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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62020CC0151

    Conclusões do advogado-geral M. Bobek apresentadas em 2 de setembro de 2021.
    Bundeswettbewerbsbehörde contra Nordzucker AG e o.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof.
    Reenvio prejudicial — Concorrência — Artigo 101.o TFUE — Acordo objeto de procedimentos desencadeados por duas autoridades nacionais de concorrência — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Existência de uma mesma infração — Artigo 52.o, n.o 1 — Restrições ao princípio ne bis in idem — Requisitos — Prossecução de um objetivo de interesse geral — Proporcionalidade.
    Processo C-151/20.

    Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral ; Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2021:681

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MICHAL BOBEK

    apresentadas em 2 de setembro de 2021 ( 1 )

    Processo C‑151/20

    Bundeswettbewerbsbehörde

    contra

    Nordzucker AG,

    Südzucker AG,

    Agrana Zucker GmbH

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria)]

    «Reenvio prejudicial — Concorrência — Conduta investigada por duas autoridades nacionais da concorrência — Princípio ne bis in idem — Aplicação simultânea do direito da União e da legislação nacional em matéria de concorrência — Identidade do interesse jurídico protegido — Efeitos territoriais de uma decisão de uma autoridade nacional da concorrência — Programa de clemência»

    I. Introdução

    1.

    A Nordzucker e a Südzucker são duas produtoras de açúcar. A autoridade nacional da concorrência alemã concluiu que estas duas empresas infringiram o artigo 101.o TFUE e o direito alemão em matéria de concorrência. No processo principal, a autoridade nacional da concorrência austríaca pretende obter a declaração de que essas empresas violaram o artigo 101.o TFUE e o direito austríaco em matéria de concorrência, baseando‑se aparentemente nos mesmos factos já contidos na decisão alemã.

    2.

    É neste contexto que o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) suscita algumas questões relativas ao âmbito de aplicação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). Opõe‑se este princípio, em substância, a processos paralelos ou subsequentes em matéria de direito da concorrência noutro Estado‑Membro, no que parece ser, pelo menos em parte, o mesmo comportamento?

    3.

    O presente processo suscita duas questões em particular. Em primeiro lugar, quais são os critérios que devem orientar a interpretação do conceito de idem para efeitos da aplicação do principio ne bis in idem no direito da concorrência e, em geral, ao abrigo do artigo 50.o da Carta? Abordo detalhadamente estas questões nas minhas conclusões paralelas no processo bpost ( 2 ). Nesta medida, as presentes Conclusões baseiam‑se na análise já ali efetuada. Em segundo lugar, a especificidade do presente processo reside na necessidade de reafirmar o significado de identidade dos factos pertinentes para efeitos do princípio ne bis in idem ( 3 ). Acima de tudo, o Tribunal de Justiça é igualmente convidado — uma vez mais, pode acrescentar‑se — a clarificar o seu entendimento relativamente à identidade do interesse jurídico protegido. Está‑se perante o mesmo interesse jurídico protegido em dois casos de processos nacionais nos quais duas autoridades nacionais da concorrência aplicaram a mesma norma do direito da concorrência da União Europeia, bem como a legislação nacional em matéria de concorrência?

    II. Quadro jurídico

    4.

    O artigo 50.o da Carta, sob a epígrafe «Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito», estabelece que: «Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei».

    5.

    Por serem incompatíveis com o mercado interno, o artigo 101.o, n.o 1, TFUE proíbe «todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno».

    6.

    O artigo 3.o do Regulamento (CE) n.o 1/2003 ( 4 ), sob a epígrafe «Relação entre os artigos 81.o e 82.o do Tratado e as legislações nacionais em matéria de concorrência», tem a seguinte redação:

    «1.   Sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência ou os tribunais nacionais apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a acordos, decisões de associação ou práticas concertadas na aceção do n.o 1 do artigo 81.o do Tratado, suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, na aceção desta disposição, devem aplicar igualmente o artigo 81.o do Tratado a tais acordos, decisões ou práticas concertadas. Sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência ou os tribunais nacionais apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a qualquer abuso proibido pelo artigo 82.o do Tratado, devem aplicar igualmente o artigo 82.o do Tratado.

    2.   A aplicação da legislação nacional em matéria de concorrência não pode levar à proibição de acordos, decisões de associação ou práticas concertadas suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros mas que não restrinjam a concorrência na aceção do n.o 3 do artigo 81.o do Tratado, ou que reúnam as condições do n.o 3 do artigo 81.o do Tratado ou se encontrem abrangidos por um regulamento de aplicação do n.o 3 do artigo 81.o do Tratado. Nos termos do presente regulamento, os Estados‑Membros não estão impedidos de aprovar e aplicar no seu território uma legislação nacional mais restritiva que proíba atos unilaterais de empresas ou que imponha sanções por esses atos.

    3.   Sem prejuízo dos princípios gerais e de outras disposições do direito comunitário, os n.os 1 e 2 não se aplicam sempre que as autoridades responsáveis em matéria de concorrência e os tribunais dos Estados‑Membros apliquem a legislação nacional relativa ao controlo das concentrações, nem se opõem à aplicação das disposições nacionais que tenham essencialmente um objetivo diferente do dos artigos 81.o e 82.o do Tratado.»

    7.

    O artigo 5.o, sob a epígrafe «Competência das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», estabelece o seguinte:

    «As autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência têm competência para aplicar, em processos individuais, os artigos 81.o e 82.o do Tratado. Para o efeito, podem, atuando oficiosamente ou na sequência de denúncia, tomar as seguintes decisões:

    exigir que seja posto termo à infração,

    ordenar medidas provisórias,

    aceitar compromissos,

    aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respetivo direito nacional.

    Sempre que, com base nas informações de que dispõem, não estejam preenchidas as condições de proibição, podem igualmente decidir que não se justifica a sua intervenção.»

    8.

    O artigo 13.o diz respeito à «Suspensão ou arquivamento do processo»:

    «1.   Caso as autoridades responsáveis em matéria de concorrência de dois ou mais Estados‑Membros tenham recebido uma denúncia ou tenham oficiosamente dado início a um processo nos termos dos artigos 81.o ou 82.o do Tratado contra o mesmo acordo, decisão de associação ou prática, a instrução do processo por parte de uma autoridade constitui, para as restantes autoridades, motivo suficiente para suspenderem a respetiva tramitação ou rejeitarem a denúncia. A Comissão pode igualmente rejeitar uma denúncia com o fundamento de que uma autoridade responsável em matéria de concorrência de um Estado‑Membro está já a instruir o processo.

    2.   Se for apresentada a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência ou à Comissão uma denúncia contra um acordo, uma decisão de uma associação ou uma prática que já está a ser instruída por outra autoridade responsável em matéria de concorrência, tal denúncia pode ser rejeitada.»

    III. Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

    9.

    A Nordzucker e a Südzucker são duas produtoras alemãs de açúcar. A Agrana é controlada pela Südzucker. Explora fábricas de açúcar na Áustria e na Europa de Leste.

    10.

    Por razões históricas, bem como devido à homogeneidade dos produtos e aos elevados custos de transporte, o mercado alemão do açúcar foi dividido nas principais áreas de comercialização dos principais produtores alemães. Em resposta às tentativas de entrada no mercado alemão por parte de produtores estrangeiros de açúcar, realizaram‑se, o mais tardar a partir de 2004, várias reuniões entre os diretores de vendas da Nordzucker e da Südzucker. No decurso dessas reuniões foi salientada a importância de evitar a pressão concorrencial recentemente gerada, assegurando que as empresas alemãs não concorreriam entre si ao penetrarem nas respetivas principais áreas de comercialização tradicionais.

    11.

    Entre o final de 2005 e o início de 2006, a Agrana constatou que alguns dos seus clientes austríacos adquiriam açúcar proveniente de uma filial eslovaca da Nordzucker. Por ocasião de um telefonema realizado em 22 de fevereiro de 2006, o diretor‑geral da Agrana informou igualmente o diretor de vendas da Südzucker sobre esses fornecimentos e perguntou‑lhe se este conhecia alguém na Nordzucker com quem ele pudesse falar sobre esse assunto. O diretor de vendas da Südzucker telefonou, em seguida, ao diretor de vendas da Nordzucker. Queixou‑se dos fornecimentos efetuados à Áustria e deixou transparecer que essa situação podia ter consequências no mercado alemão. O diretor de vendas da Nordzucker recebeu uma ordem expressa no sentido de não reagir a esse pedido. Porém, transmitiu claramente ao responsável de vendas da filial eslovaca da Nordzucker o seu desejo de não expandir as exportações para a Áustria.

    12.

    Por Decisão de 18 de fevereiro de 2014, o Bundeskartellamt (Autoridade Federal da Concorrência, Alemanha) (a seguir «BKA»), aplicou à Südzucker uma coima de 195500000 euros por, no essencial, ter violado a proibição de acordos celebrados entre empresas concorrentes entre si na República Federal da Alemanha, acordos estes que são suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros e que têm por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno. A BKA concluiu que a Nordzucker, a Südzucker e uma terceira empresa alemã tinham celebrado um acordo entre si para respeitar as principais áreas de comercialização de cada concorrente, tanto no que se refere ao açúcar processado como ao açúcar a retalho. A decisão da BKA reproduzia igualmente o conteúdo do telefonema relativo à Áustria acima mencionado, de 22 de fevereiro de 2006.

    13.

    O processo principal teve início depois de a Nordzucker ter apresentado um pedido de clemência na Áustria. A Bundeswettbewerbsbehörde (Autoridade Federal da Concorrência, Áustria) (a seguir «BWB»), pediu, no que respeita à Nordzucker, que fosse declarado pelos órgãos jurisdicionais austríacos competentes que a mesma violou o artigo 101.o TFUE e a disposições pertinentes da legislação nacional em matéria de concorrência. No que respeita à Südzucker, a BWB pediu que fosse aplicada uma coima de 12460000 euros relativa ao período compreendido entre 1 de janeiro de 2005 e 21 de setembro de 2006. A BWB também pediu a aplicação de uma outra coima de 15390000 euros à Südzucker, de forma solidariamente responsável com a Agrana, relativa ao período compreendido entre 22 de setembro de 2006 e 31 de outubro de 2008.

    14.

    O tribunal de primeira instância indeferiu os pedidos. Considerou que a BWB não tinha qualquer interesse legítimo em obter uma declaração no que se refere à Nordzucker. Isto porque a Nordzucker é uma empresa abrangida por um programa de clemência relativamente à qual a BWB se absteve de exigir a aplicação de uma coima. Em relação ao período até 22 de fevereiro de 2006, não há quaisquer indícios de que a Áustria tivesse participado, nem mesmo implicitamente, no acordo comum relativo ao respeito das áreas de comercialização tradicionais alemãs.

    15.

    Porém, o tribunal de primeira instância salientou igualmente que o pedido formulado no telefonema de 22 de fevereiro de 2006 era suscetível de, pelo menos, diminuir os fornecimentos efetuados pela filial eslovaca da Nordzucker à Áustria. Assim, a subsequente implementação desse pedido traduziu‑se num acordo contrário ao direito da concorrência entre a Nordzucker e a Südzucker nos termos do artigo 101.o, n.o 1, TFUE. Todavia, este tribunal considerou que, se um determinado aspeto da prática em causa se encontrar abrangido por uma sanção que já foi aplicada por outra autoridade nacional da concorrência (a seguir «ANC»), a nova sanção viola, então, o princípio ne bis in idem. Segundo este órgão jurisdicional, era o que acontecia, em grande medida, no que respeitava ao acordo de 22 de fevereiro de 2006.

    16.

    A BWB interpôs recurso no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça), órgão jurisdicional de reenvio. Pede que se declare no que se refere à Nordzucker, que esta, com base no acordo celebrado na conversa telefónica de 22 de fevereiro de 2006, violou o artigo 101.o TFUE e as disposições pertinentes da legislação nacional. No que respeita à Südzucker, a BWB pede igualmente a aplicação de uma coima pela mesma infração. A BWB contesta a aplicação do princípio ne bis in idem feita pelo tribunal de primeira instância. Alega que essa apreciação não teve em conta os territórios em relação aos quais foram aplicadas as coimas com base no volume de negócios ali gerado. Segundo a BWB, a decisão de primeira instância contraria igualmente a aplicação descentralizada do direito da União em matéria de concorrência nos termos do Regulamento n.o 1/2003, que autoriza uma ação paralela de várias ANC.

    17.

    O órgão jurisdicional de reenvio observa que a coima aplicada pela BKA à Südzucker, baseada em factos que incluem a conversa telefónica de 22 de fevereiro de 2006, é única infração pertinente no processo que lhe foi submetido. Este órgão jurisdicional refere ainda a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual a aplicação do princípio ne bis in idem está sujeita à tripla condição da identidade do infrator, dos factos pertinentes e dos bens jurídicos protegidos. Também se refere ao que considera constituir uma certa uma tensão entre o critério do interesse jurídico protegido e a orientação adotada noutros domínios do direito da União, que submete a aplicação do princípio ne bis in idem apenas à identidade do infrator e dos factos.

    18.

    O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a jurisprudência do Tribunal de Justiça não dá qualquer orientação no que se refere à aplicação do princípio ne bis in idem em circunstâncias em que duas ANC aplicam o direito da União e a legislação nacional em matéria de concorrência no âmbito de dois processos relativos aos mesmos factos e ao mesmo infrator. O órgão jurisdicional de reenvio observa igualmente que nenhuma orientação pode ser extraída do Regulamento n.o 1/2003. Além disso, este órgão jurisdicional interroga‑se sobre se o facto de uma ANC ter tido em conta os efeitos de uma determinada infração noutro Estado‑Membro tem pertinência para a aplicação do princípio ne bis in idem e se o facto de o processo principal ter envolvido a aplicação de um programa de clemência à Nordzucker tem alguma relevância a este respeito.

    19.

    Foi nestas circunstâncias que o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1.

    O terceiro [critério] estabelecido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de direito da concorrência para a aplicação do princípio ne bis in idem, ou seja, que deve estar em causa o mesmo [interesse] jurídico protegido, é aplicável mesmo quando as autoridades da concorrência de dois Estados‑Membros são chamadas a aplicar, relativamente aos mesmos factos e em relação às mesmas pessoas, a par das normas nacionais, igualmente as mesmas normas de direito da União (no caso em apreço, o artigo 101.o TFUE)?

    Em caso de resposta afirmativa a esta questão:

    2.

    Num caso deste tipo, de aplicação paralela do direito da União e do direito nacional da concorrência, está‑se perante o mesmo [interesse] jurídico protegido?

    3.

    É, além disso, relevante para a aplicação do princípio ne bis in idem que a primeira decisão de aplicação de uma coima adotada pela autoridade da concorrência de um Estado‑Membro tenha tido efetivamente em consideração os efeitos provocados pela violação das regras de concorrência noutro Estado‑Membro, cuja autoridade da concorrência apenas se pronunciou posteriormente no processo de concorrência nela instaurado?

    4.

    Um processo em que, pelo facto de uma parte ter participado no programa nacional de clemência, apenas é possível declarar a sua infração ao direito da concorrência, também pode ser considerado um processo regido pelo princípio ne bis in idem, ou pode essa mera declaração da infração ser feita independentemente do desfecho de um processo anterior relativo à aplicação de uma coima (noutro Estado‑Membro)?»

    20.

    A Südzucker, a Agrana, a BWB, os Governos belga, alemão e italiano e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. A Südzucker, a Agrana, a BWB, os Governos belga, alemão e polaco e a Comissão Europeia apresentaram observações orais na audiência que teve lugar em 22 de março de 2021. Essa audiência foi organizada conjuntamente para o presente processo e para o processo C‑117/20 bpost.

    IV. Análise

    21.

    As presentes conclusões estão estruturadas do seguinte modo. Começarei por analisar a pertinência da primeira e segunda questões prejudiciais (A). Em seguida, debruçar‑me‑ei sobre o critério que, em meu entender, deveria reger a aplicabilidade do princípio ne bis in idem em matéria de direito da concorrência e, em qualquer outro caso, ao abrigo do artigo 50.o da Carta (B). Deter‑me‑ei em particular na questão do interesse jurídico protegido no direito da União em matéria de concorrência (B.1.), antes de abordar a identidade dos factos pertinentes num determinado território e num determinado período de tempo (B.2.). Para concluir, centrar‑me‑ei na análise da pertinência da declaração pedida no âmbito dos processos nacionais, em que não foi aplicada nenhuma coima pelo facto de esses processos terem envolvido a aplicação de um programa de clemência, para efeitos de aplicabilidade aos mesmos do princípio ne bis in idem (C).

    A.   Pertinência da primeira e segunda questões prejudiciais

    22.

    Com a primeira e segunda questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que determine se o critério do interesse jurídico protegido é aplicável em dois processos nacionais, relativos aos mesmos infratores e aos mesmos factos, no âmbito dos quais as respetivas ANC aplicam o artigo 101.o TFUE e a legislação nacional em matéria de concorrência (primeira questão). Caso o critério do interesse jurídico protegido seja considerado pertinente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta igualmente se as normas de direito da União e do direito nacional em matéria de concorrência protegem o mesmo interesse jurídico (segunda questão).

    23.

    Embora não tenha sido formalmente suscitada qualquer exceção de inadmissibilidade, a BWB, o Governo alemão e a Comissão não consideram que a resposta à primeira questão (e, em certa medida, à segunda questão) seja determinante para a resolução deste caso. Entendem, no essencial, que não há identidade dos factos no processo principal, uma vez que a BKA e a BWB consideraram a conduta anticoncorrencial em questão apenas no que respeita ao seu território nacional. Não está, assim, em causa a necessidade de apreciação do interesse jurídico protegido.

    24.

    Oponho‑me a que não seja dada resposta à primeira e segunda questões submetidas.

    25.

    Em primeiro lugar, e acima de tudo, não é certo que a BKA tenha limitado a sua ação ao território alemão. Com efeito, parece existir uma certa confusão no que respeita ao que a ACN teve exatamente em conta e as consequências daí resultantes. Compreendo que esta confusão tenha origem na referência, na decisão da BKA, à conversa telefónica de 22 de fevereiro de 2006, durante a qual o mercado austríaco foi discutido. Este telefonema é igualmente invocado pela BWB no processo principal.

    26.

    Todavia, nenhum elemento permite esclarecer se (e como) o acordo celebrado em resultado desse telefonema se refletiu na definição do âmbito territorial do processo perante a BKA e na sua decisão final. O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto ao âmbito territorial da decisão da BKA. Afirma, ainda, que essa decisão não contém pormenores quanto ao volume de negócios que serviu de base ao cálculo da coima aplicada à Südzucker.

    27.

    A acrescentar a estas dúvidas, a redação da primeira questão refere‑se expressamente aos mesmos factos. A terceira questão coloca, em seguida, a dúvida sobre os mesmos efeitos da infração ao direito da concorrência em causa. No entender do órgão jurisdicional de reenvio, se estas questões forem consideradas no contexto da decisão de reenvio, poderá existir uma sobreposição territorial entre o processo instaurado pela BKA, por um lado, e o processo que lhe foi submetido, por outro.

    28.

    Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio convida expressamente o Tribunal de Justiça a fornecer indicações sobre a questão do interesse jurídico protegido. Embora este elemento possa ser tido em consideração após verificação da identidade do infrator e dos factos pertinentes, as especificidades de um processo e o interesse na economia processual podem exigir que a ordem de apreciação seja diferente. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio estabelecer essa ordem.

    29.

    Em terceiro lugar, a título algo secundário, mas ainda relevante, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se através do presente pedido de decisão prejudicial sobre a aplicabilidade do critério ne bis in idem, em particular, nos processos em matéria de direito da concorrência e ao abrigo do artigo 50.o da Carta, em geral. Neste contexto, consideraria algo surpreendente e certamente contrário ao espírito de cooperação judicial que o Tribunal de Justiça se limitasse a apreciar uma das condições que poderia não estar preenchida (mas que é verdadeiramente um elemento de facto a ser definido pelo órgão jurisdicional de reenvio), sem declarar quais são as outras regras do mesmo critério.

    30.

    Em resumo, na medida em que não se pode excluir que os dois processos se sobreponham factualmente, de uma forma ou outra, ou que o órgão jurisdicional de reenvio pretenda apreciar a questão do interesse jurídico previamente à da identidade dos factos, a presunção de pertinência ( 5 ) de que gozam os pedidos de decisão prejudicial não pode ser considerada ilidida. Assim, sugiro que o Tribunal de Justiça responda à primeira e segunda questões submetidas.

    B.   Princípio ne bis in idem no direito (da concorrência) da União: o critério e os seus elementos

    31.

    A primeira e segunda questões prejudiciais dizem respeito à definição do critério que deve reger a aplicabilidade do princípio ne bis in idem em matéria de direito da concorrência e, mais precisamente neste quadro, à definição do conceito de idem.

    32.

    Começarei por recordar brevemente as razões que suscitam questões a este respeito. A resposta que proponho dar à primeira questão prejudicial baseia‑se na análise já efetuada nas minhas Conclusões paralelas no processo bpost. Proponho um critério unificado de ne bis in idem, nos termos do artigo 50.o da Carta, com base numa tripla identidade: do infrator, dos factos pertinentes e do interesse jurídico protegido (1).

    33.

    Em seguida, respondendo à segunda pergunta, analisarei a questão do interesse jurídico protegido especificamente no âmbito do direito da concorrência. A este respeito, concluo que, quando duas ACN aplicam o artigo 101.o TFUE e as correspondentes disposições da legislação nacional em matéria de concorrência, protegem o mesmo interesse jurídico (2).

    34.

    Por último, debruçar‑me‑ei sobre a questão de saber se os dois processos em causa no caso em apreço dizem respeito aos mesmos factos e se, do ponto de vista jurídico, são mesmo suscetíveis de o fazer. Concluirei que a questão de saber se a BKA teve em conta os efeitos da infração em causa ao direito da concorrência na Áustria é efetivamente pertinente para a aplicabilidade do princípio ne bis in idem no processo principal, embora esteja longe de ser evidente como elemento de facto (3).

    1. Quanto ao critério: a tripla identidade

    35.

    A primeira e segunda questões prejudiciais inspiram‑se certamente na confirmação reiterada do Tribunal de Justiça de que, em direito da concorrência, a satisfação da condição idem exige, não só a identidade do infrator e dos factos, mas também a identidade do interesse jurídico protegido ( 6 ).

    36.

    A jurisprudência relativa ao princípio ne bis in idem no direito da União em matéria de concorrência começou a surgir há cerca de 50 anos com o Acórdão do Tribunal de Justiça Wilhelm e o. ( 7 ). Este processo dizia respeito a uma investigação paralela nacional e supranacional de uma conduta anticoncorrencial. A afirmação do Tribunal de Justiça segundo a qual «[o] direito comunitário e o direito nacional em matéria de acordos entre empresas consideram‑nos sob aspetos diferentes» ( 8 ) foi posteriormente complementada pelo esclarecimento de que a proteção prevista pelo princípio ne bis in idem em direito da concorrência só é desencadeada quando o segundo processo diz respeito, não apenas ao mesmo infrator e aos mesmos factos, mas também ao mesmo interesse jurídico protegido ( 9 ). Essa interpretação do princípio foi especialmente confirmada no Acórdão Toshiba ( 10 ). Apesar da crescente crítica à utilização da condição relativa ao interesse jurídico protegido, ausente noutros domínios do direito da União ( 11 ), essa mesma interpretação foi confirmada muito recentemente no Acórdão Slovak Telecom ( 12 ).

    37.

    O Tribunal de Justiça circunscreveu expressamente a apreciação do conceito de idem à identidade do infrator e dos factos na sua jurisprudência relativa ao artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (a seguir «CAAS») ( 13 ). Neste contexto, o Tribunal de Justiça declarou que o único critério pertinente para a apreciação da condição idem é o da «identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si» ( 14 ). De igual modo, na jurisprudência relativa à combinação de um processo penal e um processo administrativo, o Tribunal de Justiça declarou que «o artigo 50.o da Carta não se opõe a que um Estado‑Membro imponha, para os mesmos factos de inobservância das obrigações de declaração em matéria de IVA, uma combinação de sobretaxas fiscais e de sanções penais» ( 15 ). Mais tarde, o Tribunal de Justiça precisou que «o artigo 50.o da Carta proíbe a aplicação, por factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para estes fins» ( 16 ). Ao desviar a análise para o conceito de bis, o Tribunal de Justiça permitiu que o segundo processo sobre a mesma matéria prosseguisse, sujeito às condições da cláusula de restrição de direitos prevista no artigo 52.o, n.o 1, da Carta ( 17 ).

    38.

    Atualmente, o critério do Acórdão Menci parece ser de aplicação geral; é assim aplicável a todas as situações abrangidas pelo artigo 50.o da Carta. Isto também permite a aplicação paralela de normas mais específicas, como o artigo 54.o da CAAS ou o artigo 3.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI, relativa ao mandado de detenção europeu ( 18 ). Todavia, o critério «por defeito» parece ser agora o conceito muito amplo de idem factum no que respeita ao âmbito do artigo 50.o da Carta, conjugado com o que constitui uma saída de emergência bastante generosa através da possibilidade de restringir o exercício dos direitos nos termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta.

    39.

    Não pretendo reiterar os argumentos pelos quais considero esta orientação problemática. Só posso fazer referência à minha análise no processo bpost ( 19 ) para este efeito. Proponho, por conseguinte, que um critério (unificado) do conceito de idem para efeitos do artigo 50.o da Carta seja baseado numa tripla identidade: do infrator, dos factos pertinentes e do interesse jurídico protegido ( 20 ).

    40.

    O esclarecimento deste ponto de partida leva‑me a analisar mais aprofundadamente dois elementos deste critério que estão no cerne do presente processo, a saber, a identidade do interesse jurídico protegido (2) e a identidade dos factos (3).

    2. Quanto à identidade do interesse jurídico protegido

    41.

    Tanto quanto é do meu conhecimento, embora a condição do interesse jurídico protegido em matéria de direito da concorrência tenha sido repetidamente confirmada, nunca foi verdadeiramente explicada ( 21 ), com exceção da afirmação de que «as legislações internas, inspiradas por considerações próprias a cada uma delas, consideram as práticas restritivas unicamente neste quadro» ( 22 ).

    42.

    A questão específica de saber se as normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência protegem o mesmo interesse jurídico foi recentemente submetida ao Tribunal de Justiça no Acórdão Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie ( 23 ). O Tribunal de Justiça não considerou necessário pronunciar‑se sobre esta questão. Embora no processo principal estivesse em causa a aplicação simultânea das normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência, o mesmo respeitava a apenas um procedimento na autoridade nacional da concorrência. Assim, o Tribunal de Justiça limitou‑se a assinalar, desde logo, a falta do conceito de bis, sem se pronunciar sobre o conceito de idem.

    43.

    Em contrapartida, no caso em apreço estão claramente em causa dois processos que dizem respeito, para o que aqui releva, aos mesmos infratores ( 24 ). Assim, a menos que o órgão jurisdicional de reenvio conclua, antes de apreciar a questão do interesse jurídico protegido, que os dois processos dizem respeito a diferentes factos, então a questão do interesse jurídico protegido é claramente pertinente.

    44.

    As normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência protegem o mesmo interesse jurídico? Visto em termos gerais, tendo em conta o imperativo de uma concorrência leal e não falseada no mercado interno, é evidente que sim. No entanto, não considero que a análise possa ficar por aqui. A questão do interesse jurídico protegido deve ser analisada à luz de uma disposição específica. Deve centrar‑se no interesse ou objetivo específico que a disposição aplicada prossegue, na sanção que estabelece e nos motivos por que o faz ( 25 ).

    45.

    Por um lado, em abstrato, não há qualquer dúvida de que as normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência convergiram em grande medida. Sem prejuízo das razões históricas que inspiraram a afirmação, no Acórdão Wilhelm e o., de que o direito comunitário e o direito nacional em matéria de concorrência são diferentes ( 26 ), é evidente que o Regulamento n.o 1/2003 aproximou as normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência. A necessidade de convergência e de cooperação está refletida tanto na substância da legislação em causa como nas instituições que aplicam essa legislação.

    46.

    No que diz respeito às disposições substantivas, o Regulamento n.o 1/2003 atribui claramente competências às ANC para aplicarem os artigos 101.o e 102.o TFUE ( 27 ). Estabelece igualmente as regras que visam garantir a coerência na sua aplicação. Feita esta chamada de atenção, talvez sejam as disposições do Regulamento n.o 1/2003, relativas às instituições e aos procedimentos que estabelecem um sistema consideravelmente elaborado da «Rede Europeia da Concorrência», que promovem a participação tanto da Comissão como das ANC, com o objetivo alcançar uniformidade na aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE. Além disso, a adoção da Diretiva (UE) 2019/1 ( 28 ) pelo legislador da União colmata algumas das lacunas registadas no regime em vigor. Esta diretiva atribui competência às ACN para aplicarem com maior eficácia os artigos 101.o e 102.o TFUE nos domínios abrangidos pelos seus diferentes capítulos ( 29 ).

    47.

    Tendo em conta esta reforma do regime, é difícil entender que não houve aproximação das normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência desde que o Tribunal de Justiça apreciou a sua relação no Acórdão Wilhelm e o. Esta consideração parece confirmar‑se não só quando são tidos em conta os termos exatos utilizados pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão que se referem ao «direito comunitário e o direito nacional em matéria de acordos entre empresas» ( 30 ), mas também na referência mais geral às «práticas restritivas» ( 31 ) na jurisprudência posterior.

    48.

    Por outro lado, quando se concentra a atenção em disposições específicas, não se pode afirmar com absoluta certeza que também não há (ou melhor, já não pode haver) divergência entre certos domínios das normas em matéria de concorrência ( 32 ). O artigo 3.o do Regulamento n.o 1/2003 regula não só, ao inverso do seu precedente Regulamento n.o 17, as relações entre as normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência, mas também reconhece especificamente que existem casos em que, no que respeita à sua substância, as normas de direito nacional em matéria de concorrência podem ser diferentes das normas da União.

    49.

    Quanto à aplicação nacional dos artigos 101.o e 102.o TFUE, resulta do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1/2003 que os Estados‑Membros estão impedidos de aplicar a acordos, decisões de associação ou práticas concertadas a uma legislação mais restritiva do que a que existe ao nível da União. Contudo, os Estados‑Membros têm a possibilidade de o fazer no que respeita a atos unilaterais de empresas. Existe, portanto, uma diferença em termos da margem admissível para legislações nacionais específicas, consoante os atos em causa sejam abrangidos pelo artigo 101.o TFUE ou pelo artigo 102.o TFUE.

    50.

    Além disso, o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1/2003, estabelece um espaço ainda mais alargado para a diferenciação no que diz respeito a legislações nacionais em matéria de concentrações e salvaguarda a possibilidade de uma aplicação continuada das disposições nacionais que tenham essencialmente um objetivo diferente do visado pelos artigos 101.o e 102.o TFUE. Esta última possibilidade é ainda corroborada pelo considerando 9 do Regulamento n.o 1/2003, que dispõe, nomeadamente, que «[o]s Estados‑Membros poderão […] aplicar no seu território legislação nacional que proíba atos unilaterais ou contratuais que configurem práticas de comércio desleal ou que imponha sanções por esses atos».

    51.

    Por conseguinte, no plano estrutural, a conjugação normativa entre as normas de direito da União e nacionais abrangidas pelo artigo 3.o do Regulamento n.o 1/2003 prevê, assim, pelo menos quatro cenários distintos. Em primeiro lugar, verifica‑se uma sobreposição substantiva total das situações abrangidas pelo artigo 101.o TFUE, em que os Estados‑Membros não podem aprovar uma legislação mais restritiva. Em segundo lugar, verifica‑se uma sobreposição substantiva bastante significativa, mas não total, das situações abrangidas pelo artigo 102.o TFUE, em que os Estados‑Membros podem aprovar uma legislação mais restritiva ( 33 ). Em terceiro lugar, verifica‑se uma harmonização parcial do controlo das concentrações. Em quarto lugar, e talvez o mais importante, existe um espaço normativo distinto reservado aos Estados‑Membros quando se trate das suas disposições nacionais que tenham um objetivo diferente do visado pelos artigos 101.o e 102.o TFUE, do qual as legislações nacionais sobre as práticas comerciais desleais são mencionadas como exemplo.

    52.

    Assim, o artigo 3.o do Regulamento n.o 1/2003 reconhece que as normas de direito da União e de direito nacional em matéria de concorrência não são idênticas, pelo menos em todos os seus aspetos ( 34 ). Todavia, esta eventual diferença diz respeito à qualidade normativa do interesse (ou objetivo) prosseguido. Não pode simplesmente assentar num âmbito geográfico diferente.

    53.

    Por outras palavras, não creio que a mera diferença (quantitativa) no âmbito territorial de uma mesma infração e, por conseguinte, de uma determinada norma revele, por si só, uma diferença (qualitativa) no interesse jurídico ( 35 ). Enquanto o direito da União em matéria de concorrência abrange as situações que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, o direito nacional da concorrência é aplicável a situações internas. Na minha opinião, esta diferença refere‑se ao âmbito territorial da infração, possivelmente associada à gravidade da ingerência no interesse jurídico protegido, mas não necessariamente à diferente qualidade desse interesse jurídico protegido ( 36 ).

    54.

    Simplificando, um acordo de preços celebrado e executado na República Checa é suscetível de afetar qualitativamente o mesmo interesse jurídico protegido, independentemente de, no final, e tendo em conta que o comércio entre os Estados‑Membros é afetado, apenas ser aplicada a disposição nacional que reflete o artigo 101.o TFUE ( 37 ), ou o artigo 101.o TFUE conjugado com esta disposição nacional, ou, mesmo, só o artigo 101.o TFUE.

    55.

    Com efeito, esta imagem compósita é regida pelo princípio geral segundo o qual somente quando o direito da União não estabelece normas específicas é que o direito nacional em matéria de concorrência pode ser aplicado ( 38 ). Contudo, na medida em que as duas ordens jurídicas se sobreponham efetivamente ou, em qualquer caso, quando comecem a sancionar o mesmo conjunto de factos, deve ser determinado in concreto se se trata do mesmo interesse jurídico protegido tanto a nível da União como a nível nacional à luz das disposições específicas aplicáveis ao mesmo processo em ambos os níveis.

    56.

    Aplicando esta abordagem ao presente processo, resulta do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 que, quando uma ANC (ou um órgão jurisdicional nacional) aplica o seu direito nacional a uma conduta que, na aceção do artigo 101.o TFUE, é suscetível de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, deve aplicar também o artigo 101.o TFUE. Por outras palavras, quando essa conduta seja igualmente abrangida pelo artigo 101.o TFUE, as ANC ou os órgãos jurisdicionais devem aplicar também esta disposição ( 39 ).

    57.

    Além disso, como se depreende dos artigos 3.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1/2003, o resultado da aplicação do direito nacional a uma situação abrangida pelo artigo 101.o TFUE não pode ser diferente daquele que seria alcançado se o artigo 101.o TFUE fosse aplicado por si só. Sem prejuízo da questão de saber qual é então o valor acrescentado da aplicação paralela da legislação nacional em matéria de concorrência nesse cenário ( 40 ), é, de qualquer forma, difícil imaginar em que medida os objetivos da disposição de direito nacional em causa e do artigo 101.o TFUE poderiam ser diferentes. Além disso, quando duas autoridades nacionais de concorrência aplicam a mesma disposição do direito da União, nomeadamente, o artigo 101.o TFUE, relativamente à qual estão impedidos de se desviar a nível nacional, então devem assegurar que o interesse jurídico protegido específico prosseguido por ambas seja igualmente idêntico.

    58.

    Em suma, há que responder à segunda questão prejudicial no sentido de que a questão de saber se o direito da União e a legislação nacional em matéria de concorrência protegem o mesmo interesse jurídico deve ser definida pela análise das normas específicas aplicadas. Tal implica a apreciação do eventual afastamento entre as normas nacionais em causa e as normas da União. Sempre que as autoridades de concorrência de dois Estados‑Membros aplicam o artigo 101.o TFUE e a correspondente disposição da legislação nacional em matéria de concorrência protegem, por conseguinte, o mesmo interesse jurídico.

    3. Quanto à identidade dos factos pertinentes: tempo e espaço

    59.

    Passarei agora à análise da terceira questão. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se é pertinente que a BKA tenha tido em consideração os efeitos do acordo em causa noutro Estado‑Membro, ou seja, tal como interpreto, no mercado austríaco.

    60.

    A esta questão deve responder‑se afirmativamente.

    61.

    Como salientou a advogada‑geral J. Kokott nas suas Conclusões no processo Toshiba, «[o]s cartéis são proibidos e investigados precisamente porque produzem efeitos anticoncorrenciais ou, em todo o caso, são suscetíveis de influenciar negativamente a concorrência» ( 41 ). Afirmou igualmente que «[a] questão de saber se um comportamento tinha por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência não pode ser apreciada em abstrato, sendo sempre necessário atender a um determinado período de tempo e a um determinado território» ( 42 ).

    62.

    Por outras palavras, para determinar se o segundo processo pode ser excluído pelo princípio ne bis in idem, é necessário definir o período de tempo e o espaço a que se refere a restrição em causa. No Acórdão Toshiba, o Tribunal de Justiça concordou com o advogada‑geral a este respeito e salientou que a conduta das empresas «que tinha por objeto ou por efeito impedir, restringir ou falsear o jogo da concorrência não pode ser apreciada de forma abstrata, mas deve ser examinada atendendo ao território […], onde o comportamento em causa teve esse objeto ou produziu tal efeito e ao período durante o qual o mesmo comportamento teve esse objeto ou produziu esse efeito» ( 43 ). Segundo o Tribunal de Justiça, tanto o território como o tempo são elementos pertinentes que constituem a identidade dos factos ( 44 ).

    63.

    Nas secções seguintes das presentes conclusões, abordarei sucintamente, a este respeito, a identidade do tempo e do espaço no processo principal. Em primeiro lugar, tendo em conta os elementos constantes do processo, apresento uma mera hipótese sobre se a BKA teve igualmente em conta os efeitos da conduta proibida em relação ao mercado austríaco (a). Em segundo lugar, analisarei a questão que melhor poderá ser decidida pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente, se essa sanção extraterritorial dos efeitos de determinado comportamento que aparentemente se produz noutro Estado‑Membro era legalmente possível (b).

    a) O território tido efetivamente em conta pela BKA

    64.

    Resulta da decisão de reenvio que a decisão da BKA reproduz o conteúdo da conversa telefónica de 22 de fevereiro de 2006 relativa à Áustria. Paralelamente, no âmbito do recurso pendente no órgão jurisdicional de reenvio, a BWB invoca igualmente a mesma conversa telefónica.

    65.

    É perfeitamente possível que numa conversa telefónica sejam mencionados vários mercados geográficos. Contudo, a este respeito, existe uma falta de clareza sobre se a BKA teve efetivamente em conta os efeitos do acordo de repartição do mercado em causa no mercado austríaco e o que significa verdadeiramente a expressão «ter em conta os efeitos» no presente processo.

    66.

    Para que a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem possa ser desencadeada, não basta que um certo comportamento ou um conjunto de factos sejam, algures, mencionados e reproduzidos numa decisão. É necessário que elementos factuais idênticos sejam considerados juridicamente pertinentes, com os seus efeitos qualificados e avaliados enquanto tal. No que diz respeito ao presente processo, esses elementos factuais relativos à conversa telefónica em causa foram tidos em conta na infração à concorrência declarada pela BKA? Decorre da decisão da BKA que o processo instaurado e as sanções aplicadas pela ACN às respetivas empresas abrangeram igualmente o mercado austríaco? Ou será que a BKA considerou essa conversa como elemento de prova de uma infração relativa ao mercado alemão ( 45 )?

    67.

    Presumo que uma decisão de uma ANC deva conter informações deste tipo, quer se trate, num primeiro momento, da definição do mercado relevante em causa, quer, sobretudo, no que respeita à conclusão sobre onde e quando, no seu entender, foi cometida a infração às normas de concorrência.

    68.

    Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar e determinar a resposta a estas questões, se necessário em cooperação com a BKA, a fim de estabelecer o âmbito efetivo da ação desta ANC. Essa cooperação pode ter lugar quer indiretamente, com a assistência da BWB ( 46 ), quer diretamente ( 47 ).

    69.

    Por último, como mencionou o órgão jurisdicional de reenvio no seu despacho prejudicial, e como indicado por algumas partes interessadas, no cálculo do montante global da coima, a BKA só teve em consideração o volume de negócios das empresas em causa no território alemão. Com efeito, no Acórdão Toshiba, o Tribunal de Justiça declarou, num contexto semelhante ao do cálculo das coimas efetuado pela Comissão, que esse elemento podia ser relevante ( 48 ).

    70.

    Todavia, embora tal elemento possa efetivamente constituir um índice indireto útil, dificilmente poderá ser considerado conclusivo por si só. Em primeiro lugar, exige um certo grau de raciocínio inverso. No entanto, a causalidade invertida nem sempre funciona: o facto de uma autoridade ter calculado a coima de uma determinada forma e não de outra pode explicar‑se por razões não relacionadas com o âmbito de aplicação da decisão pretendido. Em segundo lugar, existe atualmente uma certa convergência na prática das ACN no que respeita ao cálculo das coimas ( 49 ). Contudo, esta prática não está totalmente harmonizada e deve ser determinada, em parte, por legislações e práticas nacionais divergentes.

    71.

    Em resumo, cabe ao juiz nacional precisar, como elemento de facto, o âmbito geográfico (e potencialmente temporal) da decisão da BKA. Contudo, a questão que deve ser previamente analisada, que é uma questão mais adequada que o Tribunal de Justiça está em melhor posição para analisar, é a de saber se uma ANC dispõe de competência nos termos da lei, para sancionar os efeitos extraterritoriais de uma determinada infração.

    b) O território que pode ser tido em conta por uma ACN como elemento de direito

    72.

    Independentemente de como a BKA procedeu de facto, poderia, do ponto de vista jurídico, ter observado e também sancionado a infração às regras da concorrência no mercado austríaco? A este respeito, a posição das partes e dos interessados no presente processo é divergente.

    73.

    A Agrana afirma que as decisões de uma ANC que aplicam o artigo 101.o TFUE não podem limitar‑se aos efeitos no território nacional. Quando aplicam o artigo 101.o TFUE, as ANC devem analisar todos os aspetos suscetíveis de restringir a concorrência em causa no mercado interno.

    74.

    Em contrapartida, a BWB sustenta que o princípio da territorialidade limita a competência para aplicar sanções de uma ANC ao território nacional. Foi igualmente o que fez a BWB ao basear o cálculo da coima a aplicar à Südzucker tendo em conta volume de negócios alcançado no mercado austríaco. O princípio da territorialidade exclui, assim, a possibilidade de violação do princípio ne bis in idem, uma vez que o âmbito geográfico da conduta sancionada será sempre diferente. O Governo alemão, por seu lado, partilha da mesma opinião. Uma ANC só pode punir uma infração ao direito da concorrência em relação ao seu próprio território, o que se reflete no facto de a coima ser calculada com base no volume de negócios da empresa no Estado‑Membro em causa.

    75.

    O Governo belga considera que quando uma ANC aplica o artigo 101.o TFUE deve proceder como a Comissão faria, ou seja, ter em conta todos os efeitos da restrição em causa sobre a concorrência no mercado interno. Existem, no entanto, duas limitações. Em primeiro lugar, o direito constitucional e as tradições dos Estados‑Membros podem proibir uma ANC de sancionar efeitos extraterritoriais. Em segundo lugar, sancionar os efeitos extraterritoriais só é possível, de qualquer forma, mediante um acordo com a ANC no território afetado.

    76.

    A título preliminar, recordo que os processos e as sanções têm sido tradicionalmente regidos pelo princípio da territorialidade. É obviamente possível que um Estado tente «ultrapassar as suas fronteiras» e procure punir condutas que tiveram lugar noutro local. Tal pode ser o caso em situações reguladas por competência especiais, quer em relação a certos tipos de pessoas (como os seus próprios cidadãos) quer quanto a certos tipos de infrações (nomeadamente as que prejudicam o interesse desse Estado, independentemente do local onde foram cometidas, ou certos tipos de crimes particularmente atrozes sujeitos a uma competência universal).

    77.

    Contudo, o essencial em todos esses casos de extraterritorialidade efetiva é que os mesmos necessitam de uma base jurídica expressa, seja no direito nacional, internacional, ou da União. Um exemplo digno de nota e mais recente dessa competência extraterritorial no direito da União é a competência da autoridade de controlo principal ao abrigo do mecanismo de balcão único do Regulamento (UE) 2016/679 (a seguir «RGPD») para investigar e, se for caso disso, sancionar a totalidade do tratamento transfronteiriço efetuado por um responsável pelo tratamento ou subcontratante na União Europeia ( 50 ). Embora se afigure excessivo pretender que os limites exatos da competência neste regime são indiscutíveis ( 51 ), não há dúvida que existe tanto uma disposição substantiva em matéria de legalidade do tratamento de dados, como uma cláusula de competência expressa que atribui a uma determinada autoridade de controlo a competência para a aplicação extraterritorial dessas disposições substantivas.

    78.

    Que posição conceptual é adotada pelo Regulamento n.o 1/2003 a este respeito? Devo admitir que não é fácil de apreender.

    79.

    Por um lado, existem indícios claros de que foi contemplada a possibilidade de um alcance transfronteiriço. Em primeiro lugar, o ponto de partida da obrigação de aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE pelas autoridades nacionais é que o comércio entre os Estados‑Membros possa ser afetado. Afigura‑se que tal pode desencadear também a inerente capacidade de uma ANC de instaurar processos e sancionar os efeitos extraterritoriais de uma determinada infração.

    80.

    Em segundo lugar, o artigo 13.o do Regulamento n.o 1/2003 parece confirmar a mesma questão. O n.o 1 dessa disposição estabelece que uma ANC pode suspender a tramitação ou rejeitar uma denúncia em caso de instrução do mesmo acordo, decisão de uma associação ou prática por parte de outra autoridade ( 52 ). Do mesmo modo, o n.o 1 desta disposição estabelece que uma ANC pode rejeitar uma denúncia caso lhe seja apresentada uma denúncia contra um acordo, uma decisão de associação ou uma prática que já está a ser instruída por outra autoridade responsável em matéria de concorrência ( 53 ).

    81.

    Em terceiro lugar, a interpretação de que uma ação de uma ANC pode ter alcance extraterritorial também parece ser confirmada na Comunicação da Comissão sobre a cooperação. Esta comunicação explicita, quanto ao artigo 13.o, que a expressão «instrução do processo» prevista nesta disposição «não significa apenas que foi apresentada uma denúncia a outra autoridade, mas que a outra autoridade está a investigar ou já investigou o caso por sua própria conta» ( 54 ). Além disso, esta comunicação afirma que o artigo 13.o«pode ser invocado quando o acordo ou a prática envolve a(s) mesma(s) infração(ões) nos mesmos mercados geográfico e do produto relevantes» ( 55 ).

    82.

    Além disso, a mesma comunicação pormenoriza o conceito de «autoridade bem posicionada» que consta da Comunicação sobre a cooperação no que respeita a uma determinada infração ao direito da concorrência ( 56 ). Se a competência de uma ANC estiver em todas as situações limitada ao território nacional, o conceito de autoridade bem posicionada só faz sentido se se admitir que determinadas partes de uma infração podem permanecer impunes devido aos limites territoriais da competência dessa «autoridade bem posicionada». Em contrapartida, se se admitir que a proteção efetiva da concorrência no mercado interno pode exigir que a investigação de uma conduta anticoncorrencial seja realizada apenas por uma ANC bem posicionada, então essa ANC deve, de facto, poder investigar a totalidade dessa conduta de modo a não deixar uma parte impune.

    83.

    Seja como for, a Comunicação sobre a cooperação dificilmente constituirá um ato juridicamente vinculativo do direito da União e pode afirmar‑se que o significado da possibilidade de «suspender ou rejeitar» a denúncia ao abrigo do artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 não é totalmente claro. Contudo, no seu conjunto, o que o artigo 13.o implica é a possibilidade de existirem sobreposições territoriais. Se as competências de cada ANC fossem estritamente limitadas ao território nacional, qual seria a utilidade de suspender ou rejeitar uma denúncia perante um processo pendente noutra ANC relativa à mesma conduta? É certo que existe um determinado número de questões diferentes, ainda que relacionadas, no âmbito das quais a suspensão pode ser razoável, mas a «rejeição» só parece fazer sentido quando a mesma matéria, incluindo o mesmo âmbito geográfico, tiver sido apresentada a ambas as ANC.

    84.

    Por outro lado, é lícito presumir que estes são meramente «indícios indiretos» de que a extraterritorialidade foi contemplada na conceção do Regulamento n.o 1/2003. Todavia, além disso, concordo com o Governo alemão quanto ao facto de que falta no Regulamento n.o 1/2003 uma disposição fundamental que claramente atribua competência à ANC em processos de extraterritorialidade. Como este governo salientou de forma pertinente, quando normalmente seria de esperar que o artigo 5.o do Regulamento n.o 1/2003, sob a epígrafe «Competência das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», previsse uma cláusula de competência semelhante, este é totalmente omisso sobre a matéria. Não constitui, assim, uma base jurídica suficiente para que uma decisão extraterritorial seja adotada por uma ANC quando essa base não está prevista na legislação nacional. O argumento do Governo belga aponta também neste sentido.

    85.

    Concordo com estes governos no sentido de que, para que as competências de uma ANC sejam exercidas extraterritorialmente, é necessário que exista uma base jurídica adequada que, no estado atual do direito da União, só pode provir da ordem jurídica nacional. Poder‑se‑ia ainda acrescentar sumariamente que, na audiência, o Governo alemão declarou que tal base jurídica também não existe no direito alemão.

    86.

    Devo sublinhar que esta proposta respeita inteiramente a redação do artigo 101.o TFUE que, na verdade, enumera, entre as suas condições de aplicação, que o comércio entre os Estados‑Membros possa ser afetado. Todavia, parece‑me impossível interpretar o artigo 101.o TFUE, que é uma disposição essencialmente substantiva, no sentido de que também equivale a uma cláusula de habilitação que atribui a toda e qualquer ANC a competência de instaurar processos e aplicar sanções relativamente a qualquer conduta anticoncorrencial em toda a União Europeia ( 57 ).

    87.

    Assim, proponho que se responda à terceira questão no sentido de que o facto de uma ANC ter tido em consideração os efeitos extraterritoriais de uma determinada conduta anticoncorrencial numa decisão anterior, desde que tenha sido legitimada a fazê‑lo pela legislação nacional, é pertinente para a análise da aplicabilidade do princípio ne bis in idem no âmbito dos processos posteriores. O artigo 50.o da Carta opõe‑se a que uma ANC ou um órgão jurisdicional imponham uma sanção relativa a uma conduta anticoncorrencial que já tenha sido objeto de um processo anterior concluído mediante uma decisão final adotada por outra ANC. Esta proibição aplica‑se, no entanto, apenas na medida em que o âmbito temporal e geográfico do objeto de ambos os processos seja o mesmo.

    C.   O princípio ne bis in idem nos processos que envolvem a aplicação de um programa de clemência

    88.

    Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o princípio ne bis in idem é aplicável em processos que envolveram a aplicação de um programa de clemência e em que, por essa razão, não é aplicada nenhuma coima.

    89.

    Em meu entender, deve responder‑se afirmativamente a esta questão.

    90.

    Em primeiro lugar, num plano conceptual, e como corretamente recorda o Governo italiano, o princípio ne bis in idem protege não só contra a aplicação de uma segunda coima no mesmo processo mas também contra um segundo processo ( 58 ). A própria instauração de um segundo processo sobre a mesma matéria constitui, a meu ver, uma violação da garantia consagrada no artigo 50.o da Carta. Pelas razões expostas em pormenor nas minhas Conclusões no processo bpost ( 59 ), discordo igualmente, neste aspeto, da posição adotada a este respeito pelo Tribunal de Justiça na jurisprudência Menci ( 60 ).

    91.

    Em segundo lugar, a quarta questão prejudicial refere‑se a uma situação em que uma ANC conduz um processo no qual uma empresa requer o benefício de um programa de clemência. Este programa permite um tratamento favorável das empresas que decidiram cooperar com a autoridade da concorrência respetiva no âmbito da investigação a infrações ao artigo 101.o TFUE ( 61 ).

    92.

    Contudo, a dispensa ou redução de uma coima não é, de forma alguma, automaticamente garantida. Depende de um certo número de condições que têm por tema comum o «valor acrescentado» da cooperação da empresa para a descoberta do acordo ilícito e a respetiva aplicação de uma sanção ( 62 ). Consoante as circunstâncias, pode (ou não) ser concedida dispensa total ou parcial a um requerente de clemência, enquanto a infração ao direito da concorrência, por seu lado, é declarada de forma vinculativa ( 63 ). Assim, embora a conduta ou o desfecho de um processo nacional seja suscetível de ser alterado por um pedido de clemência, o essencial é que continuam a ser processos autónomos de direito próprio, exigindo a participação de todas as empresas em causa, incluindo a requerente de clemência.

    93.

    Em terceiro lugar, mesmo que tudo corra bem para a empresa abrangida pelo programa de clemência, e caso a dispensa total da coima seja finalmente concedida, o processo continuará a resultar numa declaração de infração ao direito da concorrência por parte do requerente de clemência. Assim, pelo que entendo, continuará a existir, metaforicamente falando, uma «declaração de culpa» nos termos da legislação nacional. Tal declaração poderá ter uma importância bastante significativa no futuro para a ou as empresas em causa. Se, no futuro, esta empresa vier a ser de novo considerada responsável por uma infração em matéria de concorrência, a sua condenação anterior e a sua «reincidência» podem resultar num agravamento automático da coima. Ao mesmo tempo, não se pode excluir a hipótese de que uma declaração vinculativa dirigida à referida empresa pela autoridade pública competente ou por um órgão jurisdicional, a que o público tenha eventual acesso ( 64 ), possa ser invocada por particulares para obter a reparação do prejuízo causado pela conduta anticoncorrencial em questão ( 65 ).

    94.

    Em suma, não vejo qualquer razão de princípio para que a aplicabilidade e o alcance do princípio ne bis in idem devam ser analisados de forma diferente consoante o processo em matéria de direito da concorrência em causa tenha ou não envolvido a aplicação de um programa de clemência, mesmo que disso resulte efetivamente uma dispensa total da coima. Nesta perspetiva, não partilho, portanto, do argumento algo circunstancial da Comissão segundo o qual a aplicação do princípio ne bis in idem deveria depender de ainda existir a possibilidade de a Nordzucker perder o seu estatuto de requerente de clemência e, assim, poder ainda ser‑lhe aplicada uma coima.

    95.

    Sugiro, assim, que a resposta à quarta questão prejudicial submetida seja de que o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta é igualmente aplicável no âmbito de processos nacionais que envolvem a aplicação de um programa de clemência e que não conduzem à aplicação de uma coima.

    V. Conclusão

    96.

    Proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) do seguinte modo:

    1.

    A aplicabilidade do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia baseia‑se na análise do conceito de idem definido pela identidade do infrator, dos factos pertinentes e do interesse jurídico protegido.

    2.

    A questão de saber se o direito da União e a legislação nacional em matéria de concorrência protegem o mesmo interesse jurídico deve ser definida pela análise das normas específicas aplicadas. Tal implica a apreciação do eventual afastamento entre as normas nacionais em causa e as normas da União. Sempre que as autoridades de concorrência de dois Estados‑Membros aplicam o artigo 101.o TFUE e a correspondente disposição da legislação nacional em matéria de concorrência, protegem, por conseguinte, o mesmo interesse jurídico.

    3.

    O facto de uma autoridade nacional da concorrência ter tido em consideração os efeitos extraterritoriais de uma determinada conduta anticoncorrencial numa decisão anterior, desde que tenha sido legitimada a fazê‑lo pela legislação nacional, é pertinente para a análise da aplicabilidade do princípio ne bis in idem no âmbito dos processos posteriores. O artigo 50.o da Carta opõe‑se a que uma autoridade nacional da concorrência ou um órgão jurisdicional imponham uma sanção relativa a uma conduta anticoncorrencial que já tenha sido objeto de um processo anterior concluído mediante uma decisão final adotada por outra autoridade nacional da concorrência. Esta proibição aplica‑se, no entanto, apenas na medida em que o âmbito temporal e geográfico do objeto de ambos os processos seja o mesmo.

    4.

    O princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta é igualmente aplicável no âmbito de processos nacionais que envolvem a aplicação de um programa de clemência e que não conduzem à aplicação de uma coima.


    ( 1 ) Língua original: inglês.

    ( 2 ) bpost SA (Processo C‑117/20).

    ( 3 ) O que o Tribunal de Justiça já fez no passado, com o maior detalhe possível no Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72).

    ( 4 ) Regulamento do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1).

    ( 5 ) Mais recentemente, por exemplo, Acórdão de 29 de abril de 2021, Ubezpieczeniowy Fundusz Gwarancyjny z siedzibą (C‑383/19, EU:C:2021:337, n.os 29 e 30 e jurisprudência referida).

    ( 6 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 7 de janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão (C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, EU:C:2004:6, n.o 338); de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 97); e de 25 de fevereiro de 2021, Slovak Telekom (C‑857/19, EU:C:2021:139, n.o 43).

    ( 7 ) Acórdão de 13 de fevereiro de 1969 (14/68, EU:C:1969:4).

    ( 8 ) Ibidem, n.o 3.

    ( 9 ) Acórdãos de 7 de janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão (C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, EU:C:2004:6, n.o 338), e de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 97). V., igualmente, Acórdão do Tribunal Geral de 26 de outubro de 2017, Marine Harvest/Comissão (T‑704/14, EU:T:2017:753, n.o 308).

    ( 10 ) Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 97 e jurisprudência referida).

    ( 11 ) V. Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2011:552, n.os 114 a 122); do advogado‑geral N. Wahl no processo Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie (C‑617/17, EU:C:2018:976, n.o 45); e do advogado‑geral E. Tanchev no processo Marine Harvest (C‑10/18 P, EU:C:2019:795, n.o 95, nota 34).

    ( 12 ) Acórdão de 25 de fevereiro de 2021, Slovak Telekom (C‑857/19, EU:C:2021:139, n.o 43 e jurisprudência referida).

    ( 13 ) JO 2000, L 239 p. 19.

    ( 14 ) Acórdãos de 9 de março de 2006, van Esbroeck (C‑436/04, EU:C:2006:165, n.o 36); de 28 de setembro de 2006, Gasparini e o. (C‑467/04, EU:C:2006:610, n.o 54); de 28 de setembro de 2006, van Straaten (C‑150/05, EU:C:2006:614, n.o 48); de 18 de julho de 2007, Kraaijenbrink (C‑367/05, EU:C:2007:444, n.o 26); de 16 de novembro de 2010, Mantello (C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 39); e de 29 de abril de 2021, X (Mandado de detenção europeu — ne bis in idem) (C‑665/20 PPU, EU:C:2021:339, n.o 71 e jurisprudência referida), estando em causa no último processo uma condenação por decisão judicial proferida por um país terceiro.

    ( 15 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 34). O sublinhado é meu.

    ( 16 ) Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 35). O sublinhado é meu. Contudo, v., igualmente, Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o. (C‑537/16, EU:C:2018:193, n.o 27), onde é feita referência uma vez mais aos mesmos factos.

    ( 17 ) Poder‑se‑ia acrescentar que o uso intercambiável dos conceitos de factos (pertinentes) e de ato (pertinente) também pode ter contribuído, em parte, para a confusão suscitada sobre o tipo e âmbito da identidade exigidos. Com efeito, segundo uma leitura restritiva e em contextos específicos, o conceito de «ato» pode ser equiparado a «factos». Todavia, em certas línguas, e certamente quando discutido em abstrato, o conceito de ato (penal) é mais amplo do que os seus simples elementos de facto. Não se refere apenas «ao que ocorreu», mas também à apreciação e qualificação jurídica daquilo que ocorreu, o que, por sua vez, é suscetível de ter em conta o interesse jurídico protegido, pelo menos indiretamente, definindo os efeitos sociais negativos do comportamento em causa.

    ( 18 ) Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1).

    ( 19 ) bpost (C‑117/20, n.os 101 a 117).

    ( 20 ) Pautando‑se pelos princípios que aí são igualmente enunciados nos n.os 119 a 122.

    ( 21 ) O Tribunal de Justiça referiu‑se (direta ou indiretamente) à afirmação feita no Acórdão Wilhem e o. sobre o facto de as legislações nacional e comunitária em matéria de concorrência serem diferentes, por exemplo, nos Acórdãos de 10 de julho de 1980, Giry e Guerlain e o. (253/78 e 1/79 a 3/79, EU:C:1980:188, n.o 15); de 16 de julho de 1992, Asociación Española de Banca Privada e o. (C‑67/91, EU:C:1992:330, n.o 11); de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569, n.o 19); de 9 de setembro de 2003, Milk Marque e National Farmers’ Union (C‑137/00, EU:C:2003:429, n.o 61); de 13 de julho de 2006, Manfredi e o. (C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.o 38); ou de 1 de outubro de 2009, Compañía Española de Comercialización de Aceite (C‑505/07, EU:C:2009:591, n.o 50).

    ( 22 ) V., por exemplo, Acórdão de 10 de julho de 1980, Giry e Guerlain e o. (253/78 e 1/79 a 3/79, EU:C:1980:188, n.o 15); de 9 de setembro de 2003, Milk Marque e National Farmers’ Union (C‑137/00, EU:C:2003:429, n.o 61); ou de 1 de outubro de 2009, Compañía Española de Comercialización de Aceite (C‑505/07, EU:C:2009:591, n.o 50).

    ( 23 ) Acórdão de 3 de abril de 2019 (C‑617/17, EU:C:2019:283).

    ( 24 ) Embora nem todas as partes sejam idênticas nos dois processos nacionais, no que respeita especificamente à Nordzucker e à Südzucker, a identidade do(s) infrator(es) é evidente.

    ( 25 ) Em pormenor nas minhas Conclusões no processo bpost, n.os 136 a 141, juntamente com os n.os 142 a 151, que fornecem outros exemplos.

    ( 26 ) O Tribunal de Justiça utilizou mais precisamente a expressão «[o] direito comunitário e o direito nacional em matéria de acordos entre empresas». Acórdão de 13 de fevereiro de 1969, Wilhelm e o.(14/68, EU:C:1969:4, n.o 3).

    ( 27 ) O que já era o caso, em parte, ao abrigo do Regulamento n.o 17 no que respeita aos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE — Regulamento n.o 17: Primeiro Regulamento de execução dos artigos 85.o e 86.o do Tratado (JO 1962, 13, p. 204).

    ( 28 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados‑Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno (JO 2019, L 11, p. 3).

    ( 29 ) Como indicam os títulos dos capítulos respetivos da Diretiva 2019/1, estes domínios dizem respeito à independência e aos meios das ANC, competência para exercerem as suas atribuições, determinação da aplicação de coimas, programas de clemência, assistência mútua e prazos de prescrição.

    ( 30 ) Acórdão de 13 de fevereiro de 1969, Wilhelm e o. (14/68, EU:C:1969:4, n.o 3). O sublinhado é meu.

    ( 31 ) V., por exemplo, Acórdão de 10 de julho de 1980, Giry e Guerlain e o. (253/78 e 1/79 a 3/79, EU:C:1980:188, n.o 15).

    ( 32 ) Nos trabalhos legislativos que precederam a adoção do Regulamento n.o 1/2003, a Comissão salientou que numerosos Estados‑Membros (dos 15 à época) aprovavam legislações nacionais em matéria de concorrência que refletiam o conteúdo dos artigos 81.o e 82.o do Tratado CEE. Ao mesmo tempo, admitiu que não havia harmonização formal e que subsistiam diferenças tanto legalmente como na prática. V. ponto 1 (A), «Enquadramento», terceiro parágrafo; e ponto 2 (C), travessão 2, alínea a), segundo parágrafo, da exposição de motivos da proposta de Regulamento do Conselho relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o do Tratado CEE e que altera os Regulamentos (CEE) n.o 1017/68 (CEE) n.o 2988/74 (CEE) n.o 4056/86 e (CEE) n.o 3975/87 (a seguir «Regulamento de execução dos artigos 81.o e 82.o do Tratado»), COM(2000) 582 final (JO 2000, C 365 E, p. 284).

    ( 33 ) No que respeita à expressão «legislação nacional mais restritiva» referida no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1/2003, v., por exemplo, Feteira, L. T., «The Interplay Between European and National Competition Law after Regulation 1/2003: United (Should) We Stand?», Wolters Kluwer Law International, 2015, pp. 62 a 67.

    ( 34 ) É a razão pela qual a advogada geral J. Kokott observou nas suas Conclusões no processo Toshiba Corporation e o. que, no essencial, a declaração inicial no Acórdão de Walt Wilhem ainda se mantém (C‑17/10, EU:C:2011:552, n.o 81).

    ( 35 ) V., igualmente, Nazzini, R.,«Parallel Proceedings in EU Competition Law: Ne Bis In Idem as a Limiting Principle» in: van Bockel, B. (ed.), «Ne Bis in Idem in EU Law», Cambridge University Press, Cambridge, 2016, p. 159.

    ( 36 ) V. advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer que considerou que «[o] critério da extensão territorial da conduta restritiva não é essencial, mas sim adjetivo, na medida em que não afeta a natureza da infração, só a sua intensidade». Este advogado‑geral não concordou com a abordagem adotada no Acórdão Wilhelm e o., afirmando que «[n]o ordenamento para a garantia da livre concorrência não pode falar‑se, no seio da União Europeia, de âmbitos diferentes, o comunitário e os nacionais, como se de compartimentos estanques se tratasse. Ambos os setores se orientam pela tutela de uma concorrência livre e aberta no mercado comum, um contemplando‑o na sua integridade, o outro, a partir dos seus diferentes componentes, mas a essência é a mesma». V. Conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer no processo Aalborg Portland e o. (C‑217/00 P, não publicado, EU:C:2003:83, n.os 176, 173 e nota 121) e Aalborg Portland e o. (C‑213/00 P, não publicado, EU:C:2003:84, n.os 94, 91 e nota 71).

    ( 37 ) Atualmente § 3 zákon č. 143/2001 Sb., o ochraně hospodářské soutěže (Lei da proteção da concorrência), conforme alterado.

    ( 38 ) V., neste sentido, Acórdão de 3 de maio de 2011, Tele2 Polska (C‑375/09, EU:C:2011:270, n.o 33). V., igualmente, Acórdãos de 5 de junho de 2014, Kone e o. (C‑557/12, EU:C:2014:1317, n.o 32), e de 7 de dezembro de 2010, VEBIC (C‑439/08, EU:C:2010:739, n.os 56 e 57), segundo os quais a legislação nacional deve garantir «a plena efetividade do direito da concorrência da União» e não deve comprometer a aplicação efetiva da mesma legislação pelas ACN, que é o objetivo visado pelo Regulamento n.o 1/2003.

    ( 39 ) A este respeito, o considerando 3 da Diretiva 2019/1 enuncia que, «[n]a prática, a maior parte das ANC aplica o direito nacional da concorrência em paralelo com os artigos 101.o e 102.o do TFUE».

    ( 40 ) Questão que, admito, ainda me escapa de alguma forma. A proposta inicial da Comissão do Regulamento n.o 1/2003 continha, no projeto do artigo 3.o, uma norma um pouco mais lógica, nos termos da qual «[s]empre que um acordo, uma decisão de associação de empresas ou uma prática concertada, na aceção do artigo 81.o do Tratado, ou a exploração abusiva de uma posição dominante, na aceção do artigo 82.o, sejam suscetíveis de afetar o comércio entre Estados‑Membros é aplicável o direito comunitário da concorrência com exclusão dos direitos nacionais da concorrência». O sublinhado é meu. V. proposta de Regulamento do Conselho relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o do Tratado CEE e que altera os Regulamentos (CEE) n.o 1017/68 (CEE) n.o 2988/74 (CEE) n.o 4056/86 e (CEE) n.o 3975/87 («Regulamento de execução dos artigos 81.o e 82.o do Tratado»), COM(2000) 582 final (JO 2000, C 365 E, p. 284).

    ( 41 ) Conclusões da advogada-geral J. Kokott no processo Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2011:552, n.o 128).

    ( 42 ) Ibidem, n.o 129.

    ( 43 ) Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 99). O sublinhado é meu.

    ( 44 ) Ibidem, n.o 99. V., igualmente, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2011:552, n.o 130).

    ( 45 ) Dos factos do presente processo, conforme expostos pelo órgão jurisdicional de reenvio (v., supra, n.o 11), é igualmente admissível que a conversa telefónica relativa ao mercado austríaco possa ter sido «tida em conta» como prova circunstancial da restrição ilegal da concorrência no mercado alemão durante o período em causa.

    ( 46 ) Nos termos do artigo 12.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, uma ANC também pode requerer a decisão final de outra ANC, incluindo passagens consideradas confidenciais.

    ( 47 ) Com efeito, nenhuma disposição específica do Regulamento n.o 1/2003 atribui competência a um órgão jurisdicional nacional para solicitar que lhe seja fornecida cópia de uma decisão definitiva de uma ANC proveniente de outro Estado‑Membro. Admito, no entanto, que é absolutamente justificado que um órgão jurisdicional nacional possa solicitar essa decisão definitiva, seja nos termos do artigo 12.o, n.o 1, ou do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, aplicados por analogia, ou baseando‑se diretamente no artigo 4.o, n.o 3, TUE.

    ( 48 ) Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 101).

    ( 49 ) Com efeito, várias ANC já seguiram as orientações da Comissão a este respeito no passado. Além disso, a nova Diretiva 2019/1, que não é todavia aplicável ratione temporis ao processo principal, harmoniza alguns aspetos da aplicação de coimas no seu capítulo V.

    ( 50 ) Artigo 56.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1).

    ( 51 ) Como demonstrou recentemente o Acórdão de 15 de junho de 2021, Facebook Ireland e o. (C‑645/19, EU:C:2021:483).

    ( 52 ) O sublinhado é meu. Embora esta disposição preveja que «[…] a instrução do processo por parte de uma autoridade constitui, para as restantes autoridades, motivo suficiente para suspenderem a respetiva tramitação ou rejeitarem a denúncia», a Comunicação sobre a cooperação afirma que uma ANC não está obrigada a suspender o processo ou a rejeitar a denúncia. Isto porque a cooperação ao abrigo do Regulamento n.o 1/2003 é regida pela flexibilidade. Comunicação da Comissão sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades de concorrência (JO 2004, C 101, p. 43, n.o 22) (a seguir «Comunicação sobre a cooperação»).

    ( 53 ) O sublinhado é meu.

    ( 54 ) Ibidem, n.o 20.

    ( 55 ) Ibidem, n.o 21.

    ( 56 ) Uma ANC pode ser considerada como tal quando, em primeiro lugar, o acordo ou prática tem grande impacto direto, real ou previsível, na concorrência no seu território, é aplicado no seu território ou tem nele origem; em segundo lugar, a autoridade pode pôr eficazmente termo à infração na sua totalidade; em terceiro lugar, pode reunir, eventualmente com a assistência de outras autoridades, os elementos necessários para provar a infração. Ibidem, n.o 8.

    ( 57 ) Tendo em conta essas considerações, não se pode deixar de reconhecer, retrospetivamente, a clareza da redação inicial da Comissão quanto a esta matéria (v. nota n.o 40) e lamentar que não tenha sido mantida.

    ( 58 ) V., por exemplo, Acórdão de 3 de abril de 2019, Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie (C‑617/17, EU:C:2019:283, n.os 29 e 30).

    ( 59 ) bpost (C‑117/20, n.os 107 a 110).

    ( 60 ) Com efeito, a quarta questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio ilustra efetivamente um dos problemas conceptuais do Acórdão Menci. Presumo que uma simples declaração de ilegalidade, sem que seja imposta qualquer sanção, é suscetível, por definição, de responder ao elemento de proporcionalidade da limitação em causa nos termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta. Com efeito, a fortiori, dois processos paralelos instaurados contra uma mesma empresa na sequência de dois processos de clemência nunca poderiam violar o princípio ne bis in idem, uma vez que não foram aplicadas quaisquer coimas? Todavia, mais uma vez, o princípio ne bis in idem não pode ser reduzido a um controlo a posteriori da proporcionalidade do cúmulo das sanções aplicadas.

    ( 61 ) V., por exemplo, artigo 2.o, ponto 15, da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1). V., igualmente, artigo 2.o, n.o 1, ponto 16, da Diretiva 2019/1.

    ( 62 ) V., ainda, Comunicação da Comissão Relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (JO 2006, C 298, p. 17, n.o 8).

    ( 63 ) As modalidades específicas dependem da legislação nacional. A BWB explica que o processo instaurado na sequência de um pedido de clemência é um processo cível não contraditório, sem prejuízo do § 38.o da Kartellgesetz 2005 (Lei de 2005 relativa aos cartéis). Diferentemente do processo na Comissão, o processo nacional não está integrado nos processos globais que envolvem todas as outras partes, sendo, ao invés, um processo independente. Não resulta na aplicação de uma coima ou numa redução a zero dessa coima. Pelo contrário, esse órgão jurisdicional salienta que foi cometida uma infração na sequência da concessão de dispensa pela BWB.

    ( 64 ) Se uma declaração de infração ao direito da concorrência, com todos os elementos de prova reunidos que fazem parte da fundamentação judicial, está contida numa decisão judicial, então qualquer escudo de proteção previsto no capítulo II da Diretiva 2014/104 parece estar afastado. Contudo, é pouco provável que a situação seja muito diferente no caso de uma decisão final de infração de uma autoridade nacional de concorrência que obedeça aos mesmos critérios (contrariamente ao que sucede com os simples atos processuais ou elementos de prova, apresentados no âmbito de processos de clemência, como os enumerados no artigo 6.o, n.o 6, da Diretiva 2014/104).

    ( 65 ) Suprimindo, assim, o ónus probatório evidente que terá provavelmente de suportar um particular que deseje intentar uma ação «autónoma» por danos resultantes da infração de normas em matéria de concorrência, com vista a determinar com precisão qual o teor específico dessa decisão. V., recentemente, as minhas Conclusões no processo Stichting Cartel Compensation e Equilib Netherlands (C‑819/19, EU:C:2021:373, n.os 93 a 96).

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