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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62020CJ0595

Acórdão do Tribunal de Justiça (Oitava Secção) de 10 de fevereiro de 2022.
UE contra ShareWood Switzerland AG e VF.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Lei aplicável às obrigações contratuais — Regulamento (CE) n.o 593/2008 (Roma I) — Contratos celebrados por consumidores — Escolha da lei aplicável — Artigo 6.o, n.o 4, alínea c) — Exclusão dos contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel — Contrato de compra e venda que inclui um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços, relativo a árvores plantadas com o único objetivo da sua colheita com fins lucrativos.
Processo C-595/20.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2022:86

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

10 de fevereiro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Lei aplicável às obrigações contratuais — Regulamento (CE) n.o 593/2008 (Roma I) — Contratos celebrados por consumidores — Escolha da lei aplicável — Artigo 6.o, n.o 4, alínea c) — Exclusão dos contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel — Contrato de compra e venda que inclui um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços, relativo a árvores plantadas com o único objetivo da sua colheita com fins lucrativos»

No processo C‑595/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), por Decisão de 28 de setembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de novembro de 2020, no processo

UE

contra

ShareWood Switzerland AG,

VF,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Jääskinen, presidente de secção, M. Safjan (relator) e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: L. Medina,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de UE, por R. Mirfakhrai, Rechtsanwalt,

em representação da ShareWood Switzerland AG e de VF, por S. Albiez, Rechtsanwalt,

em representação da Comissão Europeia, inicialmente por M. Wasmeier e M. Wilderspin, e depois por M. Wasmeier e W. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1.

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6) (a seguir «Regulamento Roma I»).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe UE à ShareWood Switzerland AG (a seguir «ShareWood») e a VF a respeito da obrigação de estes últimos pagarem a UE uma quantia em dinheiro no âmbito de um contrato‑quadro celebrado entre essas partes.

Quadro jurídico da União

3.

O considerando 7 do Regulamento Roma I enuncia:

«O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [(JO 2001, L 12, p. 1)] (Bruxelas I) e com o Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações extracontratuais [(“Roma II”) (JO 2007, L 199, p. 40].»

4.

Nos termos do artigo 6.o do Regulamento Roma I, intitulado «Contratos celebrados por consumidores»:

«1.   Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar‑se estranha à sua atividade comercial ou profissional (“o consumidor”), com outra pessoa que aja no quadro das suas atividades comerciais ou profissionais (“o profissional”), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional:

a)

Exerça as suas atividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou

b)

Por qualquer meio, dirija essas atividades para este ou vários países, incluindo aquele país,

e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades.

2.   Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1.

[…]

4.   Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes:

[…]

c)

Contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objeto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na aceção da Diretiva 94/47/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 1994, relativa à proteção dos adquirentes quanto a certos aspetos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis (JO 1994, L 280, p. 83)];

[…]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

5.

Entre janeiro de 2012 e junho de 2014, UE, um consumidor residente na Áustria, celebrou com a ShareWood, uma sociedade com sede na Suíça, um contrato‑quadro e quatro contratos de compra e venda de árvores de teca e de balsa no Brasil.

6.

Estes quatro contratos de compra e venda tinham por objeto 705 árvores de teca por 67328,85 euros, 2690 árvores de teca por 101716,53 euros, 2600 árvores de teca por 111583,34 euros e 1860 árvores de balsa por 32340 euros. Adicionalmente, este contrato‑quadro incluía um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços. Este contrato de arrendamento conferia o direito de cultivo das árvores em causa, estando a renda incluída no preço de compra destas últimas. Quanto ao contrato de prestação de serviços, previa que a ShareWood ficaria incumbida do cultivo das árvores, da sua gestão, colheita e venda e da transferência das receitas líquidas dessa venda para UE. A diferença entre as receitas líquidas e as receitas brutas correspondia à remuneração da ShareWood pela prestação destes serviços, definida como percentagem dos rendimentos.

7.

O referido contrato‑quadro incluía as seguintes cláusulas:

«3.1. A [ShareWood] vende, em seu nome e por sua conta próprios, a [UE], as árvores das plantações da [ShareWood] e da [Sharewood do Brasil Reflorestadora Ltda]. Com o pagamento do preço de compra, a [ShareWood] obriga‑se a transmitir a propriedade das árvores para [UE].

3.2. [UE] compra árvores já plantadas e individualizadas. A individualização é feita até à colheita e para efeitos de venda, mediante um inventário das árvores que contém o número de árvore, o número do lote, o número da parcela e o número da plantação.

[…]

4.2. Como confirmação da compra realizada, [UE] receberá, depois de verificado o pagamento, uma certidão da árvore com as características individuais das árvores adquiridas.

[…]

7. Arrendamento rural

7.1. Com a compra das árvores, [UE] arrenda simultaneamente o respetivo solo (v. contrato específico) enquanto nele se encontrarem as árvores compradas à [ShareWood], o mais tardar, porém, pelo período de duração indicado no contrato específico. O arrendamento rural abrange apenas o direito de cultivo das árvores compradas.

7.2. A renda está incluída no preço de compra.

[…]

7.3. O arrendamento só pode ser transmitido mediante a revenda das árvores. Não é permitido o subarrendamento.

8. Revenda das árvores por [UE]

8.1. [UE] pode, a qualquer momento, vender as suas árvores a um terceiro, com ou sem contrato de prestação de serviços e transmitir‑lhe a propriedade das mesmas. [UE] obriga‑se a transmitir para o referido terceiro o respetivo arrendamento rural e a transferir essa mesma obrigação para o terceiro.

[…]

9. Conservação do valor das árvores compradas

9.1. Para efeitos de valorização e de conservação do valor das árvores, a [ShareWood] recomenda que estas sejam sujeitas a cuidados periódicos. A [ShareWood] fornece este serviço ao abrigo do contrato de prestação de serviços.

[…]

11. Contrato de prestação de serviços

11.1. Através da celebração do contrato de prestação de serviços com a [ShareWood], [UE] incumbe à [ShareWood] a gestão, a administração, a preservação, a colheita e a venda das árvores compradas, em conformidade com a gestão da plantação e tendo em conta os padrões internacionais relativos à plantação sustentável, e a transferência das receitas líquidas da venda da madeira para [UE], para a conta por este indicada. A [ShareWood] assume ainda todas as obrigações decorrentes do arrendamento rural.

[…]

11.9. A [ShareWood] decidirá, em nome de [UE], tendo em conta a gestão da plantação, as árvores que deverão ser colhidas e os anos em que tal deverá ser feito. Antes da colheita, a [ShareWood] informará [UE] em conformidade. O abate proposto é considerado aceite se [UE] não o recusar no prazo de 10 dias após a receção da informação por correio ou por e‑mail.

[…]

15.1. A [ShareWood] celebrará um contrato de seguro, para [UE] e para si própria, em relação aos primeiros quatro anos após a plantação, para proteção do solo e das árvores de teca (mas não de outras árvores) contra incêndio, relâmpagos, ventos e chuvas fortes e danos causados pela geada. [UE] está ciente de que a perda de menos de 10 % das árvores de teca não está coberta pelo seguro.

[…]

24.1. O contrato‑quadro e cada contrato particular estão sujeitos ao direito material suíço, com exclusão i) de Convenções internacionais, incluindo a Convenção das Nações Unidas, de 11 de abril de 1980, sobre os contratos de compra e venda internacional de bens (“CVIM”) e ii) das disposições relativas aos conflitos de leis […]».

8.

O contrato de compra e venda de 2600 árvores de teca, referido no n.o 6 do presente acórdão, foi rescindido por comum acordo entre as partes.

9.

UE intentou no Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena, Áustria) uma ação destinada a obter a declaração de que a ShareWood não tinha cumprido a sua obrigação de adquirir a propriedade das árvores em causa e a que a ShareWood e VF, dirigente e membro do Conselho de Administração dessa sociedade, fossem solidariamente obrigados a pagar‑lhe a quantia de 201385,38 euros, acrescida de juros, de despesas e de encargos. Além disso, nessa ação, UE sustentou que, como consumidor, dispunha, por força das disposições do direito austríaco, do direito de rescindir os três outros contratos de compra e venda referidos no n.o 6 do presente acórdão e de obter uma indemnização.

10.

Por Sentença de 9 de setembro de 2019, o Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena) julgou a ação improcedente. Por Acórdão de 25 de fevereiro de 2020, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) confirmou essa sentença.

11.

Chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de «Revision» desse acórdão interposto por UE, o órgão jurisdicional de reenvio, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), considera que a relação contratual entre UE e a ShareWood está abrangida pelo artigo 6.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento Roma I. Resulta do contrato quadro referido no n.o 5 do presente acórdão que estas partes acordaram a aplicabilidade do direito suíço. Em conformidade com o artigo 6.o, n.o 2, deste regulamento, essa escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base nesse artigo 6.o, n.o 1, a saber, no caso em apreço, o direito austríaco.

12.

Não obstante, este órgão jurisdicional salienta que, no âmbito do litígio que lhe foi submetido, tais disposições nacionais imperativas destinadas a proteger o consumidor só podem ser invocadas na condição de o contrato‑quadro em causa não estar abrangido pela categoria de contratos referida no artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I, a saber, a dos contratos que têm por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou um arrendamento de um bem imóvel.

13.

Nestas condições, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento [Roma I], ser interpretado no sentido de que os contratos de compra e venda que têm por objeto árvores de teca e de balsa, celebrados entre uma empresa e um consumidor para a aquisição da propriedade das referidas árvores com vista ao seu cultivo para depois as colher e vender a fim de obter lucro, contratos que incluem, para esse efeito, um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços, devem ser considerados “contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel” na aceção desta disposição?»

Quanto à questão prejudicial

14.

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I deve ser interpretado no sentido de que um contrato de compra e venda, que inclui um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços, relativo a árvores plantadas num terreno arrendado com o único objetivo da sua colheita com fins lucrativos, constitui um «contrato que tenha por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel», na aceção desta disposição.

15.

A título preliminar, importa recordar que, segundo o artigo 6.o, n.o 2, do Regulamento Roma I, as partes num contrato celebrado por consumidores, isto é, um contrato celebrado por um profissional e por um consumidor, podem escolher a lei aplicável ao contrato, não podendo essa escolha, porém, ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no artigo 6.o, n.o 1, desse regulamento.

16.

O artigo 6.o, n.o 1, alínea b), do referido regulamento, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é aplicável ao litígio no processo principal, prevê que um contrato celebrado por um consumidor com um profissional é regulado pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual, desde que esse profissional, por qualquer meio, dirija essas atividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades.

17.

Por outro lado, o artigo 6.o, n.o 4, do Regulamento Roma I indica os casos em que os n.os 1 e 2 deste artigo 6.o não são aplicáveis. Mais especificamente, o referido artigo 6.o, n.o 4, alínea c), prevê que esses n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objeto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na aceção da Diretiva 94/47.

18.

Nestas condições, a aplicação do direito austríaco ao litígio no processo principal depende da questão de saber se o contrato em causa no processo principal está abrangido pelo conceito de «contratos que tenham por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel», na aceção do artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I.

19.

É à luz destas considerações preliminares que importa determinar se um contrato como o que está em causa no processo principal tem por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, na aceção desta disposição.

20.

A este respeito, há que salientar que o Regulamento Roma I não define o conceito de «contrato que tenha por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel» nem, aliás, o de «direito real sobre um bem imóvel» e de «bem imóvel».

21.

Segundo jurisprudência constante, decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ter, em toda a União Europeia, uma interpretação autónoma e uniforme (Acórdão de 18 de outubro de 2016, Nikiforidis, C‑135/15, EU:C:2016:774, n.o 28 e jurisprudência referida).

22.

Como o artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I não contém nenhuma remissão para o direito dos Estados‑Membros, deve ser interpretado de maneira autónoma e uniforme.

23.

A este propósito, importa acrescentar que não tem incidência no caso em apreço o facto de as árvores plantadas em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal poderem eventualmente ser equiparadas a bens imóveis nos vários sistemas jurídicos nacionais.

24.

Relativamente, em primeiro lugar, à questão de saber se o contrato em causa no processo principal tem por objeto um «direito real sobre um bem imóvel», há que recordar que, por força desse contrato, o profissional se compromete a transferir para o consumidor a propriedade de árvores plantadas num terreno com o único objetivo da sua colheita e da venda da madeira assim obtida.

25.

Para que o direito de propriedade objeto do referido contrato possa ser abrangido pelo conceito de «direito real sobre um bem imóvel», é ainda necessário que estas árvores, antes da sua colheita, possam ser equiparadas a bens imóveis para efeitos da aplicação do artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I.

26.

No presente caso, é pacífico que a transmissão do direito de propriedade a que está obrigado o profissional por força do contrato em questão no processo principal não diz respeito ao terreno em que as árvores em causa estão plantadas, mas apenas a estas. Embora, é certo, estas árvores sejam plantadas neste terreno para efeitos do seu crescimento, resulta da decisão de reenvio que o objetivo principal deste contrato é gerar um lucro proveniente da venda da madeira obtida após a colheita das referidas árvores, cuja propriedade só é transmitida no momento da sua individualização, efetuada pelo profissional até à sua colheita e à venda da madeira assim obtida.

27.

Em especial, através do referido contrato, foi acordado entre as partes que as árvores em causa estavam plantadas no terreno em questão com o único objetivo de serem colhidas no termo do seu período de crescimento, a fim de vender a madeira assim obtida.

28.

Nestas condições, há que concluir que estas árvores devem ser consideradas os frutos da exploração do terreno em que estão plantadas. Conquanto esses frutos sigam, regra geral, o destino jurídico do terreno onde as árvores em causa estão plantadas, podem, porém, por via contratual, ser objeto de direitos pessoais de que o proprietário ou o possuidor deste terreno pode dispor separadamente, sem afetar o direito de propriedade ou os outros direitos reais relativos ao referido terreno. Ora, um contrato cujo objeto consiste em dispor dos frutos da exploração de um terreno não pode ser equiparado a um contrato cujo objeto é um «direito real sobre um bem imóvel», na aceção do artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I.

29.

Daqui resulta que um contrato relativo a árvores plantadas num terreno com o único objetivo da sua colheita e da venda da madeira assim obtida não tem por objeto um «direito real sobre um bem imóvel» na aceção desta disposição.

30.

Relativamente, em segundo lugar, à questão de saber se o contrato em causa no processo principal tem por objeto um «arrendamento de um bem imóvel», importa recordar que, por força desse contrato, o consumidor toma de arrendamento o terreno no qual estão plantadas as árvores em causa enquanto estas aí se encontrarem.

31.

No entanto, a mera existência de um contrato de arrendamento de um bem imóvel, como um terreno, não basta para considerar que esse contrato está abrangido pelo artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I.

32.

Com efeito, a propósito do artigo 16.o, n.o 1, alínea a), da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32), que previa, em matéria de arrendamento de bens imóveis, uma competência exclusiva dos tribunais do Estado contratante onde o imóvel se situa, o Tribunal de Justiça declarou que a qualificação de contrato de arrendamento na aceção desta disposição exige a existência de uma ligação suficientemente estreita entre o contrato e o bem imóvel em causa (v., neste sentido, Acórdão de 13 de outubro de 2005, Klein, C‑73/04, EU:C:2005:607, n.o 26).

33.

Mais especificamente, o Tribunal de Justiça declarou que um contrato complexo, relativo a um conjunto de prestações de serviços fornecidas contra um preço global a pagar pelo cliente, como um contrato que prevê o fornecimento de prestações de serviços que vão além da cessão de um direito de uso que constitui o objeto de um contrato de arrendamento, está fora do domínio em que o princípio da competência exclusiva prevista na referida disposição tem a sua razão de ser e não constitui um contrato de arrendamento propriamente dito na aceção da mesma disposição (v., neste sentido, Acórdão de 13 de outubro de 2005, Klein, C‑73/04, EU:C:2005:607, n.o 27 e jurisprudência referida).

34.

Ora, importa salientar que, de acordo com o considerando 7 do Regulamento Roma I, o âmbito de aplicação material e as disposições deste último devem ser coerentes com o Regulamento n.o 44/2001. Uma vez que este foi revogado e substituído pelo Regulamento (UE) n.o 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), este objetivo de coerência vale igualmente para este último (Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr, C‑25/18, EU:C:2019:376, n.o 36).

35.

Por outro lado, na medida em que o Regulamento n.o 44/2001 substituiu, nas relações entre os Estados‑Membros, a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, este objetivo de coerência vale igualmente para esta Convenção, desde que, no entanto, as suas disposições possam ser qualificadas de equivalentes às dos Regulamentos n.o 44/2001 e n.o 1215/2012.

36.

Tendo em conta o objetivo de coerência recordado nos dois números anteriores, as considerações expostas nos n.os 32 e 33 do presente acórdão devem igualmente ser tidas em conta para efeitos da interpretação do artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I.

37.

No caso em apreço, o objeto principal do contrato em causa no processo principal não consiste no uso, no âmbito de um arrendamento, do terreno no qual estão plantadas as árvores em questão, mas visa, como foi salientado no n.o 26 do presente acórdão, gerar um rendimento proveniente da venda da madeira obtida em resultado da colheita dessas árvores. Como resulta da decisão de reenvio, o arrendamento previsto nesse contrato, que apenas inclui o direito de cultivar as referidas árvores e não apresenta uma finalidade dissociável da aquisição destas, visa simplesmente permitir a execução dos elementos de venda e das prestações de serviços previstos no referido contrato.

38.

Nestas condições, há que concluir que um contrato como o que está em causa no processo principal não apresenta uma ligação suficientemente estreita com o terreno em questão para poder ser qualificado de «arrendamento de um bem imóvel», na aceção do artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I.

39.

À luz do que precede, há que responder à questão que o artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento Roma I deve ser interpretado no sentido de que um contrato de compra e venda, que inclui um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços, relativo a árvores plantadas num terreno arrendado com o único objetivo da sua colheita com fins lucrativos, não constitui um «contrato que tenha por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel», na aceção desta disposição.

Quanto às despesas

40.

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

 

O artigo 6.o, n.o 4, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), deve ser interpretado no sentido de que um contrato de compra e venda, que inclui um contrato de arrendamento e um contrato de prestação de serviços, relativo a árvores plantadas num terreno arrendado com o único objetivo da sua colheita com fins lucrativos, não constitui um «contrato que tenha por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel», na aceção desta disposição.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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