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Documento 62019CC0021

Conclusões do advogado-geral H. Saugmandsgaard Øe apresentadas em 19 de março de 2020.
Processos penais contra XN e o.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Gerechtshof Arnhem-Leeuwarden.
Reenvio prejudicial — Resíduos — Transferências — Regulamento (CE) n.o 1013/2006 — Resíduos sujeitos ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito — Artigo 1.o, n.o 3 — Transferências sujeitas aos requisitos de aprovação — Diretiva 2008/98/CE — Artigo 5.o, n.o 1 — Conceito de “subprodutos” — Regulamento (CE) n.o 1069/2009 — Artigo 3.o, ponto 1 — Conceito de “subprodutos animais” — Transferências de uma mistura de subprodutos animais e de outras matérias.
Processos apensos C-21/19 a C-23/19.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2020:226

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE

apresentadas em 19 de março de 2020 ( 1 )

Processos apensos C‑21/19 a C‑23/19

Procedimento criminal

contra

XN (C‑21/19),

YO (C‑22/19),

P.F. Kamstra Recycling BV (C‑23/19),

interveniente:

Openbaar Ministerie

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Gerechtshof Arnhem‑Leeuwarden (Tribunal de Recurso de Arnhem‑Leeuwarden, Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Transferência de resíduos no interior da União Europeia — Diretiva 2008/98/CE — Artigo 5.o, n.o 1 — Conceito de “subproduto” — Âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.o 1013/2006 — Artigo 1.o, n.o 3, alínea d) — Regulamento (CE) n.o 1069/2009 — Conceito de “subprodutos animais” e de “categorias de matérias” — Aplicação às misturas de subprodutos animais e de resíduos não perigosos — Risco de desvio abusivo»

I. Introdução

1.

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Gerechtshof Arnhem‑Leeuwarden (Tribunal de Recurso de Arnhem‑Leeuwarden, Países Baixos) tem por objeto a regulamentação da União em matéria de resíduos e, mais especificamente, o transporte de subprodutos animais misturados com resíduos não perigosos.

2.

Após o Acórdão ReFood ( 2 ), relativo ao transporte de subprodutos animais da categoria 3, a menos perigosa, que tinha por objeto a questão de saber se esse transporte era regido pelo Regulamento (CE) n.o 1069/2009 ( 3 ) ou pelo regulamento mais exigente que constitui, no conjunto, o Regulamento (CE) n.o 1013/2006 ( 4 ), o Tribunal de Justiça é novamente chamado a pronunciar‑se sobre a interação entre estes dois regulamentos, mas, desta vez, no caso de uma mistura de matérias.

3.

O presente processo evidencia um determinado número de problemas na redação e, portanto, na interpretação dos diplomas aplicáveis que me esforçarei por salientar.

4.

No termo da minha análise, proporei ao Tribunal de Justiça, seguindo a linha traçada pelo Acórdão ReFood, que declare que o transporte de uma mistura de subprodutos animais com resíduos não perigosos está sujeito ao Regulamento n.o 1069/2009 e, mais especificamente, às disposições aplicáveis à categoria de subprodutos animais a que pertencem os subprodutos animais contidos nessa mistura.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Regulamentação relativa aos resíduos

a) Diretiva 2008/98/CE

5.

O artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/98/CE ( 5 ) dispõe:

«São excluídos do âmbito de aplicação da presente diretiva, na medida em que já estejam abrangidos por demais legislação comunitária:

[…]

b)

Os subprodutos animais, incluindo os produtos transformados abrangidos pelo Regulamento CE n.o 1774/2002 [ ( 6 )], com exceção dos destinados à incineração, à deposição em aterros ou a utilização numa unidade de biogás ou de compostagem;

[…]»

6.

Nos termos do artigo 5.o desta diretiva, com a epígrafe «Subprodutos»:

«1.   Uma substância ou objeto resultante de um processo de produção cujo principal objetivo não seja a produção desse item só pode ser considerado um subproduto e não um resíduo na aceção do ponto 1 do artigo 3.o se estiverem reunidas as seguintes condições:

a)

Existir a certeza de posterior utilização da substância ou objeto;

b)

A substância ou objeto poder ser utilizado diretamente, sem qualquer outro processamento que não seja o da prática industrial normal;

c)

A substância ou objeto ser produzido como parte integrante de um processo de produção; e

d)

A posterior utilização ser legítima, isto é, a substância ou objeto satisfazer todos os requisitos relevantes do produto em matéria ambiental e de proteção da saúde para a utilização específica e não acarretar impactos globalmente adversos do ponto de vista ambiental ou da saúde humana.

[…]»

b) Regulamento n.o 1013/2006

7.

O considerando 11 do Regulamento n.o 1013/2006 enuncia:

«É necessário evitar uma duplicação com o [Regulamento n.o 1774/2002], que já contém disposições que abrangem globalmente a expedição, encaminhamento e movimento (recolha, transporte, manipulação, processamento, valorização ou eliminação, conservação de registos, documentos de acompanhamento e rastreabilidade) de subprodutos animais no interior, à entrada e à saída da Comunidade.»

8.

O artigo 1.o, n.o 3, alínea d), deste regulamento prevê:

«Não são abrangidas pelo presente regulamento:

[…]

d)

As transferências sujeitas aos requisitos de aprovação do Regulamento […] n.o 1774/2002;

[…]»

9.

O artigo 2.o, n.o 35, do referido regulamento contém uma definição de «transferências ilegais», que incluem, nomeadamente, transferências efetuadas sem terem sido notificadas a todas as autoridades competentes envolvidas ou sem a sua autorização.

10.

Nos termos do artigo 12.o, n.o 1, alínea c), do mesmo regulamento:

«1.   Ao efetuar uma notificação relativa a uma transferência prevista de resíduos destinados a valorização, as autoridades competentes de destino e de expedição podem […] apresentar objeções fundamentadas baseadas numa ou em várias das razões a seguir indicadas e de acordo com o Tratado:

[…]

c)

Respeitando a necessidade de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, a transferência ou valorização prevista não seja consentânea com a legislação do país de expedição em matéria de valorização, incluindo no caso de a transferência prevista se destinar à valorização numa instalação com normas de tratamento menos rigorosas para os resíduos específicos do que as estabelecidas no país de expedição;

[…]»

2. Regulamentação relativa aos subprodutos animais

a) Regulamento n.o 1774/2002

11.

O artigo 2.o do Regulamento n.o 1774/2002, com a epígrafe «Definições», dispunha:

«1.   Para efeitos do presente regulamento, são aplicáveis as definições seguintes:

a)

Subprodutos animais: cadáveres inteiros ou partes de animais ou produtos de origem animal contemplados nos artigos 4.o, 5.o e 6.o, não destinados ao consumo humano, incluindo óvulos, embriões e sémen;

[…]

d)

Matérias da categoria 3: subprodutos animais contemplados no artigo 6.o

12.

Em conformidade com o artigo 6.o deste regulamento, com a epígrafe «Matérias da categoria 3», «[a]s matérias da categoria 3 incluem os subprodutos animais a seguir descritos ou quaisquer matérias que contenham esses subprodutos». A expressão «ou quaisquer matérias que contenham esses subprodutos» também era utilizada para a definição das matérias da categoria 1 e da categoria 2, constantes dos artigos 4.o e 5.o deste mesmo regulamento.

b) Regulamento n.o 1069/2009

13.

O considerando 29 do Regulamento n.o 1069/2009 enuncia:

«Os subprodutos animais e produtos derivados deverão ser classificados em três categorias que refletem o grau de risco que constituem, com base em avaliações do risco, para a saúde pública e animal. […]»

14.

O artigo 1.o deste regulamento prevê:

«O presente regulamento estabelece regras de saúde pública e de saúde animal para os subprodutos animais e produtos derivados, a fim de prevenir e minimizar os riscos para a saúde pública e animal decorrentes desses produtos e, em particular, proteger a segurança da cadeia alimentar humana e animal.»

15.

O artigo 3.o do referido regulamento prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1.

“Subprodutos animais”, corpos inteiros ou partes de animais mortos, produtos de origem animal e outros produtos que provenham de animais que não se destinam ao consumo humano, incluindo oócitos, embriões e sémen;

2.

“Produtos derivados”, produtos obtidos a partir de um ou mais tratamentos, transformações ou fases de processamento de subprodutos animais;

[…]»

16.

Os artigos 8.o, 9.o e 10.o do Regulamento n.o 1069/2009 definem, respetivamente, as matérias de categoria 1, 2 e 3.

17.

O artigo 41.o deste regulamento, com a epígrafe «Importação e trânsito», prevê, no seu n.o 2:

«Em derrogação ao disposto no n.o 1, a importação e o trânsito:

[…]

b)

De subprodutos animais ou produtos derivados misturados ou contaminados com qualquer resíduo definido como perigoso na Decisão 2000/532/CE [ ( 7 )] só podem efetuar‑se sob condição do cumprimento dos requisitos do Regulamento […] n.o 1013/2006.

[…]»

18.

O artigo 43.o do referido regulamento, com a epígrafe «Exportação», dispõe, no seu n.o 5:

«Em derrogação ao disposto nos n.os 3 e 4, a exportação:

[…]

b)

De subprodutos animais ou produtos derivados misturados ou contaminados com qualquer resíduo definido como perigoso na Decisão [2000/532] só pode efetuar‑se sob condição do cumprimento dos requisitos do Regulamento […] n.o 1013/2006.»

19.

Nos termos do artigo 48.o do mesmo regulamento, com a epígrafe «Controlos para a expedição para outros Estados‑Membros»:

«1.   Sempre que um operador pretender expedir matérias de categoria 1, de categoria 2 e farinha de carne e ossos ou gordura animal derivadas de matérias de categoria 1 ou categoria 2 para outro Estado‑Membro, informa a autoridade competente do Estado‑Membro de origem e a autoridade competente do Estado‑Membro de destino.

A autoridade competente do Estado‑Membro de destino decide a pedido do operador, dentro de um prazo estipulado:

a)

Recusar a receção da remessa;

b)

Aceitar incondicionalmente a remessa; ou

c)

Aceitar a remessa nas seguintes condições:

(i)

se os produtos derivados não tiverem sido submetidos a esterilização sob pressão, devem ser submetidos a esse tratamento, ou

(ii)

os subprodutos animais ou os produtos derivados devem cumprir quaisquer condições para a expedição da remessa que sejam justificadas para a proteção da saúde pública e animal, a fim de assegurarem que os subprodutos animais e os produtos derivados são manipulados em conformidade com o presente regulamento.

2.   Os modelos normalizados para pedidos de operadores referidos no n.o 1 podem ser aprovados pelo procedimento de regulamentação a que se refere o n.o 3 do artigo 52.o

3.   A autoridade competente do Estado‑Membro de origem informa a autoridade competente do Estado‑Membro de destino, através do sistema TRACES, em conformidade com a Decisão 2004/292/CE [ ( 8 )], da expedição de cada remessa enviada a outro Estado‑Membro de destino de:

a)

Subprodutos animais ou produtos derivados mencionados no n.o 1;

b)

Proteínas animais transformadas derivadas de matérias de categoria 3. […]

[…]

6.   Em derrogação dos n.os 1 a 5, os subprodutos animais ou produtos derivados neles referidos que tenham sido misturados ou contaminados com qualquer resíduo definido como perigoso na Decisão [2000/532] só podem ser enviados a outros Estados‑Membros se cumprirem os requisitos do Regulamento […] n.o 1013/2006.

[…]»

20.

O artigo 54.o do Regulamento n.o 1069/2009 tem a seguinte redação:

«O Regulamento […] n.o 1774/2002 é revogado com efeitos a partir de 4 de março de 2011.

As remissões para o Regulamento […] n.o 1774/2002 devem entender‑se como sendo feitas para o presente regulamento […]»

B.   Direito neerlandês

21.

O artigo 10.60, n.o 2, da Wet milieubeheer (Lei de Gestão Ambiental) dispõe:

«É proibido praticar atos como os referidos no artigo 2.o, n.o 35, do [Regulamento n.o 1013/2006].»

22.

O artigo 1.1, n.o 6, da Lei de Gestão Ambiental prevê:

«[…] Não são, em todo o caso, considerados resíduos as matérias, misturas ou objetos que sejam subprodutos na aceção do artigo 5.o da [Diretiva 2008/98], quando esses subprodutos cumpram as condições fixadas no mencionado artigo e os critérios indicados para o efeito numa medida de execução adotada nos termos do referido artigo da [Diretiva 2008/98] ou num despacho adotado pelo ministro.»

III. Litígios no processo principal, questões prejudiciais e tramitação no Tribunal de Justiça

23.

No âmbito de três processos penais, o Openbaar Ministerie (Ministério Público, Países Baixos) acusa a sociedade P. F. Kamstra Recycling BV, bem como XN e YO, duas pessoas singulares que trabalham para essa sociedade (a seguir, em conjunto, «Kamstra Recycling»), de, entre 10 de junho de 2011 e 19 de junho de 2012, terem transferido dos Países Baixos para a Alemanha, sem notificação prévia às autoridades competentes ou sem a sua autorização, em conformidade com o Regulamento n.o 1013/2006, uma mistura de salmoura e de tecidos animais, uma mistura de resíduos de gordura e de salmoura, uma mistura de lamas de depuração e de um outro resíduo (desconhecido), uma mistura de lamas de depuração e de um resíduo (produtos lácteos) e uma mistura de lamas de tratamento de águas residuais e de um concentrado proteico.

24.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que, pelo menos numa ou em duas das misturas em causa, estavam parcialmente em causa subprodutos animais e, em parte, de outras matérias, e que, neste caso, os subprodutos animais diziam respeito a matérias de categoria 3, na aceção do artigo 10.o do Regulamento n.o 1069/2009. As misturas destinavam‑se a ser utilizadas numa unidade de produção de biogás na Alemanha. As transferências em causa no processo principal não foram objeto de notificação às autoridades competentes nem de uma autorização da sua parte.

25.

Esse órgão jurisdicional salienta que a questão que se coloca nos presentes processos é a de saber se as transferências das misturas referidas nas acusações se enquadram no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 ou no do Regulamento n.o 1069/2009.

26.

O Ministério Público considera que o Regulamento n.o 1013/2006 é aplicável, devendo as misturas visadas nas acusações ser sempre qualificadas como resíduos. Na sua opinião, a questão de saber se se trata de subprodutos animais deve ser apreciada com base nos critérios mencionados no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98, bem como com base na definição de «subprodutos animais» que consta do artigo 3.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1069/2009.

27.

Em contrapartida, os arguidos consideram que é o Regulamento n.o 1069/2009 que deve ser aplicado no caso em apreço e não o Regulamento n.o 1013/2006 porque as misturas mencionadas nas acusações são subprodutos animais. Com efeito, quando se trata de um subproduto animal, o Regulamento n.o 1069/2009 prevalece sobre o Regulamento n.o 1013/2006. A este respeito, os arguidos baseiam a afirmação de que as misturas visadas são subprodutos animais na definição de «subprodutos animais» que figura no antigo regulamento relativo aos subprodutos animais, a saber, o Regulamento n.o 1774/2002. Segundo este último regulamento, o conceito de «subprodutos animais» abrange igualmente «quaisquer matérias/quaisquer misturas que contenham subprodutos animais».

28.

Os arguidos reconhecem que, efetivamente, o Regulamento n.o 1069/2009 só menciona que matérias que incluem subprodutos animais devem ser qualificadas de subprodutos animais. Alegam, no entanto, que este último regulamento não pretendeu introduzir uma alteração à definição de «subprodutos animais» constante do Regulamento n.o 1774/2002. Em apoio desta posição, os arguidos referiram o relatório pericial de 10 de março de 2016, que foi pedido, em primeira instância, pelo rechtbank Gelderland (Tribunal de Gueldre, Países Baixos). Assim, as misturas de subprodutos animais, com exclusão das misturas de subprodutos animais que contêm resíduos perigosos, estão também abrangidas pela definição de «subprodutos animais», contida no Regulamento n.o 1069/2009, sem que importe a proporção que os subprodutos animais representam na mistura em relação às outras matérias.

29.

Tendo seguido o parecer do relatório pericial, o rechtbank Gelderland (Tribunal de Gueldre) absolveu os arguidos dos factos que lhes eram imputados. O Ministério Público interpôs então recurso dessas sentenças absolutórias para o órgão jurisdicional de reenvio.

30.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, antes de mais, quanto à questão de saber como é que o conceito de «subprodutos», constante do artigo 5.o da Diretiva 2008/98, se articula com o conceito de «subprodutos animais», constante do Regulamento n.o 1069/2009. Mais especificamente, questiona‑se sobre se uma matéria, que não pode ser qualificada de subproduto, na aceção desta diretiva, pode, ainda assim, ser considerada um «subproduto animal», na aceção deste regulamento e, portanto, ser excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 por força do seu artigo 1.o, n.o 3.

31.

Depois, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, há que interpretar o artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006 a fim de determinar a forma como deve ser entendida a exclusão do âmbito de aplicação deste regulamento relativo às «transferências sujeitas aos requisitos de aprovação do Regulamento n.o 1069/2009». A este respeito, segundo esse órgão jurisdicional, coloca‑se a questão de saber se esta exclusão visa o transporte entre dois Estados‑Membros de subprodutos animais independentemente da categoria a que essas matérias pertencem, ou se visa unicamente o transporte de matérias referidas no artigo 48.o do Regulamento n.o 1069/2009, a saber, matérias de categoria 1, matérias de categoria 2, determinados produtos derivados e proteínas animais transformadas derivadas de matérias de categoria 3.

32.

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio considera que se coloca a questão de saber se o artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006 deve ser interpretado no sentido de que também são visadas as transferências de misturas de subprodutos animais e de outras matérias e, em caso afirmativo, se a proporção que os subprodutos animais representam na mistura em relação às outras matérias tem importância.

33.

Segundo esse órgão jurisdicional, importa, a este respeito, determinar se a definição de «subprodutos animais» constante do Regulamento n.o 1069/2009 pretendeu introduzir uma alteração substancial relativamente à que figura no Regulamento n.o 1774/2002, no sentido de que uma quantidade de matérias misturada com uma quantidade de subproduto animal, qualquer que seja a relação de proporção entre as duas quantidades, já não pode ser qualificada de «subproduto animal», pelo que a transferência dessa mistura está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1013/2006.

34.

Nestas condições, o Gerechtshof Arnhem‑Leeuwarden (Tribunal de Recurso de Arnhem‑Leeuwarden) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Uma substância que não é um subproduto na aceção da Diretiva 2008/98 também não é, por definição, um subproduto animal na aceção do Regulamento n.o 1069/2009 e não está, por conseguinte, excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 por força do artigo 1.o, n.o 3, deste regulamento? Ou não se pode excluir que uma substância esteja abrangida pela definição de subprodutos animais na aceção do Regulamento n.o 1069/2009 quando não cumpre os requisitos previstos no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98/CE e não é, por isso, necessariamente abrangida pelo Regulamento n.o 1013/2006?

2.

Como deverá entender‑se a transferência sujeita aos requisitos de aprovação do Regulamento n.o 1774/2002 (atual Regulamento n.o 1069/2009), na aceção do artigo 1.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1013/2006? Deverá ser entendida como o transporte (entre dois [entre dois Estados‑Membros]) de subprodutos animais, independentemente da categoria dessa matéria, ou como o transporte de material referido no artigo 48.o do Regulamento n.o 1069/2009 (anterior artigo 8.o do Regulamento 1774/2002), que está limitado aos subprodutos animais ou produtos derivados na aceção da referida disposição, ou seja, às matérias das categorias 1 e 2 e produtos delas derivados, incluindo proteínas animais transformadas derivadas de matérias de categoria 3?

3.

No caso de se entender a transferência sujeita aos requisitos de aprovação do Regulamento n.o 1774/2002 (atual Regulamento n.o 1069/2009) na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006 como o transporte (entre [dois Estados‑Membros]) de subprodutos animais, independentemente da categoria dessa matéria, deve o artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006 ser interpretado no sentido de abranger também as transferências de misturas de subprodutos animais com outras substâncias? Em caso de resposta afirmativa, é relevante para esse efeito a proporção da mistura entre os subprodutos animais e as outras substâncias? Ou será que um subproduto animal perde a natureza de subproduto animal na aceção do Regulamento n.o 1069/2009 e se transforma num resíduo na aceção do Regulamento n.o 1013/2006 como consequência da sua mistura com outra substância?»

35.

O despacho de reenvio, datado de 19 de dezembro de 2018, deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 15 de janeiro de 2019. Foram apresentadas observações escritas pela Kamstra Recycling, pelo Ministério Público, pelos Governos francês, neerlandês e austríaco e pela Comissão Europeia. As mesmas partes e interessados, com exceção do Ministério Público e do Governo austríaco, estiveram representados na audiência de alegações realizada em 4 de dezembro de 2019.

IV. Análise

36.

Examinarei sucessivamente cada uma das três questões, sublinhando desde já que a segunda questão retoma, no essencial, a questão a que o Tribunal de Justiça respondeu no Acórdão ReFood, resposta que, no entanto, o órgão jurisdicional de reenvio não tinha, uma vez que o acórdão do Tribunal de Justiça só foi proferido posteriormente ao envio do seu pedido de decisão prejudicial.

A.   Quanto à primeira questão

37.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a definição de «subprodutos animais» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1069/2009 deve ser lida em conjugação com a definição de «subproduto» que figura no artigo 5.o da Diretiva 2008/98, pelo que o conceito de «subprodutos animais» abrange apenas uma matéria que constitui também um «subproduto» na aceção desta diretiva.

38.

Uma análise dos dois conceitos mostra que estes não estão relacionados.

39.

Em primeiro lugar, as suas definições não coincidem de forma alguma nem fazem remissão entre si. Um «subproduto», na aceção do artigo 5.o da Diretiva 2008/98, é uma substância ou um produto resultante de um processo de produção que preenche um determinado número de condições ( 9 ). Os «subprodutos animais» são definidos de forma autónoma no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1069/2009 como corpos inteiros ou partes de animais mortos, produtos de origem animal e outros produtos que provenham de animais que não se destinam ao consumo humano, incluindo oócitos, embriões e sémen.

40.

Em segundo lugar, o conceito de «subproduto» na aceção do artigo 5.o da Diretiva 2008/98 é definido por oposição ao conceito de «resíduo» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva. Com efeito, este artigo 5.o prevê expressamente que o «subproduto» não é um resíduo. Em contrapartida, os «subprodutos animais» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1069/2009 podem ser «resíduos» na aceção deste artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2008/98, como resulta dos artigos 12.o, 13.o e 14.o do Regulamento n.o 1069/2009. Por conseguinte, uma substância pode ser um «subproduto animal», que corresponde ao conceito de «resíduo», sem constituir um «subproduto» na aceção da Diretiva 2008/98.

41.

Em terceiro lugar, como alega a Comissão, só podem ser considerados um «subproduto», na aceção do artigo 5.o da Diretiva 2008/98, uma substância ou um objeto que será utilizado posteriormente, sem qualquer outro processamento que não seja o da prática industrial normal. Isto exclui que o «subproduto» seja objeto de processamento, nomeadamente através de esterilização, ao passo que esse processamento está especificamente previsto no caso de «subprodutos animais» ( 10 ).

42.

Em quarto lugar, a Diretiva 2008/98 refere expressamente ( 11 ) que não é aplicável aos subprodutos animais abrangidos pelo Regulamento n.o 1069/2009 ( 12 ), com exceção dos destinados à incineração, à deposição em aterros ou a utilização numa unidade de biogás ou de compostagem. Nestes três casos, a Diretiva 2008/98 aplica‑se aos «subprodutos animais», sem que seja feita referência ao conceito de «subproduto» na aceção do artigo 5.o desta diretiva.

43.

Daqui resulta que uma matéria que não é um «subproduto» na aceção da Diretiva 2008/98 pode, não obstante, ser um «subproduto animal» na aceção do Regulamento n.o 1069/2009.

44.

Sublinho que esta interpretação está em conformidade com o objetivo do Regulamento n.o 1069/2009 que visa instituir um quadro completo relativo ao transporte de subprodutos animais ( 13 ).

45.

Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão que a definição de «subprodutos animais» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1069/2009 é independente da definição de «subproduto» que figura no artigo 5.o da Diretiva 2008/98, pelo que uma matéria pode ser um «subproduto animal» sem constituir um «subproduto» na aceção desta diretiva.

B.   Quanto à segunda questão

46.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, ao Tribunal de Justiça como deve ser interpretado o artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006. Desta forma, esse órgão jurisdicional pretende saber se todas as transferências de subprodutos animais, qualquer que seja a categoria a que pertencem, estão excluídas do Regulamento n.o 1013/2006 ou se apenas algumas dessas transferências estão excluídas deste regulamento. Esta questão foi precisamente objeto do pedido de decisão prejudicial no processo ReFood, no qual apresentei conclusões ( 14 ) e que deu origem ao acórdão com o mesmo nome. Como referi no n.o 36 das presentes conclusões, esse acórdão foi proferido posteriormente ao pedido de decisão prejudicial submetido ao Tribunal de Justiça no presente processo.

47.

Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que recorde o que declarou no n.o 62 do Acórdão ReFood, a saber, que o artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006 deve ser interpretado no sentido de que as transferências de subprodutos animais abrangidas pelo Regulamento n.o 1069/2009 estão excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1013/2006, exceto nas hipóteses em que o Regulamento n.o 1069/2009 preveja expressamente a aplicação do Regulamento n.o 1013/2006.

48.

As hipóteses em questão figuram no artigo 41.o, n.o 2, alínea b), no artigo 43.o, n.o 5, alínea b), e no artigo 48.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1069/2009. Dizem todas respeito a misturas de subprodutos animais com produtos perigosos.

C.   Quanto à terceira questão

49.

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber como deve ser tratado o transporte de misturas, como as que estão em causa no processo principal, de subprodutos animais ( 15 ) com outras matérias, neste caso de resíduos não perigosos. Pergunta, no essencial, se o Regulamento n.o 1069/2009, analisado à luz do artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma mistura de subprodutos animais com outras matérias que constituem resíduos não perigosos, independentemente da proporção de subprodutos animais nessa mistura.

50.

A resposta suscita dificuldades, como atestam as observações divergentes que foram apresentadas ao Tribunal de Justiça, tanto na fase escrita como na fase oral do processo.

51.

Estas dificuldades prendem‑se com o facto de o Regulamento n.o 1069/2009 não tratar expressamente da questão das misturas de subprodutos animais e dos resíduos não perigosos, de a definição de subprodutos animais neste regulamento suscitar dúvidas quanto à aplicação do regulamento a essas misturas e de não ser clara a articulação com o Regulamento n.o 1013/2006 no que respeita aos resíduos não perigosos.

52.

A questão coloca‑se no seguinte contexto. Uma empresa efetuou o transporte, a partir dos Países Baixos, nomeadamente de lamas de depuração ( 16 ), que constituem, no caso em apreço, um resíduo não perigoso, que foram misturadas com um subproduto animal de categoria 3, com vista ao seu processamento numa unidade de biogás na Alemanha. Consoante essa mistura seja considerada um subproduto animal, um resíduo, ou ambos, o seu transporte rege‑se pelo Regulamento n.o 1069/2009 ou pelo Regulamento n.o 1013/2006, ou ainda por estes dois regulamentos.

53.

As questões práticas são importantes. Resulta da decisão de reenvio e das observações escritas do Ministério Público que as lamas em questão, consideradas por si só e, por conseguinte, não associadas aos subprodutos animais, são consideradas um «resíduo» e a sua transferência está sujeita ao procedimento de notificação e de autorização prévia previsto pelo Regulamento n.o 1013/2006. Se, após terem sido misturadas com um subproduto animal de categoria 3, forem consideradas um subproduto animal desta categoria e ficarem sujeitas apenas ao Regulamento n.o 1069/2009, o seu transporte só tem que ser acompanhado por um documento comercial que detalhe a natureza das matérias em causa e, se for caso disso, um certificado sanitário ( 17 ) e não será necessário um processo de notificação e de autorização. Por conseguinte, o processo é significativamente mais complicado se for aplicável o Regulamento n.o 1013/2006 ( 18 ).

54.

Para responder à questão submetida, há que interpretar o Regulamento n.o 1069/2009 à luz do Acórdão ReFood, tendo em conta a sua redação, a sua finalidade e a sua economia.

1. Ensinamentos do Acórdão ReFood

55.

O processo na base deste acórdão tinha por objeto o transporte, a partir de um Estado‑Membro, de um subproduto animal de categoria 3, a saber, restos de cozinha e de mesa, abrangidos pelo artigo 10.o, alínea p), do Regulamento n.o 1069/2009, destinados a serem tratados numa unidade de biogás situada noutro Estado‑Membro. O órgão jurisdicional de reenvio pretendia saber se essa transferência era regida pelo Regulamento n.o 1013/2006 e, por conseguinte, tendo em conta a natureza dos resíduos em causa, sujeito ao processo de notificação e de autorização prévia ou pelo Regulamento n.o 1069/2009 e a um processo mais simples. Considerando que a resposta dependia da interpretação do artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006, o órgão jurisdicional de reenvio questionou o Tribunal de Justiça a este respeito.

56.

Como foi recordado no n.o 47 das presentes conclusões, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006 exclui do âmbito de aplicação deste regulamento as transferências de subprodutos animais abrangidas pelo Regulamento n.o 1069/2009, exceto nos casos em que este último regulamento preveja expressamente a aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 ( 19 ). Concluiu que era esse o caso das misturas de subprodutos animais com resíduos perigosos, que são expressamente referidos no Regulamento n.o 1069/2009 como abrangidas pelo Regulamento n.o 1013/2006 ( 20 ). Sublinhou, em contrapartida, que o transporte de um subproduto animal de categoria 3 não consta entre as hipóteses expressamente mencionadas no Regulamento n.o 1069/2009 e, portanto, escapa à aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 ( 21 ).

57.

Deve deduzir‑se deste acórdão que, uma vez que as misturas de subprodutos animais e de resíduos não perigosos não são expressamente referidas nestas hipóteses, são abrangidas, não pelo Regulamento n.o 1013/2006, mas pelo Regulamento n.o 1069/2009?

58.

É o ponto de vista da Kamstra Recycling, do Governo neerlandês e da Comissão. Os dois primeiros consideram que, tratando‑se de um subproduto animal de categoria 3 misturado com um resíduo não perigoso, a mistura está abrangida por essa mesma categoria. A Comissão considera que o transporte dessa mistura deve ser tratado como integrando a categoria 2. O Governo francês considera, por seu lado, que a transferência dessas misturas está sujeita, em relação aos subprodutos animais que as mesmas contêm, ao Regulamento n.o 1069/2009 e, em relação às outras matérias que constituem resíduos não perigosos que as compõem, ao Regulamento n.o 1013/2006 ( 22 ).

59.

Como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, há dúvidas devido à alteração ocorrida na definição de «subprodutos animais» e de «categoria» de subprodutos animais, na sequência da revogação e da substituição do Regulamento n.o 1774/2002 pelo Regulamento n.o 1069/2009. Claramente, este último já não abrange essas misturas nas suas definições ( 23 ).

60.

Considero que o Acórdão ReFood, no qual o Tribunal de Justiça analisou em detalhe o Regulamento n.o 1069/2009, à luz do Regulamento n.o 1013/2006 e da Diretiva 2008/98, fornece os instrumentos para responder afirmativamente à questão suscitada no n.o 57 das presentes conclusões.

61.

Todavia, não tendo o Tribunal de Justiça tido oportunidade, no âmbito desse acórdão, de abordar o problema das misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos, importa examiná‑lo começando por expor as dúvidas suscitadas pela redação do Regulamento n.o 1069/2009.

2. Dúvidas suscitadas pela definição de «subprodutos animais» e de «categorias»

62.

Os subprodutos animais são definidos no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1069/2009 como corpos inteiros ou partes de animais mortos, produtos de origem animal e outros produtos que provenham de animais que não se destinam ao consumo humano, incluindo oócitos, embriões e sémen.

63.

O conceito de «subprodutos animais» constante do Regulamento n.o 1774/2002, embora próximo desta definição, apresentava uma diferença na medida em que remetia para os artigos 4.o, 5.o e 6.o desse regulamento que definiam três categorias de subprodutos animais ( 24 ). Ora, estas definições incluíam, para cada categoria, não apenas uma lista de subprodutos animais especificamente designados, mas também «quaisquer matérias que contenham esses subprodutos» ( 25 ).

64.

Assim, na vigência do Regulamento n.o 1774/2002, era possível, o que aliás não é contestado, que resíduos não perigosos, como lamas de depuração, com os quais eram misturados subprodutos animais, constituíssem subprodutos animais na medida em que faziam parte das «matéria[s] que cont[êm] esses subprodutos».

65.

Os artigos 8.o, 9.o e 10.o do Regulamento n.o 1069/2009, que reproduzem, reformulando‑as, estas três categorias de matérias contêm também listas semelhantes de subprodutos animais especificamente designados, mas já não incluem a expressão «quaisquer matérias que contenham esses subprodutos».

66.

Na sequência da alteração introduzida na definição de «categorias» de subprodutos animais, coloca‑se a questão de saber se essas misturas continuam a constituir subprodutos animais ou se o legislador quis excluir do Regulamento n.o 1069/2009 as misturas desses subprodutos com outras matérias.

67.

Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, uma interpretação literal do regulamento baseada apenas nestas definições levaria a excluir do âmbito de aplicação deste último as misturas de subprodutos animais com outras matérias, mas a tomada em consideração de outras disposições do regulamento, nomeadamente as que visam as misturas de subprodutos animais com resíduos perigosos, e a sua génese, podem opor‑se a tal conclusão.

68.

Por conseguinte, importa fazer referência a essas outras disposições, que foram examinadas no Acórdão ReFood, bem como à génese do Regulamento n.o 1069/2009, na secção seguinte.

3. Disposições relativas às misturas de subprodutos animais e de resíduos perigosos

69.

As misturas de subprodutos animais com resíduos perigosos são visadas no artigo 41.o, n.o 2, alínea b), no artigo 43.o, n.o 5, alínea b), e no artigo 48.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1069/2009. Lidas à luz dos trabalhos preparatórios, estas disposições permitem deduzir a posição do legislador no que respeita ao transporte de misturas desses subprodutos com resíduos não perigosos.

70.

Como o Tribunal de Justiça declarou nos n.os 53 e 54 do Acórdão ReFood, estas disposições estabelecem uma derrogação à aplicação do Regulamento n.o 1069/2009 ao preverem que os transportes de misturas destes subprodutos com resíduos perigosos estão sujeitos ao Regulamento n.o 1013/2006.

71.

O Tribunal de Justiça deduziu daí, a contrario, no n.o 55 desse acórdão que, fora as hipóteses expressamente previstas nestas disposições, a transferência de subprodutos animais escapa à aplicação do Regulamento n.o 1013/2006.

72.

Há que considerar, à luz dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 1069/2009, que esta conclusão é aplicável às transferências de misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos, uma vez que essas misturas não são expressamente referidas nessas mesmas disposições.

73.

Com efeito, como resulta desses trabalhos preparatórios ( 26 ), foi apresentada ao Parlamento Europeu uma proposta de alteração do alcance das derrogações previstas nos artigos 41.o, 43.o e 48.o do Regulamento n.o 1069/2009. As alterações propostas ( 27 ) pretendiam que as misturas de subprodutos animais com qualquer resíduo, perigoso ou não perigoso, apenas fossem importadas para a União ou exportadas para fora desta, transitassem por ela ou fossem expedidas entre Estados‑Membros em conformidade com o Regulamento n.o 1013/2006.

74.

Há que constatar que o Parlamento e, portanto, o legislador ( 28 ), ao rejeitar estas alterações, analisou a questão do regime aplicável à transferência de misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos e que excluiu deliberadamente que a sua transferência fosse sujeita ao Regulamento n.o 1013/2006.

75.

Acrescento que, ao fazê‑lo, o legislador não excluiu essas misturas do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1069/2009, mas unicamente do âmbito de aplicação da derrogação. Daqui resulta que este regulamento abrange as misturas tanto com resíduos perigosos como com resíduos não perigosos, mas que só a transferência dos primeiros está sujeita ao Regulamento n.o 1013/2006.

76.

Sublinho que não há nada nos trabalhos preparatórios que indique que, ao alterar as definições de «subprodutos animais» e de «categorias» de subprodutos animais, o legislador pretendeu alterar o alcance do Regulamento n.o 1069/2009 no que se refere a estas misturas com resíduos não perigosos. A proposta inicial da Comissão na qual o Parlamento e o Conselho trabalharam utilizava definições semelhantes às que constavam do Regulamento n.o 1774/2002 e as «categorias» incluíam assim a expressão «quaisquer matérias que contenham esses subprodutos». O relatório de 2 de março de 2009, analisado pelo Parlamento ( 29 ), continha ainda, no essencial, essas mesmas definições. Estas só foram alteradas na posição do Parlamento adotada em primeira leitura, em abril seguinte, posição a que corresponde o Regulamento n.o 1069/2009 na sua versão final, sem que tenha sido dada qualquer explicação para esta alteração de definições.

77.

Verifica‑se, assim, que as alterações ocorridas nas definições de subprodutos animais e de categorias de subprodutos animais não tiveram efeitos sobre a questão da aplicação do Regulamento n.o 1069/2009 às misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos.

78.

A finalidade do Regulamento n.o 1069/2009 e a economia das suas disposições corroboram também esta análise.

79.

Em relação aos objetivos do Regulamento n.o 1069/2009, recordo, em primeiro lugar, que resulta dos considerandos 5 e 6 do Regulamento n.o 1069/2009 que o legislador se esforçou por estabelecer um quadro coerente e completo de regras de saúde aplicáveis aos subprodutos animais nomeadamente ao seu transporte, que sejam proporcionadas aos riscos, para a saúde pública incorridos e que tenham em conta os riscos ambientais ( 30 ). O Regulamento n.o 1069/2009 constitui assim uma regulamentação específica, ou seja, uma lex specialis em relação ao Regulamento n.o 1013/2006, que engloba todas as manipulações de subprodutos animais.

80.

Em segundo lugar, como resulta do considerando 11 do Regulamento n.o 1013/2006 e do artigo 2.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2008/98, o legislador procurou evitar sobreposições entre o Regulamento n.o 1069/2009 e o Regulamento n.o 1013/2006 e, por isso mesmo, as duplicações inúteis e subtrair, em princípio, o transporte de subprodutos animais do âmbito de aplicação da regulamentação em matéria de resíduos ( 31 ).

81.

Retomando estes elementos‑chave da sua análise, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 56 do Acórdão ReFood, que o legislador pretendeu, através do Regulamento n.o 1069/2009 instituir um «quadro completo de regras aplicáveis ao transporte dos subprodutos animais e dele subtrair, salvo derrogação expressa, a transferência dos subprodutos animais, à qual se aplica o Regulamento n.o 1013/2006». Por outras palavras, a intenção do legislador era que o Regulamento n.o 1069/2009 abrangesse todas as transferências de subprodutos animais, incluindo as misturas com resíduos, submetendo ao regime especial do Regulamento n.o 1013/2006 as transferências de misturas de subprodutos animais com resíduos perigosos.

82.

A economia do Regulamento n.o 1069/2009 vai também neste sentido. Ao prever regras para qualquer transporte de subprodutos animais da categoria 3, a menos perigosa, até às misturas com resíduos perigosos, passando pelos subprodutos animais de categoria 2 e de categoria 1, o legislador pretendeu abranger todas as situações relativas ao transporte de subprodutos animais, incluindo, por conseguinte, as misturas com resíduos não perigosos.

83.

A tomada em consideração destes últimos pelo Regulamento n.o 1069/2009 é ainda corroborada pelo Regulamento de aplicação (UE) n.o 142/2011 ( 32 ). Com efeito, o Regulamento n.o 142/2011, no seu anexo VIII, capítulo III, contém um modelo do documento comercial a preencher pelos transportadores, que menciona expressamente entre as mercadorias às quais se aplica, as misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos ( 33 ).

84.

Assim, apesar das incertezas criadas pela alteração nas definições de subprodutos animais e de categorias de subprodutos animais, resulta do conjunto das regras previstas pelo Regulamento n.o 1069/2009 que este regulamento diz respeito, como o Regulamento n.o 1774/2002, antes dele, a todos os transportes de subprodutos animais não destinados ao consumo humano, incluindo as misturas destas matérias com resíduos não perigosos, e que essas misturas devem ser consideradas, como precedentemente, como subprodutos animais.

85.

Nesta fase da análise, há que esclarecer as consequências a tirar da aplicação do Regulamento n.o 1069/2009 às misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos.

4. Consequências da aplicação do Regulamento n.o 1069/2009

86.

Na minha opinião, resulta da aplicação do Regulamento n.o 1069/2009 que o transporte de misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos deve seguir as regras aplicáveis à categoria a que pertencem os subprodutos animais em causa. Assim, tratando‑se, como no caso em apreço no processo principal, de misturas de subprodutos animais de categoria 3 com resíduos não perigosos, aplicam‑se as regras do transporte desta categoria de subprodutos animais.

87.

Esta consequência decorre da própria redação do Regulamento n.o 1069/2009. Assim, este regulamento estabelece as regras aplicáveis a todos os subprodutos animais, independentemente da sua categoria ( 34 ), e as que se aplicam especificamente aos subprodutos animais em função das suas categorias ( 35 ).

88.

Por conseguinte, não partilho do ponto de vista do Governo francês, para quem o transporte dessas misturas está sujeito a uma aplicação paralela do Regulamento n.o 1069/2009 e do Regulamento n.o 1013/2006, nem o da Comissão, para quem esse transporte seria regulado pelas regras aplicáveis aos subprodutos animais de categoria 2. Pelas razões que apresento a seguir, considero que as interpretações que propuseram têm o efeito de aumentar a sobrecarga que recai sobre os operadores económicos num sentido não previsto pelo Regulamento n.o 1069/2009.

a) Quanto à aplicação paralela dos dois regulamentos

89.

O Governo francês referiu que, na sua opinião, as misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos estão sujeitas a uma aplicação paralela dos dois regulamentos. Este governo afirmou que, se apenas fosse aplicável o Regulamento n.o 1069/2009, a França não estaria em condições de formular objeções à transferência para o seu território de lamas de depuração misturadas com subprodutos animais provenientes de outros Estados‑Membros, para efeitos de disseminação, como podia fazê‑lo com base no artigo 12.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1013/2006 ( 36 ). O referido Governo também referiu o risco de que uma mistura de lamas de depuração com resíduos de supermercado seja transportada para França para esses fins, sem que seja respeitada a legislação nacional que impõe regras estritas neste domínio. Na falta de notificação desse transporte em conformidade com o Regulamento n.o 1013/2006, as autoridades competentes de destino não estão ao corrente desse transporte e não o podem sujeitar a condições, ou mesmo proibir a sua expedição.

90.

Considero, todavia, que não é possível uma aplicação paralela destes dois regulamentos às misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos. Antes de mais, esvaziaria de sentido a derrogação relativa às misturas com resíduos perigosos, uma vez que, como acima exposto, resulta desta derrogação, interpretada à luz da sua génese, que só o transporte destas últimas está sujeito à aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 e que o transporte das misturas com resíduos não perigosos escapa à mesma. Em seguida, mesmo que o Governo francês exprima uma preocupação real, não pode justificar uma aplicação paralela dos dois regulamentos, uma vez que tal aplicação não encontra apoio nesses textos, estando o transporte em questão fora das hipóteses expressamente previstas pelo Regulamento n.o 1069/2009 para a aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 ( 37 ). Por último, uma aplicação dos dois regulamentos iria contra os objetivos prosseguidos pelo legislador de evitar sobreposições de legislações.

b) Quanto à classificação das misturas em causa em categoria 2

91.

A Comissão referiu que, na sua opinião, o transporte de misturas de subprodutos animais de categoria 3 com resíduos não perigosos enquadra‑se nas regras aplicáveis aos resíduos de categoria 2. Essas regras mais vinculativas referidas no artigo 48.o, n.os 1 a 5, do Regulamento n.o 1069/2009, no que se respeita às expedições na União, preveem nomeadamente a informação prévia das autoridades do Estado‑Membro de destino.

92.

Esta instituição alega que o artigo 9.o do Regulamento n.o 1069/2009, consagrado às matérias de categoria 2, inclui uma posição na alínea h) que reagrupa os subprodutos animais, diferentes dos das matérias de categoria 1 ou 3. Esta disposição constitui uma classificação residual que abrange todas as matérias que não figuram claramente nas categorias 1 ou 3 e pode englobar as misturas com resíduos não perigosos. Tal classificação segue a lógica do Regulamento n.o 1069/2009 segundo o qual, quando estão implicadas várias categorias, aplicam‑se as que preveem o regime mais restrito.

93.

É verdade que, tratando‑se de misturas de matérias que pertencem a categorias diferentes, a mistura deve ser tratada como integrando a categoria que impõe o regime mais restrito ( 38 ) e que esta abordagem parece corresponder à lógica aplicável, em geral, em matéria de resíduos ( 39 ).

94.

Todavia, sublinho que o legislador referiu que pretendia, ao adotar o Regulamento n.o 1069/2009, simplificar a sobrecarga administrativa que recai sobre os operadores económicos, mantendo ao mesmo tempo um elevado nível de proteção sanitária ( 40 ). Por conseguinte, na minha opinião, não há que aplicar um regime mais restrito fora das hipóteses previstas por este regulamento ( 41 ). Ora, parece‑me que o Tribunal de Justiça ultrapassaria precisamente os casos previstos pelo legislador se considerasse que o regime de categoria 2 devia ser aplicado ao transporte de misturas de subprodutos animais de categoria 3 com resíduos não perigosos.

95.

Em primeiro lugar, as regras relativas à aplicação do regime mais restritivo só estão previstas para as misturas de subprodutos animais de diferentes categorias ( 42 ), e não para misturas de subprodutos animais com outras matérias.

96.

Em segundo lugar, essa categoria residual que já constava do Regulamento n.o 1774/2002 ( 43 ), abrange, em conformidade com a sua redação, os subprodutos animais, com exceção das matérias de categoria 1 ou 3. Resulta do considerando 35 do Regulamento n.o 1069/2009 que há que aplicar essa categoria residual, como anteriormente, às matérias do tipo das enumeradas nas categorias 1, 2 e 3, deste regulamento, mas que não estão aí expressamente especificadas.

97.

Observo, assim, que, sob a égide do Regulamento n.o 1774/2002, matérias como as «peles» e os «pintos do dia» não eram especificamente mencionadas em nenhuma categoria. Por conseguinte, essas matérias enquadravam‑se provavelmente nessa categoria residual e deviam ser classificados, por defeito, em categoria 2 ( 44 ). O legislador manteve essa classificação residual, como anteriormente, por medida de precaução para que qualquer outro subproduto animal que não constasse de nenhuma das três categorias fosse classificado em categoria 2. Em contrapartida, essa categoria também não era, tal como sob a égide do Regulamento n.o 1774/2002, aplicável às misturas com resíduos não perigosos.

98.

Em terceiro lugar, reconhecendo que a classificação em categoria 2 das misturas em causa sobrecarregaria fortemente os operadores económicos se se aplicasse a toda a cadeia de operações ( 45 ), a Comissão indicou, na audiência no Tribunal de Justiça, que só o transporte dessas misturas deve estar abrangido pelas regras aplicáveis aos subprodutos animais de categoria 2. As outras operações, nomeadamente a valorização, continuam sujeitas às regras aplicáveis à categoria 3.

99.

Todavia, o Regulamento n.o 1069/2009 não prevê de forma alguma essa classificação diferenciada consoante as operações a que estão sujeitas as matérias em causa. Como resulta do considerando 29 e do artigo 7.o do Regulamento n.o 1069/2009, o único critério pertinente para a classificação dos subprodutos animais é o grau de risco e não a operação efetuada. A classificação de um subproduto animal por categoria é válida, portanto, para todas as operações a que o subproduto está sujeito, da sua recolha à sua utilização ou à sua eliminação. Daqui resulta que uma mistura de matérias abrangida pelo Regulamento n.o 1069/2009 que contenha resíduos não perigosos não pode ser classificada numa categoria mais restrita, neste caso a categoria 2, unicamente para efeitos do seu transporte.

100.

Por conseguinte, considero que, tratando‑se de uma mistura de subprodutos animais de categoria 3 com resíduos não perigosos, a mistura está abrangida por esta categoria e o transporte dessa mistura na União está sujeito às regras relativas aos subprodutos animais desta mesma categoria.

101.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ainda se essas misturas devem ser tratadas como subprodutos animais, independentemente da proporção de subprodutos animais nas mesmas.

102.

A proporção das matérias não é mencionada no Regulamento n.o 1069/2009 e não parece constituir um dado pertinente. Assim, uma pequena quantidade de subprodutos animais de categoria 3 misturada com resíduos não perigosos leva, em princípio, a classificar essa mistura como abrangida pelas matérias de categoria 3.

103.

Esta questão reflete, no entanto, uma preocupação subjacente, a saber, o risco de a aplicação do Regulamento n.o 1069/2009 às misturas em causa conduzir a desvios abusivos do Regulamento n.o 1013/2006. Foi, aliás, esta preocupação que levou o Governo francês e a Comissão a propor a aplicação de restrições adicionais. Por conseguinte, abordarei esta questão na secção seguinte.

5. Risco de desvio abusivo

104.

Foram apresentados ao Tribunal de Justiça vários exemplos de comportamentos considerados abusivos.

105.

Já referi o risco evidenciado pelo Governo francês de que lamas de depuração misturadas com subprodutos animais de categoria 3, sejam transportadas para efeitos de disseminação sem que as autoridades competentes do Estado‑Membro de destino sejam disso informadas e que sejam aplicadas em violação das regras nacionais.

106.

O Governo neerlandês mencionou, por seu lado, a eventualidade de serem carregados resíduos não perigosos em camiões que não tenham sido suficientemente limpos depois de terem transportado subprodutos animais e que foram considerados uma mistura regida pelo Regulamento n.o 1069/2009, em violação das disposições do Regulamento n.o 1013/2006.

107.

Por último, o Ministério Público mencionou a possibilidade de as empresas lançarem uma garrafa de leite em resíduos não perigosos para se eximirem às regras mais vinculativas do Regulamento n.o 1013/2006.

108.

O incumprimento claro das regras de um Estado‑Membro ou da União é suscetível de constituir uma infração passível de sanções.

109.

Mais delicada é a situação em que o operador económico respeita formalmente essas regras.

110.

Recordo que a existência de uma prática abusiva pressupõe a conjugação de um elemento subjetivo e de um elemento objetivo ( 46 ). O primeiro implica que a prática em causa tenha como finalidade essencial beneficiar de uma vantagem que resulta da regulamentação comunitária criando artificialmente as condições necessárias para a sua obtenção ( 47 ). O segundo designa um conjunto de circunstâncias objetivas das quais resulte que, apesar do respeito formal das condições previstas na legislação comunitária, o objetivo pretendido por essa legislação não foi alcançado ( 48 ).

111.

A adição de pequenas quantidades de subprodutos animais a resíduos não perigosos, como lamas de depuração, pode, em determinadas circunstâncias, constituir uma prática abusiva.

112.

É o caso da adição de uma garrafa de leite com o único objetivo de contornar a aplicação do Regulamento n.o 1013/2006 e de aplicar o processo mais simples do Regulamento n.o 1069/2009.

113.

Em contrapartida, se o subproduto animal for transportado em conformidade com as práticas da profissão e estas previrem, nomeadamente, que os subprodutos animais, como leite em pequena quantidade, possam ser adicionados a lamas de depuração para processamento numa unidade de biogás, não se pode considerar que esse transporte sob o regime do Regulamento n.o 1069/2009 constitua uma prática abusiva.

114.

O controlo do cumprimento das regras inscritas no Regulamento n.o 142/2011, nomeadamente em matéria de higiene, de rastreabilidade e de quantidade das matérias transportadas, deve permitir verificar se o transporte efetuado sob o regime do Regulamento n.o 1069/2009 não constitui uma prática abusiva.

115.

Mesmo assim, não está excluído que a aplicação do Regulamento n.o 1069/2009 a misturas de subprodutos animais de categoria 3, ou mesmo de categoria 1 ou 2, com resíduos não perigosos não permite assegurar de maneira adequada o respeito do ambiente.

116.

Com efeito, mesmo no caso de subprodutos animais de categorias 1 ou 2, embora o Regulamento n.o 1069/2009 tenha em conta o ambiente ( 49 ), se só for aplicável este regulamento ao transporte de misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos, podem subsistir dúvidas quanto à rastreabilidade destes últimos. Conforme o Governo francês sustentou na audiência no Tribunal de Justiça, isso explica‑se pelo facto de a notificação do transporte dessas misturas não revelar necessariamente de forma precisa outras matérias além dos subprodutos animais.

117.

Além disso, observo que o artigo 48.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1609/2009 permite sujeitar o transporte de subprodutos animais de categoria 1 ou 2 a condições destinadas a proteger a saúde pública e animal, mas que os riscos ligados ao ambiente não são mencionados.

118.

Compreendo assim as preocupações relacionadas com o ambiente evocadas no presente processo, mas considero que estas não autorizam o Tribunal de Justiça a interpretar o Regulamento n.o 1069/2009 de uma forma que aumente a sobrecarga que recai sobre os operadores económicos, como propõem o Governo francês e a Comissão, na falta de uma base legal para esse efeito. As suas propostas não podem constituir uma interpretação aceitável do Regulamento n.o 1069/2009. No caso de a realidade dos riscos evocados poder ser demonstrada, é ao legislador da União que compete alterar a regulamentação em vigor, nomeadamente o Regulamento n.o 1069/2009.

119.

No atual estado da regulamentação, proponho, por conseguinte, ao Tribunal de Justiça que responda à terceira questão que o Regulamento n.o 1069/2009, analisado à luz do artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma mistura de subprodutos animais com outras matérias que constituem resíduos não perigosos, independentemente da proporção de subprodutos animais.

120.

As regras aplicáveis ao transporte de subprodutos animais de uma dada categoria misturados com resíduos não perigosos são as que regem o transporte de subprodutos animais pertencentes a essa categoria.

V. Conclusão

121.

Atendendo às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Gerechtshof Arnhem‑Leeuwarden (Tribunal de Recurso de Arnhem‑Leeuwarden, Países Baixos) do seguinte modo:

1)

A definição de «subprodutos animais» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1069/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, que define regras sanitárias relativas a subprodutos animais e produtos derivados não destinados ao consumo humano e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1774/2002 (regulamento relativo aos subprodutos animais), é independente da definição de «subproduto» que figura no artigo 5.o da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas, pelo que uma matéria pode ser um subproduto animal sem constituir um subproduto na aceção desta diretiva.

2)

O artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento (CE) n.o 1013/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos, deve ser interpretado no sentido de que as transferências de subprodutos animais abrangidas pelo Regulamento n.o 1069/2009 estão excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1013/2006, exceto nas hipóteses em que o Regulamento n.o 1069/2009 preveja expressamente a aplicação do Regulamento n.o 1013/2006.

As hipóteses em questão figuram no artigo 41.o, n.o 2, alínea b), no artigo 43.o, n.o 5, alínea b), e no artigo 48.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1069/2009. Dizem todas respeito a misturas de subprodutos animais com produtos perigosos.

3)

O Regulamento n.o 1069/2009, examinado à luz do artigo 1.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento n.o 1013/2006, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma mistura de subprodutos animais com outras matérias que constituam resíduos não perigosos, independentemente da proporção de subprodutos animais.

As regras aplicáveis ao transporte de subprodutos animais de uma dada categoria misturadas com resíduos não perigosos são as que regem o transporte de subprodutos animais pertencentes a essa categoria.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Acórdão de 23 de maio de 2019, ReFood (C‑634/17, EU:C:2019:443, a seguir «Acórdão ReFood»).

( 3 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, que define regras sanitárias relativas a subprodutos animais e produtos derivados não destinados ao consumo humano e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1774/2002 (regulamento relativo aos subprodutos animais) (JO 2009, L 300, p. 1).

( 4 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos (JO 2006, L 190, p. 1).

( 5 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas (JO 2008, L 312, p. 3).

( 6 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de outubro de 2002, que estabelece regras sanitárias relativas aos subprodutos animais não destinados ao consumo humano (JO 2002, L 273, p. 1). Este regulamento foi revogado e substituído pelo Regulamento n.o 1069/2009.

( 7 ) Decisão da Comissão, de 3 de maio de 2000, que substitui a Decisão 94/3/CE, que estabelece uma lista de resíduos em conformidade com a alínea a) do artigo 1.o da Diretiva 75/442/CEE do Conselho relativa aos resíduos, e a Decisão 94/904/CE do Conselho, que estabelece uma lista de resíduos perigosos em conformidade com o n.o 4 do artigo 1.o da Diretiva 91/689/CEE do Conselho relativa aos resíduos perigosos (JO 2000, L 226, p. 3).

( 8 ) Decisão da Comissão, de 30 de março de 2004, relativa à aplicação do sistema TRACES e que altera a Decisão 92/486/CEE (JO 2004, L 94, p. 63).

( 9 ) V. n.o 6 das presentes conclusões.

( 10 ) V., nomeadamente, artigo 2.o, alínea g), iii), artigo 3.o, n.o 19, artigo 12.o, alínea a), ii), artigo 13.o, alínea d), artigo 14.o, alínea k), e artigo 24.o, alínea a), do Regulamento n.o 1069/2009.

( 11 ) V. artigo 2.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2008/98.

( 12 ) A Diretiva 2008/98 refere‑se ao Regulamento n.o 1774/2002, mas, em conformidade com o artigo 54.o do Regulamento n.o 1069/2009, as remissões para o Regulamento n.o 1774/2002 devem entender‑se como sendo feitas para o Regulamento n.o 1069/2009.

( 13 ) V. Acórdão ReFood, n.o 56; v. também, artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/98.

( 14 ) V. as minhas Conclusões no processo ReFood (C‑634/17, EU:C:2019:61).

( 15 ) Utilizo a seguir a expressão «subprodutos animais» para abranger tanto os «subprodutos animais» na aceção do artigo 3.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1069/2009 como os «produtos derivados» na aceção do artigo 3.o, ponto 2, deste regulamento.

( 16 ) As outras matérias transportadas com subprodutos animais são mencionadas no n.o 23 das presentes conclusões, mas as lamas de depuração são aquelas sobre as quais tanto o órgão jurisdicional de reenvio como as partes que apresentaram observações se concentraram. A este respeito, sublinharei que a salmoura é essencialmente água salgada e que não foram formuladas observações sobre as misturas com esta matéria. Por outro lado, as águas residuais estão a base das lamas de depuração.

( 17 ) V. artigo 21.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1069/2009.

( 18 ) V. Acórdão ReFood, n.o 39.

( 19 ) O sublinhado é meu. V. Acórdão ReFood, n.os 55, 56 e 62.

( 20 ) V. Acórdão ReFood, n.os 53 e 54.

( 21 ) V. Acórdão ReFood, n.o 55.

( 22 ) O Governo austríaco e o Ministério Público apenas apresentaram observações durante a fase escrita e, portanto, sem beneficiarem do Acórdão ReFood. O Governo austríaco considera que a transferência de misturas de subprodutos animais com resíduos não perigosos é abrangida pelo Regulamento n.o 1013/2006. O Ministério Público considera, à semelhança do Governo francês, mas contrariamente ao Governo neerlandês, que a transferência dessas misturas está sujeita à aplicação paralela do Regulamento n.o 1013/2006 e do Regulamento n.o 1069/2009.

( 23 ) V. n.os 12 e 15 das presentes conclusões.

( 24 ) V. n.o 11 das presentes conclusões.

( 25 ) O sublinhado é meu. V. n.o 12 das presentes conclusões.

( 26 ) Relatório do Parlamento Europeu sobre uma proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que define regras sanitárias relativas a subprodutos animais não destinados ao consumo humano («regulamento relativo aos subprodutos animais»), de 2 de março de 2009 (A6‑0087/2009).

( 27 ) V. alterações 111, 113 e 114.

( 28 ) O Parlamento rejeitou estas alterações em primeira e única leitura. O texto adotado pelo Parlamento após esta leitura corresponde ao ato legislativo final, o Regulamento n.o 1069/2009, adotado pelo Parlamento e pelo Conselho.

( 29 ) V. nota 26 das presentes conclusões.

( 30 ) V. Acórdão ReFood, n.o 49.

( 31 ) V. Acórdão ReFood, n.os 44, 46 e 47.

( 32 ) Regulamento da Comissão, de 25 de fevereiro de 2011, que aplica o Regulamento (CE) n.o 1069/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho que define regras sanitárias relativas a subprodutos animais e produtos derivados não destinados ao consumo humano e que aplica a Diretiva 97/78/CE do Conselho no que se refere a certas amostras e certos artigos isentos de controlos veterinários nas fronteiras ao abrigo da referida diretiva (JO 2011, L 54, p. 1), conforme alterado pela última vez pelo Regulamento de Execução (UE) 2019/1177 da Comissão, de 10 de julho de 2019 (JO 2019, L 185, p. 26) (a seguir «Regulamento n.o 142/2011»).

( 33 ) As notas relativas à casa sobre a natureza da mercadoria transportada remetem, com efeito, para uma lista de mercadorias entre as quais figuram essas misturas que devem ser indicadas do seguinte modo: «[natureza do subproduto animal ou do produto derivado] misturado com resíduos não perigosos [código EURAL]».

( 34 ) V., a título de exemplo, o artigo 21.o do Regulamento n.o 1069/2009 relativo à recolha, transporte e rastreabilidade.

( 35 ) V. a título de exemplo: artigos 12.o a 14.o do Regulamento n.o 1069/2009 relativos à eliminação e utilização de matérias, sendo o artigo 12.o consagrado às matérias de categoria 1, o artigo 13.o às da categoria 2 e o artigo 14.o às da categoria 3; o artigo 48.o deste regulamento aplicável à expedição na União das matérias de categoria 1 ou 2 ou determinados produtos derivados dessas matérias e misturas com resíduos perigosos ou proteínas animais transformadas derivadas de matérias de categoria 3.

( 36 ) O Governo francês explicou que a maior parte dos Estados‑Membros não autorizam este tipo de utilização das lamas de depuração misturadas com resíduos não perigosos e que a França o permite, mas sujeitando‑as a regras estritas. Esclareceu que as autoridades nacionais se reservam o direito, em conformidade com o artigo 12.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1013/2006, de recusar as transferências dessas lamas provenientes de Estados‑Membros que não prevejam esse tipo de utilizações dessas lamas.

( 37 ) V. Acórdão ReFood, n.o 55.

( 38 ) V. considerando 30 do Regulamento n.o 1069/2009.

( 39 ) V., neste sentido, artigo 28.o do Regulamento n.o 1013/2006 e Acórdão de 21 de junho de 2007, Omni Metal Service (C‑259/05, EU:C:2007:363, n.os 32 a 35).

( 40 ) V. proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que define regras sanitárias relativas a subprodutos animais não destinados ao consumo humano apresentada em 10 de junho de 2008 [COM(2008)345 final], ponto 5.4. da exposição dos fundamentos.

( 41 ) V., por exemplo, as regras especiais aplicáveis nomeadamente ao transporte de restos de cozinha e de mesa mencionados no artigo 21.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1069/2009 e a derrogação prevista no artigo 48.o, n.o 6, deste regulamento.

( 42 ) V. o artigo 8.o, alínea g), do Regulamento n.o 1069/2009, segundo o qual são classificadas na categoria 1, as misturas de matérias de categoria 1 com matérias de categoria 2 e/ou 3, bem como o artigo 9.o, alínea g), deste regulamento, segundo o qual são classificadas na categoria 2, as misturas de matérias de categoria 2 com matérias de categoria 3.

( 43 ) V. artigo 5.o, alínea g), do Regulamento n.o 1774/2002.

( 44 ) Esses produtos passaram a ser reclassificados em categoria 3, considerada melhor adaptada à sua perigosidade, respetivamente, no artigo 10.o, alínea b), iii), e no artigo 10.o, alínea k), iii), do Regulamento n.o 1069/2009.

( 45 ) O Governo francês referiu, na audiência no Tribunal de Justiça, que, ao passar a categoria 2, uma mistura destinada a ser transformada numa unidade de compostagem ou de biogás devia ser previamente esterilizada sob pressão, o que seria particularmente vinculativo e oneroso para os operadores económicos.

( 46 ) V. as minhas Conclusões no processo Argos Supply Trading (C‑4/15, EU:C:2016:223, n.o 110).

( 47 ) V., nomeadamente, Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C‑255/02, EU:C:2006:121, n.o 75).

( 48 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de dezembro de 2000, Emsland‑Stärke (C‑110/99, EU:C:2000:695, n.o 52), e de 11 de janeiro de 2007, Vonk Dairy Products (C‑279/05, EU:C:2007:18, n.o 33).

( 49 ) V. Acórdão ReFood, n.o 49.

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