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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62020CJ0693

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 9 de março de 2023.
Intermarché Casino Achats contra Comissão Europeia.
Recurso de decisão do Tribunal Geral — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Decisão da Comissão Europeia que ordena uma inspeção — Vias de recurso contra o desenrolar da inspeção — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito a um recurso efetivo — Regulamento (CE) n.o 1/2003 — Artigo 19.o — Regulamento (CE) n.o 773/2004 — Artigo 3.o — Registo das audições realizadas pela Comissão no âmbito dos seus inquéritos — Ponto de partida do inquérito da Comissão.
Processo C-693/20 P.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2023:172

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

9 de março de 2023 ( *1 )

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Decisão da Comissão Europeia que ordena uma inspeção — Vias de recurso contra o desenrolar da inspeção — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito a um recurso efetivo — Regulamento (CE) n.o 1/2003 — Artigo 19.o — Regulamento (CE) n.o 773/2004 — Artigo 3.o — Registo das audições realizadas pela Comissão no âmbito dos seus inquéritos — Ponto de partida do inquérito da Comissão»

No processo C‑693/20 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 21 de dezembro de 2020,

Intermarché Casino Achats SARL, com sede em Paris (França), representada por F. Abouzeid, S. Eder, J. Jourdan, C. Mussi e Y. Utzschneider, avocats,

recorrente,

sendo as outras partes no processo:

Comissão Europeia, representada por P. Berghe, A. Cleenewerck de Crayencour, A. Dawes e I. V. Rogalski, na qualidade de agentes,

recorrida em primeira instância,

Conselho da União Europeia, representado por A.‑L. Meyer e O. Segnana, na qualidade de agentes,

interveniente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Primeira Secção, P. G. Xuereb (relator), A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: V. Giacobbo, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 24 de fevereiro de 2022,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Com o presente recurso, a Intermarché Casino Achats SARL pede a anulação parcial do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 5 de outubro de 2020, Intermarché Casino Achats/Comissão (T‑254/17, não publicado, a seguir «acórdão recorrido», EU:T:2020:459), pelo qual foi parcialmente negado provimento ao seu recurso baseado no artigo 263.o TFUE e destinado à anulação da Decisão C(2017) 1056 final da Comissão, de 9 de fevereiro de 2017, que ordena à Intermarché Casino Achats e a todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por esta que se sujeitem a uma inspeção nos termos do artigo 20.o, n.os 1 e 4, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho (AT.40466 — Tute 1) (a seguir «decisão impugnada»).

Quadro jurídico

Regulamento (CE) n.o 1/2003

2

Nos termos do considerando 25 do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1):

«Uma vez que a deteção das infrações às regras de concorrência se torna cada vez mais difícil, é necessário, para proteger eficazmente a concorrência, reforçar os poderes de inquérito da Comissão [Europeia]. A Comissão deverá, nomeadamente, poder ouvir qualquer pessoa suscetível de dispor de informações úteis e registar as suas declarações. Por outro lado, durante uma inspeção, os funcionários mandatados pela Comissão deverão poder selar as instalações durante o tempo necessário para efetuar a inspeção. Normalmente, o período máximo de afixação de um selo não deverá ultrapassar 72 horas. Os funcionários mandatados pela Comissão deverão igualmente poder solicitar todas as informações relacionadas com o objeto e a finalidade da inspeção.»

3

No capítulo V, intitulado «Poderes de inquérito», figura o artigo 17.o desse regulamento, com a epígrafe «Inquéritos por setores económicos e por tipos de acordos», que dispõe, no seu n.o 1:

«Sempre que a evolução das trocas comerciais entre os Estados‑Membros, a rigidez dos preços ou outras circunstâncias fizerem presumir que a concorrência no mercado comum pode ser restringida ou distorcida, a Comissão pode realizar um inquérito a determinado setor da economia ou a determinado tipo de acordos em vários setores da economia. No âmbito desse inquérito, a Comissão pode pedir às empresas ou associações de empresas interessadas as informações necessárias para efeitos da aplicação dos artigos [101.o] e [102.o TFUE] e efetuar as inspeções adequadas para o efeito.»

4

O artigo 19.o do referido regulamento, intitulado «Poderes para registar declarações», prevê:

«1.   No cumprimento das funções que lhe são atribuídas pelo presente regulamento, a Comissão pode ouvir qualquer pessoa singular ou coletiva que a tal dê o seu consentimento para efeitos da recolha de informações sobre o objeto de um inquérito.

2.   Quando uma audição em conformidade com o n.o 1 se realizar nas instalações de uma empresa, a Comissão deve avisar a autoridade responsável em matéria de concorrência do Estado‑Membro em cujo território se efetuar a audição. A pedido da autoridade responsável em matéria de concorrência desse Estado‑Membro, os funcionários mandatados por essa autoridade podem prestar assistência aos funcionários e outros acompanhantes mandatados pela Comissão para procederem à audição.»

5

O artigo 20.o do mesmo regulamento, intitulado «Poderes da Comissão em matéria de inspeção», dispõe:

«1.   No cumprimento das funções que lhe são atribuídas pelo presente regulamento, a Comissão pode efetuar todas as inspeções necessárias junto das empresas e associações de empresas.

2.   Os funcionários e outros acompanhantes mandatados pela Comissão para efetuar uma inspeção podem:

a)

Aceder a todas as instalações, terrenos e meios de transporte das empresas e associações de empresas;

b)

Inspecionar os livros e outros registos relativos à empresa, independentemente do seu suporte;

c)

Tirar ou obter sob qualquer forma cópias ou extratos dos documentos controlados;

d)

Apor selos em quaisquer instalações, livros ou registos relativos à empresa por período e na medida necessária à inspeção;

e)

Solicitar a qualquer representante ou membro do pessoal da empresa ou da associação de empresas explicações sobre factos ou documentos relacionados com o objeto e a finalidade da inspeção e registar as suas respostas.

3.   Os funcionários e outros acompanhantes mandatados pela Comissão para efetuar uma inspeção exercem os seus poderes mediante a apresentação de mandado escrito que indique o objeto e a finalidade da inspeção, bem como a sanção prevista no artigo 23.o no caso de os livros ou outros registos relativos à empresa que tenham sido exigidos serem apresentados de forma incompleta ou de as respostas aos pedidos feitos em aplicação do n.o 2 do presente artigo serem inexatas ou deturpadas. A Comissão deve avisar em tempo útil antes da inspeção a autoridade responsável em matéria de concorrência do Estado‑Membro em cujo território se deve efetuar a inspeção.

4.   As empresas e as associações de empresas são obrigadas a sujeitar‑se às inspeções que a Comissão tenha ordenado mediante decisão. A decisão deve indicar o objeto e a finalidade da inspeção, fixar a data em que esta tem início e indicar as sanções previstas nos artigos 23.o e 24.o, bem como a possibilidade de impugnação da decisão perante o Tribunal de Justiça [da União Europeia]. A Comissão toma essas decisões após consultar a autoridade responsável em matéria de concorrência do Estado‑Membro em cujo território se deve efetuar a inspeção.

5.   Os funcionários da autoridade responsável em matéria de concorrência do Estado‑Membro em cujo território se deve efetuar a inspeção, ou os agentes mandatados por essa autoridade, devem, a pedido desta ou da Comissão, prestar assistência ativa aos funcionários e outros acompanhantes mandatados pela Comissão. Dispõem, para o efeito, dos poderes definidos no n.o 2.

6.   Quando os funcionários e outros acompanhantes mandatados pela Comissão verificarem que uma empresa se opõe a uma inspeção ordenada nos termos do presente artigo, o Estado‑Membro em causa deve prestar‑lhes a assistência necessária, solicitando, se for caso disso, a intervenção da força pública ou de uma autoridade equivalente, para lhes dar a possibilidade de executar a sua missão de inspeção.

7.   Se, para a assistência prevista no n.o 6, for necessária a autorização de uma autoridade judicial de acordo com as regras nacionais, essa autorização deve ser solicitada. Essa autorização pode igualmente ser solicitada como medida cautelar.

8.   Sempre que for solicitada a autorização prevista no n.o 7, a autoridade judicial nacional controla a autenticidade da decisão da Comissão, bem como o caráter não arbitrário e não excessivo das medidas coercivas relativamente ao objeto da inspeção. Ao proceder ao controlo da proporcionalidade das medidas coercivas, a autoridade judicial nacional pode pedir à Comissão, diretamente ou através da autoridade do Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, informações circunstanciadas, em especial quanto aos motivos que tem a Comissão para suspeitar de violação dos artigos [101.o] e [102.o TFUE], bem como quanto à gravidade da infração suspeita e à natureza do envolvimento da empresa em causa. No entanto, a autoridade judicial nacional não pode pôr em causa a necessidade da inspeção, nem exigir que lhe sejam apresentadas informações que constem do processo da Comissão. O controlo da legalidade da decisão da Comissão encontra‑se reservado exclusivamente ao Tribunal de Justiça.»

6

O artigo 23.o do Regulamento n.o 1/2003, intitulado «Coimas», prevê, no seu n.o 1:

«A Comissão pode, mediante decisão, aplicar às empresas e associações de empresas coimas até 1 % do volume de negócios total realizado durante o exercício precedente, sempre que, deliberadamente ou por negligência:

[…]

c)

Apresentem de forma incompleta os livros ou outros registos relativos à empresa, aquando das inspeções efetuadas nos termos do artigo 20.o, ou não se sujeitem às inspeções ordenadas mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 20.o;

d)

Em resposta a um pedido de explicação feito nos termos da alínea e) do n.o 2 do artigo 20.o,

respondam de forma inexata ou deturpada,

não retifiquem, no prazo estabelecido pela Comissão, uma resposta inexata, incompleta ou deturpada dada por um membro do pessoal, ou

não deem ou se recusem a dar uma resposta cabal sobre factos que se prendam com o objeto e a finalidade de uma inspeção ordenada mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 20.o;

e)

Forem quebrados os selos apostos, nos termos da alínea d) do n.o 2 do artigo 20.o, pelos funcionários ou outros acompanhantes mandatados pela Comissão.»

Regulamento (CE) n.o 773/2004

7

O artigo 2.o do Regulamento (CE) n.o 773/2004 da Comissão, de 7 de abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2004, L 123, p. 18), intitulado «Início do processo», prevê, no seu n.o 3:

«A Comissão pode exercer os seus poderes de investigação nos termos do capítulo V do Regulamento [n.o 1/2003] antes de dar início ao processo.»

8

No capítulo III, intitulado «Investigação realizada pela Comissão», figura o artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, com a epígrafe «Poderes para registar declarações», que dispõe:

«1.   Sempre que a Comissão proceda à audição de uma pessoa que para tal tenha dado o seu consentimento nos termos do artigo 19.o do Regulamento [n.o 1/2003], deve, no início da audição, indicar o fundamento legal e a finalidade da audição e recordar o seu caráter voluntário. Deve também informar a pessoa ouvida da intenção de registar as suas declarações.

2.   A audição pode ser realizada através de quaisquer meios, nomeadamente pelo telefone ou via eletrónica.

3.   A Comissão pode registar as declarações das pessoas ouvidas sob qualquer forma. Deve ser disponibilizada à pessoa ouvida uma cópia do registo para aprovação. Se for necessário, a Comissão deve fixar um prazo durante o qual a pessoa ouvida pode transmitir eventuais correções a introduzir nas suas declarações.»

Antecedentes do litígio e decisão impugnada

9

Os antecedentes do litígio estão resumidos nos n.os 2 a 8 do acórdão recorrido, da seguinte forma:

«2. A Intermarché Casino Achats […] é a filial comum da EMC Distribution, ela própria filial da Casino, Guichard‑Perrachon (a seguir “Casino”), e da ITM Alimentaire International, ela própria filial da ITM Entreprises (a seguir “Intermarché”), que exercem as suas atividades principalmente no setor da distribuição alimentar e não alimentar. A sua missão principal é negociar, em nome e por conta das suas sociedades‑mães, as condições de compra dos produtos e celebrar com os fornecedores a convenção anual prevista na legislação francesa.

3. Tendo recebido informações relativas ao intercâmbio de informações entre a Casino e a Intermarché no setor dos bens de consumo corrente, a Comissão Europeia adotou [a decisão impugnada].

4. O dispositivo da decisão [impugnada] tem a seguinte redação:

“Artigo 1.o

A Intermarché Casino Achats […], e todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por ela, são obrigadas a sujeitar‑se a uma inspeção relativa à sua eventual participação em práticas concertadas contrárias ao artigo 101.o [TFUE] nos mercados do abastecimento de bens de consumo corrente, no mercado de venda de serviços aos fabricantes de produtos de marca e nos mercados de venda aos consumidores de bens de consumo corrente. Essas práticas concertadas consistem em:

a)

intercâmbios de informações, desde 2015, entre empresas e/ou associações de empresas, nomeadamente a [International Casino Dia Corporation (ICDC)] […], e/ou os seus membros, nomeadamente a Casino e a AgeCore e/ou os seus membros, nomeadamente a Intermarché, relativamente aos descontos que obtiveram nos mercados do abastecimento dos bens de consumo corrente, nos setores dos produtos alimentares, produtos de higiene e produtos de limpeza e aos preços no mercado de venda de serviços aos fabricantes de produtos de marca nos setores dos produtos alimentares, produtos de higiene e produtos de limpeza, em diversos Estados‑Membros da União Europeia, nomeadamente [em] França, e

b)

intercâmbios de informações, pelo menos desde 2016, entre a Intermarché e a Casino relativamente às suas estratégias comerciais futuras, nomeadamente em termos de gama de produtos, de desenvolvimento de lojas, de comércio eletrónico e de política promocional nos mercados do abastecimento de bens de consumo corrente e nos mercados de venda aos consumidores de bens de consumo corrente, em França.

Esta inspeção pode ter lugar em quaisquer instalações da empresa […]

A [Intermarché Casino Achats] autoriza os funcionários e outras pessoas mandatadas pela Comissão para proceder a uma inspeção, e os funcionários e outras pessoas mandatadas pela autoridade da concorrência do Estado‑Membro em causa para os ajudar ou nomeadas por este último para este efeito, a aceder a todas as suas instalações e meios de transporte durante as horas normais de funcionamento. Sujeita à inspeção os livros e todos os demais documentos profissionais, qualquer que seja o seu suporte, se os funcionários e outras pessoas mandatadas o solicitarem e permite‑lhes examiná‑los nas instalações e fazer ou obter sob qualquer forma cópia ou extrato desses livros ou documentos. Autoriza a aposição de selos em todas as instalações comerciais e livros ou documentos durante a inspeção e na medida em que tal seja necessário para o efeito. Dá imediatamente no local explicações verbais a respeito do objeto e da finalidade da inspeção se esses funcionários ou pessoas o solicitarem e autoriza qualquer representante ou membro do pessoal a dar essas explicações. Autoriza o registo dessas explicações sob qualquer forma.

Artigo 2.o

A inspeção pode ter início em 20 de fevereiro de 2017 ou pouco tempo depois.

Artigo 3.o

A [Intermarché Casino Achats] e todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por ela são destinatárias da presente decisão.

A empresa […] destinatária é notificada desta decisão, imediatamente antes da inspeção, nos termos do artigo 297.o, n.o 2, [TFUE].”

5. Tendo sido informada desta inspeção pela Comissão, a Autorité de la concurrence (Autoridade da Concorrência) francesa submeteu à apreciação do juiz competente em matéria de liberdades e de detenção do tribunal de grande instance de Créteil (Tribunal de Primeira Instância de Créteil, França), um pedido de autorização para realizar operações de visita e de apreensão nas instalações da recorrente. Por Despacho de 17 de fevereiro de 2017, o juiz competente em matéria de liberdades e de detenção autorizou as visitas e as apreensões requeridas, como medida cautelar. Uma vez que nenhuma das medidas tomadas durante a inspeção necessitou do uso de «poderes coercivos» na aceção do artigo 20.o, n.os 6 a 8, do Regulamento n.o 1/2003, este despacho não foi notificado à recorrente.

6. A inspeção teve início em 20 de fevereiro de 2017, data em que os inspetores da Comissão, acompanhados de representantes da Autoridade da Concorrência francesa, se apresentaram na sede da recorrente e a notificaram da decisão [impugnada].

7. No âmbito da inspeção, a Comissão procedeu, nomeadamente, à visita dos escritórios, a uma recolha de material, em especial informático (computadores portáteis, telemóveis, tablet, dispositivos de armazenamento), à audição de diversas pessoas e à cópia do conteúdo do material recolhido.

8. A recorrente enviou à Comissão uma mensagem de correio eletrónico datada de 24 de fevereiro de 2017, na qual formulou reservas quanto à regularidade das audições e, em geral, da inspeção. Essas reservas foram complementadas por uma mensagem de correio eletrónico enviada à Comissão em 13 de março de 2017.»

Tramitação do processo no Tribunal Geral e acórdão recorrido

10

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 28 de abril de 2017, a recorrente interpôs, ao abrigo do artigo 263.o TFUE, recurso de anulação da decisão impugnada. A recorrente invocou, em substância, três fundamentos de recurso. O primeiro baseia‑se na exceção de ilegalidade do artigo 20.o, n.os 1 e 4, do Regulamento n.o 1/2003, o segundo é relativo à violação do dever de fundamentação e o terceiro à violação do direito à inviolabilidade do domicílio.

11

No âmbito das medidas de organização do processo, o Tribunal Geral convidou a Comissão a apresentar os indícios de presumíveis infrações de que dispunha à data da decisão impugnada.

12

Em resposta a este pedido, a Comissão apresentou, nomeadamente relatórios de audições realizadas em 2016 e 2017 com treze fornecedores dos produtos de consumo corrente em causa que celebravam regulamente acordos com a Casino e a Intermarché (anexos Q.1 a Q.13 da resposta da Comissão de 10 de janeiro de 2019) (a seguir «audições com os fornecedores»).

13

Pelo acórdão recorrido, o Tribunal Geral, tendo considerado que a Comissão não dispunha de indícios suficientemente sérios para suspeitar da existência de uma infração que consistia em intercâmbios de informações entre a Casino e a Intermarché sobre as suas futuras estratégias comerciais, anulou o artigo 1.o, alínea b), da decisão impugnada. Negou provimento ao recurso quanto ao restante e condenou cada uma das partes a suportar as suas próprias despesas.

Pedidos das partes

14

Com o seu recurso, a recorrente conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

anular o n.o 2 e, consequentemente, o n.o 3 do dispositivo do acórdão recorrido;

anular o artigo 1.o, alínea a), da decisão impugnada, e

condenar a Comissão na totalidade das despesas do processo no Tribunal Geral e no Tribunal de Justiça.

15

A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

negar provimento ao recurso e

condenar a recorrente nas despesas.

16

O Conselho da União Europeia conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

negar provimento ao primeiro fundamento do recurso e

condenar a recorrente nas despesas do recurso.

Quanto ao recurso

17

A recorrente invoca três fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo ao facto de o Tribunal Geral ter cometido vários erros de direito ao julgar improcedente a exceção de ilegalidade do artigo 20.o, n.os 1 e 4, do Regulamento n.o 1/2003, baseada na inexistência de vias de recurso contra o desenrolar das inspeções. O segundo fundamento é relativo ao facto de o Tribunal Geral ter violado o artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, o artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004 e o artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ao considerar que os relatórios apresentados pela Comissão para justificar o caráter suficientemente sério dos indícios de que dispunha não estavam viciados por uma irregularidade formal que afetava o seu valor probatório. O terceiro fundamento é relativo ao facto de o Tribunal Geral ter violado o direito à inviolabilidade do domicílio ao rejeitar o argumento da recorrente baseado na inexistência, na decisão impugnada, de limitação no tempo da inspeção.

Quanto ao primeiro fundamento, relativo a erros de direito cometidos pelo Tribunal Geral na análise da efetividade das vias de recurso no que respeita ao desenrolar das inspeções

Argumentos das partes

18

A recorrente alega que o Tribunal Geral cometeu vários erros de direito ao julgar improcedente, nos n.os 46 a 79 do acórdão recorrido, a exceção de ilegalidade do artigo 20.o, n.os 1 e 4, do Regulamento n.o 1/2003, baseada na inexistência de vias de recurso contra o desenrolar das inspeções.

19

Na primeira acusação, a recorrente sustenta que, contrariamente à afirmação do Tribunal Geral no n.o 51 do acórdão recorrido, nos Acórdãos do TEDH de 21 de fevereiro de 2008, Ravon e o. c. França (CE:ECHR:2008:0221JUD001849703), de 21 de dezembro de 2010, Sociedade Canal Plus e o. c. França (CE:ECHR:2010:1221JUD002940808), de 21 de dezembro de 2010, Compagnie des gaz de pétrole Primagaz c. França (CE:ECHR:2010:1221JUD002961308), e de 2 de outubro de 2014, Delta Pekárny a.s. c. República Checa (CE:ECHR:2014:1002JUD000009711), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não declarou que as vias de recurso deviam ser apreciadas no seu conjunto para cumprir os requisitos desse órgão jurisdicional relativos ao direito a um recurso efetivo. A conclusão do Tribunal Geral, constante do n.o 69 do acórdão recorrido, de que a existência de um recurso efetivo pode ser apreciada com base numa análise global das múltiplas vias de recurso que, individualmente consideradas, não preenchem os requisitos exigidos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem está, assim, viciada por um erro de direito.

20

Na segunda acusação, a recorrente sustenta que, em todo o caso, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao afirmar que as vias de recurso existentes permitiam submeter ao juiz da União todas as contestações relativas ao desenrolar das inspeções.

21

Em primeiro lugar, sublinha que o Tribunal Geral não efetuou uma análise completa das vias de recurso disponíveis contra as decisões adotadas no âmbito das inspeções, mas invoca, de forma esporádica, o recurso contra os atos da Comissão que indeferem um pedido de proteção ao abrigo da confidencialidade das comunicações entre advogados e respetivos clientes, bem como o recurso contra os atos da Comissão que indeferem um pedido de proteção da privacidade dos membros do pessoal de uma empresa, referidos pelo Tribunal Geral nos n.os 61 e 62 do acórdão recorrido. Este último recurso é, além disso, incerto até à data e, nessa medida, ineficaz (TEDH, 10 de setembro de 2010, Mac Farlane c. Irlanda, CE:ECHR:2010:0910JUD003133306).

22

Em segundo lugar, o Tribunal Geral não identifica nenhuma via de recurso imediata para contestar outras medidas adotadas em aplicação de uma decisão de inspeção, como a apreensão de documentos não abrangidos pelo âmbito da inspeção. A empresa inspecionada tem de aguardar por uma decisão final de encerramento do processo nos termos do artigo 101.o TFUE para contestar essas medidas, como decorre da jurisprudência do Tribunal Geral. Ora, tal via de recurso foi julgada insuficiente pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por ser incerta e não ocorrer num prazo razoável, nos seus Acórdãos de 21 de dezembro de 2010, Sociedade Canal Plus e o. c. França (CE:ECHR:2010:1221JUD002940808), e de 21 de dezembro de 2010, Compagnie des gaz de pétrole Primagaz c. França (CE:ECHR:2010:1221JUD002961308).

23

Em terceiro lugar, os outros recursos referidos pelo Tribunal Geral no acórdão recorrido também não cumprem as exigências da Carta.

24

Primeiro, o recurso contra a decisão de inspeção, referido no n.o 59 do acórdão recorrido, é manifestamente insuficiente, uma vez que não diz respeito, por definição, ao desenrolar da inspeção.

25

Além disso, o recurso contra uma eventual nova decisão de inspeção, baseada na utilização de documentos ilegalmente apreendidos na sequência de uma primeira decisão de inspeção, referido no n.o 69 do acórdão recorrido, é incerto e hipotético.

26

Segundo, a possibilidade, referida no n.o 60 do acórdão recorrido, de uma empresa se opor às medidas de inspeção para, em seguida, recorrer de uma decisão de aplicação de uma sanção por obstrução e contestar, nesse âmbito, o desenrolar da inspeção não constitui uma via de recurso efetiva, como afirmou recentemente o Tribunal de Justiça no Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito de recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal) (C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 66) e como reconheceu, há muito tempo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Além de a existência desse recurso ser incerta, uma vez que está condicionada à adoção de uma decisão de aplicação de uma sanção pela Comissão, pressupõe que a empresa corra o risco de sofrer a aplicação de uma coima.

27

Terceiro, uma vez que o desenrolar de uma inspeção não pode, salvo exceção relativa a determinadas medidas específicas, ser objeto de um recurso, um processo de medidas provisórias não é possível.

28

Quarto, no que diz respeito à ação de indemnização por responsabilidade extracontratual, referida no acórdão recorrido, a recorrente sublinha que, no seu Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Ravon e o. c. França (CE:ECHR:2008:0221JUD001849703, § 33), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que a possibilidade de obter uma indemnização não dispensa uma fiscalização jurisdicional efetiva, uma vez que não permitia fiscalizar a regularidade de medidas adotadas com fundamento numa busca.

29

O Tribunal Geral cometeu, por isso, um erro de direito ao declarar que as vias de recurso existentes, isolada ou conjuntamente, permitiam conferir um direito de recurso efetivo contra o desenrolar das inspeções à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do artigo 47.o da Carta.

30

Em quarto lugar, a recorrente sustenta que, em todo o caso, a conjugação complexa de recursos diferentes, prevista pelo Tribunal Geral, é incompatível com as exigências de transparência e de inteligibilidade da regra de direito para o interessado, a fortiori no que diz respeito a um direito fundamental. A recorrente salienta, por outro lado, que essa complexidade não é necessária. De facto, a União pode facilmente prever um direito de recurso imediato contra o desenrolar das inspeções, à semelhança do direito francês.

31

A Comissão e o Conselho contestam os argumentos da recorrente.

Apreciação do Tribunal de Justiça

32

A título preliminar, importa salientar que os n.os 46 a 79 do acórdão recorrido, contestados pela recorrente no âmbito do primeiro fundamento, fazem parte dos fundamentos pelos quais o Tribunal Geral julgou improcedente a exceção de ilegalidade do artigo 20.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1/2003, relativa à violação do direito a um recurso efetivo devido à inexistência de recurso contra as medidas adotadas no âmbito de uma inspeção.

33

Mais concretamente, nos n.os 46 a 50 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral recordou, antes de mais, que o direito a um recurso efetivo está consagrado no artigo 47.o da Carta e nos artigos 6.o e 13.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»). Após recordar que a CEDH não constitui, enquanto a União não aderir à mesma, um instrumento jurídico formalmente integrado na ordem jurídica da União, de modo que a fiscalização da legalidade deve ser efetuada unicamente em função dos direitos fundamentais garantidos pela Carta, o Tribunal Geral sublinhou que resulta tanto do artigo 52.o da Carta como das anotações relativas a esse artigo que as disposições da CEDH e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativas a essas disposições devem ser tidas em conta na interpretação e na aplicação das disposições da Carta a um caso concreto.

34

A este respeito, o Tribunal Geral considerou que, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o respeito pelo direito a um recurso efetivo deve ser analisado, em matéria de visitas domiciliárias, à luz dos quatro requisitos seguintes, a saber, primeiro, deve existir uma fiscalização jurisdicional efetiva, tanto de facto como de direito, da regularidade da decisão de proceder a tais visitas ou das medidas adotadas no âmbito dessas visitas, segundo, o ou os recursos disponíveis devem permitir, caso se verifique uma irregularidade, evitar a ocorrência da operação ou, na hipótese de a operação irregular já ter ocorrido, fornecer ao interessado uma reparação adequada, terceiro, a acessibilidade do recurso em causa deve ser certa e, quarto, a fiscalização jurisdicional deve ocorrer num prazo razoável.

35

Em seguida, o Tribunal Geral salientou, no n.o 51 do acórdão recorrido, que resulta igualmente dessa jurisprudência que o desenrolar de uma operação de inspeção deve poder ser objeto de uma fiscalização jurisdicional efetiva e que a fiscalização deve ser efetiva nas circunstâncias particulares do processo em causa, o que implica a tomada em consideração de todas as vias de recurso de que dispõe uma empresa que seja objeto de uma inspeção e, assim, uma análise global dessas vias de recurso. O Tribunal Geral considerou, nos n.os 54 e 55 do acórdão recorrido, que, uma vez que a verificação do respeito pelo direito a um recurso efetivo deve assentar numa análise global das vias de recurso suscetíveis de dar lugar à fiscalização das medidas adotadas no âmbito de uma inspeção, é indiferente que, consideradas individualmente, nenhuma das vias de recurso analisadas preencha os requisitos exigidos para que seja admitida a existência de um direito a um recurso efetivo.

36

Em seguida, o Tribunal Geral referiu, nos n.os 56 e 57 do acórdão recorrido, que, além da possibilidade de dirigir requerimentos ao consultor auditor da Comissão, existem seis vias de recurso que permitem submeter ao juiz da União contestações relativas a uma operação de inspeção, designadamente o recurso contra a decisão de inspeção, o recurso contra a decisão da Comissão que sanciona uma obstrução à inspeção com base no artigo 23.o, n.o 1, alíneas c) a e), do Regulamento n.o 1/2003, o recurso contra qualquer ato que preencha os requisitos jurisprudenciais do ato suscetível de recurso adotado pela Comissão na sequência da decisão de inspeção e no âmbito do desenrolar das operações de inspeção, como uma decisão de indeferimento de um pedido de proteção de documentos ao abrigo da confidencialidade das comunicações entre advogados e clientes, o recurso contra a decisão de encerramento do processo iniciado nos termos do artigo 101.o TFUE, o processo de medidas provisórias e a ação de indemnização por responsabilidade extracontratual.

37

O Tribunal Geral esclareceu, nos n.os 58 a 66 do acórdão recorrido, por que razão considerava que essas vias de recurso permitiam submeter ao juiz da União contestações relativas ao desenrolar das inspeções.

38

Por último, o Tribunal Geral declarou, após uma análise efetuada nos n.os 68 a 78 do acórdão recorrido, que podia considerar‑se que o sistema de fiscalização do desenrolar das operações de inspeção constituído pelo conjunto das vias de recurso enumeradas no n.o 36 do presente acórdão preenchia os quatro requisitos decorrentes da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

39

Assim, no n.o 79 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral julgou improcedente a exceção de ilegalidade do artigo 20.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1/2003, baseada na violação do direito a um recurso efetivo.

40

No que diz respeito à primeira acusação, relativa ao facto de que o Tribunal Geral devia ter procedido a uma análise individual das várias vias de recurso para verificar se o direito a um recurso efetivo contra as medidas adotadas no âmbito de uma inspeção está assegurado, há que recordar que o direito a um recurso efetivo está consagrado no artigo 47.o da Carta.

41

Importa recordar igualmente que o artigo 52.o, n.o 3, da Carta precisa que, na medida em que esta última contém direitos que correspondem aos garantidos pela CEDH, o seu sentido e o seu âmbito são os mesmos que essa Convenção lhes confere [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 116].

42

Ora, como resulta das anotações relativas ao artigo 47.o da Carta, que, nos termos do artigo 6.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE e do artigo 52.o, n.o 7, da Carta, devem ser tidas em conta na interpretação desta, os primeiro e segundo parágrafos deste artigo 47.o correspondem, respetivamente, ao artigo 13.o e ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 117]. Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o artigo 6.o, n.o 1, da CEDH constitui uma lex specialis em relação ao artigo 13.o desta Convenção, pelo que os requisitos do segundo estão compreendidos nos requisitos, mais rigorosos, do primeiro (TEDH, 15 de março de 2022, Grzęda c. Polónia, CE:ECHR:2022:0315JUD004357218, § 352 e jurisprudência referida).

43

Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que deve assegurar que a sua interpretação do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta garanta um nível de proteção que não viole o garantido pelo artigo 13.o da CEDH, tal como interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [v., neste sentido, Acórdão de 26 de setembro de 2018, Belastingdienst/Toeslagen (Efeito suspensivo do recurso), C‑175/17, EU:C:2018:776, n.o 35].

44

A este respeito, importa salientar que decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a proteção conferida pelo artigo 13.o da CEDH não vai ao ponto de exigir uma forma específica de recurso (TEDH, 20 de março de 2008, Boudaïeva e o. c. Rússia, CE:ECHR:2008:0320JUD001533902, § 190) e que, mesmo que nenhum recurso disponibilizado pelo direito interno, considerado isoladamente, cumpra, por si só, os requisitos previstos neste artigo 13.o, tal pode ser o caso desses recursos, considerados no seu conjunto (TEDH, 10 de julho de 2020, Mugemangango c. Bélgica, CE:ECHR:2020:0710JUD000031015, § 131 e jurisprudência referida).

45

Por outro lado, em caso de violação do direito ao respeito pelo domicílio, consagrado no artigo 8.o da CEDH, um recurso é efetivo, na aceção do artigo 13.o da CEDH, se o recorrente tiver acesso a um processo que lhe permita contestar a regularidade das buscas e apreensões realizadas e obter uma reparação adequada se estas tiverem sido ordenadas ou executadas de forma ilegal (TEDH, 19 de janeiro de 2017, Posevini c. Bulgária, CE:ECHR:2017:0119JUD006363814, § 84).

46

A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 6.o, n.o 1, ou ao artigo 8.o da CEDH que, em matéria de visitas domiciliárias, a não emissão prévia de uma autorização de inspeção por um juiz, que pudesse circunscrever ou fiscalizar o desenrolar dessa inspeção, pode ser compensada por uma fiscalização jurisdicional ex post facto sobre a legalidade e a necessidade dessa medida de instrução, na condição de essa fiscalização ser eficaz nas circunstâncias particulares do processo em causa. Tal implica que as pessoas em causa possam obter uma fiscalização jurisdicional efetiva, tanto de facto como de direito, da medida controvertida e da forma como esta se desenrola. Quando uma operação considerada irregular já tenha ocorrido, o ou os recursos disponíveis devem permitir fornecer ao interessado uma reparação adequada (TEDH, 2 de outubro de 2014, Delta Pekárny a.s. c. República Checa, CE:ECHR:2014:1002JUD000009711, § 86 e § 87 e jurisprudência referida).

47

Assim, uma vez que a fiscalização jurisdicional a posteriori da inspeção pode, em determinadas condições, compensar a inexistência de fiscalização jurisdicional prévia e que deve ser fornecida uma reparação adequada mediante «o ou os recursos disponíveis», há que considerar que importa, em princípio, ter em conta o conjunto dos recursos disponíveis para determinar se as exigências previstas no artigo 47.o da Carta estão cumpridas.

48

Por outro lado, tendo a recorrente invocado, por via de exceção, a ilegalidade do artigo 20.o do Regulamento n.o 1/2003, o Tribunal Geral, como salientou o advogado‑geral no n.o 51 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), estava obrigado, para se pronunciar sobre essa exceção, a proceder a uma apreciação geral do sistema de fiscalização jurisdicional das medidas adotadas no âmbito das inspeções, ultrapassando as circunstâncias particulares do processo em causa.

49

Nestas condições, há que concluir que a recorrente não tem razão quando sustenta que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao efetuar uma análise global de todas as vias de recurso disponíveis para contestar o desenrolar das inspeções.

50

Por conseguinte, a primeira acusação deve ser rejeitada.

51

Quanto à segunda acusação, há que considerar, em primeiro lugar, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 66 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), que a falta de uma prática judiciária estabelecida não pode ser decisiva para negar o caráter efetivo de uma via de recurso.

52

Acresce que a possibilidade, referida pelo Tribunal Geral no n.o 62 do acórdão recorrido, de interpor recurso contra uma decisão de indeferimento de um pedido de proteção da privacidade dos membros do pessoal de uma empresa constitui apenas a aplicação a um caso concreto de jurisprudência constante, nos termos da qual constituem atos suscetíveis de ser objeto de um recurso de anulação na aceção do artigo 263.o TFUE as medidas que produzam efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar os interesses da parte recorrente, alterando significativamente a sua situação jurídica, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 67 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578).

53

Em segundo lugar, quanto à argumentação da recorrente segundo a qual o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao omitir uma via de recurso imediata que permitisse contestar a apreensão de documentos não abrangidos pelo âmbito da inspeção, há que esclarecer que, como resulta do n.o 69 do acórdão recorrido, que é contestado pela recorrente, essa argumentação diz respeito a uma situação em que a respetiva inspeção, no âmbito da qual documentos não abrangidos pelo âmbito da inspeção podem ser apreendidos, não desencadeia uma decisão de declaração de uma infração e de aplicação de uma sanção, mas ao início de um novo inquérito e à adoção de uma nova decisão de inspeção.

54

A este respeito, importa salientar que, no referido n.o 69, o Tribunal Geral fez referência às várias vias de recurso que analisou nos n.os 57 a 66 do acórdão recorrido e concluiu, nomeadamente, no n.o 59 desse acórdão, que as empresas inspecionadas poderiam interpor recurso de anulação da nova decisão de inspeção e, assim, contestar a legalidade dos indícios que a fundamentaram como tendo sido irregularmente obtidos na inspeção anterior.

55

Além disso, no que diz respeito às vias de recurso imediatas para contestar as medidas adotadas em aplicação de uma decisão de inspeção, há que salientar que o Tribunal Geral considerou, corretamente, em substância, nos n.os 56 e 57 do acórdão recorrido, que essas empresas podem recorrer contra qualquer ato adotado pela Comissão na sequência de uma decisão de inspeção, incluindo durante o desenrolar das operações de inspeção, desde que esse ato seja recorrível à luz dos requisitos definidos na jurisprudência.

56

Em terceiro lugar, quanto às apreciações feitas pelo Tribunal Geral, no acórdão recorrido, sobre o recurso contra a decisão de inspeção, o recurso contra a decisão da Comissão que sanciona uma obstrução à inspeção com base no artigo 23.o, n.o 1, alíneas c) a e), do Regulamento n.o 1/2003, o processo de medidas provisórias e a ação de indemnização por responsabilidade extracontratual, resulta do n.o 47 do presente acórdão que nenhuma via de recurso à disposição de uma empresa sujeita a uma medida de inspeção deve ser afastada pelo Tribunal Geral, desde que essa via de recurso permita contestar uma ou várias medidas adotadas no âmbito dessa inspeção.

57

Posto isto, importa, primeiro, salientar que, de facto, o recurso contra uma decisão de inspeção não pode constituir uma via de recurso contra as medidas adotadas posteriormente no âmbito da inspeção, uma vez que a legalidade de um ato deve ser apreciada face às circunstâncias de direito e de facto existentes no momento em que essa decisão foi adotada, de modo que os atos posteriores à adoção de uma decisão não podem afetar a sua validade (v., neste sentido, Acórdão de 17 de outubro de 2019, Alcogroup e Alcodis/Comissão, C‑403/18 P, EU:C:2019:870, n.os 45 e 46 e jurisprudência referida).

58

No entanto, como salientou o Tribunal Geral no n.o 69 do acórdão recorrido, no caso de a inspeção em causa não desencadear uma decisão de declaração de uma infração e de aplicação de uma sanção, mas o início de um novo inquérito e a adoção de uma nova decisão de inspeção, as empresas inspecionadas podem interpor recurso de anulação dessa decisão contestando a legalidade dos indícios que a fundamentaram como tendo sido irregularmente obtidos na inspeção anterior.

59

Ora, como resulta do n.o 59 do acórdão recorrido, tal recurso é suscetível de conduzir à anulação dessa nova decisão de inspeção se as medidas adotadas pela Comissão na inspeção anterior não estiverem em conformidade com o âmbito das decisões que a ordenaram (v., neste sentido, Acórdão de 18 de junho de 2015, Deutsche Bahn e o./Comissão, C‑583/13 P, EU:C:2015:404, n.os 56 a 67 e 71). Daqui decorre que o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao ter em conta esta via de recurso.

60

Segundo, quanto ao recurso nos termos do artigo 263.o TFUE contra uma decisão da Comissão que sanciona uma obstrução a uma inspeção com base no artigo 23.o, n.o 1, alíneas c) a e), do Regulamento n.o 1/2003, é um facto que o Tribunal de Justiça já declarou que uma legislação nacional que exclui a possibilidade de uma pessoa que detenha informações, a quem a autoridade nacional competente dirija uma decisão que ordena a prestação dessas informações, interpor recurso judicial dessa decisão, não respeita o conteúdo essencial do direito a um recurso efetivo garantido pelo artigo 47.o da Carta e que, consequentemente, o artigo 52.o, n.o 1, desta opõe‑se a essa legislação [Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito de recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 69].

61

Contudo, o Tribunal de Justiça chegou a essa interpretação porque essa pessoa detentora de informações, que é diferente do contribuinte visado pelo inquérito na origem da decisão que ordena a prestação das informações, não pode ter acesso a um tribunal, a menos que infrinja essa decisão ao recusar‑se a cumprir a ordem nela contida e se exponha, assim, à sanção associada ao não cumprimento da mesma [Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito de recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 68].

62

Ora, as empresas visadas por uma decisão de inspeção não estão numa situação comparável. De facto, como salientou o advogado‑geral no n.o 79 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), o recurso contra uma decisão da Comissão adotada nos termos do artigo 23.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 em caso de obstrução à inspeção não constitui a única via de recurso à disposição das empresas inspecionadas para contestar a regularidade das operações de inspeção.

63

Terceiro, no que diz respeito ao argumento da recorrente que visa, em substância, contestar a efetividade do processo de medidas provisórias, referido pelo Tribunal Geral nos n.os 64 e 65 do acórdão recorrido, com fundamento no facto de o desenrolar de uma inspeção não poder, salvo exceção relativa a determinadas medidas específicas, ser objeto de um recurso principal, basta recordar que as medidas referidas nos n.os 61 e 62 do acórdão recorrido, que são suscetíveis de ser objeto de recurso com base no artigo 263.o TFUE, apenas foram referidas pelo Tribunal Geral a título de exemplo.

64

Quarto, no que se refere à ação de indemnização por responsabilidade extracontratual, embora resulte do n.o 33 do Acórdão do TEDH de 21 de fevereiro de 2008, Ravon e o. c. França (CE:ECHR:2008:0221JUD001849703), que, em matéria de visitas domiciliárias, uma ação com uma finalidade puramente indemnizatória não pode, por si só, garantir o respeito pelo direito a um processo equitativo e pelo direito ao respeito pela vida privada e familiar, tal não implica que essa ação não possa fazer parte das vias de recurso à disposição das empresas visadas e conceder‑lhes uma reparação adequada, nomeadamente no caso de uma operação de inspeção que já tenha sido realizada ter sido considerada irregular.

65

Por conseguinte, o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao ter igualmente em conta nessa ação, no âmbito da sua análise de conjunto, a possibilidade de as empresas contestarem as medidas adotadas no âmbito das inspeções.

66

Por outro lado, como salientou o Tribunal Geral no n.o 78 do acórdão recorrido, o caráter incerto e o prazo de adoção da decisão de encerramento do processo nos termos do artigo 101.o TFUE devem ser colocados em perspetiva com o facto de, até ao momento dessa decisão, a Comissão não tomar uma posição definitiva sobre a existência de uma infração e sobre a sanção subsequente aplicável à empresa inspecionada. Ora, determinados efeitos prejudiciais causados a uma empresa devido a irregularidades cometidas na inspeção só são suscetíveis de se materializar se e quando tal decisão é adotada, como salientou o advogado‑geral no n.o 59 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578).

67

Em contrapartida, como salientou igualmente o Tribunal Geral no n.o 78 do acórdão recorrido, se, durante esse prazo, ocorrerem outras consequências danosas para a empresa inspecionada, como um comportamento prejudicial da Comissão ou a adoção de uma nova decisão de inspeção com base nas informações recolhidas, essa empresa pode intentar em tribunal, imediatamente e sem aguardar a conclusão do processo de infração, uma ação de indemnização ou um recurso de anulação da nova decisão de inspeção.

68

Em quarto e último lugar, quanto às alegações da recorrente relativas à complexidade do sistema de vias de recurso para contestar o desenrolar das inspeções, há que sublinhar que, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem recordada no n.o 46 do presente acórdão, para cumprir as exigências previstas no artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, as empresas que sejam objeto de uma visita domiciliária devem ter a possibilidade de obter a análise do conteúdo das suas contestações e a concessão de uma reparação adequada. Em contrapartida, não se exige que todas as acusações que possam ser invocadas contra as medidas tomadas pela autoridade pública com base na decisão que ordena a visita o sejam no âmbito de apenas uma via de recurso.

69

Por conseguinte, a segunda acusação deve ser rejeitada e, consequentemente, o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente na sua totalidade.

Quanto ao segundo fundamento, relativo a erros de direito cometidos pelo Tribunal Geral ao considerar que os relatórios apresentados pela Comissão, para justificar o caráter suficientemente sério dos indícios de que dispunha, não estavam viciados por uma irregularidade formal que afetava o seu valor probatório

Argumentos das partes

70

Com o segundo fundamento, a recorrente sustenta que o Tribunal Geral violou o artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, o artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004 e o artigo 7.o da Carta ao considerar, nos n.os 190 a 202 do acórdão recorrido, que os relatórios apresentados pela Comissão para justificar o caráter suficientemente sério dos indícios de que dispunha não estavam viciados por uma irregularidade formal passível de afetar o seu valor probatório.

71

Em primeiro lugar, ao declarar, no n.o 190 do acórdão recorrido, que as normas constantes do capítulo V do Regulamento n.o 1/2003, intitulado «Poderes de inquérito», não eram aplicáveis antes do início de um inquérito formal, o Tribunal Geral estabeleceu uma distinção entre duas fases do processo, a que existe antes do início de um inquérito formal e a posterior a tal início, que não resulta nem do Regulamento n.o 1/2003 nem do Regulamento n.o 773/2004.

72

O capítulo V do Regulamento n.o 1/2003, no qual figura o artigo 19.o deste regulamento, não estabelece nenhuma distinção entre inquérito formal e informal, ou inquérito preliminar e definitivo. Tal distinção coloca, de resto, problemas insolúveis de definição e de delimitação. Além disso, o Regulamento n.o 773/2004 recorda que a Comissão pode exercer os seus poderes de inquérito nos termos desse capítulo V, antes de dar início a um processo. Decorre, aliás, das respostas a questões escritas colocadas pelo Tribunal Geral à Comissão que esta considerava que o artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e o artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004 eram aplicáveis às audições com os fornecedores.

73

Em segundo lugar, a afirmação do Tribunal Geral, de que o formalismo previsto nessas disposições não é aplicável no caso em apreço, não encontra apoio na jurisprudência referida no n.o 91 do acórdão recorrido, que diz respeito à apreciação do caráter razoável da duração do procedimento administrativo.

74

Acresce que a distinção estabelecida pelo Tribunal Geral, no acórdão recorrido, entre pré‑inquérito e inquérito é de natureza idêntica à que foi julgada improcedente pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão (C‑413/14 P, EU:C:2017:632).

75

Em terceiro lugar, essa interpretação é igualmente contrária à jurisprudência relativa à administração dos meios de prova orais. Com efeito, de acordo com a recorrente, as provas orais apenas estão autorizadas, nos procedimentos administrativos, na condição de uma informação dada oralmente a uma entidade da Administração Pública, numa reunião, ser normalmente recolhida e conservada através de registo sonoro ou registada por escrito mediante a redação de uma ata.

76

Decorre, de resto, dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 1/2003 que uma das razões que estiveram na origem do artigo 19.o deste regulamento era permitir a apresentação de declarações orais como meio de prova. De igual modo, decorre dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 773/2004 que a validação do conteúdo do registo pela pessoa ouvida tinha como objetivo garantir a exatidão das declarações.

77

Tal é igualmente confirmado pelos n.os 31 e 32 da Comunicação relativa à clemência de 2006, que prevê que a obrigação de registo se impõe desde as primeiras declarações orais recolhidas pela Comissão para garantir a exatidão dos meios de prova recolhidos.

78

Em quarto lugar, a afirmação do Tribunal Geral, constante do n.o 190 do acórdão recorrido, de que os indícios são submetidos a um formalismo menor do que as provas, não encontra nenhum apoio na jurisprudência e é negada pela prática da Comissão relativamente ao registo dos pedidos de clemência.

79

A interpretação efetuada pelo Tribunal Geral é incompatível com a intenção do legislador de criar, através do artigo 19.o do Regulamento n.o 773/2004, uma base jurídica que permita à Comissão juntar declarações orais aos autos do processo, prevendo simultaneamente, no artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, regras respeitantes à forma destinadas a garantir a exatidão dessas declarações.

80

Não se pode admitir que a Comissão possa recolher indícios durante uma fase prévia ao inquérito, sem respeitar as disposições do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003. De facto, tal interpretação permitiria à Comissão realizar investigações fora de qualquer quadro legal e de qualquer fiscalização jurisdicional.

81

A recorrente considera que, embora a Comissão seja livre de receber informações de terceiros, de modo informal, não pode invocá‑las sem cumprir o formalismo destinado a assegurar o caráter completo e fiável dessas informações.

82

Em quinto lugar, a faculdade reconhecida ao Tribunal Geral de interrogar testemunhas não pode compensar a falta de registo das audições.

83

Em sexto lugar, no que respeita à referência feita pelo Tribunal Geral, no n.o 201 do acórdão recorrido, aos potenciais efeitos dissuasivos que um interrogatório formal pode ter sobre a propensão das testemunhas para fornecer informações e para denunciar infrações, tais efeitos podem ser evitados, segundo a recorrente, garantindo o anonimato das fontes de informação. Por outro lado, como a recorrente sustentou no Tribunal Geral, a natureza muito estandardizada dos alegados relatórios, a recusa da Comissão em facultar a data da sua elaboração e os erros materiais detetados põem em causa a fidelidade com que esses documentos reproduzem as discussões que realmente ocorreram.

84

Em sétimo lugar, o imperativo de celeridade na adoção das decisões de inspeção não pode justificar uma violação desproporcionada dos direitos fundamentais. Acresce que nada impede o registo das declarações orais ou, pelo menos, a elaboração de uma ata imediatamente após as audições, validada pelas empresas em causa.

85

Em oitavo lugar, o facto de as declarações recolhidas sem o formalismo previsto no artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 não poderem ser utilizadas como meios de prova de uma infração não constitui uma reparação para a violação dos direitos de defesa no caso de recurso contra uma decisão de inspeção. Tal solução prejudicaria a eficácia dos inquéritos uma vez que significaria que declarações orais recolhidas antes de uma inspeção não poderiam servir para demonstrar a existência de uma infração.

86

A recorrente sustenta que o Tribunal Geral cometeu erros de direito ao considerar, nos n.os 202 e 218 do acórdão recorrido, que os documentos apresentados pela Comissão podiam ser tidos em conta para apreciar a existência de indícios suficientemente sérios que justificassem a decisão de declarar uma infração quando as regras de forma que regulam o registo das declarações orais não foram cumpridas. A conclusão do Tribunal Geral de que a Comissão dispunha de tais indícios da primeira infração está, por isso, viciada. Com efeito, essa conclusão baseia‑se exclusivamente nos documentos que não cumpriram os requisitos previstos no artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e no artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, como resulta dos n.os 250, 252, 253 e 256 do acórdão recorrido.

87

A Comissão contesta estes argumentos.

88

A título preliminar, a Comissão esclarece que o início do inquérito difere quer da abertura dos autos quer do início do processo, na aceção do artigo 2.o do Regulamento n.o 773/2004. O início do inquérito ocorre com a primeira utilização pela Comissão dos seus poderes de inquérito e a adoção de medidas que impliquem a acusação da prática de uma infração e tenham repercussões importantes na situação das entidades suspeitas. A abertura dos autos é um ato interno adotado pela secretaria da Direção‑Geral da Concorrência da Comissão, quando atribui um número de processo, e cujo único objetivo é salvaguardar documentos. O início do processo corresponde à data em que a Comissão adota uma decisão nos termos do artigo 2.o do Regulamento n.o 773/2004 com o objetivo de tomar uma decisão ao abrigo do capítulo III do Regulamento n.o 1/2003.

89

Posto isto, a Comissão alega, em primeiro lugar, que o argumento da recorrente de que o Tribunal Geral, no acórdão recorrido, estabeleceu uma distinção entre duas fases, a que existe antes do início de um inquérito formal e a posterior a tal início, resulta de uma leitura errada desse acórdão. A recorrente confunde o início do inquérito com o início do processo. Ora, o acórdão recorrido diz respeito apenas à obrigação de aplicar o artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 antes do início de um inquérito e não durante o período, mais longo, que termina na data do início do processo, na aceção do artigo 2.o do Regulamento n.o 773/2004.

90

Em todo o caso, a segmentação do processo em duas fases, antes e depois do início de um inquérito, não coloca «problemas insolúveis de definição e de delimitação». Pelo contrário, a data da primeira utilização, pela Comissão, dos seus poderes de inquérito constitui um critério objetivo e facilmente identificável.

91

Em segundo lugar, contrariamente ao que alega a recorrente, a distinção estabelecida pelo Tribunal Geral entre essas duas fases do processo encontra apoio na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Com efeito, decorre da jurisprudência referida no n.o 191 do acórdão recorrido que o início de um inquérito corresponde à data em que a Comissão utiliza, pela primeira vez, os seus poderes de inquérito. A abordagem do Tribunal Geral é confirmada pela redação do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, por força do qual uma «audição», na aceção deste artigo, deve visar a «recolha de informações sobre o objeto de um inquérito», que, por definição, deve ter sido iniciado previamente. Como confirmam os trabalhos preparatórios desse regulamento, essa disposição constitui uma base jurídica que autoriza o registo das declarações orais «no âmbito de um inquérito» tendo em vista a sua apresentação não como meros indícios, mas como «meio de prova».

92

A Comissão acrescenta, primeiro, que é desprovido de pertinência que tenha sustentado, no Tribunal Geral, que os relatórios das audições com os fornecedores constituíam registos nos termos do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e do artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, dado que o Tribunal Geral não se pronunciou sobre este argumento.

93

Segundo, a distinção feita pelo Tribunal Geral entre a fase do processo anterior à primeira utilização dos poderes de inquérito da Comissão e a fase posterior a essa utilização não é comparável com a distinção entre as audições formais e as audições informais julgada improcedente pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão (C‑413/14 P, EU:C:2017:632). No processo que deu origem a esse acórdão, a reunião relativamente à qual o Tribunal de Justiça concluiu que se aplicava a obrigação de registo tivera lugar após a adoção de decisões de inspeção. Por conseguinte, dizia respeito a um inquérito que já tinha sido iniciado e à recolha de elementos de prova que podiam ser de acusação ou de defesa. Em contrapartida, no caso em apreço, as audições com os fornecedores tiveram lugar antes da adoção da decisão impugnada ou de qualquer outra medida de instrução. Essas audições diziam respeito, portanto, apenas à recolha de indícios.

94

Em terceiro lugar, a afirmação da recorrente de que a falta de formalismo no que se refere à recolha de declarações orais anteriores a uma inspeção impede o Tribunal Geral de exercer a sua fiscalização jurisdicional da proporcionalidade e da regularidade de uma inspeção é contrariada pela fiscalização dos indícios efetuada pelo Tribunal Geral no caso em apreço, que conduziu à anulação parcial da decisão impugnada. Além disso, mesmo quando um testemunho oral não tenha sido objeto de registo, o Tribunal Geral tem a possibilidade de ouvir testemunhas, em conformidade com o artigo 94.o do seu Regulamento de Processo.

95

A aplicação do formalismo previsto nos Regulamentos n.o 1/2003 e n.o 773/2004 antes do início do inquérito prejudicaria a aplicação do direito da concorrência pela Comissão, impedindo‑a de recolher e de utilizar indícios recebidos oralmente. Impedir a Comissão de recolher indícios oralmente comprometeria a eficácia dos inquéritos ao atrasar a data das inspeções.

96

A Comissão acrescenta que o princípio que prevalece no direito da União é o da livre apreciação ou administração das provas, do qual decorre que o único critério pertinente para apreciar o valor probatório das provas regularmente produzidas reside na sua credibilidade (Acórdão de 26 de setembro de 2018, Infineon Technologies/Comissão,C‑99/17 P, EU:C:2018:773, n.o 65). Por outro lado, para apreciar o valor probatório de uma prova, é necessário verificar a verosimilhança da informação nela contida e ter em conta, nomeadamente, a sua origem, as circunstâncias da sua elaboração e o seu destinatário, bem como perguntar se, tendo em conta o seu conteúdo, a mesma se afigura razoável e fidedigna (Despacho de 12 de junho de 2019, OY/Comissão, C‑816/18 P, não publicado, EU:C:2019:486, n.o 6). Estes princípios aplicam‑se, por maioria de razão, aos indícios, cujo valor probatório é, por definição, menor.

97

Em quarto lugar, a Comissão sustenta que, primeiro, é desprovido de pertinência que, na sua Comunicação relativa à clemência de 2006, a Comissão tenha previsto registar, nos termos do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e do artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, os pedidos orais de clemência efetuados antes da primeira utilização dos seus poderes de inquérito.

98

Segundo, o argumento da recorrente de que o acórdão recorrido permite à Comissão realizar investigações fora de qualquer quadro legal antes da abertura do inquérito oficial baseia‑se numa leitura errada desse acórdão. Por um lado, o acórdão recorrido diz respeito apenas ao período até à primeira utilização pela Comissão dos seus poderes de inquérito, e não ao período até ao início do processo, na aceção do artigo 2.o do Regulamento n.o 773/2004. Por outro lado, submeter os indícios a um grau de formalismo menor do que as provas permite conciliar, por um lado, o imperativo de celeridade que orienta a adoção das decisões de inspeção e a eficácia do inquérito da Comissão e, por outro, a preservação dos direitos de defesa das empresas em causa.

99

Terceiro, submeter os indícios a um grau de formalismo menor do que as provas não prejudica a eficácia dos inquéritos. De facto, um elemento material que não cumpre o formalismo previsto nos Regulamentos n.o 1/2003 e n.o 773/2004 pode ainda servir para demonstrar a existência de uma infração mesmo que o seu valor probatório enquanto prova seja reduzido.

100

Em quinto lugar, a Comissão sublinha que foi apenas a título exaustivo que o Tribunal Geral concluiu, no n.o 201 do acórdão recorrido, que a deteção de práticas ilícitas pela Comissão e o exercício dos seus poderes de inquérito seriam gravemente prejudicados se a Comissão devesse estar obrigada a registar qualquer declaração oral antes do início de um inquérito.

Apreciação do Tribunal de Justiça

101

Com o segundo fundamento, a recorrente acusa, em substância, o Tribunal Geral de ter cometido um erro de direito, no n.o 190 do acórdão recorrido, ao considerar que a Comissão não está obrigada a cumprir a obrigação de registo das audições que resulta das disposições conjugadas do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e do artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004 antes de iniciar formalmente um inquérito e de utilizar os poderes de inquérito que lhe são reconhecidos, em especial, pelos artigos 18.o a 20.o do Regulamento n.o 1/2003.

102

A este respeito, importa recordar que, de acordo com jurisprudência constante, a interpretação de uma disposição do direito da União exige que se tenha em conta não só os seus termos mas também o contexto em que se insere e os objetivos e a finalidade prosseguidos pelo ato de que faz parte (Acórdão de 1 de agosto de 2022, HOLD Alapkezelő, C‑352/20, EU:C:2022:606, n.o 42 e jurisprudência referida).

103

Em primeiro lugar, decorre da própria redação do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 que este é aplicável a qualquer audição que vise a recolha de informações sobre o objeto de um inquérito (Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 84).

104

O artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, que submete as audições baseadas no artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 ao cumprimento de determinadas formalidades, não especifica o âmbito de aplicação desta última disposição.

105

Ora, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou que, por força do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 e do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, incumbe à Comissão a obrigação de registar, sob a forma que escolher, as audições que realize ao abrigo do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, para recolher informações sobre o objeto de um inquérito que efetue (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.os 90 e 91).

106

Importa, por isso, esclarecer que há que estabelecer uma distinção em função do objeto das audições que a Comissão efetue, uma vez que só as que visem recolher informações sobre o objeto de um inquérito da Comissão são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 e, deste modo, pela obrigação de registo.

107

Esclarecido este aspeto, nenhum elemento relativo à redação do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 ou do artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004 permite deduzir que a aplicação dessa obrigação de registo depende da questão de saber se a audição efetuada pela Comissão ocorreu antes do início formal de um inquérito, para recolher indícios de uma infração, ou posteriormente, para recolher provas de uma infração.

108

De facto, essas disposições não preveem, de modo nenhum, que a aplicação da obrigação de registo depende da questão de saber se as informações que constituem o seu objeto podem ser qualificadas como indícios ou como provas. Pelo contrário, devido ao caráter genérico do termo «informações», constante do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, deve considerar‑se que esta disposição se aplica indistintamente a cada uma dessas categorias.

109

É verdade que não se pode confundir os conceitos de «indícios» e de «provas», uma vez que um indício não pode, pela sua natureza e ao contrário de uma prova, ser considerado suficiente para demonstrar um determinado facto.

110

Não é menos verdade que a qualificação como indício ou como prova depende não de uma fase específica do processo, mas do valor probatório das informações em causa, podendo indícios suficientemente sérios e convergentes, reunidos num «conjunto», provar, por si só, a existência de uma infração e ser utilizados na decisão final adotada pela Comissão com base no artigo 101.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 1 de julho de 2010, Knauf Gips/Comissão, C‑407/08 P, EU:C:2010:389, n.o 47).

111

Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral no n.o 141 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), a obrigação de registo das audições não pode depender da qualificação das informações recolhidas como indícios ou como provas, pois o valor probatório dessas informações só pode ser apreciado pela Comissão na sequência dessas audições, durante as fases subsequentes do processo.

112

Por outro lado, o artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 e o artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004 também não preveem que a aplicação da obrigação de registo depende da fase do processo em que as audições são realizadas. É verdade que o artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 prevê que as audições baseadas nesta disposição são as efetuadas para efeitos da recolha de informações sobre o objeto de um inquérito, o que pressupõe que esteja a decorrer um inquérito. Em contrapartida, não decorre desta disposição que essas audições devem ter lugar após o início formal de um inquérito, definido pelo Tribunal Geral, no n.o 190 do acórdão recorrido, como o momento em que a Comissão adota uma medida que implique a acusação da prática de uma infração.

113

Em segundo lugar, quanto ao contexto do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, há que salientar, por um lado, que este artigo consta do capítulo V deste regulamento, relativo aos poderes de inquérito da Comissão. Ora, a aplicação das disposições deste capítulo não está necessariamente subordinada à adoção, por essa instituição, de uma medida que implique a acusação da prática de uma infração.

114

Assim, a Comissão pode, em conformidade com o artigo 17.o do referido regulamento, realizar inquéritos setoriais, os quais não tornam necessária a adoção prévia de medidas desta natureza em relação às empresas.

115

Importa, por outro lado, salientar que o artigo 2.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, em virtude do qual «[a] Comissão pode exercer os seus poderes de investigação nos termos do capítulo V do Regulamento [n.o 1/2003] antes de dar início ao processo» corrobora a interpretação segundo a qual as disposições relativas aos poderes de inquérito da Comissão enumeradas no referido capítulo — incluindo o artigo 19.o — são aplicáveis antes do início formal de um inquérito, contrariamente ao que resulta do n.o 193 do acórdão recorrido.

116

É verdade que, nos processos que deram origem aos Acórdãos de 15 de outubro de 2002, Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão (C‑238/99 P, C‑244/99 P, C‑245/99 P, C‑247/99 P, C‑250/99 P a C‑252/99 P e C‑254/99 P, EU:C:2002:582, n.o 182), e de 21 de setembro de 2006, Nederlandse Federatieve Vereniging voor de Groothandel op Elektrotechnisch Gebied/Comissão (C‑105/04 P, EU:C:2006:592, n.o 38), referidos no n.o 191 do acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça identificou como ponto de partida do inquérito preliminar instaurado pela Comissão, em matéria de concorrência, a data em que essa instituição, no exercício dos poderes que lhe foram conferidos pelo legislador da União, toma medidas que impliquem a acusação da prática de uma infração e tenham repercussões importantes na situação das empresas suspeitas.

117

No entanto, os processos que deram origem a esses acórdãos diziam respeito à determinação do ponto de partida do procedimento administrativo para verificar o respeito, por parte da Comissão, pelo princípio do prazo razoável. Ora, essa verificação exige que se analise se essa instituição atuou de modo diligente a partir da data em que informou a empresa suspeita de ter cometido uma infração ao direito da concorrência da União da existência de um inquérito.

118

Em contrapartida, essa data não pode ser tomada em consideração para determinar a partir de que momento a Comissão está obrigada a cumprir a obrigação de registo das audições decorrente das disposições conjugadas do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e do artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004. De facto, como salientou o advogado‑geral no n.o 150 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), uma empresa pode ser visada pelas declarações de terceiros recolhidas durante essas audições, sem disso ter conhecimento. Por conseguinte, a tomada em consideração da referida data equivaleria a adiar a aplicação da obrigação de registo e das garantias processuais conexas, previstas nessas disposições em benefício dos terceiros interrogados e da empresa suspeita, até a Comissão adotar uma medida que informe essa empresa da existência de suspeitas a seu respeito. Devido a esse adiamento, as audições com os terceiros realizadas anteriormente a essa medida seriam excluídas do âmbito de aplicação da obrigação de registo das audições e das garantias processuais que lhes são aplicáveis.

119

Em terceiro e último lugar, quanto à finalidade do Regulamento n.o 1/2003, decorre do considerando 25 deste regulamento que, uma vez que a deteção das infrações às regras de concorrência se torna cada vez mais difícil, o artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 visa reforçar os poderes de inquérito da Comissão, permitindo‑lhe, nomeadamente, ouvir qualquer pessoa que possa dispor de informações úteis e registar as suas declarações (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 85). Ora, a expressão «deteção das infrações», constante do referido considerando, corrobora a interpretação segundo a qual as audições realizadas pela Comissão, numa fase preliminar, para recolher indícios relativos ao objeto de um inquérito são igualmente abrangidas pelo artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003.

120

Por outro lado, importa esclarecer que, ao abrigo do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, a Comissão pode registar as audições sob qualquer forma. Assim, a Comissão não pode validamente alegar que o facto de lhe ser imposta uma obrigação de registo a impediria de recolher e utilizar indícios quando estes apenas possam revestir a forma oral e comprometeria a eficácia dos inquéritos ao atrasar a data da inspeção. De igual modo, a Comissão não pode alegar que tal obrigação tem um efeito dissuasivo, uma vez que a Comissão pode proteger a identidade das pessoas ouvidas.

121

Nestas condições, há que concluir que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 190 do acórdão recorrido, que havia que excluir do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1/2003 as audições durante as quais foram recolhidos indícios que posteriormente serviram de fundamento a uma decisão que ordenava a inspeção de uma empresa, com o fundamento de que não foi iniciado um inquérito na aceção do capítulo V deste regulamento, na medida em que a Comissão não tinha adotado nenhuma medida que implicasse a acusação da prática de uma infração relativamente a essa empresa. Para determinar se essas audições eram abrangidas por esse âmbito de aplicação, o Tribunal Geral devia ter analisado se estas visavam a recolha de informações sobre o objeto de um inquérito, tendo em conta o seu teor e o seu contexto.

122

No caso em apreço, como decorre do n.o 202 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que os indícios resultantes das audições com os fornecedores não deviam ser considerados viciados por uma irregularidade formal com fundamento no incumprimento da obrigação de registo prevista no artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e no artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, nomeadamente porque essas audições foram realizadas antes do início de um inquérito nos termos do Regulamento n.o 1/2003 e não implicavam, relativamente à recorrente e, a fortiori, relativamente aos fornecedores, qualquer acusação da prática de uma infração.

123

Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 155 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), a este respeito, basta indicar que, quando a Comissão realiza audições cujo objeto é definido previamente e cuja finalidade é abertamente obter informações sobre o funcionamento de um determinado mercado e sobre o comportamento dos intervenientes nesse mercado com vista a detetar eventuais práticas de infração ou consolidar as suas suspeitas quanto à existência de tais práticas, a Comissão exerce o seu poder de registar declarações nos termos do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003.

124

Consequentemente, as audições com os fornecedores eram abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 e a Comissão estava obrigada a registar essas declarações em conformidade com o artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004.

125

Daqui decorre que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 202 do acórdão recorrido, que a obrigação de registo, prevista no artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e no artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, não se aplicava às audições com os fornecedores e que os indícios resultantes dessas audições não estavam viciados por uma irregularidade formal.

126

Resulta do exposto que o segundo fundamento é julgado procedente e que, consequentemente, há que dar provimento ao recurso e anular o n.o 2 do dispositivo do acórdão recorrido, sem que seja necessário decidir sobre o terceiro fundamento do recurso. Por conseguinte, há que anular igualmente o n.o 3, relativo às despesas, do dispositivo do acórdão recorrido.

Quanto ao recurso no Tribunal Geral

127

Em conformidade com o artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal de Justiça pode, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado.

128

É o que sucede no caso em apreço.

129

Por conseguinte, há que analisar a acusação, apresentada pela recorrente no Tribunal Geral no quadro do seu fundamento relativo à violação do direito à inviolabilidade do domicílio, de que, em substância, os indícios resultantes das audições com os fornecedores devem ser excluídos devido ao incumprimento, por parte da Comissão, do disposto no artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003 e no artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004.

130

Em apoio desta acusação, a recorrente sustenta que os relatórios das audições com os fornecedores não eram registos em conformidade com as exigências previstas nessas disposições, mas reconstituições feitas unilateralmente pela Comissão das suas audições com os fornecedores.

131

A Comissão responde que cumpriu a sua obrigação de registo ao ter elaborado relatórios exaustivos que reproduzem fielmente o teor das declarações dos fornecedores e juntando‑os aos autos, sob um número de identificação oficial. Este tipo de relatório constitui uma das formas de registo a que o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004 permite que a Comissão recorra, do mesmo modo que uma gravação áudio ou audiovisual ou uma transcrição literal.

132

A este respeito, importa salientar que o artigo 3.o, n.o 3, primeiro período, do Regulamento n.o 773/2004, que especifica que a Comissão «pode registar as declarações das pessoas ouvidas sob qualquer forma», implica que, se a Comissão decidir, com o consentimento da pessoa ouvida, proceder a uma audição com base no artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, fica obrigada a registar essa audição na sua íntegra, sem prejuízo de poder escolher a forma desse registo (Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 90).

133

Além disso, decorre do artigo 3.o, n.o 3, segundo e terceiro períodos, do Regulamento n.o 773/2004 que a Comissão deve disponibilizar à pessoa ouvida uma cópia do registo para aprovação e, se for necessário, fixar um prazo durante o qual essa pessoa pode transmitir eventuais correções a introduzir nas suas declarações.

134

No caso em apreço, a Comissão não alegou nem, a fortiori, demonstrou que tinha disponibilizado aos fornecedores, para aprovação, os relatórios redigidos.

135

Ora, a obrigação imposta à Comissão de disponibilizar à pessoa ouvida uma cópia do registo para aprovação, prevista no artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, visa, em especial, assegurar a autenticidade das declarações feitas pela pessoa ouvida, garantindo que essas declarações devem efetivamente ser‑lhe atribuídas e que o seu teor reproduz fielmente e na íntegra as referidas declarações e não a interpretação feita das mesmas pela Comissão.

136

Por conseguinte, um indício baseado numa declaração recolhida pela Comissão sem que esse requisito, imposto pelo artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, seja cumprido, deve ser considerado inadmissível e, consequentemente, rejeitado.

137

Assim, não se pode considerar que esses relatórios, de natureza meramente interna, cumprem os requisitos previstos no artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, que se aplicam às audições abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003.

138

Esta conclusão não pode ser infirmada pelos argumentos da Comissão, resumidos no n.o 97 do presente acórdão, baseados nos n.os 65 a 69 do Acórdão de 26 de setembro de 2018, Infineon Technologies/Comissão (C‑99/17 P, EU:C:2018:773).

139

É verdade que o Tribunal de Justiça declarou que o princípio que prevalece no direito da União é o da livre apreciação das provas, do qual decorre que o único critério pertinente para apreciar o valor probatório das provas regularmente produzidas reside na sua credibilidade e que, consequentemente, o valor probatório de uma prova deve ser avaliado globalmente, pelo que levantar meras dúvidas infundadas quanto à autenticidade de uma prova não é suficiente para comprometer a sua credibilidade (Acórdão de 26 de setembro de 2018, Infineon Technologies/Comissão, C‑99/17 P, EU:C:2018:773, n.os 65 a 69).

140

Contudo, no processo que deu origem a esse acórdão, a prova cuja autenticidade era posta em causa era uma mensagem de correio eletrónico interna de uma empresa e não o registo de uma declaração recolhida pela Comissão, viciada por uma violação do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004.

141

Assim, o princípio da livre apreciação das provas não pode ser invocado para escapar às formalidades aplicáveis ao registo das declarações recolhidas pela Comissão nos termos do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003. A este respeito, importa salientar que a constatação da existência de uma irregularidade na recolha de indícios, à luz do artigo 19.o do Regulamento n.o 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 773/2004, reside na impossibilidade de a Comissão utilizar esses indícios nas fases seguintes do processo (v., por analogia, Acórdão de 18 de junho de 2015, Deutsche Bahn e o./Comissão, C‑583/13 P, EU:C:2015:404, n.o 45 e jurisprudência referida).

142

No caso em apreço, uma vez que, como salientou o advogado‑geral no n.o 208 das Conclusões que apresentou no processo Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2022:578), as informações resultantes das audições com os fornecedores constituíam o essencial dos indícios que fundamentam a decisão impugnada e que esta está viciada por uma irregularidade formal devido ao incumprimento da obrigação de registo prevista no artigo 3.o do Regulamento n.o 773/2004, há que concluir que a Comissão não possuía, à data da adoção da decisão impugnada, indícios suficientemente sérios que pudesse utilizar e que justificassem as presunções enunciadas no artigo 1.o, alínea a), dessa decisão. Atendendo a todas as considerações precedentes, há que anular a referida decisão na íntegra.

Quanto às despesas

143

Nos termos do artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso for julgado procedente e o Tribunal de Justiça decidir definitivamente o litígio, decidirá igualmente sobre as despesas.

144

O artigo 138.o, n.o 1, desse regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral nos termos do artigo 184.o, n.o 1, do referido regulamento, dispõe que a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente pedido a condenação da Comissão nas despesas e tendo esta sido vencida, há que condená‑la a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pela recorrente no âmbito do presente recurso. Por outro lado, tendo a decisão impugnada sido anulada, a Comissão é condenada a suportar a totalidade das despesas efetuadas pela recorrente no âmbito do processo em primeira instância.

145

Nos termos do artigo 184.o, n.o 4, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, um interveniente em primeira instância, quando não tenha ele próprio interposto o recurso, só pode ser condenado nas despesas do processo de recurso se tiver participado na fase escrita ou oral do processo no Tribunal de Justiça. Quando esse interveniente participe no processo, o Tribunal de Justiça pode decidir que o mesmo suporte as suas próprias despesas. Tendo o Conselho, interveniente em primeira instância, participado na fase escrita e na fase oral do processo no Tribunal de Justiça, há que decidir que suportará as suas próprias despesas relativas tanto ao processo de recurso como ao processo em primeira instância.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:

 

1)

O n.o 2 do dispositivo do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 5 de outubro de 2020, Intermarché Casino Achats/Comissão (T‑254/17, não publicado, EU:T:2020:459), é anulado.

 

2)

O n.o 3 do dispositivo do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 5 de outubro de 2020, Intermarché Casino Achats/Comissão (T‑254/17, não publicado, EU:T:2020:459), é anulado na parte em que decide quanto às despesas.

 

3)

A Decisão C(2017) 1056 final da Comissão, de 9 de fevereiro de 2017, que ordena à Intermarché Casino Achats e a todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por esta que se sujeitem a uma inspeção nos termos do artigo 20.o, n.os 1 e 4, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho (AT.40466 — Tute 1) é anulada.

 

4)

A Comissão Europeia é condenada a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pela Intermarché Casino Achats SARL relativas tanto ao processo em primeira instância como ao processo de recurso.

 

5)

O Conselho da União Europeia suporta as suas próprias despesas relativas tanto ao processo em primeira instância como ao processo de recurso.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua de processo: francês.

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