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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62022CJ0180

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 13 de julho de 2023.
Finanzamt Hamm contra Harry Mensing.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzhof.
Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigos 311.o e seguintes — Regimes especiais aplicáveis aos objetos de arte — Regime da margem de lucro — Sujeitos passivos revendedores — Entrega de objetos de arte pelo autor ou pelos seus sucessores — Operações intracomunitárias — Direito à dedução do imposto pago a montante.
Processo C-180/22.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:565

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

13 de julho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigos 311.o e seguintes — Regimes especiais aplicáveis aos objetos de arte — Regime da margem de lucro — Sujeitos passivos revendedores — Entrega de objetos de arte pelo autor ou pelos seus sucessores — Operações intracomunitárias — Direito à dedução do imposto pago a montante»

No processo C‑180/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal, Alemanha), por Decisão de 20 de outubro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de março de 2022, no processo

Finanzamt Hamm

contra

Harry Mensing,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, P. G. Xuereb, T. von Danwitz, A. Kumin e I. Ziemele (relatora), juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Harry Mensing, por O.‑G. Lippross, Rechtsanwalt,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e A. Hoesch, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por R. Pethke e V. Uher, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de março de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 311.o e seguintes da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Finanzamt Hamm (Serviço de Finanças de Hamm, Alemanha) a Harry Mensing, um comerciante de objetos de arte, a respeito do cálculo da base tributável do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) em caso de aplicação do regime da margem de lucro às entregas de objetos de arte que foram adquiridos a montante pelo interessado no âmbito de entregas intracomunitárias.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 4, 7 e 51 da Diretiva IVA enunciam:

«(4)

A realização do objetivo de criação de um mercado interno pressupõe a aplicação, nos Estados‑Membros, de legislações respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios que não falseiem as condições de concorrência e não impeçam a livre circulação de mercadorias e serviços. Por conseguinte, é necessário realizar uma harmonização das legislações respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios mediante um sistema de [IVA], a fim de eliminar, tanto quanto possível, os fatores que possam falsear as condições de concorrência, tanto no plano nacional como no plano comunitário.

[…]

(7)

O sistema comum do IVA deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado‑Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição.

[…]

(51)

É conveniente adotar um regime de tributação comunitário aplicável no setor dos bens em segunda mão, dos objetos de arte e de coleção e das antiguidades, a fim de evitar a dupla tributação e as distorções de concorrência entre sujeitos passivos.»

4

O artigo 193.o desta diretiva dispõe:

«O IVA é devido por sujeitos passivos que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis, com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa nos termos dos artigos 194.o a 199.o e 202.o»

5

A Diretiva IVA inclui, no título XII, sob a epígrafe «Regimes especiais», o capítulo 4, intitulado «Regimes especiais aplicáveis aos bens em segunda mão, aos objetos de arte e de coleção e às antiguidades». A secção 1 deste capítulo inclui o artigo 311.o desta diretiva, que define, nomeadamente, os conceitos de «objeto de arte» e de «sujeito passivo revendedor». Na secção 2 do referido capítulo, que estabelece o regime especial dos sujeitos passivos revendedores, a subsecção 1, intitulada «Regime da margem de lucro», inclui os artigos 312.o a 325.o

6

O artigo 312.o da Diretiva IVA dispõe:

«Para efeitos da presente subsecção, entende‑se por:

1)

“Preço de venda”, tudo o que constitua a contraprestação obtida ou a obter pelo sujeito passivo revendedor do adquirente ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente ligadas à operação, os impostos, direitos, contribuições e taxas, as despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro cobradas pelo sujeito passivo revendedor ao adquirente, com exclusão dos montantes referidos no artigo 79.o;

2)

“Preço de compra”, tudo o que constitua a contraprestação definida no ponto 1), obtida ou a obter do sujeito passivo revendedor pelo seu fornecedor.»

7

O artigo 314.o desta diretiva prevê:

«O regime da margem de lucro é aplicável às entregas de bens em segunda mão, de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades, efetuadas por um sujeito passivo revendedor, quando esses bens lhe tenham sido entregues no interior da Comunidade [Europeia] por uma das seguintes pessoas:

a)

Uma pessoa que não seja sujeito passivo;

b)

Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo esteja isenta em conformidade com o artigo 136.o;

c)

Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo beneficie da isenção para as pequenas empresas prevista nos artigos 282.o a 292.o e incida sobre um bem de investimento;

d)

Outro sujeito passivo revendedor, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo revendedor tenha sido sujeita ao IVA em conformidade com o presente regime especial.»

8

O artigo 315.o da referida diretiva tem a seguinte redação:

«O valor tributável das entregas de bens referidas no artigo 314.o é constituído pela margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, deduzido o montante do IVA correspondente à própria margem de lucro.

A margem de lucro do sujeito passivo revendedor é igual à diferença entre o preço de venda solicitado pelo sujeito passivo revendedor para os bens e o seu preço de compra.»

9

O artigo 316.o da mesma diretiva prevê:

«1.   Os Estados‑Membros devem conceder aos sujeitos passivos revendedores o direito de optarem pela aplicação do regime da margem de lucro às entregas dos seguintes bens:

a)

Objetos de arte e de coleção ou antiguidades que eles próprios tenham importado;

b)

Objetos de arte que lhes tenham sido entregues pelo autor ou pelos seus sucessores;

c)

Objetos de arte que lhes tenham sido entregues por um sujeito passivo que não seja um sujeito passivo revendedor, quando, por força do disposto no artigo 103.o, tenha sido aplicada a taxa reduzida à entrega efetuada por esse outro sujeito passivo.

2.   Os Estados‑Membros estabelecem as regras de exercício da opção prevista no n.o 1, que abrange, em qualquer caso, um período de pelo menos dois anos civis.»

10

O artigo 317.o da Diretiva IVA dispõe:

«Quando um sujeito passivo revendedor exerça a opção prevista no artigo 316.o, o valor tributável é determinado em conformidade com o artigo 315.o

No que se refere às entregas de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades que o sujeito passivo revendedor tenha ele próprio importado, o preço de compra a ter em conta para o cálculo da margem de lucro é igual ao valor tributável na importação, determinado em conformidade com os artigos 85.o a 89.o, acrescido do IVA devido ou pago na importação.»

Direito alemão

11

O § 25a da Umsatzsteuergesetz (Lei do Imposto sobre o Volume de Negócios), na versão publicada em 21 de fevereiro de 2005 (BGBl. I, p. 386; a seguir «UStG»), tem a seguinte redação:

«(1)   As entregas na aceção do § 1, n.o 1, ponto 1, de bens móveis corpóreos são tributadas nos termos das disposições seguintes (regime da margem de lucro), caso se encontrem preenchidos os seguintes requisitos:

1.

O empresário é um revendedor. Considera‑se revendedor quem comercializa profissionalmente bens móveis corpóreos ou procede à sua venda em leilão em nome próprio.

2.

Os objetos foram entregues ao revendedor no território da Comunidade. Relativamente a essas entregas:

a)

não era devido imposto sobre o volume de negócios ou este não foi cobrado nos termos do § 19, n.o 1,

ou

b)

foi aplicado o regime da margem de lucro.

3.

Os bens não eram pedras preciosas (constantes das posições 71 02 e 71 03 da pauta aduaneira) ou metais preciosos (constantes das posições 71 06, 71 08, 71 10 e 71 12 da pauta aduaneira).

(2)   O revendedor pode declarar ao Serviço de Finanças, o mais tardar quando da apresentação da primeira declaração provisória de um ano civil, que aplica o regime da margem de lucro, desde o início do ano civil, também aos seguintes objetos:

1.

Objetos de arte (ponto 53 do anexo 2), objetos de coleção (ponto 49, alínea f), e ponto 54 do anexo 2) ou antiguidades (posição 97060000 da pauta aduaneira), que tenham sido importados pelo próprio revendedor, ou

2.

Objetos de arte, nos casos em que a entrega que lhe foi feita era tributável e não foi efetuada por um revendedor.

A declaração vincula o revendedor por, pelo menos, dois anos civis.

(3)   O volume de negócios é calculado com base na diferença entre o preço de venda e o preço de compra do bem; nas entregas na aceção do § 3, n.o 1b, e nos casos previstos no § 10, n.o 5, o preço de venda é substituído pelo valor nos termos do § 10, n.o 4, ponto 1. Na impossibilidade de cálculo do preço de compra de um objeto de arte (ponto 53 do anexo 2) ou se o preço de compra for insignificante, são acrescidos 30 % do preço de venda ao valor com base no qual é calculado o imposto sobre o volume de negócios. O imposto sobre o volume de negócios não é incluído no valor tributável. No caso do n.o 2, primeiro período, ponto 1, o preço de compra é o valor na aceção do § 11, n.o 1, acrescido do imposto sobre as operações de importação. No caso do n.o 2, primeiro período, ponto 2, o preço de compra inclui o imposto sobre o volume de negócios suportado pelo fornecedor.

[…]

(7)   Aplicam‑se as seguintes normas especiais:

1.

O regime da margem de lucro não é aplicável:

a)

às entregas de bens adquiridos a nível intracomunitário pelo revendedor, caso a isenção prevista para as entregas intracomunitárias no restante território da Comunidade tenha sido aplicada à entrega desses bens ao revendedor,

b)

às entregas intracomunitárias de um meio de transporte novo na aceção do § 1b, n.os 2 e 3.

2.

A aquisição intracomunitária não está sujeita ao imposto sobre o volume de negócios, se à entrega de bens ao adquirente na aceção do § 1a, n.o 1, tiver sido aplicado o regime da margem de lucro no restante território da Comunidade.

3.

A aplicação do § 3c e a isenção de imposto para as entregas intracomunitárias [§ 4, n.o 1, alínea b), e § 6a] são excluídas se for aplicado o regime da margem de lucro.

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

H. Mensing é um comerciante de arte estabelecido na Alemanha que gere galerias em várias cidades alemãs. Em 2014, foram‑lhe entregues objetos de arte provenientes de artistas estabelecidos noutros Estados‑Membros. Essas entregas foram declaradas no Estado‑Membro de estabelecimento dos artistas como entregas intracomunitárias isentas. H. Mensing pagou o respetivo IVA a título da aquisição intracomunitária.

13

H. Mensing solicitou ao Serviço de Finanças de Hamm a aplicação do regime da margem de lucro às referidas entregas. Uma vez que o § 25a, n.o 7, ponto 1, alínea a), da UStG prevê que o regime da margem de lucro não se aplica à entrega de um bem adquirido pelo revendedor no âmbito de uma aquisição intracomunitária quando a entrega do bem ao revendedor beneficiou da isenção das entregas intracomunitárias no resto do território da União Europeia, o Serviço de Finanças de Hamm indeferiu o seu pedido e, por conseguinte, declarou H. Mensing responsável pelo pagamento de um montante adicional de IVA.

14

Na sequência do indeferimento da sua reclamação deduzida contra a liquidação adicional desse montante de IVA, H. Mensing intentou uma ação no Finanzgericht Münster (Tribunal Tributário de Münster, Alemanha), alegando que a regulamentação nacional em causa não é conforme com o direito da União, e pediu a aplicação direta do artigo 316.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva IVA.

15

Por ter dúvidas a este respeito, esse órgão jurisdicional submeteu ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial.

16

Por Acórdão de 29 de novembro de 2018, Mensing (C‑264/17, EU:C:2018:968), proferido na sequência desse pedido, o Tribunal de Justiça declarou, por um lado, que o artigo 316.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que um sujeito passivo revendedor pode optar pela aplicação do regime da margem de lucro a uma entrega de objetos de arte que lhe tenham sido entregues a montante, no âmbito de uma entrega intracomunitária isenta, pelo autor ou pelos seus sucessores, apesar de estes não pertencerem às categorias de pessoas enumeradas no artigo 314.o desta diretiva, e, por outro, que um sujeito passivo revendedor não pode simultaneamente optar pela aplicação do regime da margem de lucro a uma entrega de objetos de arte que lhe tenham sido entregues a montante no âmbito de uma entrega intracomunitária isenta e invocar o direito à dedução do IVA pago a montante nos casos em que tal direito é excluído nos termos do artigo 322.o, alínea b), da referida diretiva, se esta disposição não foi transposta para o direito nacional.

17

Na sequência desse acórdão, por Sentença de 7 de novembro de 2019, o Finanzgericht Münster (Tribunal Tributário de Münster) julgou procedente o pedido de H. Mensing. Em substância, esse órgão jurisdicional considerou que o cálculo da base tributável devia ser feito em aplicação do direito da União e que, atentas as disposições do artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, lido em conjugação com os artigos 312.o, 315.o e 316.o desta diretiva, o imposto sobre o volume de negócios deve, como elemento do «preço de compra», ser deduzido da margem de lucro.

18

O Serviço de Finanças de Hamm interpôs recurso de «Revision» dessa sentença para o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal, Alemanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo. Alega, em substância, que o imposto sobre o volume de negócios relativo às aquisições intracomunitárias não reduz a base tributável. A este respeito, o Serviço de Finanças de Hamm remete para as Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Mensing (C‑264/17, EU:C:2018:722), onde este salientou que, no caso de importações provenientes de países terceiros, o artigo 317.o, segundo parágrafo, da Diretiva IVA impõe que o valor tributável na importação, acrescido do IVA relativo à importação, seja subtraído ao preço de venda, e considerou, por conseguinte, que a inexistência de uma solução análoga para as aquisições intracomunitárias constitui uma lacuna jurídica.

19

O órgão jurisdicional de reenvio observa que, no direito nacional, a tomada em consideração do imposto sobre o volume de negócios no cálculo da base tributável para efeitos do regime da margem de lucro é possível com base numa interpretação do § 25a, n.o 3, terceiro período, da UStG conforme com o direito da União. Todavia, esse órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à questão de saber se o órgão jurisdicional nacional de última instância pode, quando um sujeito passivo invoca a aplicação do regime da margem de lucro previsto nos artigos 311.o e seguintes da Diretiva IVA, interpretar o § 25a, n.o 3, terceiro período, da UStG no sentido de que o imposto relativo à aquisição intracomunitária não faz parte da base tributável.

20

Nestas condições, o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Em circunstâncias como as do processo principal, em que um sujeito passivo afirma com fundamento no Acórdão de 29 de novembro de 2018, Mensing (C‑264/17, EU:C:2018:968) que o fornecimento de objetos de arte que adquiriu a montante ao autor (ou aos seus sucessores) no âmbito de uma aquisição intracomunitária isenta, é, também ele, abrangido pelo regime da margem de lucro dos artigos 311.o e seguintes da Diretiva [2006/112], deve a base tributável ser exclusivamente determinada à luz do direito da União, de acordo com o n.o 49 deste acórdão, de modo que o órgão jurisdicional nacional de última instância não pode interpretar uma disposição de direito nacional (neste caso, o § 25a, n.o 3, terceiro período, da [UStG]) no sentido de que o imposto que incide sobre a aquisição intracomunitária não faz parte da base tributável?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: Devem os artigos 311.o e seguintes da Diretiva [2006/112], ser entendidos no sentido em que, em caso de aplicação do regime de tributação pela margem de lucro aos fornecimentos de objetos de arte adquiridos a montante ao autor (ou aos seus sucessores) no âmbito de uma aquisição intracomunitária, o imposto que incide sobre a aquisição intracomunitária reduz a margem de lucro, ou está‑se perante uma lacuna jurídica involuntária do direito da União nesta matéria que não pode ser preenchida pela jurisprudência por via do desenvolvimento jurisprudencial do direito, mas apenas pelo legislador da União?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à segunda questão

21

Com a segunda questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 312.o e 315.o e o artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que o IVA pago por um sujeito passivo revendedor a título da aquisição intracomunitária de um objeto de arte, cuja entrega a jusante está sujeita ao regime da margem de lucro em virtude do artigo 316.o, n.o 1, desta diretiva, faz parte da base tributável dessa entrega.

22

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 29 de novembro de 2018, Mensing, C‑264/17, EU:C:2018:968, n.o 24 e jurisprudência referida).

23

Antes de mais, há que salientar que, no que respeita à redação das disposições em causa, decorre do artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA que, quando, ao abrigo do artigo 316.o desta diretiva, um sujeito passivo revendedor opta pela aplicação do regime da margem de lucro às entregas de bens referidas nesta disposição, o valor tributável é determinado em conformidade com o artigo 315.o da referida diretiva.

24

Nos termos do primeiro parágrafo deste artigo 315.o, o valor tributável das entregas dos bens aos quais se aplica o regime da margem de lucro é constituído pela margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, calculada em conformidade com o segundo parágrafo deste artigo, deduzido o montante do IVA correspondente à própria margem de lucro.

25

A este respeito, primeiro, resulta do artigo 315.o, segundo parágrafo, da Diretiva IVA que a margem de lucro do sujeito passivo revendedor é igual à diferença entre o «preço de venda» solicitado pelo sujeito passivo revendedor para os bens e o «preço de compra».

26

Em especial, o artigo 312.o, ponto 1, da Diretiva IVA define «preço de venda» como «tudo o que constitua a contraprestação obtida ou a obter pelo sujeito passivo revendedor do adquirente ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente ligadas à operação, os impostos, direitos, contribuições e taxas, as despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro cobradas pelo sujeito passivo revendedor ao adquirente». Por seu turno, o conceito de «preço de compra» está definido no artigo 312.o, ponto 2, desta diretiva como «tudo o que constitua a contraprestação definida no ponto 1), obtida ou a obter do sujeito passivo revendedor pelo seu fornecedor».

27

Como sublinhou o advogado‑geral nos n.os 31 a 33 das suas conclusões, resulta assim da própria redação do artigo 312.o da Diretiva IVA que os conceitos de «preço de venda» e de «preço de compra», mencionados nesta disposição, visam, respetivamente, por um lado, os elementos de custo cuja cobertura o sujeito passivo revendedor obteve em contrapartida de uma operação de entrega sujeita ao regime da margem de lucro e, por outro, os que pagou ao fornecedor ao adquirir o bem que será subsequentemente objeto dessa entrega.

28

Daqui resulta, no que se refere especificamente ao conceito de «preço de compra», que este não inclui os elementos de custo que o sujeito passivo revendedor não pagou ao fornecedor, mas que pagou a terceiros, pelo que esse preço de compra não inclui o IVA pago ao fisco pela aquisição intracomunitária do bem que será subsequentemente objeto da operação de entrega em causa.

29

Segundo, no que respeita ao montante do IVA correspondente à própria margem de lucro, que deve, em conformidade com o artigo 315.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA e como foi recordado no n.o 24 do presente acórdão, ser subtraído à margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, importa salientar, à semelhança do Governo alemão e como sublinhou o advogado‑geral no n.o 37 das suas conclusões, que esse IVA é o imposto que o sujeito passivo revendedor deve pagar sobre a venda do objeto de arte que efetuou. Em contrapartida, o referido IVA não pode incluir o imposto pago pelo sujeito passivo revendedor a título da aquisição intracomunitária do objeto de arte, que corresponde ao preço de aquisição desse objeto.

30

Atenta a redação dos artigos 312.o e 315.o e do artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, há assim que considerar que o IVA pago pelo sujeito passivo revendedor a título da aquisição intracomunitária de um objeto de arte que é objeto de uma operação de entrega a jusante sujeita ao regime da margem de lucro não faz parte do preço de compra desse bem, na aceção do artigo 312.o, ponto 2, desta diretiva, pelo que não há que excluir o montante desse imposto do valor tributável dessa entrega a jusante.

31

Todavia, tanto H. Mensing como a Comissão Europeia consideram, em substância, que a interpretação estritamente literal dos artigos 312.o e 315.o e do artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA desrespeita os objetivos prosseguidos por estas disposições, bem como o contexto em que se inserem. Em especial, a Comissão observa que interpretar o artigo 312.o da Diretiva IVA no sentido de que o preço de compra de um objeto de arte adquirido por um sujeito passivo revendedor a um fornecedor estabelecido noutro Estado‑Membro no âmbito de uma aquisição intracomunitária desse objeto inclui o IVA pago a título dessa aquisição permitiria evitar duplas tributações e distorções de concorrência, independentemente de o referido objeto ter sido adquirido no mesmo Estado‑Membro, noutro Estado‑Membro ou num país terceiro.

32

A este respeito, primeiro, é verdade, por um lado, relativamente aos objetivos prosseguidos pela Diretiva IVA, que resulta do considerando 4 desta diretiva que a mesma visa instituir um sistema de IVA que não falseie as condições de concorrência e não restrinja a livre circulação de mercadorias e serviços. Além disso, segundo o considerando 7 da referida diretiva, o sistema comum do IVA deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado‑Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição. Acresce que, como o Tribunal de Justiça recordou no Acórdão de 29 de novembro de 2018, Mensing (C‑264/17, EU:C:2018:968, n.o 32 e jurisprudência referida), decorre de jurisprudência constante que o princípio da neutralidade fiscal é inerente ao sistema comum do IVA instituído pela Diretiva IVA e que este princípio se opõe, nomeadamente, a que operadores económicos que efetuem as mesmas operações sejam tratados diferentemente em matéria de cobrança do IVA.

33

Por outro lado, no que respeita, mais especificamente, aos objetivos prosseguidos pelo regime da margem de lucro, é certo que o Tribunal de Justiça já sublinhou que, segundo o considerando 51 da Diretiva IVA, este regime visa, no setor dos bens em segunda mão, dos objetos de arte, de coleção e antiguidades, evitar a dupla tributação e as distorções de concorrência entre sujeitos passivos (Acórdão de 29 de novembro de 2018, Mensing, C‑264/17, EU:C:2018:968, n.o 35).

34

Não obstante, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a interpretação de uma disposição do direito da União à luz do seu contexto e da sua finalidade não pode ter por resultado privar de qualquer efeito útil a letra clara e precisa dessa disposição. Assim, quando o sentido de uma disposição do direito da União resulta inequivocamente da sua própria redação, o Tribunal de Justiça não se pode afastar desta interpretação (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de outubro de 2006, Comunidade Europeia, C‑199/05, EU:C:2006:678, n.o 42, e de 20 de setembro de 2022, VD e SR, C‑339/20 e C‑397/20, EU:C:2022:703, n.o 71 e jurisprudência referida).

35

A este respeito, embora o principio da neutralidade fiscal seja inerente ao sistema comum do IVA instituído pela Diretiva IVA, este princípio, que é uma expressão específica do princípio da igualdade ao nível do direito derivado da União e no setor particular da fiscalidade, não permite alargar o âmbito de aplicação de uma disposição desta diretiva ao ponto de ir contra a redação clara da mesma (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2012, Zimmermann, C‑174/11, EU:C:2012:716, n.o 50 e jurisprudência referida), redação que só pode ser alterada na sequência de uma intervenção do legislador da União, como o advogado‑geral sublinhou no n.o 61 das suas conclusões.

36

Segundo, é pacífico, como salientou, em substância, a Comissão, que a interpretação literal dos artigos 312.o e 315.o e do artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, mencionada no n.o 30 do presente acórdão, conduz a uma carga fiscal distinta, que onera as entregas num Estado‑Membro consoante o objeto de arte tenha sido objeto de tal aquisição intracomunitária, tenha sido adquirido pelo sujeito passivo revendedor no território de um mesmo Estado‑Membro ou tenha sido importado de um país terceiro.

37

Todavia, não se pode deixar de observar que esta situação resulta diretamente da redação das disposições aplicáveis.

38

Com efeito, ao passo que, como foi salientado no n.o 30 do presente acórdão, o IVA pago pelo sujeito passivo revendedor a título da aquisição intracomunitária de um objeto de arte que é objeto de uma operação de entrega a jusante sujeita ao regime da margem de lucro não faz parte do preço de compra desse bem, na aceção do artigo 312.o, ponto 2, da Diretiva IVA, o IVA pago por esse sujeito passivo revendedor a título da aquisição de um objeto de arte num Estado‑Membro e que é objeto de uma operação de entrega a jusante sujeita a esse regime no mesmo Estado‑Membro é, regra geral, pago por esse sujeito passivo revendedor diretamente ao seu fornecedor, que é, em princípio, responsável pelo pagamento do mesmo ao fisco, em conformidade com o artigo 193.o desta diretiva, pelo que se subsuma ao conceito de «preço de compra», na aceção do artigo 312.o, ponto 2, da referida diretiva.

39

Além disso, quanto às entregas de objetos de arte que o próprio sujeito passivo revendedor tenha importado, o artigo 317.o, segundo parágrafo, da mesma diretiva prevê expressamente que o preço de compra a ter em conta no cálculo da margem de lucro é igual ao valor tributável na importação, acrescido do IVA devido ou pago na importação.

40

Ora, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 34 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça não se pode afastar da redação clara e precisa dessas disposições.

41

Nestas condições, e no estado atual do direito da União, os artigos 312.o e 315.o e o artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que o IVA pago por um sujeito passivo revendedor a título da aquisição intracomunitária de um objeto de arte, cuja entrega a jusante está sujeita ao regime da margem de lucro em virtude do artigo 316.o, n.o 1, desta diretiva, faz parte da base tributável dessa entrega.

Quanto à primeira questão

42

Atendendo à resposta dada à segunda questão, não há que responder à primeira questão.

Quanto às despesas

43

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

Os artigos 312.o e 315.o e o artigo 317.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

o imposto sobre o valor acrescentado pago por um sujeito passivo revendedor a título da aquisição intracomunitária de um objeto de arte, cuja entrega a jusante está sujeita ao regime da margem de lucro em virtude do artigo 316.o, n.o 1, desta diretiva, faz parte da base tributável dessa entrega.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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