua satisfação para uma sociedade justa e solidária fundada no Estado de direito (como as dívidas relativas a obrigações de alimentos, as dívidas resultantes de créditos de direito público, as dívidas resultantes de infrações penais ou ainda as dívidas resultantes de responsabilidade extracontratual). Assim, a exoneração das dívidas de direito público está sujeita a certos limites e só pode ocorrer na primeira exoneração de dívidas, e não nas seguintes. Noutros casos, a exceção justifica‑se pelas sinergias ou externalidades negativas que poderiam decorrer da exoneração de certos tipos de dívidas: a exoneração das dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas do processo conducente a um perdão da dívida poderia desincentivar certos terceiros a colaborar com o devedor (por exemplo, os advogados), o que prejudicaria o acesso do insolvente ao processo. Do mesmo modo, a exoneração de dívidas que gozem de garantias reais comprometeria, sem fundamento nenhum, um dos elementos essenciais do acesso ao crédito e, assim, o bom funcionamento das economias modernas, a saber, a imunidade do credor que goza de uma garantia real sólida face às vicissitudes da insolvência ou do incumprimento do devedor. Por último, a título excecional, o juiz pode declarar a não exoneração total ou parcial de certas dívidas quando necessário para evitar a insolvência do credor. […]» |
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10 |
O artigo 486.o do TRLC dispõe: «O devedor pessoa singular, seja ou não empresário, pode pedir a exoneração das dívidas não pagas nos termos e condições estabelecidos na presente lei, desde que seja devedor de boa‑fé:
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11 |
O artigo 487.o do TRLC tem a seguinte redação: «1. O devedor que se encontre numa das seguintes situações não poderá obter a exoneração das dívidas não pagas:
[…] 2. Nos casos referidos nos pontos 3 e 4 do número anterior, se a qualificação ainda não for definitiva, o juiz suspende a decisão de exoneração de dívidas até que a qualificação seja definitiva. […]» |
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12 |
O artigo 489.o do TRLC prevê: «1. A exoneração de dívidas estende‑se a todas as dívidas não satisfeitas, com exceção das seguintes: […]
[…]
[…] 3. Um crédito de direito público pode ser exonerado até ao montante estabelecido no n.o 1, ponto 5, segundo período, mas unicamente na primeira exoneração de dívidas; nenhum montante poderá beneficiar de exoneração nas exonerações sucessivas que o mesmo devedor possa obter.» |
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13 |
O artigo 493.o do TRLC dispõe: «1. Qualquer credor afetado pela exoneração de dívidas terá o direito de requerer ao juiz da insolvência a revogação da exoneração de dívidas nos seguintes casos: […]
2. A revogação não pode ser pedida após o termo de um prazo de três anos a contar da data de exoneração com liquidação da massa ativa ou da exoneração provisória em caso de plano de reembolso.» |
Lei Fiscal Geral
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14 |
O artigo 43.o, n.o 1, alínea b), da Ley 58/2003 General Tributaria (Lei Geral Tributária 58/2003), de 17 de dezembro de 2003 (BOE n.o 302, de 18 de dezembro de 2003, p. 44987), na versão aplicável aos factos do presente processo (a seguir «Lei Geral Tributária»), dispõe: «São solidariamente responsáveis pela dívida fiscal as seguintes pessoas ou entidades: […]
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15 |
O artigo 191.o da Lei Geral Tributária prevê: «1. Constitui infração fiscal o não pagamento, no prazo estabelecido pela regulamentação de cada imposto, da totalidade ou de parte da dívida fiscal que deveria resultar da autoliquidação correta do imposto, exceto se essa dívida for regularizada em conformidade com o artigo 27.o ou for aplicável o artigo 161.o, n.o 1, alínea b), ambos da presente lei. […] A infração fiscal prevista no presente artigo é leve, grave ou muito grave, em conformidade com o disposto nos números seguintes. A base da sanção é o montante não incluído na autoliquidação, em consequência da prática da infração. […] 4. A infração é muito grave quando foram utilizados meios fraudulentos. A infração é igualmente muito grave, ainda que não tenha sido utilizado qualquer meio fraudulento, na falta de pagamento de montantes retidos ou que deveriam ter sido retidos, ou [na falta de pagamento] de pagamentos por conta, desde que as retenções efetuadas e não pagas, bem como os pagamentos por conta imputados e não efetuados, representem uma percentagem superior a 50 % do montante de base da sanção. […]» |
Litígios nos processos principais e questões prejudiciais
Processo C‑289/23, Corván
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16 |
Em 7 de julho de 2022, A. requereu a abertura de um processo de insolvência a seu respeito e declarou dívidas no valor de 537787,69 euros. Dado que, em 26 de julho de 2022, o órgão jurisdicional de reenvio declarou a insolvência deste devedor e encerrou o processo por insuficiência da massa insolvente, em 28 de setembro de 2022 o referido devedor pediu um perdão total de dívidas. Em 19 de outubro de 2022, o referido órgão jurisdicional declarou admissível a oposição ao perdão de dívidas deduzida pela AEAT devido à existência de diversos créditos de direito público. |
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17 |
No órgão jurisdicional de reenvio, a AEAT alega, por um lado, que esta oposição se devia à existência, há menos de dez anos, de uma decisão definitiva de reversão da responsabilidade, ao abrigo do artigo 43.o da Lei Geral Tributária, num total de 114408,09 euros de dívidas e sanções fiscais da responsabilidade da sociedade de que A era administrador, e que, por conseguinte, esse devedor não tinha atuado de boa‑fé. Acrescenta, por outro lado, que determinados créditos em causa são públicos, pelo que estão excluídos do perdão de dívidas. |
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18 |
O órgão jurisdicional de reenvio salienta, designadamente, por um lado, que, no seu Acórdão n.o 381/2019, de 2 de julho de 2019 (ES:TS:2019:2253), o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) declarou que, na transposição da Diretiva sobre reestruturação e insolvência para o direito espanhol, o legislador espanhol optou por um modelo normativo da «boa‑fé», pelo que a má‑fé decorre da verificação de uma série de circunstâncias previstas na lei. Os juízes não têm, portanto, o poder de apreciar as circunstâncias que impedem o acesso ao perdão de dívidas e a sua função limita‑se a determinar se estão reunidas as circunstâncias previstas na lei. Portanto, o conceito de «boa‑fé» não está ligado ao conceito geral previsto pelo Código Civil, mas ao preenchimento de determinadas condições. Ora, nos termos da legislação em vigor imediatamente antes desta transposição, considerava‑se que um devedor estava de boa‑fé quando se encontravam reunidas duas condições, a saber, por um lado, que não tivesse havido insolvência fraudulenta e, por outro, que não tivesse sido condenado por certas infrações por sentença transitada em julgado. Por conseguinte, o paradoxo da referida transposição seria o facto de ter introduzido um regime de acesso ao perdão de dívidas mais restritivo do que o regime anterior à mesma transposição, o que suscitava sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com o direito da União. |
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19 |
Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, no caso em apreço, a transposição da Diretiva sobre reestruturação e insolvência pode ter servido para implementar um sistema de incentivo ao pagamento dos créditos que dificilmente teriam sido recuperados pela Administração Pública em caso de insolvência e que esse sistema não se baseia no conceito de «boa‑fé» do devedor. Esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre se essa transposição é compatível com o artigo 23.o, n.o 2, desta diretiva e tem igualmente algumas dúvidas quanto à interpretação do artigo 23.o, n.o 4, da referida diretiva. |
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20 |
Nestas condições, o Juzgado de lo Mercantil n.o 1 de Alicante (Tribunal de Comércio n.o 1 de Alicante, Espanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
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Processo C‑305/23, Bacigán
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21 |
S.E.I., uma pessoa singular que se tornou insolvente, solicitou um perdão de dívidas no âmbito de um processo de insolvência a seu respeito. S.E.I., que anteriormente exercia uma atividade económica independente, já não era empresário no momento da abertura do processo de insolvência. |
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22 |
No âmbito do referido processo de insolvência e após a liquidação total do seu património, incluindo a sua habitação, S.E.I. apresentou, em 18 de outubro de 2022, um pedido de perdão total das dívidas ainda não pagas nessa data. A AEAT opôs‑se a este pedido com o fundamento de que S.E.I. não podia ser considerado um devedor de «boa‑fé», uma vez que, nos dez anos anteriores ao referido pedido, tinha sido punido por decisão administrativa definitiva que lhe aplicou uma coima de 504,99 euros por «infrações tributárias graves», na aceção do artigo 191.o da Lei Geral Tributária, e que essa coima não tinha sido paga na data do mesmo pedido de perdão total de dívidas. |
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23 |
Chamado a conhecer do processo, o órgão jurisdicional de reenvio observa, em primeiro lugar, que o legislador espanhol fez uso da faculdade conferida pelo artigo 1.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência e alargou, no TRLC, a aplicação dos processos que permitem um perdão de dívidas previstas por esta diretiva às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários. Em segundo lugar, começa por se interrogar se, nesse caso, a referida diretiva deve ser interpretada no sentido de que obriga o legislador nacional a adotar um regime aplicável às pessoas singulares que respeite as disposições dos artigos 20.o a 24.o da mesma diretiva. Esse órgão jurisdicional interroga‑se, em seguida, sobre se o artigo 23.o desta, e em especial o seu n.o 1, pode ser interpretado no sentido de que o conceito de comportamento «desonest[o] ou de má‑fé» abrange igualmente comportamentos negligentes ou imprudentes de um devedor. Por último, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à interpretação correta desse artigo 23.o, n.o 2, designadamente quanto ao caráter exaustivo ou não das circunstâncias enumeradas no referido artigo 23.o, n.o 2, alíneas a) a f). |
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24 |
Nestas circunstâncias, o Juzgado de lo Mercantil n.o 10 de Barcelona (Tribunal do Comércio n.o 10 de Barcelona, Espanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
Em caso de resposta afirmativa à primeira questão,
Em caso de resposta negativa à segunda questão,
Em caso de resposta à terceira questão no sentido de que os Estados[‑Membros] podem introduzir outras circunstâncias bem definidas e justificadas diferentes dos casos previstos nas alíneas a) a f) do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva [sobre reestruturação e insolvência],
Em caso de respostas às [terceira e quarta] questões no sentido de que os Estados[‑Membros] não podem introduzir circunstâncias diferentes das que são enumeradas nas alíneas a) a f) do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva [sobre reestruturação e insolvência], ou de que, se introduzirem outras condutas bem definidas diferentes, estas devem ser justificadas com base em comportamentos desonestos ou de má‑fé do devedor,
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Quanto às questões prejudiciais
Quanto à primeira questão, alínea a), no processo C‑289/23 e à terceira questão no processo C‑305/23
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25 |
Com a primeira questão, alínea a), no processo C‑289/23 e a terceira questão no processo C‑305/23, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, se o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que a lista de circunstâncias que nele figura tem caráter taxativo ou não e, em caso de resposta negativa, se os Estados‑Membros têm, no âmbito da transposição desta diretiva para o seu direito nacional, a faculdade de introduzir disposições que limitem o acesso ao direito ao perdão de dívidas mais do que a legislação nacional anterior, recusando ou limitando o acesso ao perdão de dívidas, revogando o benefício do perdão ou prevendo prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados em circunstâncias diferentes das enumeradas no artigo 23.o, n.o 2. |
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26 |
No que respeita, em primeiro lugar, à questão de saber se a lista que figura no artigo 23.o, n.o 2, da referida diretiva tem ou não caráter exaustivo, há que observar que esta lista é introduzida pelo termo «nomeadamente» e que são utilizados termos com o mesmo significado nas outras versões linguísticas desta disposição. Resulta, portanto, da redação da referida disposição que as diferentes circunstâncias nela enumeradas não são exaustivas, mas sim exemplificativas. |
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27 |
Esta interpretação literal do artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência é corroborada pelo considerando 80 desta diretiva, que enuncia que o legislador da União considerou que os Estados‑Membros «não deverão ser impedidos de prever derrogações adicionais em circunstâncias bem definidas e quando devidamente justificado». |
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28 |
Daqui resulta que este artigo 23.o, n.o 2, deve ser interpretado no sentido de que a lista de circunstâncias que nele figura não tem caráter exaustivo e os Estados‑Membros dispõem de uma margem de apreciação que lhes permite introduzir disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas, que revoguem o benefício do perdão ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados em circunstâncias diferentes das enumeradas nesta disposição, desde que, como resulta da redação da referida disposição, essas circunstâncias estejam bem definidas e tais derrogações sejam devidamente justificadas. |
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29 |
No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber se os Estados‑Membros podem, no momento da transposição da Diretiva sobre reestruturação e insolvência para o seu direito nacional, introduzir uma derrogação ao perdão de dívidas que não estava prevista na legislação nacional anterior a essa transposição, com a finalidade de limitar mais o acesso ao direito ao perdão de dívidas, há que concluir que nem esta diretiva nem os trabalhos preparatórios da sua adoção contêm elementos que permitam considerar que o legislador da União pretendeu limitar a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem a este respeito impedindo estes últimos de introduzir tais derrogações no seu direito nacional. |
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30 |
Pelo contrário, ao prever, no artigo 23.o, n.o 2, da referida diretiva, que os Estados‑Membros podem, sob certas condições, «manter ou introduzir» disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas, revoguem o benefício do perdão ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados, o legislador da União concedeu expressamente aos Estados‑Membros a faculdade de introduzirem, quando essas condições estiverem preenchidas, tais disposições que não existiam anteriormente. |
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31 |
Relativamente às referidas condições, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência sujeita expressamente o exercício da faculdade concedida aos Estados‑Membros nesse artigo 23.o, n.o 2, às condições de que as derrogações digam respeito a «determinadas circunstâncias bem definidas» e «devidamente justificadas». Daqui decorre que, quando o legislador nacional introduz tais derrogações, os fundamentos das mesmas devem resultar do direito nacional ou do processo que lhes deu origem e que esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo. [v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.o 42]. |
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32 |
A este respeito, tanto o considerando 78 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, que faz referência às derrogações «devidamente justificadas por razões estabelecidas no direito nacional», como o considerando 81 desta diretiva, que evoca um motivo «devidamente justificado ao abrigo do direito nacional», permitem considerar que o legislador da União entendeu que era suficiente o respeito das modalidades previstas para o efeito nos diferentes direitos nacionais. |
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33 |
Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão, alínea a), no processo C‑289/23 e à terceira questão no processo C‑305/23 que o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que a lista de circunstâncias que nele figura não tem caráter exaustivo e que os Estados‑Membros têm, no âmbito da transposição desta diretiva para o seu direito nacional, a faculdade de introduzir disposições que limitem o acesso ao direito ao perdão de dívidas mais do que a legislação nacional anterior, recusando ou limitando o acesso ao perdão de dívidas, revogando o benefício do perdão ou prevendo prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados em circunstâncias diferentes das enumeradas no artigo 23.o, n.o 2, desde que essas circunstâncias estejam bem definidas e tais derrogações sejam devidamente justificadas. |
Quanto à primeira questão, alíneas b), c) e d), no processo C‑289/23 e às questões segunda e quarta no processo C‑305/23
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34 |
Com a primeira questão, alíneas b), c) e d), no processo C‑289/23, bem como com a segunda e a quarta questões no processo C‑305/23, que devem ser apreciadas conjuntamente, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, se o artigo 23.o, n.os 1 e 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que, no âmbito da transposição desta diretiva, altera a ordem de classificação dos créditos da insolvência aplicável antes da adoção dessa legislação porquanto impõe o pagamento dos créditos públicos não privilegiados na sequência de um processo de insolvência para poder beneficiar do perdão de dívidas, exclui o acesso ao perdão de dívidas em circunstâncias em que o devedor teve um comportamento negligente ou imprudente, sem, no entanto, ter agido de forma desonesta ou de má‑fé, e exclui esse acesso quando, nos dez anos anteriores ao pedido de perdão, tenha sido aplicada uma sanção ao devedor, mediante decisão administrativa definitiva, por infração tributária muito grave, ou por uma infração respeitante à segurança social ou de ordem social, ou quando o devedor tenha sido objeto de uma decisão definitiva de reversão de responsabilidade, exceto se o devedor tiver, na data da apresentação desse pedido, cumprido integralmente as suas dívidas fiscais e sociais. |
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35 |
No que respeita, em primeiro lugar, à questão de saber se o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que, no âmbito da transposição desta diretiva, altera a ordem de classificação dos créditos da insolvência aplicável antes da adoção dessa legislação porquanto impõe o pagamento dos créditos públicos não privilegiados para poder beneficiar do perdão de dívidas, há que observar, por um lado, que um processo de insolvência e um processo de perdão de dívidas são dois processos distintos que prosseguem objetivos próprios. O facto de sujeitar a concessão do perdão de dívidas ao pagamento de créditos públicos não afeta a qualificação destes créditos como «privilegiados», «comuns» ou «subordinados» na sequência de uma declaração de insolvência. Por conseguinte, não se afigura que a obrigação de pagamento dos créditos públicos não privilegiados para poder beneficiar de um perdão de dívidas implique uma alteração da ordem de classificação dos créditos em resultado de um processo de insolvência. |
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36 |
Por outro lado, como resulta do n.o 33 do presente acórdão, a enumeração contida nessa disposição não tem caráter exaustivo e os Estados‑Membros têm, no âmbito da transposição da referida diretiva para o seu direito nacional, a faculdade de introduzir disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas, revoguem o benefício do perdão ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados em circunstâncias bem definidas diferentes das enumeradas na referida disposição, ainda que essas disposições limitem o acesso ao direito ao perdão de dívidas mais do que a legislação nacional anterior. No exercício desta faculdade, um Estado‑Membro pode exigir o pagamento dos créditos públicos não privilegiados em resultado de um processo de insolvência para poder beneficiar de um perdão de dívidas. |
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37 |
No entanto, o legislador da União sujeitou expressamente o exercício da referida faculdade às condições de as derrogações referidas nesta disposição dizerem respeito a «certas circunstâncias bem definidas» e serem «devidamente justificadas». Daqui resulta que, quando o legislador nacional introduz tais derrogações, os fundamentos dessas derrogações devem resultar do direito nacional ou do processo que lhes deu origem e que esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo (v., por analogia, Acórdão de 8 de maio de 2024, Instituto da Segurança Social e o., C‑20/23, EU:C:2024:389, n.o 34 e jurisprudência referida). |
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38 |
A imposição, no caso em apreço, de uma obrigação de pagamento de créditos públicos não privilegiados para poder beneficiar do perdão de dívidas está relacionada com circunstâncias bem definidas. Além disso, o facto de essa obrigação permitir obter o pagamento de créditos que, em caso de declaração de insolvência, dificilmente teriam sido recuperados pela Administração Pública não obsta a que esta derrogação ao perdão de dívidas possa ser devidamente justificada. Com efeito, ao exigir o pagamento destes créditos públicos de credores não privilegiados, o legislador pode prosseguir um interesse público legítimo, o que o órgão jurisdicional de reenvio deve, no entanto, verificar. |
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39 |
Daí resulta que o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que, no âmbito da transposição desta diretiva, impõe o pagamento de créditos públicos não privilegiados na sequência de um processo de insolvência para poder beneficiar de um perdão de dívidas, desde que essa obrigação seja devidamente justificada. |
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40 |
No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber se o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência se opõe a uma legislação nacional que exclui o acesso ao perdão de dívidas em circunstâncias em que o devedor tenha tido um comportamento negligente ou imprudente, sem, no entanto, ter agido de forma desonesta ou de má‑fé, há que concluir que, embora seja verdade que o artigo 23.o, n.o 1, desta diretiva visa expressamente os empresários insolventes que tenham agido «de forma desonesta ou de má‑fé», essa menção não consta do n.o 2 deste artigo. |
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41 |
Com efeito, o referido artigo 23.o, n.o 2, limita‑se a prever que os Estados‑Membros podem manter ou introduzir disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas, revoguem o benefício do perdão ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados «em determinadas circunstâncias bem definidas e se tais derrogações forem devidamente justificadas», sem, no entanto, exigir a existência de um comportamento «desonesto» ou de «má‑fé» por parte dos empresários em causa. |
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42 |
Além disso, as circunstâncias, enumeradas a título exemplificativo no mesmo artigo 23.o, n.o 2, em que as derrogações ao perdão de dívidas podem estar incluídas, não se caracterizam pela existência de um comportamento «desonesto» ou de «má‑fé» por parte dos empresários em causa. |
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43 |
Importa acrescentar que estas circunstâncias correspondem, em substância, às referidas nos considerandos 79 e 80 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência e que também não resulta desses considerandos que o legislador da União tenha querido circunscrever as «circunstâncias bem definidas» visadas no artigo 23.o, n.o 2, desta diretiva a situações em que os empresários em causa tenham agido de forma desonesta ou de má‑fé. |
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44 |
Daí resulta que este artigo 23.o, n.o 2, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que exclui o acesso ao perdão de dívidas em circunstâncias bem definidas em que o devedor não tiver agido agiu de forma desonesta ou de má‑fé. |
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45 |
No que respeita, em terceiro e último lugar, à questão de saber se o referido artigo 23.o, n.o 2, se opõe a uma legislação nacional que exclui o acesso ao perdão de dívidas quando, nos dez anos anteriores ao pedido de perdão, tenha sido aplicada uma sanção ao devedor, mediante decisão administrativa definitiva, por infração tributária muito grave, ou por uma infração respeitante à segurança social ou de ordem social, ou quando o devedor tenha sido objeto de uma decisão definitiva de reversão de responsabilidade, exceto se o devedor tiver, na data da apresentação desse pedido, cumprido integralmente as suas dívidas fiscais e sociais, importa recordar que, como resulta dos n.os 28 a 33 do presente acórdão, esta disposição atribui uma margem de apreciação aos Estados‑Membros ao prever expressamente que estes podem manter ou introduzir disposições «que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas ou revoguem o benefício do perdão, ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total de dívidas ou períodos de inibição mais prolongados em determinadas circunstâncias bem definidas e se tais derrogações forem devidamente justificadas». Além disso, como resulta do n.o 29 do presente acórdão, nem a Diretiva sobre reestruturação e insolvência nem os trabalhos preparatórios da sua adoção contêm elementos que permitam considerar que o legislador da União pretendeu limitar essa margem de apreciação. |
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46 |
Assim sendo, como resulta dos n.os 31 e 37 do presente acórdão, quando o legislador nacional introduz disposições que preveem tais derrogações, os fundamentos dessas derrogações devem resultar do direito nacional ou do processo que lhes deu origem e esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo. |
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47 |
Assim, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre insolvência e reestruturação não se opõe a uma legislação nacional que exclui o acesso ao perdão de dívidas em determinadas circunstâncias bem definidas, tais como quando, nos dez anos anteriores ao pedido de perdão, tenha sido aplicada uma sanção ao devedor, mediante decisão administrativa definitiva, por infração tributária muito grave, ou por uma infração respeitante à segurança social ou de ordem social, ou quando o devedor tenha sido objeto de uma decisão definitiva de reversão de responsabilidade, exceto se este devedor tiver, na data da apresentação desse pedido, cumprido integralmente as suas dívidas fiscais e sociais, desde que resulte do direito nacional que tal exclusão se justifica pela prossecução de um interesse público legítimo, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar. O direito nacional deve, portanto, permitir identificar o fundamento de interesse público legítimo que justifica, nessas circunstâncias bem definidas, a exclusão de um perdão de dívidas. |
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48 |
No caso em apreço, como resulta do n.o 9 do presente acórdão, o legislador espanhol expôs, no preâmbulo da Lei 16/2022, a qual visa assegurar a transposição da Diretiva sobre reestruturação e insolvência para o direito espanhol, os motivos que o levaram a prever derrogações do perdão de dívidas. Este legislador indica na Lei 16/2022, nomeadamente, que um devedor que satisfaça o requisito de boa‑fé pode ter acesso ao perdão de todas as suas dívidas, com exceção das que, excecionalmente e pela sua natureza especial, se considere que não podem legalmente ser objeto de perdão. Estas exceções baseiam‑se, nomeadamente, na importância especial da satisfação de certos créditos para uma sociedade justa e solidária, baseada no Estado de direito. Entre esses créditos figuram os de direito público. Assim, o perdão de dívidas para estes últimos créditos está sujeito a certos limites e só pode ocorrer no primeiro processo de perdão de dívidas e não nos seguintes. |
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49 |
Compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, por um lado, se esses fundamentos constituem motivos de interesse público legítimo e, por outro, se resulta da legislação nacional que os referidos motivos justificaram a exclusão de um perdão de dívidas em circunstâncias bem definidas, como as enunciadas no artigo 487.o, n.o 1, ponto 2, do TRLC. |
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50 |
Relativamente a esta apreciação, importa recordar que os Estados‑Membros são obrigados a exercer as suas competências no respeito do direito da União e dos seus princípios gerais e, por conseguinte, no respeito do princípio da proporcionalidade. Daqui resulta que a medida nacional em causa não deve exceder os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legitimamente prosseguidos por essa medida (v., neste sentido, Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, Agenzia delle dogane e dei monopoli e Ministero dell’Economia e delle Finanze, C‑452/20, EU:C:2022:111, n.os 36 e 37 e jurisprudência referida). Assim, não pode afetar a obrigação dos Estados‑Membros, estabelecida no artigo 20.o, n.o 1, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, de assegurar que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total de dívidas. |
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51 |
Por conseguinte, desde que o órgão jurisdicional de reenvio considere que a exclusão do perdão de dívidas em circunstâncias como as definidas no artigo 487.o, n.o 1, ponto 2, do TRLC é justificada pelo legislador nacional em nome de um interesse público legítimo, cabe‑lhe apreciar, à luz deste princípio, se esse interesse justifica, nomeadamente, que essa exigência se aplique a essas dívidas durante os dez anos anteriores ao pedido de perdão e que não possa ser tido em conta um eventual atraso na adoção da decisão de reversão da responsabilidade. |
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52 |
Tendo em conta estas considerações, há que responder à primeira questão, alíneas b), c) e d), no processo C‑289/23, bem como à segunda e quarta questões no processo C‑305/23, que o artigo 23.o, n.os 1 e 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que, no âmbito da transposição desta diretiva, impõe o pagamento de créditos públicos não privilegiados na sequência de um processo de insolvência para poder beneficiar de um perdão de dívidas, exclui o acesso ao perdão de dívidas em circunstâncias em que o devedor teve um comportamento negligente ou imprudente, sem, no entanto, ter agido de forma desonesta ou de má‑fé, e exclui esse acesso quando, nos dez anos anteriores ao pedido de perdão, tenha sido aplicada uma sanção ao devedor, mediante decisão administrativa definitiva, por infração tributária muito grave, ou por uma infração respeitante à segurança social ou de ordem social, ou quando o devedor tenha sido objeto de uma decisão definitiva de reversão de responsabilidade, exceto se este tiver, na data da apresentação desse pedido, cumprido integralmente as suas dívidas fiscais e sociais, desde que tais derrogações sejam devidamente justificadas ao abrigo do direito nacional. |
Quanto à primeira questão, alínea e), no processo C‑289/23
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53 |
Com a sua primeira questão, alínea e), no processo C‑289/23, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que exclui o acesso ao perdão de dívidas num caso específico, sem que essa exclusão tenha sido devidamente justificada pelo legislador nacional. |
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54 |
A este respeito, como resulta do n.o 46 do presente acórdão, o legislador da União sujeitou expressamente o exercício da faculdade concedida aos Estados‑Membros nesta disposição à condição de as derrogações adotadas com base nela serem «devidamente justificadas». |
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55 |
Resulta da Diretiva sobre reestruturação e insolvência que a justificação a apresentar por um Estado‑Membro em apoio de uma derrogação como a que está em causa no processo principal deve resultar do processo que lhe deu origem ou do direito nacional. Assim, no que respeita à primeira hipótese, quando, ao abrigo do direito nacional, os trabalhos preparatórios, os preâmbulos e as exposições de motivos dos atos legislativos ou regulamentares fazem parte integrante destes ou são pertinentes para a sua interpretação e contêm uma justificação para a derrogação mantida ou introduzida no exercício da faculdade prevista no artigo 23.o, n.o 2, desta diretiva, há que considerar que esta justificação está em conformidade com as exigências desta disposição. Por outro lado, no que respeita à segunda hipótese, a referida justificação pode também figurar noutras disposições do direito nacional além da que contém essa derrogação, como uma disposição constitucional, legislativa ou regulamentar nacional. (v., neste sentido, Acórdão de 8 de maio de 2024, Instituto da Segurança Social e o., C‑20/23, EU:C:2024:389, n.o 37). |
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56 |
Tendo em conta estas considerações, há que responder à primeira questão, alínea e), no processo C‑289/23, que o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que exclui o acesso ao perdão de dívidas num caso específico, sem que essa exclusão tenha sido devidamente justificada pelo legislador nacional. |
Quanto à segunda questão, alínea a), no processo C‑289/23
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57 |
Com a sua segunda questão, alínea a), no processo C-289/23, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que a lista de determinadas categorias de dívida que nele figura tem caráter exaustivo ou não e se, em caso de resposta negativa, os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão de dívidas determinadas categorias de dívida diferentes das enumeradas nessa disposição, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
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58 |
Impõe‑se constatar que esta questão é, em substância, idêntica à terceira questão no processo que deu origem ao Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas) (C‑687/22, EU:C:2024:287, n.os 25 e 36). |
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59 |
Por conseguinte, como resulta dos n.o 44 e do n.o 2 do dispositivo desse acórdão, há que responder à segunda questão, alínea a), no processo C‑289/23 que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que a lista de determinadas categorias de dívida que nele figura não tem caráter exaustivo e que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir determinadas categorias de dívida diferentes das enumeradas nessa disposição, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
Quanto à segunda questão, alíneas b) e e), no processo C‑289/23
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60 |
Com a sua segunda questão, alíneas b) e e), no processo C‑289/23, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional de transposição que prevê uma exclusão geral do perdão de dívidas dos créditos de direito público, fundamentada no facto de a satisfação desses créditos ter especial importância para uma sociedade justa e solidária, baseada no Estado de direito, exceto em circunstâncias e limites quantitativos muito estritos, independentemente da natureza dos referidos créditos e das circunstâncias em que se constituíram, e que, por conseguinte, restringe o alcance das disposições nacionais relativas ao perdão de dívidas aplicáveis a esta categoria de dívida antes da adoção dessa legislação. |
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61 |
A este respeito, há que recordar, em primeiro lugar, que, como resulta do n.o 59 do presente acórdão, o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que a lista de determinadas categorias de dívida que nele figura não tem caráter exaustivo e que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir determinadas categorias de dívida do perdão de dívidas diferentes das enumeradas nessa disposição, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
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62 |
Por outro lado, quanto à questão de saber se os Estados‑Membros podem, quando da transposição desta diretiva para o seu direito nacional, excluir do perdão de dívidas categorias de dívida cuja exclusão não estava prevista na legislação nacional anterior a essa transposição, há que observar que nem a referida diretiva nem os trabalhos preparatórios da sua adoção contêm elementos que permitam considerar que o legislador da União pretendia limitar a margem de apreciação dos Estados‑Membros impedindo estes últimos de introduzirem disposições que excluíssem do perdão de dívidas categorias de dívida que não estavam excluídas antes da referida transposição. |
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63 |
Pelo contrário, ao prever, no artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, que, em certas condições, os Estados‑Membros «podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão de dívidas, ou restringir o acesso ao perdão de dívidas ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado», o legislador da União concedeu expressamente aos Estados‑Membros a faculdade de adotarem, quando essas condições estiverem preenchidas, disposições que excluam do perdão de dívidas determinadas categorias de dívida que não estavam anteriormente excluídas. |
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64 |
Assim sendo, o legislador da União sujeitou expressamente o exercício da faculdade assim concedida aos Estados‑Membros nesse artigo 23.o, n.o 4, à condição de essas exclusões serem devidamente justificadas. Daqui decorre que, quando o legislador nacional introduz tais derrogações, os fundamentos das mesmas devem resultar do direito nacional ou do processo que lhes deu origem e que esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.o 42]. |
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65 |
A este respeito, tanto o considerando 78 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, que faz referência às derrogações «devidamente justificadas por razões estabelecidas no direito nacional», como o considerando 81 desta diretiva, que evoca um motivo «devidamente justificado ao abrigo do direito nacional», permitem considerar que o legislador da União estimou que era suficiente o respeito das modalidades previstas para o efeito nos diferentes direitos nacionais [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.o 43]. |
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66 |
No caso em apreço, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se a razão relativa à importância especial de satisfazer os créditos de direito público para uma sociedade justa e solidária, baseada no Estado de direito, que figura no preâmbulo da Lei 16/2022, justifica devidamente a exclusão geral, prevista no artigo 489.o, n.o 1, ponto 5, desta lei, do perdão de dívidas desses créditos, exceto em circunstâncias e limites quantitativos muito estritos, independentemente da natureza dos referidos créditos e das circunstâncias em que se constituíram. Nessa apreciação, deverá ter em conta a obrigação de respeitar o princípio da proporcionalidade, como referido no n.o 50 do presente acórdão. |
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67 |
Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão, alíneas b) e e), no processo C‑289/23 que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional de transposição que prevê uma exclusão geral do perdão de dívidas dos créditos de direito público, fundamentada no facto de a satisfação desses créditos ter especial importância para uma sociedade justa e solidária, baseada no Estado de direito, exceto em circunstâncias e limites quantitativos muito estritos, independentemente da natureza dos referidos créditos e das circunstâncias em que se constituíram, e que, por conseguinte, restringe o alcance das disposições nacionais relativas ao perdão de dívidas aplicáveis a esta categoria de dívida antes da adoção dessa legislação, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
Quanto à segunda questão, alínea c), no processo C‑289/23
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68 |
Com a sua segunda questão, alínea c), no processo C‑289/23, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que estabelece uma regra geral de exclusão do perdão de dívidas dos créditos de direito público, uma vez que concede um tratamento privilegiado aos credores públicos relativamente aos outros credores. |
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69 |
A este respeito, por um lado, resulta da jurisprudência recordada nos n.os 59 e 61 do presente acórdão que o artigo 23, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que a lista de determinadas categorias de dívida que nele figura não tem caráter exaustivo e que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão de dívidas determinadas categorias de dívida diferentes das enumeradas na referida disposição, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
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70 |
Por outro lado, nem a Diretiva sobre reestruturação e insolvência nem os trabalhos preparatórios da sua adoção contêm elementos suscetíveis de corroborar a tese segundo a qual, atendendo à coerência interna das categorias de dívida expressamente previstas no artigo 23.o, n.o 4, desta diretiva, o legislador da União pretendeu limitar a margem de apreciação dos Estados‑Membros quanto à exclusão do perdão de dívidas de categorias de dívida diferentes das enumeradas nesta disposição, tais como os créditos tributários e da segurança social. Pelo contrário, resulta mais especificamente destes trabalhos preparatórios que esse legislador teve uma vontade afirmada de deixar aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação para que estes pudessem, quando da transposição da referida diretiva para o seu direito nacional, ter em conta a situação económica e as estruturas jurídicas nacionais (Acórdão de 8 de maio de 2024, Instituto da Segurança Social e o., C‑20/23, EU:C:2024:389, n.o 42 e jurisprudência referida). |
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71 |
Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que a exclusão do perdão de dívidas de créditos de direito público, tais como os créditos tributários e da segurança social, pode ser devidamente justificada. Com efeito, nem todos os créditos são da mesma natureza, os credores não têm a mesma qualidade e a cobrança desses créditos pode responder a objetivos específicos. Assim, tendo em conta a natureza dos créditos tributários e da segurança social, bem como o objetivo da cobrança do imposto e das contribuições sociais, os Estados‑Membros podem legitimamente considerar que os credores institucionais públicos não se encontram, na perspetiva da cobrança dos créditos em causa, numa situação comparável à dos credores do setor comercial ou privado. Nestas circunstâncias, a possibilidade de excluir do perdão de dívidas os créditos tributários e da segurança social não equivale a favorecer indevidamente os credores institucionais públicos face aos outros credores que não beneficiam de uma tal exclusão (v., neste sentido, Acórdão de 8 de maio de 2024, Instituto da Segurança Social e o., C‑20/23, EU:C:2024:389, n.o 43). |
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72 |
Por conseguinte, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros têm a faculdade de excluir do perdão de dívidas determinadas categorias de dívida, tais como os créditos tributários e da segurança social, atribuindo‑lhes, assim, um estatuto privilegiado, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional (v., neste sentido, Acórdão de 8 de maio de 2024, Instituto da Segurança Social e o., C‑20/23, EU:C:2024:389, n.o 45). |
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73 |
Por conseguinte, há que responder à segunda questão, alínea c), no processo C‑289/23 que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que estabelece uma regra geral de exclusão do perdão de dívidas dos créditos de direito público, uma vez que concede um tratamento privilegiado aos credores públicos relativamente aos outros credores, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
Quanto à segunda questão, alínea d), submetida no processo C‑289/23
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74 |
Com a sua segunda questão, alínea d), no processo C‑289/23, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê uma restrição do perdão de dívidas para uma determinada categoria de dívida através do estabelecimento de um limite a partir do qual esse perdão está excluído, sem que esse limite seja fixado em função do montante da dívida em causa. |
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75 |
A este respeito, há que observar que, diferentemente do artigo 20.o, n.o 2, desta diretiva, que impõe aos Estados‑Membros em que o perdão total de dívidas tenha como condição o reembolso parcial da dívida pelo empresário que assegurem que a obrigação de reembolso «tenha por base a situação individual do empresário e, em especial, que seja proporcional aos seus rendimentos e ativos disponíveis ou suscetíveis de serem apreendidos durante o prazo para o perdão e tenha em conta o interesse equitativo dos credores», o artigo 23.o, n.o 4, desta diretiva não prevê expressamente que os Estados‑Membros devam, quando preveem uma restrição ao acesso ao perdão de dívida, fixar um determinado limite em função do montante real da dívida em causa nem contém nenhum elemento suscetível de corroborar a tese segundo a qual o legislador da União pretendeu restringir a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem quando preveem essas restrições. |
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76 |
No que respeita precisamente à margem de apreciação de que os Estados‑Membros beneficiam em aplicação desta última disposição, o Tribunal de Justiça já declarou que esta deve ser interpretada no sentido de que não restringe a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem quanto à escolha das categorias de dívida diferentes das enumeradas nesta disposição que pretendem excluir do perdão de dívidas [Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C‑687/22, EU:C:2024:287, n.o 41]. |
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77 |
Ora, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 35 das suas conclusões, seria paradoxal por parte do legislador da União restringir mais a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem quando restringem o acesso ao perdão de dívidas do que aquela de que dispõem quando excluem uma determinada categoria de dívida do perdão de dívidas. |
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78 |
Por conseguinte, há que concluir, a título intercalar, que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não restringe a margem de apreciação de que os Estados‑Membros dispõem quanto às restrições ao acesso ao perdão de dívidas que pretendam aplicar. |
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Assim sendo, por um lado, como resulta do n.o 64 do presente acórdão, o legislador da União sujeitou expressamente o exercício da faculdade assim concedida aos Estados‑Membros nesse artigo 23.o, n.o 4, à condição de essas exclusões serem devidamente justificadas. Daqui decorre que, quando o legislador nacional introduz tais derrogações, os fundamentos dessas derrogações devem resultar do direito nacional ou do processo que lhes deu origem e que esses fundamentos devem prosseguir um interesse público legítimo. |
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80 |
A este respeito, resulta da jurisprudência recordada no n.o 65 do presente acórdão que tanto o considerando 78 da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, que faz referência às derrogações «devidamente justificadas por razões estabelecidas no direito nacional», como o considerando 81 desta diretiva, que refere um motivo «devidamente justificado ao abrigo do direito nacional», permitem considerar que o legislador da União estimou que era suficiente o respeito das modalidades previstas para o efeito nos diferentes direitos nacionais. |
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81 |
Por outro lado, como resulta do n.o 50 do presente acórdão, quando os Estados‑Membros exercem o poder de apreciação relativo às derrogações que podem introduzir em aplicação do artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência, devem respeitar o princípio da proporcionalidade. Os meios que escolhem não devem, portanto, exceder os limites do que é adequado e necessário à realização do objetivo que prosseguem e não devem pôr em causa os objetivos prosseguidos por esta diretiva, a saber, no caso em apreço, o de garantir que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo que possa conduzir a um perdão total de dívidas. |
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Tendo em conta estas as considerações, há que responder à segunda questão, alínea d), no processo C‑289/23, que o artigo 23.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê uma restrição do perdão de dívidas para uma determinada categoria de dívida através do estabelecimento de um limite a partir do qual esse perdão está excluído, sem que esse limite seja fixado em função do montante da dívida em causa, desde que essa restrição seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. |
Quanto à primeira questão submetida no processo C‑305/23
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Com a sua primeira questão no processo C‑305/23, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretada no sentido de que, quando um legislador nacional decide exercer a faculdade prevista no artigo 1.o, n.o 4, desta diretiva e alarga a aplicação dos processos conducentes a um perdão de dívidas contraídas por empresários insolventes às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários, as regras declaradas aplicáveis a essas pessoas singulares por força dessa extensão devem estar em conformidade com as disposições do título III da referida diretiva. |
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Tanto o Governo Espanhol como a Comissão Europeia contestam a admissibilidade desta questão por não a considerarem pertinente. Em apoio desta contestação, a Comissão alega que é manifesto que o devedor em causa, embora não exerça atualmente uma atividade empresarial, exercia essa atividade na data dos factos no processo principal, e é isso que é determinante para a aplicação da Diretiva sobre reestruturação e insolvência. O Governo Espanhol alega, por seu turno, que a referida questão não é necessária para a solução do litígio no processo principal, uma vez que as disposições nacionais relativas ao perdão de dívidas são aplicáveis ao devedor independentemente de este ser ou não empresário. |
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A este respeito, é de recordar que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 5 de setembro de 2024, W. GmbH, C‑67/23, EU:C:2024:680, n.o 44 e jurisprudência referida). |
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No caso em apreço, a interpretação solicitada do artigo 1.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência não se afigura manifestamente desprovida de relação com o objeto do litígio no processo principal no processo C‑305/23. Com efeito, contrariamente ao que alega a Comissão, a primeira questão neste processo afigura‑se pertinente, uma vez que, como foi exposto no n.o 21 do presente acórdão, os processos de insolvência e de perdão de dívidas dizem respeito a S.E.I. enquanto pessoa singular e não enquanto empresário. Por outro lado, o facto de o direito espanhol prever o perdão de dívidas aos devedores, quer sejam ou não empresários, não afeta a pertinência dessa questão, mediante a qual o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a questão de saber se, quando as normas nacionais relativas ao perdão de dívidas se aplicam a pessoas singulares, essas normas devem ser conformes com as disposições do título III dessa diretiva. |
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Quanto à resposta à referida questão, há que recordar que o artigo 1.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência dispõe que os Estados‑Membros «podem alargar a aplicação dos processos a que se refere [o artigo 1.o, n.o 1, alínea b)] às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários». |
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Ora, impõe‑se constatar que a redação do referido artigo 1.o, n.o 4, é unívoca porquanto se limita a prever uma extensão pura e simples «dos processos a que se refere» o mesmo artigo 1.o, n.o 1, alínea b), a saber, os conducentes a um perdão de dívidas contraídas por empresários insolventes, às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários. Esta redação não faz nenhuma referência a uma extensão parcial desses processos. |
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Esta interpretação do artigo 1.o, n.o 4, da Diretiva sobre reestruturação e insolvência é corroborada pelo considerando 21 desta diretiva, que enuncia, designadamente, que, embora a referida diretiva não inclua regras vinculativas relativas ao sobre-endividamento dos consumidores, é aconselhável que os Estados‑Membros apliquem igualmente aos consumidores, logo que possível, «as disposições» da mesma diretiva relativas ao perdão de dívidas. |
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Há que acrescentar que a Diretiva sobre reestruturação e insolvência não contém, aliás, nenhum elemento suscetível de corroborar a tese segundo a qual o legislador da União pretendeu conferir uma margem de apreciação aos Estados‑Membros quanto à dimensão da aplicação, às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários, dos processos referidos no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva. Pelo contrário, tanto o considerando 21 como o artigo 1.o, n.o 4, da referida diretiva revelam claramente que esse legislador pretendeu não deixar aos Estados‑Membros a opção entre uma extensão «parcial» ou «à escolha» desses processos a pessoas singulares insolventes que não sejam empresários. |
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Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão submetida no processo C‑305/23 que a Diretiva sobre reestruturação e insolvência deve ser interpretada no sentido de que, quando um legislador nacional decide exercer a faculdade prevista no artigo 1.o, n.o 4, desta diretiva e alarga a aplicação dos processos conducentes a um perdão de dívidas contraídas por empresários insolventes às pessoas singulares insolventes que não sejam empresários, as regras declaradas aplicáveis a essas pessoas singulares por força dessa extensão devem estar em conformidade com as disposições do título III da referida diretiva. |
Quanto à quinta questão no processo C‑305/23
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Uma vez que, como resulta dos n.os 40 a 44 do presente acórdão, há, em substância, que responder negativamente à quarta questão no processo C‑305/23, não há que responder à quinta questão neste processo. |
Quanto às despesas
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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
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Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara: |
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Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: espanhol.
( i ) O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.