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Documento 62019CJ0503

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 3 de setembro de 2020.
UQ e SI contra Subdelegación del Gobierno en Barcelona.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Juzgado Contencioso-Administrativo de Barcelona.
Reenvio prejudicial — Estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração — Diretiva 2003/109/CE — Artigo 6.o, n.o 1 — Elementos a ter em consideração — Regulamentação nacional — Não tomada em consideração desses elementos — Recusa da concessão do estatuto de residente de longa duração devido aos antecedentes penais do interessado.
Processos apensos C-503/19 e C-592/19.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2020:629

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

3 de setembro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração — Diretiva 2003/109/CE — Artigo 6.o, n.o 1 — Elementos a ter em consideração — Regulamentação nacional — Não tomada em consideração desses elementos — Recusa da concessão do estatuto de residente de longa duração devido aos antecedentes penais do interessado»

Nos processos apensos C‑503/19 e C‑592/19,

que têm por objeto dois pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 17 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 17 de Barcelona, Espanha) (C‑503/19) e pelo Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 5 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 5 de Barcelona, Espanha) (C‑592/19), por Decisões de 7 de junho de 2019 e de 15 de julho de 2019, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 2 de julho de 2019 e 2 de agosto de 2019, respetivamente, nos processos

UQ (C‑503/19),

SI (C‑592/19)

contra

Subdelegación del Gobierno en Barcelona,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras (relator), presidente de secção, S. Rodin, D. Šváby, K. Jürimäe e N. Piçarra, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo espanhol, por L. Aguilera Ruiz, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por S. Pardo Quintillán e C. Cattabriga, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25 de novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração (JO 2004, L 16, p. 44).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem UQ (processo C‑503/19) e SI (processo C‑592/19) à Subdelegación del Gobierno en Barcelona (Subdelegação do Governo em Barcelona, Espanha) a respeito do indeferimento dos pedidos de concessão do estatuto de residente de longa duração apresentados pelos interessados.

Quadro jurídico

Direito da União

3

A Diretiva 2003/109 contém um capítulo II, intitulado «Estatuto de residente de longa duração num Estado‑Membro», no qual figuram os artigos 4.o a 13.o desta diretiva. O artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva enuncia:

«Os Estados‑Membros devem conceder o estatuto de residente de longa duração aos nacionais de países terceiros que tenham residência legal e ininterrupta no seu território durante os cinco anos que antecedem imediatamente a apresentação do respetivo pedido.»

4

O artigo 5.o da mesma diretiva prevê:

«1.   Os Estados‑Membros devem exigir ao nacional de um país terceiro que apresente provas de que este e os familiares a seu cargo dispõem de:

a)

Recursos estáveis e regulares que sejam suficientes para a sua própria subsistência e para a dos seus familiares, sem recorrer ao sistema de assistência social do Estado‑Membro em causa. Os Estados‑Membros devem avaliar esses recursos por referência às suas natureza e regularidade e podem ter em conta o nível do salário mínimo e das pensões antes do pedido de aquisição do estatuto de residente de longa duração;

b)

Um seguro de doença que cubra todos os riscos normalmente cobertos no Estado‑Membro em questão para os próprios nacionais.

2.   Os Estados‑Membros podem exigir que os nacionais de países terceiros preencham condições de integração, em conformidade com o direito nacional.»

5

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109 tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros podem recusar a concessão do estatuto de residente de longa duração por razões de ordem pública ou de segurança pública.

Ao tomarem as decisões pertinentes, os Estados‑Membros devem ter em consideração a gravidade ou o tipo de ofensa à ordem pública ou à segurança pública cometida, ou os perigos que possam advir da pessoa em causa, tendo também na devida conta a duração da residência e a existência de ligações ao país de residência.»

6

Nos termos do artigo 7.o, n.o 3, desta diretiva, se as condições previstas nos artigos 4.o e 5.o da mesma estiverem preenchidas e a pessoa não representar uma ameaça, na aceção do artigo 6.o da referida diretiva, o Estado‑Membro em causa deve conceder o estatuto de residente de longa duração ao nacional de país terceiro em questão.

7

Nos termos do artigo 12.o, n.os 1 e 3, da mesma diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros só podem tomar uma decisão de expulsão de um residente de longa duração se este representar uma ameaça real e suficientemente grave para a ordem pública ou a segurança pública.

[…]

3.   Antes de tomarem uma decisão de expulsão de um residente de longa duração, os Estados‑Membros devem ter em consideração os seguintes elementos:

a)

A duração da residência no território;

b)

A idade da pessoa em questão;

c)

As consequências para essa pessoa e para os seus familiares;

d)

Os laços com o país de residência ou a ausência de laços com o país de origem.»

8

O capítulo III da Diretiva 2003/109 intitula‑se «Residência noutros Estados‑Membros». Nos termos do artigo 14.o, n.o 1, desta diretiva, que faz parte deste capítulo, um residente de longa duração adquire o direito a permanecer no território dos Estados‑Membros que não aquele que lhe concedeu o estatuto de residente de longa duração, por um período superior a três meses, caso estejam preenchidas as condições fixadas no referido capítulo.

9

O artigo 17.o, n.o 1, da referida diretiva, que também faz parte do mesmo capítulo, dispõe:

«Os Estados‑Membros podem indeferir pedidos de residência do residente de longa duração ou dos seus familiares quando a pessoa em causa representar uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança pública.

Ao tomarem as decisões pertinentes, os Estados‑Membros devem ter em consideração a gravidade ou o tipo de ofensa à ordem pública ou à segurança pública cometido pelo residente de longa duração ou pelo seu familiar, ou os perigos que possam advir da pessoa em causa.»

Direito espanhol

Lei Orgânica 4/2000

10

A Ley Orgánica 4/2000 sobre derechos y libertades de los extranjeros en España y su integración social (Lei Orgânica 4/2000 Relativa aos Direitos e Liberdades dos Estrangeiros em Espanha e à Sua Integração Social), de 11 de janeiro de 2000 (BOE n.o 10, de 12 de janeiro de 2000, p. 1139), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais (a seguir «Lei Orgânica 4/2000»), inclui um artigo 31.o com a epígrafe «Situação de residência temporária». O artigo 31.o, n.o 7, dessa lei tem a seguinte redação:

«Para a renovação da autorização de residência temporária, quando aplicável, serão examinados:

a) os antecedentes criminais, tendo em conta a existência de medidas graciosas ou situações de redução condicional da pena ou suspensão da pena privativa de liberdade.

[…]

Com vista a esta renovação, será tido especialmente em conta o esforço de integração feito pelo nacional estrangeiro e que milita a favor da referida renovação, que deve ser provado através de um relatório favorável da comunidade autónoma […].»

11

O artigo 32.o da Lei Orgânica 4/2000 diz respeito à residência de longa duração. Dispõe o seguinte:

«1.   A residência de longa duração é a situação que permite residir e trabalhar em Espanha indefinidamente, nas mesmas condições que os nacionais espanhóis.

2.   O direito de residência de longa duração é concedido àqueles que tenham tido uma residência temporária ininterrupta em Espanha de pelo menos cinco anos e que preencham as condições estabelecidas por via regulamentar. Para efeitos da residência de longa duração, devem ser tidos em conta os períodos de residência anterior e ininterrupta noutros Estados‑Membros na qualidade de titular do Cartão Azul UE. A residência é considerada ininterrupta mesmo que o estrangeiro tenha deixado o território nacional temporariamente, por períodos de férias ou outros motivos estabelecidos por regulamento.

3.   Os estrangeiros residentes de longa duração noutro Estado‑Membro da União Europeia podem solicitar e obter uma autorização de residência de longa duração em Espanha para si próprios quando vão trabalhar por conta de outrem ou por conta própria, ou para outros fins, nas condições estabelecidas por via regulamentar. No entanto, caso os estrangeiros residentes de longa duração noutro Estado‑Membro da União Europeia pretendam manter o estatuto de residente de longa duração adquirido no primeiro Estado‑Membro, poderão solicitar e obter uma autorização de residência temporária em Espanha. […]»

Regulamento da Lei Orgânica 4/2000

12

O artigo 148.o do Regulamento da Lei Orgânica 4/2000, aprovado pelo Real Decreto 557/2011 que aprova o Regulamento da Lei Orgânica 4/2000, após a sua reforma pela Lei Orgânica 2/2009 (Real Decreto 557/2011, que aprova o Regulamento da Lei Orgânica 4/2000, após a sua reforma pela Lei Orgânica 2/2009), de 20 de abril de 2011 (BOE n.o 103, de 30 de abril de 2011, p. 43821), prevê:

«1.   Têm o direito de obter uma autorização de residência de longa duração os estrangeiros que tenham residido legal e ininterruptamente em território espanhol durante cinco anos.

Têm igualmente o direito de obter esta autorização os estrangeiros que demonstrem ter residido durante esse período de forma ininterrupta na União Europeia, na qualidade de titulares de um cartão azul UE, uma vez que residiram no território espanhol durante os dois anos imediatamente anteriores ao seu pedido.

[…]»

13

O artigo 149.o do Regulamento da Lei Orgânica 4/2000 regula o procedimento para a obtenção de uma autorização de residência de longa duração. O artigo 149.o, n.o 2, alínea f), desse regulamento dispõe que um pedido de autorização deve ser acompanhado, se for caso disso, de uma certidão do registo criminal ou documento equivalente emitido pelas autoridades do país de origem ou do país ou países em que o requerente tenha residido durante os últimos cinco anos, documento esse que não deve revelar nenhuma condenação por uma infração prevista pela ordem jurídica espanhola.

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑503/19

14

UQ é nacional de um país terceiro, titular de uma autorização de residência temporária em Espanha.

15

Em 10 de novembro de 2014, foi condenado a 40 dias de serviço comunitário e à suspensão da carta de condução por oito meses e dois dias por conduzir sob o efeito de álcool em 2 de novembro de 2014.

16

Em 2 de fevereiro de 2018, UQ, que, nessa data, já residia legalmente em Espanha há pelo menos cinco anos, ao abrigo da sua autorização de residência, apresentou à Oficina de Extranjeros de Barcelona (Serviço de Estrangeiros de Barcelona, Espanha) um pedido de obtenção do direito de residência de longa duração, na aceção do artigo 32.o da Lei Orgânica 4/2000.

17

Por Decisão de 27 de março de 2018, o Serviço de Estrangeiros de Barcelona indeferiu este pedido, com base nos antecedentes criminais de UQ, mencionados no n.o 15 do presente acórdão. UQ interpôs um recurso administrativo desta decisão, ao qual foi igualmente negado provimento, por Decisão de 6 de julho de 2018.

18

UQ interpôs subsequentemente um recurso da Decisão de 6 de julho de 2018 no órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19.

19

Esse órgão jurisdicional indica que a jurisprudência dos diferentes órgãos jurisdicionais espanhóis é confusa e contraditória quanto à questão de saber se a existência de antecedentes criminais do interessado é suficiente, por si só, para lhe ser recusado o estatuto de residente de longa duração ou se, pelo contrário, tal recusa exige uma avaliação dos factos em cada caso concreto, a fim de determinar se o interessado representa uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade.

20

Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), num Acórdão de 5 de julho de 2018, dissipou as dúvidas suscitadas pela jurisprudência confusa dos órgãos jurisdicionais inferiores. Nesse acórdão, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) baseou‑se, entre outros, no artigo 149.o, n.o 2, alínea f), do Regulamento da Lei Orgânica 4/2000, para considerar, em substância, que a mera existência de antecedentes criminais do interessado era um obstáculo à concessão do estatuto de residente de longa duração a essa pessoa. O Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) considerou, além disso, que essa interpretação não contradiz nem o espírito nem a finalidade das disposições da Diretiva 2003/109.

21

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19 tem dúvidas quanto à conformidade da posição adotada pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal), no seu acórdão referido no número anterior, com a Diretiva 2003/109.

22

Em segundo lugar, também manifesta dúvidas quanto à conformidade da regulamentação espanhola com esta diretiva, no que respeita à possibilidade de recusar a concessão do estatuto de residente de longa duração a um nacional de um país terceiro por razões de ordem pública ou de segurança pública, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva. Essa disposição prevê a possibilidade, mas não a obrigação, de um Estado‑Membro recusar a concessão do estatuto de residente de longa duração por esses motivos. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19, para dar cumprimento à Diretiva 2003/109, a regulamentação de um Estado‑Membro deve ser transparente e inteligível. Ora, o Reino de Espanha não fez uso dessa possibilidade. O artigo 149.o, n.o 2, alínea f), do Regulamento da Lei Orgânica 4/2000 não pode ser interpretado no sentido de que prevê esse motivo de recusa.

23

Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19 salienta que a posição adotada pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) no seu acórdão referido no n.o 20 do presente acórdão implica que é mais fácil que um nacional de um país terceiro obtenha a renovação da sua autorização de residência temporária em Espanha do que lhe seja reconhecido o estatuto de residente de longa duração. Com efeito, os antecedentes criminais não constituem um obstáculo absoluto à renovação da autorização de residência temporária, uma vez que o artigo 31.o, n.o 7, alínea a), da Lei Orgânica 4/2000 prevê apenas que «serão examinados» para efeitos dessa renovação. Esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a conformidade de tal situação com o direito da União, uma vez que um nacional de um país terceiro que tenha qualquer antecedente criminal é dissuadido de pedir a concessão do estatuto de residente de longa duração e se mantém indefinidamente em situação de residente temporário.

24

Foi nesse contexto que o Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 17 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 17 de Barcelona, Espanha), o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

É compatível com os artigos 6.o, n.o 1, e 17.o da Diretiva 2003/109 uma interpretação por parte dos tribunais nacionais segundo a qual um antecedente criminal, de qualquer natureza, é motivo suficiente para recusar o acesso ao estatuto de residente de longa duração?

2)

Deve o juiz nacional ter em conta, além da existência de antecedentes criminais, outros fatores como a natureza e a duração da pena, os perigos que o requerente possa representar para a sociedade, a duração da sua anterior residência legal e as ligações que tenha constituído com o país, procedendo a uma apreciação conjunta de todos estes elementos?

3)

Deve o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva [2003/109] ser interpretado no sentido de que se opõe a que a [regulamentação] nacional permita recusar por razões de ordem pública ou de segurança pública o estatuto de residente de longa duração ao abrigo do artigo 4.o, sem estabelecer os critérios de apreciação previstos no artigo 6.o, n.o 1, e no artigo 17.o [da Diretiva 2003/109]?

4)

Devem os artigos 6.o, n.o 1, e 17.o da Diretiva [2003/109] ser interpretados no sentido de que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o efeito direto vertical das diretivas, o juiz nacional está habilitado e pode aplicar diretamente o disposto nos artigos 6.o, n.o 1, e 17.o [desta diretiva] para efeitos de apreciar a existência de antecedentes criminais à luz da sua gravidade, da duração da pena e dos perigos que o requerente possa representar?

5)

Deve o direito da União, em especial o direito de acesso ao estatuto de residente de longa duração e os princípios de clareza, da transparência e da inteligibilidade, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma interpretação pelos tribunais espanhóis dos artigos 147.o a 149.o do [Regulamento da Lei Orgânica 4/2000] e do artigo 32.o da [Lei Orgânica 4/2000] segundo a qual as razões de ordem pública e de segurança pública podem ser motivo de recusa do estatuto de residente de longa duração, apesar de essas normas não o estabelecerem com clareza e transparência?

6)

É compatível com o princípio do efeito útil da Diretiva 2003/109, em especial com o seu artigo 6.o, n.o 1, uma norma nacional e a interpretação da mesma efetuada pelos tribunais que dificulta o acesso ao estatuto de residente de longa duração e facilita o de residente temporário?»

Processo C‑592/19

25

SI é nacional de um país terceiro. É titular de uma autorização de residência temporária em Espanha, onde está empregado com base num contrato de trabalho por tempo indeterminado e onde está inscrito na Segurança Social.

26

Por sentença de 17 de outubro de 2016 do Juzgado de lo Penal n.o 18 de Barcelona (Tribunal Criminal n.o 18 de Barcelona, Espanha), SI foi condenado, como autor do crime de falsificação e utilização de documentos falsos em escritura pública, a uma pena de onze meses de prisão suspensa durante dois anos a partir de 17 de outubro de 2016, por atos cometidos em 30 de novembro de 2011.

27

SI solicitou à subdelegação do governo em Barcelona o estatuto de residente de longa duração. Esse pedido foi indeferido por Decisão da subdelegação do governo em Barcelona de 30 de outubro de 2017, devido, designadamente, à existência de antecedentes criminais de SI. Este último interpôs um recurso administrativo desta decisão, ao qual foi igualmente negado provimento por Decisão de 13 de março de 2018.

28

SI interpôs, subsequentemente, um recurso da Decisão de 13 de março de 2018 no órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑592/19.

29

Esse órgão jurisdicional reitera, em substância, as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19 e resumidas nos n.os 19 e 20 do presente acórdão. Indica que, se devesse aplicar a regulamentação espanhola conforme interpretada pelo acórdão do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) mencionado no n.o 20 do presente acórdão, não poderia proceder a nenhuma apreciação da situação pessoal e da integração de SI em Espanha, do estatuto de execução da pena que lhe foi aplicada pela sentença do Juzgado de lo Penal n.o 18 de Barcelona (Tribunal Criminal n.o 18 de Barcelona), mencionado no n.o 26 do presente acórdão, da infração cometida ou de outras circunstâncias, uma vez que estaria na presença de um antecedente criminal que não foi apagado do registo criminal do interessado. Ora, este órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à conformidade de tal abordagem com o direito da União e, especialmente, com a Diretiva 2003/109.

30

Foi nestas condições que o Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 5 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 5 de Barcelona, Espanha), o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑592/19, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 4.o e 6.o, n.o 1, da Diretiva [2003/109] ser interpretados no sentido de que um antecedente criminal, de qualquer natureza, é motivo suficiente para recusar o acesso ao estatuto de residente de longa duração, sem necessidade de apreciar a duração da residência e a existência de ligações com o país de residência?»

Quanto às questões prejudiciais

31

A título preliminar, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑503/19 evocou, nas suas primeira, terceira e quarta questões, o artigo 17.o da Diretiva 2003/109, há que precisar que este artigo, que faz parte do capítulo III desta diretiva, intitulado «Residência noutros Estados‑Membros», abrange a situação de um nacional de um país terceiro que obteve o estatuto de residente de longa duração num primeiro Estado‑Membro e que pretende residir num segundo Estado‑Membro.

32

O referido artigo não é, portanto, pertinente numa situação como a que está na origem dos processos principais, em que está em causa a recusa do Estado‑Membro de conceder o estatuto de residente de longa duração a um nacional de um país terceiro que tenha residido legal e continuamente no seu próprio território durante os cinco anos imediatamente anteriores à apresentação do pedido do interessado.

33

Feita esta clarificação, há que considerar que, com as suas questões, que importa examinar em conjunto, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro, conforme interpretada por alguns órgãos jurisdicionais deste, que prevê que pode ser recusada a um nacional de um país terceiro a concessão do estatuto de residente de longa duração nesse Estado‑Membro pelo simples facto de apresentar antecedentes criminais, sem um exame concreto da sua situação à luz, nomeadamente, da natureza da infração cometida por esse nacional, do perigo que este eventualmente representa para a ordem pública ou para a segurança pública, da duração da sua residência no território do referido Estado‑Membro e da existência de ligações a este último.

34

A este respeito, deve, antes de mais, recordar‑se que o artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/109 prevê a possibilidade e não a obrigação de os Estados‑Membros recusarem a concessão do estatuto de residente de longa duração por razões de ordem pública ou de segurança pública.

35

Ora, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as disposições de uma diretiva devem ser transpostas com uma vinculatividade incontestável, com a especificidade, a precisão e a clareza requeridas para cumprir a exigência de segurança jurídica (Acórdão de 11 de setembro de 2014, Comissão/Portugal, C‑277/13, EU:C:2014:2208, n.o 43 e jurisprudência referida).

36

Daqui resulta que, para aplicar corretamente o artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2003/109, um Estado‑Membro deve prever no seu direito interno a possibilidade de recusar a concessão do estatuto de residente de longa duração a um nacional de país terceiro por razões de ordem pública ou de segurança pública, com a especificidade, a precisão e a clareza necessárias para cumprir a exigência de segurança jurídica.

37

Por conseguinte, compete aos órgãos jurisdicionais de reenvio, únicos competentes para a interpretação do direito nacional nos termos do processo previsto no artigo 267.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 28, e de 21 de novembro de 2018, De Diego Porras, C‑619/17, EU:C:2018:936, n.o 80), verificar que o direito espanhol inclui uma disposição que apresenta as características mencionadas no número anterior do presente acórdão.

38

Quanto à questão de saber se tal disposição pode prever que a mera existência de antecedentes criminais do interessado basta para recusar a este último, por razões de ordem pública ou de segurança pública, a concessão do estatuto de residente de longa duração, resulta da própria letra do artigo 6.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2003/109 que essa recusa implica a tomada em consideração e a ponderação de um certo número de elementos, a saber, por um lado, a gravidade ou o tipo de ofensa à ordem pública ou à segurança pública cometida, os perigos que possam advir da pessoa em causa para a ordem pública ou para a segurança pública e, por outro, a duração da residência e a existência de ligações a esse Estado‑Membro.

39

A consideração de todos estes fatores implica uma avaliação caso a caso, o que exclui a possibilidade de recusar a concessão do estatuto de residente de longa duração ao interessado apenas com base no facto de este ter antecedentes criminais, independentemente da sua natureza.

40

Esta interpretação do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109 é confirmada pela jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual só podem ser tomadas medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública se, após uma apreciação caso a caso por parte das autoridades nacionais competentes, se verificar que o comportamento individual da pessoa em causa representa atualmente um perigo real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade [Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H. F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.o 52 e jurisprudência referida].

41

Assim, foi declarado, no que respeita ao artigo 12.o, n.o 3, da Diretiva 2003/109, cuja redação é muito semelhante à do artigo 6.o, n.o 1, segundo parágrafo, desta diretiva, que não pode ser adotada uma decisão de expulsão de um nacional de um Estado terceiro, residente de longa duração, baseada apenas no facto de este ter sido condenado a uma pena privativa da liberdade superior a um ano (Acórdão de 7 de dezembro de 2017, López Pastuzano, C‑636/16, EU:C:2017:949, n.o 28).

42

Daqui resulta que as autoridades competentes de um Estado‑Membro não podem considerar, de forma automática, que deve ser recusada a um nacional de um país terceiro a concessão do estatuto de residente de longa duração por razões de ordem pública, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109, pelo simples facto de ter sido objeto de uma qualquer condenação penal [v., por analogia, Acórdão de 12 de dezembro de 2019, G.S. e V. G. (Ameaça para a ordem pública), C‑381/18 e C‑382/18, EU:C:2019:1072, n.o 65].

43

Tendo em conta todas as considerações anteriores, há que responder às questões prejudiciais submetidas que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro, conforme interpretada por uma parte dos órgãos jurisdicionais deste, que prevê que pode ser recusada a um nacional de um país terceiro a concessão do estatuto de residente de longa duração nesse Estado‑Membro pelo simples facto de apresentar antecedentes criminais, sem um exame concreto da sua situação à luz, nomeadamente, da natureza da infração cometida por esse nacional, do perigo que este eventualmente representa para a ordem pública ou para a segurança pública, da duração da sua residência no território do referido Estado‑Membro e da existência de ligações a este último.

Quanto às despesas

44

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25 de novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro, conforme interpretada por uma parte dos órgãos jurisdicionais deste, que prevê que pode ser recusada a um nacional de um país terceiro a concessão do estatuto de residente de longa duração nesse Estado‑Membro pelo simples facto de apresentar antecedentes criminais, sem um exame concreto da sua situação à luz, nomeadamente, da natureza da infração cometida por esse nacional, do perigo que este eventualmente representa para a ordem pública ou para a segurança pública, da duração da sua residência no território do referido Estado‑Membro e da existência de ligações a este último.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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