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Documento 62018CJ0234

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 19 de março de 2020.
Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo contra BP e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Procedimento de perda de ativos obtidos ilegalmente na ausência de condenação penal — Diretiva 2014/42/UE — Âmbito de aplicação — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI.
Processo C-234/18.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2020:221

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

19 de março de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Procedimento de perda de ativos obtidos ilegalmente na ausência de condenação penal — Diretiva 2014/42/UE — Âmbito de aplicação — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI»

No processo C‑234/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), por Decisão de 23 de março de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de abril de 2018, no processo

Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo,

contra

BP,

AB,

PB,

«Тrast B» ООD,

«Agro In 2001» EOOD,

«ACounT Service 2009» EOOD,

«Invest Management» OOD,

«Estate» OOD,

«Bromak» OOD,

«Bromak Finance» EAD,

«Viva Telekom Bulgaria» EOOD,

«Balgarska Telekomunikationna Kompania» AD,

«Hedge Investment Bulgaria» AD,

«Kemira» OOD,

«Dunarit» AD,

«Technologichen Zentar‑Institut Po Mikroelektronika» AD,

«Еvrobild 2003» EOOD,

«Тechnotel Invest» AD,

«Ken Trade» EAD,

«Konsult Av» EOOD,

Louvrier Investments Company 33 SA,

EFV International Financial Ventures Ltd,

Interv Investment SARL,

LIC Telecommunications SARL,

V Telecom Investment SCA,

V2 Investment SARL,

Empreno Ventures Ltd,

sendo interveniente:

Corporate Commercial Bank, em liquidação,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juízes da Terceira Secção, L. S. Rossi (relatora) e J. Malenovský, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: M. Aleksejev, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 5 de junho de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo, por P. Georgiev e N. Kolev, na qualidade de agentes,

em representação de BP, por L. E. Karadaliev, advokat,

em representação de AB, por S. A. Stoyanov, advokat,

em representação de PB, por D. V. Kostadinova e S. Pappas, advokati,

em representação de «Тrast B» ООD, por S. A. Stoyanov, advokat,

em representação de «Dunarit» AD, por T. S. Trifonov, advokat,

em representação do Corporate Commercial Bank, em liquidação, por K. H. Marinova e A. N. Donov, na qualidade de agentes,

em representação do Governo búlgaro, por L. Zaharieva e T. Mitova, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e A. Kasalická, na qualidade de agentes,

em representação da Irlanda, por J. O’Connor, M. Browne, C. Durnin, M. Berry e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por D. Dodd, BL, B. Murray e N. Butler, SC,

em representação da Comissão Europeia, por R. Troosters e Y. G. Marinova, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 31 de outubro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (JO 2014, L 127, p. 39, e retificação no JO 2014, L 138, p. 114).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Komisia za protivodeystvie na koruptsiyata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushtestvo (Comissão encarregada da luta contra a corrupção e da perda dos bens obtidos ilegalmente, Bulgária) (a seguir «comissão encarregada da perda dos bens») a BP, bem como a várias pessoas singulares e coletivas consideradas ligadas a BP ou controladas por BP, a respeito de um pedido de perda de bens obtidos de maneira ilegal por BP e essas pessoas.

Quadro jurídico

Direito da União

Decisão‑Quadro 2005/212/JAI

3

Os considerandos 1, 5 e 10 da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime (JO 2005, L 68, p. 49), têm a seguinte redação:

«(1)

A principal motivação da criminalidade organizada além‑fronteiras é o lucro. Por conseguinte, para ser eficaz, qualquer tentativa de prevenir e combater essa criminalidade deverá centrar‑se na deteção, congelamento, apreensão e perda dos produtos do crime. No entanto, tal é dificultado, nomeadamente, pelas diferenças existentes neste domínio entre as legislações dos Estados‑Membros.

[…]

(5)

De acordo com a recomendação 19 constante do plano de ação de 2000 intitulado “Prevenção e controlo da criminalidade organizada: estratégia da União Europeia para o início do novo milénio”, aprovado pelo [Conselho da União Europeia] em 27 de março de 2000 […], deverá analisar‑se a eventual necessidade de um instrumento que, tendo em conta as melhores práticas nos Estados‑Membros, na plena observância dos princípios jurídicos fundamentais, introduza a possibilidade de mitigar, em sede de direito penal, civil ou fiscal, conforme os casos, o ónus da prova relativamente à origem dos bens detidos por uma pessoa condenada pela prática de uma infração relacionada com a criminalidade organizada.

[…]

(10)

O objetivo da presente decisão‑quadro é o de assegurar que todos os Estados‑Membros disponham de regras efetivas que regulem a perda dos produtos do crime, nomeadamente no que respeita ao ónus da prova relativamente à origem dos bens detidos por uma pessoa condenada pela prática de uma infração relacionada com a criminalidade organizada. A presente decisão‑quadro relaciona‑se com um projeto dinamarquês de decisão‑quadro relativa ao reconhecimento mútuo, na União Europeia, de decisões relativas à perda dos produtos do crime e à partilha de bens perdidos e que é apresentado simultaneamente.»

4

O artigo 1.o, primeiro a quarto travessões, desta decisão‑quadro dispõe:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

“produto”, qualquer vantagem económica resultante de infrações penais. Pode consistir em qualquer bem, definido nos termos do travessão que se segue,

“bens”, ativos de qualquer espécie, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, bem como documentos jurídicos ou instrumentos comprovativos da propriedade desses ativos ou dos direitos com eles relacionados,

“instrumentos”, quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais,

“perda”, uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem.»

5

O artigo 2.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Perda», dispõe:

«1.   Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos.

2.   Quando se trate de infração fiscal, os Estados‑Membros podem utilizar processos não penais para destituir o autor da infração dos produtos desta.»

6

Sob a epígrafe «Poderes alargados de declaração de perda», o artigo 3.o desta mesma decisão‑quadro indica, no seu n.o 2, alínea c), e no seu n.o 4:

«2.   Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para permitir a perda ao abrigo do presente artigo, pelo menos:

[…]

c)

Quando for determinado que o valor dos bens é desproporcionado em relação aos rendimentos legítimos da pessoa condenada e um tribunal nacional, com base em factos específicos, estiver plenamente persuadido de que os bens em questão foram obtidos a partir da atividade criminosa da pessoa condenada.

[…]

4.   Os Estados‑Membros podem utilizar procedimentos não penais para destituir dos bens em questão o autor da infração.»

7

O artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/212 prevê:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afetadas pelas medidas previstas nos artigos 2.o e 3.o disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos.»

8

O artigo 5.o desta decisão‑quadro enuncia:

«A presente decisão‑quadro não tem por efeito a alteração da obrigação de respeitar os direitos e os princípios fundamentais consagrados no artigo 6.o do Tratado da União Europeia, nomeadamente o da presunção de inocência.»

9

O artigo 6.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro prevê:

«Os Estados‑Membros adotarão as medidas necessárias para dar cumprimento à presente decisão‑quadro até 15 de março de 2007.»

Decisão‑Quadro 2006/783/JAI

10

Nos termos do considerando 8 da Decisão‑Quadro 2006/783/JAI do Conselho, de 6 de outubro de 2006, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda (JO 2006, L 328, p. 59):

«A presente decisão‑quadro tem por objetivo facilitar a cooperação entre Estados‑Membros, no que se refere ao reconhecimento mútuo e à execução de decisões de perda de bens, de forma a obrigar um Estado‑Membro a reconhecer e executar no seu território decisões de perda proferidas por um tribunal competente em matéria penal de outro Estado‑Membro. A presente decisão‑quadro está relacionada com a Decisão‑Quadro [2005/212]. O objetivo dessa decisão‑quadro consiste em assegurar que todos os Estados‑Membros disponham de regras eficazes aplicáveis à perda dos produtos do crime, nomeadamente no que se refere ao ónus da prova relativamente à origem dos bens que se encontrem na posse de uma pessoa condenada pela prática de uma infração relacionada com a criminalidade organizada.»

Diretiva 2014/42

11

Os considerandos 9, 22 e 23 da Diretiva 2014/42 estabelecem:

«(9)

A presente diretiva visa alterar e alargar as disposições das Decisões‑Quadro 2001/500/JAI [do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime (JO 2001, L 182, p. 1)] e [2005/212]. Essas decisões‑quadro deverão ser parcialmente substituídas para os Estados‑Membros vinculados pela presente diretiva.

[…]

(22)

A presente diretiva estabelece normas mínimas. Não impede os Estados‑Membros de preverem no seu direito nacional poderes mais alargados, designadamente no que toca às suas regras em matéria de elementos probatórios.

(23)

A presente diretiva aplica‑se às infrações penais abrangidas pelo âmbito de aplicação dos atos nela enumerados. Dentro do âmbito de aplicação desses atos, os Estados‑Membros deverão aplicar a perda alargada pelo menos a certas infrações penais definidas na presente diretiva.»

12

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«1.   A presente diretiva estabelece regras mínimas para o congelamento de bens tendo em vista a eventual perda subsequente e para a perda de produtos do crime.

2.   A presente diretiva não prejudica os procedimentos que os Estados‑Membros possam utilizar para decidir a perda dos bens em questão.»

13

O artigo 2.o da referida diretiva prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)

“Produto”, qualquer vantagem económica resultante, direta ou indiretamente, de uma infração penal; pode consistir em qualquer tipo de bem e abrange a eventual transformação ou reinvestimento posterior do produto direto assim como quaisquer ganhos quantificáveis;

2)

“Bens”, os ativos de qualquer espécie, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, bem como documentos legais ou atos comprovativos da propriedade desses ativos ou dos direitos com eles relacionados;

3)

“Instrumentos”, quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais;

4)

“Perda”, a privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal;

5)

“Congelamento”, a proibição temporária de transferir, destruir, converter, alienar ou movimentar um bem ou de exercer temporariamente a guarda ou o controlo do mesmo;

6)

“Infração penal”, as infrações de natureza penal abrangidas por qualquer dos atos enumerados no artigo 3.o»

14

O artigo 3.o da Diretiva 2014/42 tem a seguinte redação:

«A presente diretiva é aplicável às infrações penais abrangidas pelos seguintes atos:

a)

Convenção estabelecida com base no artigo K.3, n.o 2, alínea c), do Tratado da União Europeia, relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados‑Membros da União Europeia [(JO 1997, C 195, p. 1)] […]

b)

Decisão‑Quadro 2000/383/JAI do Conselho, de 29 de maio de 2000, sobre o reforço da proteção contra a contrafação de moeda na perspetiva da introdução do euro [(JO 2000, L 140, p. 1)];

c)

Decisão‑Quadro 2001/413/JAI do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário [(JO 2001, L 149, p. 1)].

d)

Decisão‑Quadro [2001/500];

e)

Decisão‑Quadro 2002/475/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo [(JO 2002, L 164, p. 3)];

f)

Decisão‑Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativa ao combate à corrupção no setor privado [(JO 2003, L 192, p. 54)];

g)

Decisão‑Quadro 2004/757/JAI do Conselho, de 25 de outubro de 2004, que adota regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis no domínio do tráfico ilícito de droga [(JO 2004, L 335, p. 8)];

h)

Decisão‑Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada [(JO 2008, L 300, p. 42)];

i)

Diretiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas, e que substitui a Decisão‑Quadro 2002/629/JAI do Conselho [(JO 2011, L 101, p. 1)];

j)

Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão‑Quadro 2004/68/JAI do Conselho [(JO 2011, L 335, p. 1)];

k)

Diretiva 2013/40/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de agosto de 2013, relativa a ataques contra os sistemas de informação e que substitui a Decisão‑Quadro 2005/222/JAI do Conselho [(JO 2013, L 218, p. 8)],

bem como quaisquer outros atos jurídicos, se os mesmos previrem especificamente que a presente diretiva se aplica às infrações penais neles harmonizadas.»

15

O artigo 4.o da Diretiva 2014/42, sob a epígrafe «Perda», enuncia:

«1.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos instrumentos e produtos ou dos bens cujo valor corresponda a tais instrumentos ou produtos, sob reserva de uma condenação definitiva por uma infração penal, que também pode resultar de processo à revelia.

2.   Se não for possível a perda com base no n.o 1, e pelo menos se tal impossibilidade resultar de doença ou de fuga do suspeito ou arguido, os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos instrumentos ou produtos nos casos em que foi instaurado processo penal por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, e em que tal processo possa conduzir a uma condenação penal se o suspeito ou arguido tivesse podido comparecer em juízo.»

16

O artigo 5.o desta diretiva, sob a epígrafe «Perda alargada», dispõe, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos bens pertencentes a pessoas condenadas por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, caso um tribunal, com base nas circunstâncias do caso, inclusive em factos concretos e provas disponíveis, como as de que o valor dos bens é desproporcionado em relação ao rendimento legítimo da pessoa condenada, conclua que os bens em causa provêm de comportamento criminoso.»

17

O artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, nomeadamente o facto de a transferência ou aquisição ter sido feita a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado.»

18

O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 dispõe:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na presente diretiva tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, para defender os seus direitos.»

19

Nos termos do artigo 14.o desta diretiva:

«1.   São substituídos pela presente diretiva, para os Estados‑Membros que a ela estão vinculados, […] o artigo 1.o, primeiro ao quarto travessões, e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro [2005/212], sem prejuízo das obrigações desses Estados‑Membros quanto ao prazo de transposição [desta decisão‑quadro] para o direito nacional.

2.   Para os Estados‑Membros que estão vinculados à presente diretiva, as referências […] às disposições [da Decisão‑Quadro 2005/212], que são referidas no n.o 1, devem ser entendidas como referências à presente diretiva.»

Direito búlgaro

Lei Relativa à Perda

20

Anteriormente à sua revogação, em 19 de janeiro de 2018, a Zakon za otnemane v polza na darzhavata na nezakono pridobito imushtestvo (Lei Relativa à Perda de Bens a Favor do Estado Obtidos Ilegalmente) (DV n.o 38, de 18 de maio de 2012; a seguir «Lei Relativa à Perda»), que entrou em vigor em 19 de novembro de 2012 e que foi revogada pela Zakon za protivodeystvie na korupsiata i za otnemane na nezakonno pridobitoto imushestvo (Lei Relativa à Luta Contra a Corrupção e à Perda de Bens Obtidos Ilegalmente) (DV n.o 7, de 19 de janeiro de 2018), previa, no seu artigo n.o 1:

«1)   A presente lei regula os requisitos e as modalidades da perda, para o Estado, de bens obtidos ilegalmente.

2)   Consideram‑se bens como os referidos no n.o 1 os bens para cuja aquisição não se constate qualquer origem legal.»

21

O artigo 2.o, n.o 1, da Lei Relativa à Perda dispunha:

«O processo regulado por esta lei é conduzido independentemente do processo penal iniciado contra a pessoa investigada e/ou contra pessoas com ela relacionadas.»

22

Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, desta lei:

«A [comissão encarregada da perda dos bens] é uma autoridade nacional especializada, independente e permanente.»

23

O artigo 21.o da referida lei dispunha:

«1)   A [comissão encarregada da perda dos bens] dará início a um procedimento nos termos da presente lei quando existam motivos razoáveis para suspeitar de que determinados bens foram obtidos ilegalmente.

2)   Estão em causa tais motivos razoáveis quando, após investigação, se afigure que o bem da pessoa em causa apresenta irregularidades substanciais.»

24

O artigo 22.o, n.o 1, da Lei Relativa à Perda previa:

«A investigação prevista nos termos do artigo 21.o, n.o 2, é iniciada por despacho do diretor da respetiva direção territorial, quando uma pessoa for acusada de ter cometido uma infração penal prevista pelas disposições seguintes:

[…]

8.

Os artigos 201.o a 203.o do [Nakazatelen kodeks (Código Penal)];

[…]»

25

O artigo 66.o desta lei dispunha:

«1)   Serão sujeitos a perda os bens que a pessoa investigada tenha transferido para uma pessoa coletiva ou para o capital de uma pessoa coletiva como contribuição monetária ou de outro tipo, se as pessoas que gerem ou controlam essa pessoa coletiva sabiam ou, tendo em conta as circunstâncias, podiam presumir que os bens tinham sido obtidos ilegalmente.

2)   Serão igualmente sujeitos a perda os bens obtidos ilegalmente por uma pessoa coletiva submetida ao controlo, individual ou conjunto, da pessoa investigada ou de pessoas com ela relacionadas.

[…]»

26

Nos termos do artigo 75.o, n.o 1, da referida lei:

«É apresentado um pedido judicial de perda a favor do Estado de bens obtidos ilegalmente contra a pessoa investigada e contra as pessoas referidas nos artigos 64.o, 65.o, 66.o, 67.o e 71.o»

27

O artigo 76.o, n.o 2, desta mesma lei previa:

«A pessoa investigada e as pessoas referidas nos artigos 64.o, 65.o, 66.o, 67.o e 71.o constituem‑se demandadas no processo.»

28

O artigo 80.o da Lei Relativa à Perda dispunha:

«As questões que não sejam reguladas na presente secção estão sujeitas às disposições do Grazhdanski‑protsesualen kodeks [(Código de Processo Civil)].»

Código de Processo Civil

29

O artigo 17.o, n.o 1, do Código de Processo Civil prevê:

«O órgão jurisdicional pronuncia‑se sobre todas as questões pertinentes para a resolução do litígio, exceto sobre a questão de saber se foi cometida uma infração penal.»

Código Penal

30

O artigo 53.o do Código Penal enuncia:

«1)   Sem prejuízo da responsabilidade penal, serão perdidas a favor do Estado:

a)

as coisas pertencentes ao autor da infração destinadas a ser utilizadas ou utilizadas para cometer uma infração penal dolosa;

b)

as coisas pertencentes ao autor da infração que tenham sido objeto de uma infração dolosa, desde que tal esteja expressamente previsto na Parte Especial do Código Penal.

2)   São igualmente perdidas a favor do Estado:

a)

as coisas, objeto ou instrumento da infração penal, cuja detenção seja proibida, e

b)

as coisas obtidas graças à infração penal, caso não devam ser reembolsadas ou restituídas. Quando as coisas adquiridas tenham desaparecido ou tenham sido cedidas, é submetido a perda um montante correspondente ao seu valor.»

31

O artigo 201.o deste código dispõe:

«Quem, no exercício das suas funções, desvie fundos, bens ou outros objetos de valor que não lhe pertençam e que lhe tenham sido entregues no âmbito das suas funções ou confiados para que cuide deles ou para que os gira, é punido, por esse desvio no âmbito das suas funções, com uma pena privativa de liberdade de oito anos, no máximo, e o órgão jurisdicional pode ordenar a perda, também no máximo, de metade dos bens do autor da infração bem como privá‑lo dos seus direitos […]»

32

Nos termos do artigo 203.o, n.o 1, do referido código:

«O desvio em grande escala no exercício de funções de administração, que constitui um caso particularmente grave, é punido com pena privativa de liberdade de dez a vinte anos.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

33

No mês de julho de 2014, o Sofiyska gradska prokuratura (Ministério Público da cidade de Sófia, Bulgária) informou a comissão encarregada da perda dos bens de que havia sido instaurada uma ação penal contra BP, na sua qualidade de presidente do conselho de supervisão de um banco búlgaro, por ter incitado conscientemente outras pessoas, entre dezembro de 2011 e 19 de junho de 2014, a desviar fundos pertencentes ao referido banco, em violação dos artigos 201.o e 203.o, n.o 1, do Código Penal, num valor total superior a 205 milhões de leva búlgaros (BGN) (aproximadamente 105 milhões de euros).

34

Resulta da decisão de reenvio que tal ação penal está em curso e, portanto, ainda não deu origem a uma sentença definitiva ou mesmo a uma condenação definitiva.

35

A comissão encarregada da perda dos bens levou a cabo uma investigação, que abrangia o período compreendido entre 4 de agosto de 2004 e 4 de agosto de 2010, da qual resulta, nomeadamente, que BP e os membros da sua família dispõem de depósitos bancários de valor considerável que não correspondem aos seus rendimentos legais, que efetuaram operações bancárias com meios cuja origem não pode ser determinada, que adquiriram bens móveis e imóveis de valor considerável e que BP recebeu remunerações nos termos de contratos que se afirma serem fictícios, tendo, assim, os rendimentos retirados de tais operações fictícias tido por objetivo dissimular a origem ilegal dos meios que serviram para a aquisição de bens por BP.

36

Por Decisão de 14 de maio de 2015, a comissão encarregada da perda dos bens intentou, com base no artigo 22.o, n.o 1, ponto 8, da Lei Relativa à Perda, um processo no Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) com vista à perda de bens de BP e de membros da sua família, bem como de terceiros ligados a BP ou controlados por BP, que foram obtidos ilegalmente, do seu contravalor em dinheiro quando tenham sido revendidos ou de bens resultantes da conversão dos referidos bens obtidos ilegalmente.

37

A pedido da comissão encarregada da perda dos bens, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) adotou medidas cautelares relativas aos bens cuja perda é requerida.

38

No âmbito do processo instaurado no órgão jurisdicional de reenvio, BP e certos demandados no processo principal alegam que o pedido de perda de bens apresentado pela comissão encarregada da perda dos bens é inadmissível, pois, em substância, é contrário à Diretiva 2014/42. Com efeito, esta diretiva exige que a perda de bens deve ser baseada numa condenação definitiva, elemento que não se verifica no processo principal. Segundo BP e os referidos demandados, não existe, no âmbito da União, regulamentação em matéria de perda civil, pelo que a perda só pode ocorrer com fundamento numa condenação definitiva de natureza penal. Ora, segundo estas mesmas partes, os demandados no processo principal seriam tratados como se tivessem sido julgados e condenados de forma definitiva, o que violaria, nomeadamente, a presunção de inocência e o direito a um processo equitativo.

39

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que resulta expressamente da Lei Relativa à Perda que o processo de perda instaurado no órgão jurisdicional cível é independente do processo penal instaurado contra a pessoa investigada e/ou as pessoas a ela ligadas ou por ela controladas. A simples existência de acusações penais é suficiente para instaurar um processo civil de perda. Todavia, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta claramente da redação da Diretiva 2014/42 que não deve ser excluído qualquer nexo entre o processo penal e o processo civil de perda e que este último processo não deve ser encerrado antes do termo do processo penal. Segundo este órgão jurisdicional, a Lei Relativa à Perda foi, portanto, além da harmonização mínima prevista pela Diretiva 2014/42 e era, portanto, contrária a esta última. Dado que BP ainda não foi condenado penalmente pelos factos em causa no processo principal, o referido órgão jurisdicional considera que o processo civil de perda deve ser suspenso até que se conclua o processo penal instaurado, nomeadamente, contra BP.

40

Tendo, no entanto, algumas dúvidas quanto à interpretação das disposições da Diretiva 2014/42, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva [2014/42], que estabelece “regras mínimas para o congelamento de bens tendo em vista a eventual perda subsequente e para a perda de produtos do crime”, ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros aprovar disposições sobre a perda civil, não baseada numa condenação?

2)

Decorre do artigo 1.o, n.o 1, atendendo ao artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva [2014/42] que o início de um processo penal contra a pessoa cujos bens são objeto de perda é, só por si, suficiente para iniciar e conduzir um processo civil de perda?

3)

É admissível proceder a uma interpretação extensiva dos motivos do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva [2014/42] que permite uma perda civil, não baseada numa condenação?

4)

Deve o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva [2014/42] ser interpretado no sentido de que a simples discrepância entre o património de uma pessoa e os seus rendimentos legais é suficiente para justificar que um direito de propriedade seja confiscado como produto direto ou indireto de uma infração penal, sem que exista uma sentença transitada em julgado que declare que a pessoa cometeu a infração penal?

5)

Deve o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva [2014/42] ser interpretado no sentido de que prevê a perda de bens de terceiros como medida complementar ou alternativa [em relação à perda direta] ou como medida complementar da perda alargada?

6)

Deve o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva [2014/42] ser interpretado no sentido de que garante a aplicação da presunção de inocência e proíbe uma perda não baseada numa condenação?»

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

41

A comissão encarregada da perda dos bens assim como os Governos búlgaro e checo alegam que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível.

42

Segundo estas partes interessadas, a interpretação da Diretiva 2014/42 não é pertinente para efeitos da decisão no processo principal. Com efeito, antes de mais, esta diretiva tem por objetivo estabelecer regras mínimas relativas à perda de bens em matéria penal, ao passo que o processo de perda instaurado no processo principal, de natureza civil, é independente do desenrolar ou do resultado de um processo penal. Em seguida, o pedido de perda dos bens da referida comissão tem origem na infração penal de desvio de fundos, prevista nos artigos 201.o a 203.o do Código Penal. Ora, esta infração não é mencionada em nenhum dos atos referidos no artigo 3.o da Diretiva 2014/42, que determina o âmbito de aplicação material desta diretiva. Por último, a comissão encarregada da perda dos bens e o Governo búlgaro indicam que o prazo para transpor a Diretiva 2014/42 foi fixado em 4 de outubro de 2016 pelo artigo 12.o desta diretiva, ao passo que o processo no órgão jurisdicional de reenvio foi instaurado em 22 de março de 2016, pelo que as disposições desta diretiva não são aplicáveis ratione temporis ao processo principal.

43

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdãos de 24 de junho de 2008, Commune de Mesquer, C‑188/07, EU:C:2008:359 n.o 30, e de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo, C‑310/17, EU:C:2018:899, n.o 28).

44

Ora, quando, como no presente processo, não resulte de forma manifesta que a interpretação de uma disposição do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, a objeção relativa à inaplicabilidade dessa disposição no processo principal não se refere à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, mas enquadra‑se na apreciação de mérito das questões (Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Slovenské elektrárne, C‑376/18, EU:C:2019:1068, n.o 29 e jurisprudência referida).

45

Consequentemente, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto ao mérito

Considerações preliminares

46

No âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, sendo caso disso, reformular as questões que lhe são submetidas. A circunstância de um órgão jurisdicional nacional ter, no plano formal, formulado uma questão prejudicial com base em certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (Acórdão de 5 de dezembro de 2019, EVN Bulgaria Toplofikatsia e Toplofikatsia Sofia, C‑708/17 e C‑725/17, EU:C:2019:1049, n.o 46 e jurisprudência referida).

47

Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal de Justiça sobre a interpretação das disposições da Diretiva 2014/42. No entanto, como observou a advogada‑geral no n.o 41 das suas conclusões, os atos de desvio de fundos, conforme descritos no despacho de reenvio, não se encontram entre as infrações abrangidas pelos instrumentos jurídicos enumerados de maneira exaustiva no artigo 3.o da Diretiva 2014/42, pelo que o objeto do processo nacional iniciado pela comissão encarregada da perda dos bens escapa ao âmbito de aplicação material da referida diretiva.

48

Resulta, além do mais, do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 que esta diretiva substitui unicamente os quatro primeiros travessões do artigo 1.o e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212 para os Estados‑Membros que a diretiva vincula, o que tem como consequência, como a advogada‑geral indicou, em substância, nos n.os 48 e 49 das suas conclusões, que os artigos 2.o, 4.o e 5.o da referida decisão‑quadro se mantêm em vigor após a adoção da Diretiva 2014/42.

49

No caso em apreço, resulta da redação do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212 que os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias que os habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ao passo que as infrações referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio são puníveis com uma pena privativa de liberdade de 10 a 20 anos e, consequentemente, podem ser abrangidas pelo âmbito de aplicação desta decisão‑quadro.

50

Daqui resulta que, sem prejuízo da interpretação e do alcance da Decisão‑Quadro 2005/212, as disposições desta última fazem necessariamente parte dos elementos do direito da União que, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal e as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, devem ser tomados em consideração pelo Tribunal de Justiça para que este responda de forma útil às questões que lhe são submetidas.

Quanto às questões prejudiciais

51

Tendo em conta o exposto, há que considerar que, com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Decisão‑Quadro 2005/212 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê que a perda de bens obtidos ilegalmente é ordenada por um órgão jurisdicional nacional no termo de um processo que não está subordinado nem à constatação de uma infração penal nem, a fortiori, à condenação dos presumíveis autores de tal infração.

52

Para responder a esta questão, há que recordar que a Decisão‑Quadro 2005/212 se baseia nas disposições do título VI do Tratado UE, na sua versão anterior ao Tratado de Lisboa, intitulado «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal», mais especificamente no artigo 29.o, no artigo 31.o, n.o 1, alínea c), e no artigo 34.o, n.o 2, alínea b), UE.

53

O artigo 31.o, n.o 1, alínea c), UE expõe que a ação comum no domínio da cooperação em matéria penal tem por objetivo assegurar, na medida do necessário, a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados‑Membros para melhorar a referida cooperação. Neste contexto, a Decisão‑Quadro 2005/212 tem por objetivo assegurar, como enuncia o seu considerando 10, que todos os Estados‑Membros disponham de regras efetivas que regulem a perda dos produtos do crime.

54

Assim, o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212 exige que os Estados‑Membros adotem as medidas necessárias que os habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos, ao passo que o seu artigo 1.o, quarto travessão, define «perda» como sendo sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem.

55

Como resulta igualmente do seu considerando 10, a Decisão‑Quadro 2005/212 relaciona‑se com um projeto do Reino da Dinamarca que conduziu à adoção da Decisão‑Quadro 2006/783/JAI do Conselho, de 6 de outubro de 2006, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda (JO 2006, L 328, p. 59). Como indica o considerando 8 desta última decisão‑quadro, o objetivo desta é facilitar a cooperação entre Estados‑Membros no que se refere ao reconhecimento mútuo e à execução de decisões de perda de bens, para obrigar um Estado‑Membro a reconhecer e executar no seu território decisões de perda proferidas por um tribunal competente em matéria penal de outro Estado‑Membro.

56

Por conseguinte, tendo em conta os objetivos e a redação das disposições da Decisão‑Quadro 2005/212, bem como o contexto em que esta foi adotada, há que considerar que a referida decisão‑quadro é um ato que visa obrigar os Estados‑Membros a instituir regras mínimas comuns de perda dos instrumentos e produtos relacionados com infrações penais, com vista a facilitar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais de perda adotadas no âmbito de processos penais, como salientou igualmente a advogada‑geral, em substância, no n.o 63 das suas conclusões.

57

A Decisão‑Quadro 2005/212 não regula, portanto, a perda de instrumentos e de produtos provenientes de atividades ilegais que é ordenada por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro no âmbito ou na sequência de um processo que não tenha por objeto a constatação de uma ou várias infrações penais.

58

Esta interpretação não é de modo nenhum posta em causa pelo artigo 2.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro.

59

Com efeito, esta disposição limita‑se a enunciar que, no que respeita às infrações fiscais, os Estados‑Membros podem recorrer a processos não penais para destituir o autor da infração dos produtos desta. Não pode ser interpretada, a contrario, como significando que os Estados‑Membros seriam privados da possibilidade de instituir processos de perda diferentes dos processos penais que não digam respeito a infrações fiscais. Com efeito, tal proibição iria além do alcance das regras mínimas instituídas pela Decisão‑Quadro 2005/212.

60

No caso em apreço, afigura‑se que o processo de perda pendente no órgão jurisdicional de reenvio é de natureza civil e coexiste, no direito interno, com um regime de perda de direito penal. É certo que, por força do artigo 22.o, n.o 1, da Lei Relativa à Perda, esse processo é instaurado pela comissão encarregada da perda dos bens quando esta última é informada de que uma pessoa é acusada de ter cometido determinadas infrações penais. No entanto, resulta dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe e dos esclarecimentos prestados, na audiência, pela comissão encarregada da perda dos bens, pelo Governo búlgaro e pela Comissão Europeia que, em conformidade com as disposições da referida lei, uma vez iniciado este processo, que se concentra exclusivamente nos bens alegadamente obtidos de maneira ilegal, é conduzido de forma independente de um eventual processo penal instaurado contra o presumido autor das infrações, bem como do resultado desse processo, especialmente da eventual condenação do referido autor.

61

Nestas condições, há que concluir que a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a adotar no processo principal não se inscreve no âmbito ou na sequência de um processo relativo a uma ou mais infrações penais. Não está, portanto, abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro 2005/212.

62

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que a Decisão‑Quadro 2005/212 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê que a perda de bens obtidos ilegalmente seja ordenada por um órgão jurisdicional nacional no termo de um processo que não está subordinado nem à constatação de uma infração penal nem, a fortiori, à condenação dos presumíveis autores de tal infração.

Quanto às despesas

63

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

A Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê que a perda de bens obtidos ilegalmente seja ordenada por um órgão jurisdicional nacional no termo de um processo que não está subordinado nem à constatação de uma infração penal nem, a fortiori, à condenação dos presumíveis autores de tal infração.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

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