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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62021CC0726

    Conclusões do advogado-geral N. Emiliou apresentadas em 23 de março de 2023.
    Processo penal contra GR e o.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Županijski sud u Puli-Pola.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Apreciação à luz dos factos constantes da fundamentação da sentença — Apreciação à luz dos factos examinados no âmbito de um processo de inquérito e omitidos na acusação — Conceito de “mesmos factos”.
    Processo C-726/21.

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:240

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    NICHOLAS EMILIOU

    apresentadas em 23 de março de 2023 ( 1 )

    Processo C‑726/21

    Županijsko državno odvjetništvo u Puli‑Pola

    contra

    GR,

    HS,

    IT,

    e

    INTER CONSULTING d.o.o.

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Županijski sud u Puli‑Pola (Tribunal Regional de Pula, Croácia)]

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen — Princípio ne bis in idem — Partes dos atos processuais a referir pelo tribunal nacional que analisa os efeitos do princípio ne bis in idem — Dispositivo — Fundamentação — Atos relativamente aos quais o processo penal foi arquivado»

    I. Introdução

    1.

    A matéria de facto do presente processo é bastante complexa. No processo principal, pendente na Croácia, várias pessoas foram acusadas de causar prejuízos patrimoniais a uma sociedade croata, no âmbito da execução de um projeto de alojamento turístico na Croácia. No decurso desse processo, verificou‑se que duas dessas pessoas foram absolvidas, na Áustria, de crimes relacionados com o desvio de fundos de um banco austríaco que financiava esse projeto. Adicionalmente, a ação penal inicial contra essas pessoas, na Áustria, foi arquivada parcialmente por falta de provas relativas a outros atos relacionados com o mesmo projeto. No entanto, após examinar as informações constantes dos autos, o alcance exato da parte arquivada da ação penal permanece pouco claro.

    2.

    O Županijski sud u Puli‑Pola (Tribunal Regional de Pula, Croácia), o órgão jurisdicional de reenvio, observa que o princípio ne bis in idem pode obstar ao processo nele pendente, tendo em conta o processo que decorreu na Áustria. Contudo, a conclusão exata a retirar a este respeito depende, no essencial, da medida em que as informações sobre esse processo penal anterior constantes dos atos processuais adotados nesse contexto são tidas em conta. Com efeito, afigura‑se que, segundo a prática jurisdicional croata, para apreciar se a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem é ativada, os órgãos jurisdicionais croatas só podem ter em consideração os factos referidos em certas partes dos atos processuais, como o dispositivo de uma acusação ou o dispositivo de uma decisão transitada em julgado.

    3.

    Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta mais especificamente se, para efeitos da aplicação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (a seguir «CAAS») ( 2 ), devem ser tidos em conta apenas os factos determinantes constantes do dispositivo da acusação, deduzida pelo Ministério Público de outro Estado‑Membro, e do dispositivo de uma decisão transitada em julgado, proferida noutro Estado‑Membro, ou se devem também ser tidos em conta os factos mencionados na fundamentação dessa decisão em relação aos quais a ação penal foi arquivada.

    II. Quadro jurídico

    A.   Direito da União Europeia

    4.

    O artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») dispõe que «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei».

    5.

    O artigo 54.o da CAAS prevê que «[a]quele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida».

    6.

    O artigo 57.o da CAAS estabelece o seguinte:

    «1.   Sempre que uma pessoa seja acusada de uma infração por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão.

    2.   As informações solicitadas serão fornecidas o mais rapidamente possível e serão tomadas em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso.

    […]»

    B.   Direito nacional

    7.

    Nos termos do artigo 31.o, n.o 2, da Ustav Republike Hrvatske (Constituição da República da Croácia) ( 3 ), nenhuma pessoa pode ser novamente julgada nem condenada penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvida ou pelo qual tenha sido condenada por decisão judicial transitada em julgado proferida em conformidade com a lei.

    8.

    Nos termos do artigo 12.o, n.o 1, da Zakon o kaznenom postupku (Código de Processo Penal) ( 4 ), nenhuma pessoa pode ser novamente condenada penalmente por um delito pelo qual já tenha sido julgada e relativamente ao qual tenha sido proferida uma decisão judicial transitada em julgado.

    III. Matéria de facto, tramitação do processo nacional e questão prejudicial

    9.

    À data dos factos em apreço, GR era membro do conselho de gerência da Skiper Hoteli d.o.o. (a seguir «Skiper Hoteli») e da Interco Umag d.o.o., à qual sucedeu a sociedade INTER CONSULTING (a seguir «Interco», em liquidação). GR era também membro do conselho de gerência da sociedade Rezidencija Skiper d.o.o. (a seguir «Rezidencija Skiper») e detinha quotas na Alterius d.o.o. (a seguir «Alterius»). Constato que todas essas sociedades estão (ou estiveram) registadas na Croácia. Por sua vez, HS era gerente da sociedade Interco, enquanto IT se encarregava da avaliação de bens imóveis.

    10.

    Em 28 de setembro de 2015, a Županijsko državno odvjetništvo u Puli (Procuradoria Regional de Pula, Croácia; a seguir «PR de Pula») deduziu acusação contra GR, HS, IT e contra a sociedade Interco. Acusava GR e a Interco de terem cometido o crime de abuso de confiança em transações comerciais na aceção do artigo 246.o, n.os 1 e 2, do Kazneni zakon (Código Penal croata). Adicionalmente, acusava HS de incitar à prática desse crime e IT de ajudar a cometê‑lo.

    11.

    Por sua vez, GR e HS foram acusados de ter agido, no contexto de um projeto de construção de um novo alojamento turístico em Savudrija (um município croata), para assegurar que a Interco obtinha uma vantagem patrimonial ilícita em detrimento da Skiper Hoteli quando organizaram uma aquisição, pela Skiper Hoteli, por intermédio da Interco, de imóveis situados em Savudrija a preços consideravelmente superiores ao seu valor de mercado.

    12.

    A acusação refere igualmente que GR, HS e IT causaram prejuízos patrimoniais adicionais à Skiper Hoteli, ao agirem de modo que esta adquirisse, a um preço consideravelmente superior ao seu valor real, quotas de outra sociedade croata (a Alterius).

    13.

    O órgão jurisdicional de reenvio confirmou a acusação deduzida pela PR de Pula.

    14.

    No entanto, durante o processo inicial, HS sustentou que já era objeto de um processo penal na Áustria pelos mesmos atos. Assim, a PR de Pula contactou a Staatsanwaltschaft Klagenfurt (Procuradoria de Klagenfurt, Áustria), em 2014, para verificar se, de facto, esse processo tinha sido aí iniciado. Em 2016, a Državno odvjetništvo Republike Hrvatske (Procuradoria da República da Croácia) apresentou ao Ministério da Justiça da República da Áustria um pedido com o mesmo conteúdo. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta das respostas das autoridades austríacas que tinha sido instaurado na Áustria um processo penal contra BB e CC, dois antigos membros do conselho de administração do Hypo Alpe Adria Bank International AG (a seguir «Banco Hypo»), com sede na Áustria, por crime de abuso de confiança na aceção do § 153.o, n.os 1 e 2, do Strafgesetzbuch (Código Penal austríaco; a seguir «StGB»), e contra HS e GR por terem participado na prática deste crime.

    15.

    Mais concretamente, segundo a acusação que a Procuradoria de Klagenfurt deduziu em 9 de janeiro de 2015 no Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt, Áustria), BB e CC eram acusados de, entre setembro de 2002 e julho de 2005, terem aprovado a concessão de vários créditos às sociedades Rezidencija Skiper e Skiper Hoteli, apesar da falta de documentação suficiente sobre o projeto e de uma previsão quanto à capacidade de reembolso do crédito, o que causou ao Banco Hypo um prejuízo patrimonial no valor de, pelo menos, 105 milhões de euros. HS e GR foram acusados, respetivamente, de terem incitado BB e CC a cometer esses crimes ou de terem ajudado a cometê‑los, ao pedirem a concessão dos referidos créditos.

    16.

    Em 3 de novembro de 2016, o Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt) proferiu uma decisão pela qual BB e CC foram condenados por terem aprovado a concessão do crédito HR/1061 à sociedade Skiper Hoteli num montante superior a 70 milhões de euros. Foram absolvidos das outras acusações. GR e HS foram absolvidos. Mais concretamente, HS foi absolvido da acusação de, entre 2002 e 2005, ter incitado os arguidos BB e CC à prática de crimes ao ter pedido várias vezes a concessão de créditos e apresentado documentação relativa aos mesmo. GR foi absolvido da acusação de ter contribuído para que BB e CC, no período compreendido entre 2003 e 2005, praticassem esses crimes, na medida em que pediu a concessão de créditos, nomeadamente, do crédito HR/1061, negociou‑o, apresentou documentação relativa ao mesmo e assinou os contratos de crédito pertinentes. O órgão jurisdicional de reenvio observa que o exposto resulta do dispositivo da decisão do Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt), ao passo que a fundamentação da decisão em questão mostra que, com o referido crédito HR/1061, a Skiper Hoteli adquiriu os imóveis e as quotas em causa a preços significativamente superiores ao seu valor de mercado.

    17.

    Essa decisão transitou em julgado após o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) ter negado provimento ao recurso interposto da mesma.

    18.

    O órgão jurisdicional de reenvio observa igualmente que, antes de deduzir, em 9 de janeiro de 2015, a acusação referida no n.o 15, supra, a Procuradoria de Klagenfurt conduziu, mas arquivou por falta de provas, a investigação contra GR e HS relativamente a atos diferentes dos incluídos na acusação subsequente, a saber, a utilização do crédito HR/1061 para o projeto da Skiper Hoteli. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio assinala que, em 9 de janeiro de 2015, a Procuradoria de Klagenfurt notificou GR sobre o arquivamento da investigação no «processo Skiper». Esta notificação baseou‑se no § 190.o, n.o 2, do Strafprozeßordnung (Código de Processo Penal austríaco; a seguir «StPO») e continha informações sobre o arquivamento do processo, no que respeita a HS, GR, BB e CC, quanto ao crime de abuso de confiança previsto no § 153.o, n.os 1 e 2, do StGB, na medida em que não estava abrangido pela acusação deduzida na mesma data pela Procuradoria de Klagenfurt no Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt), por falta de provas, nomeadamente no que diz respeito à intenção de causar prejuízo, ou devido à inexistência de provas específicas e suficientes que comprovassem um comportamento criminoso punível. Decorre também da decisão de reenvio que HS pediu e obteve das autoridades austríacas uma comunicação que confirma esse arquivamento.

    19.

    Na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, nestas condições, é possível considerar que i) os factos referidos no dispositivo da acusação da PR de Pula; ii) os factos referidos no dispositivo da acusação da Procuradoria de Klagenfurt; iii) os factos referidos no dispositivo e na fundamentação da decisão transitada em julgado do Tribunal Regional de Klagenfurt; e iv) os factos que foram objeto da investigação arquivada conduzida pela Procuradoria de Klagenfurt têm força de caso julgado devido à relação indissociável existente entre eles em termos temporais, espaciais e materiais.

    20.

    Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, quando está em causa a aplicação do princípio ne bis in idem, os órgãos jurisdicionais croatas só podem ter em conta os factos referidos em partes específicas de uma determinada decisão processual, o dispositivo de uma acusação ou o dispositivo de uma sentença. O órgão jurisdicional de reenvio explica que essa prática, relativamente à qual não são fornecidos pormenores adicionais na decisão de reenvio, reflete o entendimento de que é apenas a respeito desses factos que os atos processuais em causa se tornam definitivos.

    21.

    Nestas circunstâncias, o Županijski sud u Puli‑Pola (Tribunal Regional de Pula) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «Ao examinar a violação do princípio ne bis in idem é possível comparar apenas as circunstâncias de facto constantes da acusação da [PR de Pula], de 28 de setembro de 2015, com as principais circunstâncias de facto constantes da acusação da [Procuradoria de Klagenfurt], de 9 de janeiro de 2015, e com o dispositivo da Decisão do [Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt)], de 3 de novembro de 2016, confirmada pela Decisão do [Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal austríaco)], de 4 de março de 2019, ou é possível comparar as circunstâncias de facto constantes da acusação da [PR de Pula] com as circunstâncias de facto constantes na fundamentação da Decisão do [Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt)], de 3 de novembro de 2016, confirmada por Decisão do [Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal austríaco)], e com as que foram objeto da investigação conduzida pela [Procuradoria de Klagenfurt] em relação a várias pessoas, em particular GR e HS, e posteriormente omitidas na acusação deduzida pela [Procuradoria de Klagenfurt] em 9 de janeiro de 2015 (circunstâncias de facto essas que não constavam da petição em si)?»

    22.

    Foram apresentadas observações escritas por HS, GR, pela PR de Pula, pelos Governos austríaco e croata e pela Comissão Europeia. As partes interessadas apresentaram alegações orais na audiência que se realizou em 11 de janeiro de 2023.

    IV. Apreciação

    23.

    Com a sua única questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, determinar o quadro de referência correto que deve ser utilizado para verificar se o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.o da CAAS, obsta ao processo pendente nesse órgão jurisdicional, na medida em que pode dizer respeito aos mesmos atos que estão em causa num processo anterior concluído noutro Estado‑Membro.

    24.

    Antes de passar à interpretação do artigo 54.o da CAAS com vista a dar uma resposta a esta questão (B), abordarei a exceção de inadmissibilidade deduzida pelo Governo austríaco baseada na opinião desse Governo de que, no essencial, os dois processos dizem respeito a factos materiais diferentes (A).

    A.   Quanto à admissibilidade

    25.

    O Governo austríaco considera que o presente pedido de decisão prejudicial é inadmissível porque a questão submetida é hipotética. Na sua opinião, o processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio e o processo anterior na Áustria não dizem respeito aos mesmos factos. Este Governo assinala que, enquanto o processo na Áustria dizia respeito a um prejuízo patrimonial sofrido por um banco austríaco, o processo na Croácia está relacionado com um prejuízo patrimonial sofrido por uma sociedade croata. Este Governo sublinha que o processo austríaco não poderia ter incidido sobre os potenciais atos de GR em relação a essa sociedade, devido à falta de competência das autoridades austríacas a este respeito, uma vez que GR é um cidadão e residente croata, e a Skiper Hoteli é uma sociedade registada na Croácia.

    26.

    Sem deduzir uma exceção de inadmissibilidade, a PR de Pula e o Governo croata partilham, no essencial, da mesma opinião, ao passo que HS e GR defendem o contrário.

    27.

    A este respeito, observo que, embora o alcance exato da parte arquivada do processo na Áustria não esteja claramente explicado na decisão de reenvio, decorre da mesma que, na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, pode, de facto, haver uma sobreposição entre o processo que decorreu na Áustria e o processo pendente nesse órgão jurisdicional. Com efeito, na opinião deste último, o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.o da CAAS, pode ter impacto na tramitação do processo nele pendente, em função do alcance da análise que deva ser efetuada a este respeito.

    28.

    Na medida em que o Governo austríaco pretende pôr em causa esta opinião, observo que, no quadro de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, fundado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, toda e qualquer apreciação dos factos da causa se inscreve na competência do órgão jurisdicional nacional ( 5 ). Cabe exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a existência e o alcance da sobreposição (factual) entre os dois processos em questão. O Tribunal de Justiça deve, por seu turno, partir do pressuposto, formulado pelo órgão jurisdicional de reenvio, de que essa sobreposição pode existir e, consequentemente, considerar que a questão prejudicial submetida é relevante para a solução do litígio pendente nesse órgão jurisdicional e, portanto, admissível.

    B.   Quanto ao artigo 54.o da CAAS

    29.

    Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, para efeitos da aplicação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 54.o da CAAS, pode ter em conta apenas os factos determinantes referidos no dispositivo da acusação, deduzida pela procuradoria de outro Estado‑Membro, e no dispositivo de uma decisão transitada em julgado, proferida nesse outro Estado, ou se deve também ter em conta os factos mencionados na fundamentação dessa decisão relativamente aos quais o processo penal foi suspenso.

    30.

    Recordo que o artigo 54.o da CAAS prevê que «[a]quele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida».

    31.

    Esta disposição consagra, no ordenamento jurídico da União, a proibição de dupla incriminação num contexto transfronteiriço, também estabelecida em termos mais gerais no artigo 50.o da Carta, que, como o Tribunal de Justiça recordou, deve orientar a interpretação do artigo 54.o da CAAS ( 6 ).

    32.

    A proteção conferida pelo princípio ne bis in idem, conforme consagrado no artigo 54.o da CAAS, é ativada quando estão preenchidas duas condições principais: i) a identidade dos factos visados pelos dois processos em questão ( 7 ) e ii) a existência de uma decisão definitiva noutro Estado‑Membro relativa a esses factos. Além disso, em caso de condenação, a sanção deve ter sido cumprida, estar atualmente em curso de execução ou não poder já ser executada.

    33.

    A condição de «execução» ( 8 ) não está em causa no presente processo, que diz respeito, como já observei, ao quadro de referência correto a utilizar para verificar se a condição de «idem» do princípio está preenchida.

    34.

    Na secção seguinte, explicarei as razões que me levam a considerar que o artigo 54.o da CAAS implica a necessidade de o órgão jurisdicional nacional ter em conta não só os factos descritos em partes específicas das decisões processuais proferidas noutro Estado‑Membro mas também as descritas noutras partes dessas decisões ou, sendo caso disso, noutro lado, a fim de verificar se um processo pendente nesse órgão jurisdicional diz respeito aos mesmos atos (idem) que foram apreciados num processo anterior encerrado por uma decisão definitiva (1). Por uma questão de exaustividade, abordarei em seguida o segundo elemento do princípio ne bis in idem, relativo à natureza «definitiva» da decisão que deve existir conjuntamente com a identidade dos atos para que a proteção concedida por este princípio seja ativada. Com efeito, as partes no presente processo comentaram extensamente a questão de saber se a condição relativa à natureza «definitiva» da decisão estava preenchida quando o Procuradoria de Klagenfurt decidiu arquivar parcialmente o processo em causa (2).

    1. Quanto ao quadro de referência correto para a condição de «idem»

    35.

    Como já observei, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, na prática, os órgãos jurisdicionais croatas só podem ter em consideração certas partes dos atos processuais, como o dispositivo de uma acusação ou o dispositivo de uma sentença, para efeitos de analisar se o processo de que conhecem diz respeito aos mesmos factos que os que estão em causa num processo penal anterior encerrado por decisão definitiva e, portanto, se o princípio ne bis in idem obsta a esse processo. Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, assim, determinar, no essencial, se o artigo 54.o da CAAS permite tal interpretação do princípio ne bis in idem ou se deve ser realizada uma apreciação mais ampla.

    36.

    Mais concretamente, decorre da decisão de reenvio que, em consequência da prática acima descrita, afigura‑se que o órgão jurisdicional de reenvio não pode de ter em conta factos mencionados na fundamentação da Decisão do Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt), de 3 de novembro de 2016, relativamente aos quais a ação penal foi suspensa e que dizem respeito, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, primeiro, à circunstância de a aquisição do imóvel e das quotas em causa pela Skiper Hoteli ter sido feita usando os fundos do crédito HR/1061 e, segundo, à circunstância de o preço de compra ter sido, em ambos os casos, substancialmente superior ao valor de mercado desses ativos.

    37.

    Enquanto o Governo croata e a PR de Pula sustentam que deveria ser possível limitar a apreciação desta forma, HS, GR, o Governo austríaco e a Comissão alegam o contrário.

    38.

    Concordo com estas últimas partes. Mais especificamente, concordo com a Comissão que uma prática nacional que limita, da forma acima descrita, a análise da questão de saber se o processo pendente num órgão jurisdicional nacional diz respeito aos mesmos atos que os de um processo anterior encerrado por uma decisão definitiva é excessivamente restritiva, uma vez que, no essencial, pode levar a que o órgão jurisdicional nacional não tenha em conta a existência de uma decisão definitiva adotada noutro Estado‑Membro relativamente aos mesmos atos.

    39.

    Embora nem a redação do artigo 54.o da CAAS nem a redação do artigo 50.o da Carta forneçam orientações específicas a este respeito, esta conclusão decorre, a meu ver, do contexto pertinente do artigo 54.o da CAAS — um contexto que é composto por outras disposições deste instrumento — e é ainda confirmada pelas considerações enunciadas no artigo 3.o, n.o 2, TUE ( 9 ) que, como o Tribunal de Justiça confirmou, deve orientar a interpretação do artigo 54.o da CAAS ( 10 ).

    40.

    Em primeiro lugar, no que respeita ao contexto pertinente, o artigo 57.o da CAAS estabelece regras de cooperação entre as autoridades do respetivo Estado com vista ao intercâmbio de informações sobre a possível existência de processos penais anteriores encerrados por decisão definitiva.

    41.

    Mais precisamente, o artigo 57.o, n.o 1, da CAAS obriga as autoridades a solicitarem, se o considerarem necessário, informações pertinentes às suas homólogas situadas no território de outra parte contratante, sempre que tiverem razões para crer que a acusação contra uma determinada pessoa se refere «aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante». O artigo 57.o, n.o 2, da mesma convenção estabelece uma obrigação de fornecer as informações solicitadas «o mais rapidamente possível» e, em particular, de tomar essas informações «em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso».

    42.

    Tendo em conta a formulação geral desta disposição, conclui‑se que as informações que podem ser solicitadas, e que devem ser fornecidas ao abrigo deste mecanismo, podem existir sob diversas formas. Em contraste com esta formulação geral, concordo com a Comissão que ao limitar as informações que um tribunal nacional pode ter em conta às que estão incluídas numa parte específica de um ato processual, a prática nacional em causa limita seriamente o efeito prático deste mecanismo de cooperação. No caso em apreço, ao recorrer a este mecanismo para averiguar se as pessoas em causa (como GR e HS) tinham sido objeto de um processo penal definitivamente encerrado na Áustria, a prática nacional acima descrita obrigaria, de facto, o órgão jurisdicional nacional a ter em consideração apenas as informações fornecidas em partes específicas de atos processuais, excluindo quaisquer outras informações que esse órgão jurisdicional pudesse receber das autoridades austríacas.

    43.

    Importa recordar que o direito decorrente do princípio ne bis in idem é um direito fundamental consagrado no artigo 50.o da Carta ( 11 ), como assinalou corretamente a Comissão. A maneira específica de verificar se já existe uma decisão definitiva relativa aos mesmos factos materiais deve, portanto, ser interpretada de forma que assegure uma proteção efetiva desse direito ( 12 ).

    44.

    Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o artigo 54.o da CAAS tem por objetivo evitar que «uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada possa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, ser perseguida pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes» ( 13 ). Dito isto, o Tribunal de Justiça acrescentou ainda que o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado não só à luz da necessidade de garantir a livre circulação de pessoas mas também à luz da necessidade de promover a prevenção e o combate à criminalidade ( 14 ).

    45.

    Embora o Tribunal de Justiça tenha previamente identificado certas situações em que a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem não poderia ser ativada, uma vez que tal conduziria à impunidade ( 15 ), a prática nacional descrita no presente processo pelo órgão jurisdicional de reenvio pode conduzir a um resultado igualmente indesejável, embora oposto. Com efeito, pode conduzir a uma situação em que a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem será negada devido a considerações de natureza puramente formalista, dado que a concessão dessa proteção dependerá da forma jurídica como a informação sobre os processos anteriores for prestada, bem como das diferentes tradições que, como sublinharam o Governo austríaco e a Comissão, podem existir nos vários Estados‑Membros quanto à forma como essa informação é transmitida. A este respeito, o Tribunal de Justiça confirmou que o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado à luz do seu objeto e finalidade e não à luz de «aspetos processuais, de resto variáveis consoante os Estados‑Membros em causa» ( 16 ).

    46.

    Adicionalmente, no que respeita à relevância da fundamentação de uma determinada decisão processual, o Tribunal de Justiça já sublinhou que essa fundamentação é de importância crucial para verificar se os atos em causa já foram objeto de uma decisão definitiva — que é, como indiquei, uma das duas principais condições de aplicação do princípio ne bis in idem ( 17 ).

    47.

    Não vejo nenhuma razão pela qual a mesma relevância não deva ser atribuída à fundamentação dessa ou de qualquer outra decisão, quando se trata da apreciação da outra condição de aplicação desse princípio, a saber, a condição de «idem».

    48.

    Além disso, não vejo por que razão tal apreciação deva necessariamente limitar‑se à tomada em consideração da fundamentação, excluindo as informações disponibilizadas por outras fontes. A este respeito, como recordado no n.o 45 das presentes conclusões, a forma e o conteúdo dos diferentes atos que podem ser adotados no âmbito de um determinado processo penal diferem de um Estado‑Membro para outro. Enquanto em alguns Estados‑Membros pode acontecer que todos os factos materiais objeto do processo penal tenham de ser mencionados no dispositivo do respetivo ato processual, noutros, as informações relevantes podem ser indicadas noutras partes desses atos ou mesmo num ato diferente para o qual pode ser feita uma remissão.

    49.

    Constato que o Governo croata explicou que — por força do direito croata — a força de caso julgado só tem efeito relativamente ao dispositivo do ato processual relevante. A este respeito, gostaria de observar, em primeiro lugar, que embora o entendimento dos efeitos da força de caso julgado possa diferir em função do ordenamento jurídico em causa ( 18 ), tal entendimento não pode, em caso algum, afetar a interpretação do princípio ne bis in idem, conforme consagrado no direito da União. Em segundo lugar, pode acontecer que a tomada em consideração apenas do dispositivo não seja suficiente para entender o alcance do próprio ato quando os elementos necessários para esse efeito constam de partes diferentes do dispositivo. A este respeito, o Governo austríaco explicou na audiência que, no presente processo, o alcance exato da parte do processo arquivado pela Procuradoria de Klagenfurt deve ser determinado com base em diferentes atos adotados no decurso do processo penal.

    50.

    Assim, obrigar as autoridades estatais a tomar apenas em consideração o dispositivo dos atos processuais relevantes, sem lhes conferir nenhuma margem de manobra para adotar outras abordagens quanto à descrição dos factos materiais objeto de um processo penal eventualmente existente num Estado‑Membro diferente, pode ter como resultado a privação efetiva da proteção conferida pelo princípio ne bis in idem pela única razão de essa decisão ter sido adotada noutro Estado‑Membro, onde a prática difere da do Estado‑Membro em que é conduzido o processo subsequente.

    51.

    A este respeito, entendo que o órgão jurisdicional nacional, encarregado de determinar se o princípio ne bis in idem obsta ao processo pendente no mesmo, deve poder ter em conta todas as informações disponíveis relativas aos processos penais anteriores que foram encerrados de forma definitiva. Por conseguinte, concluo que o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos de aplicação do princípio ne bis in idem consagrado nesta disposição, há que ter em conta todas as informações relevantes sobre os factos materiais abrangidos por um processo penal anterior conduzido noutro Estado‑Membro e encerrado por uma decisão final e não se limitar aos factos constantes de certas partes dos atos processuais adotados no âmbito desse processo penal anterior, como o dispositivo de uma acusação ou o dispositivo de uma sentença.

    52.

    Esclarecido este aspeto, gostaria de referir os amplos comentários que as partes no presente processo fizeram sobre a questão de saber se os dois processos em causa dizem efetivamente respeito aos mesmos atos. A este propósito, gostaria de recordar sucintamente que a condição de «idem», entendida como a «identidade dos factos materiais», se considera preenchida quando existe «um conjunto de circunstâncias concretas que decorrem de acontecimentos que, em substância, são os mesmos, porquanto implicam o mesmo autor e estão indissociavelmente ligados entre si no tempo e no espaço» ( 19 ).

    53.

    Neste contexto, considero que a atenção não se deve centrar apenas nas «principais circunstâncias de facto» a que se refere a redação da questão prejudicial, mas sim em todos os factos relevantes que, não obstante, para que seja preenchida a condição de idem, devem ser os mesmos, e não apenas semelhantes ( 20 ).

    54.

    Feitas estas observações, passo agora a apreciar de forma concisa, por uma questão de exaustividade, o elemento do princípio ne bis in idem relacionado com a existência de uma «decisão definitiva».

    2. Quanto às decisões do Ministério Público de arquivamento do processo

    55.

    Não parece ser contestado no presente processo que os atos abrangidos pela Sentença definitiva do Tribunal Regional de Klagenfurt, de 3 de novembro de 2016, gozam da proteção da proibição de dupla incriminação, conforme estabelecida no artigo 54.o da CAAS. No entanto, não parece existir entre as partes o mesmo nível de acordo quanto aos atos abrangidos pela parte do processo penal na Áustria que a Procuradoria de Klagenfurt decidiu arquivar por falta de provas. Assim, na presente secção, recordarei sucintamente as condições em que uma decisão do Ministério Público de arquivar um processo pode ser considerada definitiva para efeitos do artigo 54.o da CAAS.

    56.

    Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a proteção prevista no artigo 54.o da CAAS é ativada não só por decisões judiciais definitivas mas também por certas decisões do Ministério Público, mesmo quando «sejam adotadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e não tenham a forma de uma sentença» ( 21 ).

    57.

    Para que esse efeito jurídico seja produzido, a decisão de arquivar o processo, em primeiro lugar, deve extinguir definitivamente, ao abrigo do direito nacional aplicável, a ação penal pelos mesmos atos e, em segundo lugar, deve ser proferida na sequência de uma apreciação de mérito do processo ( 22 ).

    58.

    Enquanto a primeira condição visa a verificação de se o direito nacional contempla a decisão do Ministério Público, garantindo que a pessoa objeto do processo penal não voltará a responder pelos mesmos atos (o que, em suma, equivale a uma garantia nacional de ne bis in idem) ( 23 ), a segunda condição pressupõe que a decisão de arquivar o processo foi tomada após uma verdadeira apreciação do conjunto de provas disponíveis, sem nenhum elemento que pudesse prejudicar a confiança mútua dos Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal ( 24 ).

    59.

    No presente processo, a Procuradoria de Klagenfurt tomou a decisão de arquivar parcialmente o processo com base no § 190.o, n.o 2, do StPO. Não é inteiramente clara a forma como essa decisão foi proferida. Neste contexto, a decisão de reenvio menciona uma comunicação enviada pelas autoridades austríacas ao representante legal de GR em 9 de janeiro de 2015, segundo a qual esse arquivamento parcial dizia igualmente respeito a HS, BB e CC.

    60.

    A decisão de reenvio indica que uma decisão adotada com base no § 190.o, n.o 2, do StPO é, por força do direito austríaco, definitiva e implica que os mesmos atos não podem ser objeto de um novo processo. O Governo austríaco confirmou esta interpretação na audiência, explicando que, quando adota uma decisão ao abrigo do § 190.o, n.o 2, do StPO, o Ministério Público põe termo ao processo porque os elementos de prova disponíveis indicam que uma absolvição subsequente é mais provável do que uma declaração de culpabilidade. O mesmo Governo também explicou que tal decisão tem força de caso julgado e obsta a novos processos relativos aos mesmos atos.

    61.

    A Comissão manifestou dúvidas a este respeito, referindo‑se ao § 193.o, n.o 2, do StPO, que parece permitir a continuação do processo quando a pessoa em causa não foi ouvida e não foi adotada nenhuma medida de coação a seu respeito, ou numa situação em que surgiram novas provas. Devido à falta de informação nos autos, a Comissão considera, todavia, que não pode ser tomada nenhuma posição sobre se essa possibilidade impede ou não que a decisão em causa seja considerada «definitiva» para efeitos do artigo 54.o da CAAS.

    62.

    À semelhança da Comissão, não posso deixar de referir a declaração do Governo austríaco acima mencionada, que confirma a natureza definitiva de uma decisão adotada com base no § 190.o, n.o 2, do StPO, e chamar a atenção do órgão jurisdicional de reenvio para o mecanismo de cooperação previsto no artigo 57 da CAAS ( 25 ). Contudo, a questão da qualificação da decisão em causa deve, em todo o caso, ser distinguida da questão de saber se essa decisão foi tomada na sequência da apreciação do mérito da causa. Os autos indicam que o processo foi arquivado, no essencial, devido à inexistência de provas que indiciassem um comportamento criminoso punível. Na falta de informações mais pormenorizadas, não considero possível dar mais orientações ao órgão jurisdicional de reenvio além dos principais elementos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, já referidos acima, que esclarecem as condições em que uma decisão do Ministério Público de arquivar um processo pode ativar a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem.

    V. Conclusão

    63.

    Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Županijski sud u Puli‑Pola (Tribunal Regional de Pula, Croácia) da seguinte forma:

    O artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns

    deve ser interpretado

    no sentido de que, para efeitos da aplicação do princípio ne bis in idem consagrado nesta disposição, há que ter em conta todas as informações relevantes sobre os factos materiais abrangidos por um processo penal anterior conduzido noutro Estado‑Membro e encerrado por uma decisão final e não se limitar aos factos constantes de certas partes dos atos processuais adotados no âmbito desse processo penal anterior, como o dispositivo de uma acusação ou o dispositivo de uma sentença.


    ( 1 ) Língua original: inglês.

    ( 2 ) Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19).

    ( 3 ) Narodne novine, n.o 56/90, 135/97, 08/98, 113/00, 124/00, 28/01, 41/01, 55/01, 76/10, 85/10, 05/14.

    ( 4 ) Narodne novine, n.o 152/08, 76/09, 80/11, 121/11 — texto consolidado, 91/12 — Decisão do Ustavni sud (Tribunal Constitucional, Croácia), 143/12, 56/13, 145/13, 152/14, 70/17 e 126/19).

    ( 5 ) V., entre outros, Acórdão de 16 de julho de 1998, Dumon e Froment (C‑235/95, EU:C:1998:365, n.o 25 e jurisprudência referida).

    ( 6 ) V., por exemplo, Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski (C‑486/14, EU:C:2016:483, a seguir «Acórdão Kossowski», n.o 31 e jurisprudência referida).

    ( 7 ) Esta condição é entendida, em suma, como a identidade dos factos materiais, independentemente da sua classificação jurídica no direito nacional. V., por exemplo, Acórdãos de 18 de julho de 2007, Kraaijenbrink (C‑367/05, EU:C:2007:444, n.o 26 e jurisprudência referida), e de 16 de novembro de 2010, Mantello (C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 39). No contexto do artigo 50.o da Carta, v., por exemplo, Acórdão de 22 de março de 2022, bpost (C‑117/20, EU:C:2022:202, n.os 33 e 34 e jurisprudência referida; a seguir «Acórdão bpost»). Quanto aos termos «acts» [«factos» na versão em língua portuguesa] (expressamente mencionado no artigo 54.o da CAAS) e «facts» [«circunstâncias de facto» na versão em língua portuguesa] (utilizado, em particular, na redação da questão prejudicial no presente processo), v. Conclusões do advogado‑geral M. Bobek proferidas no processo Nordzucker e o. (C‑151/20, EU:C:2021:681, nota de rodapé 17).

    ( 8 ) A compatibilidade desta condição com o artigo 50.o da Carta foi objeto do Acórdão de 27 de maio de 2014, Spasic (C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586).

    ( 9 ) Esta disposição estabelece que «[a] União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, de asilo e imigração, bem como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno». O sublinhado é meu.

    ( 10 ) Acórdão Kossowski, n.o 46.

    ( 11 ) V. também, neste sentido, Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Mantello (C‑261/09, EU:C:2010:501, n.o 9, 76, 86) relativamente ao artigo 3.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1). Esta disposição prevê um motivo de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu se da execução resultar uma violação do princípio ne bis in idem.

    ( 12 ) No que diz respeito a um elemento relacionado com o contexto externo, observo que a Decisão‑Quadro 2009/948/JAI do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativa à prevenção e resolução de conflitos de exercício de competência em processo penal (JO 2009, L 328, p. 42), não prevê nenhum limite quanto à forma como as informações são fornecidas. O objetivo declarado deste instrumento é evitar «o trânsito em julgado das decisões desses processos em dois ou mais Estados‑Membros, constituindo, assim, uma violação do princípio ne bis in idem», como estabelecido no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Decisão‑Quadro 2009/948.

    ( 13 ) Acórdão Kossowski, n.o 44 e jurisprudência referida. V., também, Acórdãos de 11 de fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (C‑187/01 e C‑385/01, EU:C:2003:87, n.o 38; a seguir «Acórdão Gözütok e Brügge»), e de 10 de março de 2005, Miraglia (C‑469/03, EU:C:2005:156, n.o 32; a seguir «Acórdão Miraglia»).

    ( 14 ) Estas duas necessidades foram salientadas no artigo 3.o, n.o 2, TUE, referido acima na nota 10. V., também, Acórdão Kossowski, n.os 46 e 49.

    ( 15 ) Como a situação no processo Kossowski, em que estava em falta uma verdadeira instrução, ou no processo Miraglia, em que o processo foi arquivado apenas porque estava pendente um processo pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro. V. Acórdãos Kossowski, n.os 46 e 49, e Miraglia, n.o 33.

    ( 16 ) Acórdãos Gözütok e Brügge, n.o 35, e Miraglia, n.o 31.

    ( 17 ) Com efeito, como o Governo austríaco observou com razão, no Acórdão Kossowski, o Tribunal de Justiça teve de determinar se uma decisão do Ministério Público adotada após uma apreciação bastante superficial dos elementos de prova poderia ser considerada «definitiva» para efeitos do artigo 54.o da CAAS. Tratarei deste aspeto mais pormenorizadamente na próxima secção das presentes conclusões. Todavia, nesta fase, gostaria de sublinhar que o Tribunal de Justiça se referiu à fundamentação de tal decisão como a principal fonte de informação a consultar para determinar se a decisão de pôr termo ao processo foi tomada na sequência de uma apreciação de mérito do processo. (Acórdão Kossowski, n.os 53, 54 e dispositivo.) Essa determinação é, como explicarei mais pormenorizadamente a seguir, uma das duas condições principais que permitem que uma decisão de um Ministério Público de pôr termo ao processo seja considerada definitiva.

    ( 18 ) O Tribunal de Justiça declarou, em processos em que estão em causa decisões dos órgãos jurisdicionais da União Europeia, que «a força de caso julgado não abrange apenas a parte decisória dessa decisão [judicial], mas abrange os seus fundamentos que constituem o alicerce necessário da sua parte decisória, sendo, por isso, indissociáveis dela». Acórdão de 19 de abril de 2012, Artegodan/Comissão (C‑221/10 P, EU:C:2012:216, n.o 87 e jurisprudência referida). V., também Acórdão de 2 de março de 2022, Fabryki MebliForte/EUIPO — Bog‑Fran (Móvel) (T‑1/21, não publicado, EU:T:2022:108, n.o 26 e jurisprudência referida).

    ( 19 ) Acórdão bpost, n.o 37 e jurisprudência referida). O Tribunal de Justiça reformulou, assim, ligeiramente o critério utilizado anteriormente que se referia a «um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objeto». V., por exemplo, Acórdão de 18 de julho de 2007, Kraaijenbrink (C‑367/05, EU:C:2007:444, n.o 27 e jurisprudência referida).

    ( 20 ) Acórdão bpost, n.o 36, onde se afirma que «a condição “idem” exige que os factos materiais sejam idênticos. Em contrapartida, o princípio ne bis in idem não é aplicável quando os factos em causa não são idênticos, mas apenas semelhantes». No mesmo sentido, foi observado que isto é assim «[n]aturalmente com a ressalva de que pode acontecer que o processo subsequente diga respeito apenas a uma parte dos factos (temporal, material) tidos em conta no processo anterior. No entanto, o aspeto fundamental é que, na medida em que os dois conjuntos de factos realmente se sobrepõem, deve haver identidade no âmbito dessa sobreposição». Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no Processo bpost (C‑117/20, EU:C:2021:680, n.o 135).

    ( 21 ) Acórdão Kossowski, n.o 39 e jurisprudência referida. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») chegou à mesma conclusão. TEDH, 8 de julho de 2019, Mihalache c. Roménia, CE:ECHR:2019:0708JUD005401210, §§ 94 e 95.

    ( 22 ) V. Acórdão Kossowski, n.os 34 e 42 e jurisprudência referida.

    ( 23 ) Como primeiro declarado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Turanský (C‑491/07, EU:C:2008:768, n.os 35 e 36). V., também, Acórdão de 5 de junho de 2014, M (C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.os 31 e 32; a seguir «Acórdão M»), e Acórdão Kossowski, n.o 35.

    ( 24 ) O que pode materializar‑se na inexistência de uma «instrução exaustiva», como descrito nas circunstâncias do processo que levou à prolação do Acórdão Kossowski, n.os 48 a 53. Do mesmo modo, a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem não é ativada se a decisão de encerrar o processo penal tiver sido tomada devido ao facto de a ação penal ter sido iniciada noutro Estado‑Membro. V. Acórdão Miraglia, n.o 30 a 33.

    ( 25 ) Observo que o Tribunal de Justiça concluiu, no Acórdão M, que a possibilidade de reabrir o processo com base em novos elementos incriminatórios, conforme previsto na lei belga, não punha em causa o caráter definitivo do despacho de «não pronúncia» através do qual o órgão jurisdicional belga decidiu não ordenar o julgamento da pessoa objeto do processo penal. Acórdão M, n.os 38 a 40. Observo que, no processo pendente C‑147/22 Központi Nyomozó Főügyészség, parece também estar em causa uma decisão tomada com base no § 190.o do StPO.

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