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Documento 62016CC0016

Conclusões do advogado-geral M. Bobek apresentadas em 12 de dezembro de 2017.
Reino da Bélgica contra Comissão Europeia.
Recurso de decisão do Tribunal Geral — Proteção dos consumidores — Serviços de jogos de fortuna e azar em linha — Proteção dos consumidores e dos jogadores e prevenção desses jogos junto de menores — Recomendação 2014/478/UE da Comissão — Ato da União não vinculativo juridicamente — Artigo 263.o TFUE.
Processo C-16/16 P.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2017:959

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 12 de dezembro de 2017 ( 1 )

Processo C‑16/16 P

Reino da Bélgica

contra

Comissão Europeia

«Recurso — Proteção dos consumidores — Serviços de jogo em linha — Proteção dos consumidores e dos utilizadores de serviços de jogo em linha e prevenção do acesso dos menores aos jogos de azar em linha — Recomendação da Comissão — Artigo 263.o TFUE — Ato recorrível — Fiscalização jurisdicional de instrumentos de soft law — Atos não vinculativos que produzem efeitos jurídicos — Atos suscetíveis de serem justificadamente entendidos como atos que induzem um comportamento conforme»

Índice

 

I. Introdução

 

II. Quadro jurídico

 

A. Direito primário

 

B. A recomendação da Comissão

 

III. Matéria de facto e tramitação processual

 

IV. O despacho recorrido

 

V. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

 

VI. Apreciação

 

A. Prevalência da substância sobre a forma

 

1. Acórdão AETR

 

2. A aplicação do critério AETR pelo Tribunal Geral no presente caso

 

3. Os elementos problemáticos do critério AETR

 

a) Problemas internos

 

1) Efeitos jurídicos, força vinculativa ou efeitos jurídicos vinculativos?

 

2) Qual o papel da intenção do autor?

 

b) Problemas externos

 

1) A proliferação dos instrumentos de soft law

 

2) Recomendações: não têm força vinculativa mas produzem efeitos jurídicos

 

i) Ao nível da União

 

ii) Ao nível dos Estados‑Membros

 

4. Regresso às origens: o critério AETR e os efeitos jurídicos

 

5. A aplicação do critério ao presente caso

 

B. A forma determina a substância

 

1. Exclusão (completa): uma recomendação é uma recomendação

 

2. Substância ou forma?

 

3. As clarificações (potencialmente necessárias)

 

VII. Conclusão

I. Introdução

1.

Um dos grandes debates que moldou a filosofia jurídica (anglo‑americana) ao longo das últimas décadas é a polémica entre Hart e Dworkin sobre a natureza do Direito e a estrutura de um sistema jurídico. Em finais da década de 1960 e na década de 1970, a crítica de Dworkin à obra de Hart ( 2 ), O Conceito de Direito, cristalizou em torno de vários temas. Um dos argumentos‑chave de Dworkin era que o entendimento de Hart sobre o sistema jurídico era demasiado restritivo e demasiado centrado nas regras jurídicas, omitindo outro elemento‑chave de qualquer sistema jurídico: os princípios ( 3 ).

2.

Talvez seja seguro presumir que, não obstante o seu título, ao adotar a «Recomendação sobre princípios com vista à proteção dos consumidores e dos utilizadores de serviços de jogo em linha e à prevenção do acesso dos menores aos jogos de azar em linha» (a seguir «recomendação») ( 4 ), a Comissão não pretendeu tomar posição naquele debate teórico. Porém, o recurso de anulação interposto pelo Reino da Bélgica contra essa recomendação no Tribunal Geral desencadeou um debate nominalmente semelhante, mas algo diferente em termos substantivos: no direito da União, para efeitos de fiscalização jurisdicional, qual a diferença entre esses princípios e as regras (jurídicas, vinculativas)? Além disso, pode uma recomendação da Comissão (um instrumento da União expressamente excluído da fiscalização jurisdicional pelo primeiro parágrafo do artigo 263.o TFUE) ser, ainda assim, objeto de um recurso de anulação ao abrigo dessa disposição?

3.

O Tribunal Geral declarou o recurso da Bélgica inadmissível ( 5 ), sustentando que a recomendação não se destinava a produzir efeitos jurídicos vinculativos. O Reino da Bélgica recorreu dessa decisão para o Tribunal de Justiça.

4.

A solução que proponho ao Tribunal de Justiça nas presentes conclusões apresenta duas vertentes: em primeiro lugar, ao nível geral, tendo em conta a evolução do panorama legislativo da União (e não só), que se caracteriza pela proliferação dos instrumentos de soft law, o acesso aos tribunais da União deve ser adaptado a essa realidade. Neste sentido, deveria efetivamente ser adotada uma abordagem de certo modo mais «dworkiana», que reconhecesse o facto de que há normas que geram efeitos jurídicos significativos mas que escapam à lógica binária das regras jurídicas vinculativas/não vinculativas. Em segundo lugar, ao nível concreto da recomendação em causa no presente caso, um instrumento normativo que, à luz da sua lógica, do seu contexto, da sua finalidade e, em parte, também da sua letra, pode justificadamente ser visto como uma fonte de regras de conduta, deveria estar sujeito a fiscalização jurisdicional, independentemente do facto de se apresentar, de certa forma, como um conjunto de meros «princípios» numa recomendação.

II. Quadro jurídico

A. Direito primário

5.

Nos termos do artigo 4.o, n.o 3, TUE, os «Estados‑Membros tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União. Os Estados‑Membros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm‑se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União.»

6.

O artigo 263.o, primeiro parágrafo, TFUE dispõe: «O Tribunal de Justiça da União Europeia fiscaliza a legalidade dos atos legislativos, dos atos do Conselho, da Comissão e do Banco Central Europeu, que não sejam recomendações ou pareceres, e dos atos do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros. O Tribunal fiscaliza também a legalidade dos atos dos órgãos ou organismos da União destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros.»

7.

Nos termos do artigo 288.o TFUE:

«Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres.

O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados‑Membros.

A diretiva vincula o Estado‑Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes.

As recomendações e os pareceres não são vinculativos.»

8.

O artigo 292.o TFUE tem a seguinte redação: «O Conselho adota recomendações. Delibera sob proposta da Comissão em todos os casos em que os Tratados determinem que o Conselho adote atos sob proposta da Comissão. O Conselho delibera por unanimidade nos domínios em que esta é exigida para a adoção de um ato da União. A Comissão, bem como o Banco Central Europeu nos casos específicos previstos pelos Tratados, adotam recomendações.»

9.

O artigo 296.o TFUE estabelece que:

«Quando os Tratados não determinem o tipo de ato a adotar, as instituições escolhê‑lo‑ão caso a caso, no respeito dos processos aplicáveis e do princípio da proporcionalidade.

Os atos jurídicos são fundamentados e fazem referência às propostas, iniciativas, recomendações, pedidos ou pareceres previstos pelos Tratados.

Quando lhes tenha sido submetido um projeto de ato legislativo, o Parlamento Europeu e o Conselho abster‑se‑ão de adotar atos não previstos pelo processo legislativo aplicável no domínio visado.»

B. A recomendação da Comissão

10.

Nos termos do considerando 5 da recomendação da Comissão, «[n]a ausência de uma harmonização a nível da União, os Estados‑Membros são, em princípio, livres de estabelecer os objetivos da sua política em matéria de jogos de azar e de definir o nível de proteção pretendido para proteger a saúde dos consumidores […]».

11.

O considerando 8 estabelece que «[a]s regras e políticas que os Estados‑Membros introduziram com vista à prossecução de objetivos de interesse público variam consideravelmente. Uma ação a nível da União incentiva os Estados‑Membros a assegurar um nível de proteção elevado em toda a União […].»

12.

O objetivo da recomendação da Comissão é enunciado no considerando 9: «proteger a saúde dos consumidores e jogadores e, por conseguinte, também minimizar os eventuais prejuízos económicos suscetíveis de resultar do jogo compulsivo ou excessivo. Assim, recomendam‑se certos princípios com vista a um elevado nível de proteção dos consumidores, jogadores e menores, relativamente aos serviços de jogo em linha. Ao elaborar a presente recomendação, a Comissão inspirou‑se nas boas práticas seguidas nos Estados‑Membros.»

13.

O considerando 15 refere que «[c]onvém convidar os Estados‑Membros a apresentar regras que forneçam aos consumidores informações sobre o jogo em linha […]».

14.

O considerando 16 dispõe que «[s]e conveniente, os princípios da presente recomendação deverão dirigir‑se não apenas aos operadores mas também a terceiros, incluindo as chamadas “filiais”, que são autorizados a promover serviços de jogo em linha em nome do operador».

15.

O considerando 27 salienta que «[é] necessária uma supervisão eficaz para assegurar uma proteção adequada dos objetivos de interesse público. Os Estados‑Membros devem designar autoridades competentes, estabelecer orientações claras para os operadores e fornecer informações facilmente acessíveis aos consumidores, jogadores e grupos vulneráveis, incluindo os menores.»

16.

O considerando 29 acrescenta que «[a] presente recomendação não interfere com a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, nem com a Diretiva 93/13/CEE do Conselho».

17.

A secção I da recomendação define o seu objetivo. No n.o 1, «[r]ecomenda‑se aos Estados‑Membros que assegurem um elevado nível de proteção para os consumidores, jogadores e menores, através da adoção de princípios aplicáveis aos serviços de jogo em linha e com vista a comunicações comerciais responsáveis relativamente a esses serviços, por motivos de preservação da saúde e também para minimizar os eventuais danos económicos suscetíveis de resultar de uma prática de jogo excessiva ou compulsiva». O n.o 2 dispõe que «[a] presente recomendação não interfere com o direito dos Estados‑Membros de regulamentarem os serviços de jogo».

18.

A secção III da recomendação estabelece requisitos de informação bastante específicos e detalhados para os sítios Web dos operadores de jogo, especialmente no que se refere ao tipo de informação que deve ser exibida na sua página inicial e ao número de cliques necessários para ter acesso a cada informação. A secção IV estabelece requisitos adicionais sobre menores.

19.

A secção V diz respeito ao registo e contas dos jogadores. Em especial, o n.o 15 refere que «[o]s Estados‑Membros devem assegurar que uma pessoa só está autorizada a participar num serviço de jogo quando estiver registada como jogador e detiver uma conta junto do operador».

20.

A secção VI tem por objeto a atividade do jogador e apoio. A secção VII abrange a comunicação comercial, e a secção IX o patrocínio.

21.

A secção XI diz respeito à supervisão. O n.o 51 convida os Estados‑Membros «a designar autoridades reguladoras do setor do jogo, ao aplicar os princípios estabelecidos na presente recomendação, para assegurar e controlar de forma independente o cumprimento efetivo das medidas nacionais adotadas em consonância com os princípios estabelecidos na presente recomendação».

22.

A secção XII, a última da recomendação, respeita à comunicação de informações. O seu n.o 52 refere que «[o]s Estados‑Membros são convidados a notificar à Comissão todas as medidas que adotarem em conformidade com a presente recomendação, até 19 de janeiro de 2016, a fim de permitir à Comissão avaliar a sua implementação».

23.

Nos termos do n.o 53, «[o]s Estados‑Membros são convidados a recolher dados anuais fiáveis para fins estatísticos sobre:

a)

As medidas de proteção aplicáveis, nomeadamente o número de contas de jogador (abertas e fechadas), o número de jogadores autoexcluídos, o número de pessoas que sofrem de uma perturbação associada ao jogo e o número de queixas apresentadas pelos jogadores;

b)

Comunicação comercial, por categoria e por tipo de infrações aos princípios;

Os Estados‑Membros são convidados a comunicar estas informações à Comissão, pela primeira vez até 19 de julho de 2016.»

24.

Por último, o n.o 54 refere que «[a] Comissão deverá avaliar a implementação da recomendação até 19 de janeiro de 2017».

III. Matéria de facto e tramitação processual

25.

Em 2011, num Livro Verde «sobre o jogo em linha no mercado interno» ( 6 ), a Comissão identificou os objetivos comuns dos Estados‑Membros na regulação dos serviços de jogo em linha, bem como as áreas prioritárias mais importantes para a intervenção da União.

26.

Na sua comunicação «Para um enquadramento europeu completo do jogo em linha», adotada em 23 de outubro de 2012 ( 7 ), a Comissão propôs uma série de ações para responder aos desafios regulamentares, societais e técnicos dos jogos em linha. Em especial, a Comissão afirmou que, de um modo geral, não se afigurava adequado, naquela fase, uma proposta legislativa da UE específica para o setor dos jogos em linha. Nessa comunicação, a Comissão anunciou que apresentaria recomendações sobre a proteção dos consumidores no domínio dos serviços de jogo em linha, incluindo a proteção dos menores, e sobre uma comunicação comercial responsável dos serviços de jogo em linha.

27.

O Parlamento Europeu, na sua resolução de 10 de setembro de 2013 sobre os jogos em linha no mercado interno ( 8 ), exortou a Comissão a avaliar a possibilidade de instituir uma interoperabilidade entre registos nacionais que incluam a autoexclusão, a fim de sensibilizar para os riscos da dependência associada ao jogo, e a ponderar a aplicação de controlos de identificação obrigatórios por uma terceira parte. O Parlamento apelou igualmente a que fosse imposta sobre os operadores de jogos a obrigação de fornecerem informações sobre as autoridades reguladoras, de advertirem os menores e de utilizarem restrições autoimpostas no sítio web de jogo. Além disso, o Parlamento defendeu a definição de princípios comuns para comunicações comerciais responsáveis. Recomendou a inclusão nas comunicações comerciais de advertências claras sobre as consequências do jogo compulsivo e os riscos da dependência do jogo. As comunicações comerciais não deveriam ser excessivas nem exibidas em conteúdos especificamente destinados aos menores ou onde se verificasse um risco maior de visar menores.

28.

O Comité Económico e Social Europeu também instou a Comissão a intervir para melhorar a proteção dos consumidores no domínio dos jogos em linha, e para proteger os menores ( 9 ).

29.

Nesse contexto, a Comissão Europeia adotou a recomendação impugnada em 14 de julho de 2014, com base no artigo 292.o TFUE. O texto integral da recomendação foi publicado na série L do Jornal Oficial da União Europeia em 19 de julho de 2014.

30.

A adoção da recomendação foi acompanhada por um comunicado de imprensa ( 10 ) e um memorando ( 11 ). Esse memorando apresentava a recomendação da Comissão nos seguintes termos: «Uma recomendação é um instrumento não vinculativo utilizado pela Comissão Europeia para transmitir aos Estados‑Membros uma mensagem clara sobre as ações que deveriam empreender para corrigir uma situação, deixando simultaneamente flexibilidade suficiente ao nível nacional quanto ao meio de atingir este objetivo. Ao definir os objetivos a alcançar, a recomendação deve servir de catalisador para a elaboração de princípios coerentes, que deverão ser aplicados em toda a União Europeia.» Quanto à escolha do tipo de instrumento, o memorando acrescentava que «não existe, ao nível da União, legislação específica no setor dos serviços de jogo em linha e não foi considerado oportuno propor tal legislação específica. Além disso, é possível adotar imediatamente uma recomendação da Comissão, ao passo que as propostas legislativas teriam de ser adotadas pelo Conselho de Ministros da UE e pelo Parlamento Europeu, o que pode demorar algum tempo.»

IV. O despacho recorrido

31.

Em 13 de outubro de 2014, o Reino da Bélgica interpôs no Tribunal Geral recurso de anulação da recomendação em causa.

32.

Por despacho de 27 de outubro de 2015, o Tribunal Geral julgou o recurso inadmissível ( 12 ), entendendo que, tendo em conta a sua redação, conteúdo e contexto, a recomendação não produzia nem se destinava a produzir efeitos jurídicos obrigatórios, pelo que não podia ser qualificada de ato sujeito a fiscalização da legalidade nos termos do artigo 263.o TFUE ( 13 ).

33.

Na sua apreciação, o Tribunal Geral começou por observar que a recomendação estava redigida, no essencial, em termos não imperativos, não obstante algumas divergências pouco importantes entre as versões linguísticas ( 14 ).

34.

O Tribunal Geral sustentou ainda que o conteúdo da recomendação demonstrava que a Comissão não tinha qualquer intenção de lhe conferir efeitos jurídicos vinculativos ( 15 ). Em especial os n.os 51 a 53 convidam os Estados‑Membros a designarem autoridades reguladoras do setor do jogo e a notificarem à Comissão todas as medidas que adotarem em conformidade com a recomendação. Não impõem sobre os Estados‑Membros a obrigação de aplicarem os princípios estabelecidos nesse ato. Além do mais, a Comissão referiu expressamente que a recomendação não interferia com o poder regulamentar dos Estados‑Membros neste domínio: limitava‑se a convidá‑los a cumprirem os princípios nela enunciados ( 16 ).

35.

O Tribunal Geral considerou que a análise da redação e do conteúdo da recomendação era confirmada pela análise do seu contexto. Os debates no seio do Conselho, do Parlamento Europeu e da Comissão mostram que não havia qualquer intenção de propor legislação da União neste domínio naquela altura ( 17 ).

36.

O Tribunal Geral acrescentou que a publicação na série L do Jornal Oficial e não na série C do mesmo, não era suscetível de invalidar a conclusão de que a recomendação não se destinava a produzir efeitos jurídicos vinculativos ( 18 ). Afirmou igualmente que, do mero facto de as recomendações, embora não vinculativas, poderem produzir efeitos jurídicos, não pode concluir‑se que sejam atos recorríveis. Essa conclusão colidiria com o artigo 263.o TFUE, nos termos do qual as recomendações, que não produzem efeitos jurídicos obrigatórios, não podem ser objeto de recurso de anulação ( 19 ).

37.

Uma alegada violação por uma instituição da União dos princípios do equilíbrio institucional, da atribuição de competências ou da cooperação leal não permite afastar as condições de admissibilidade do recurso de anulação previstas no Tratado ( 20 ). Em especial, não é pelo simples facto de o Tribunal de Justiça poder examinar, no âmbito de uma ação por incumprimento, um ato ou comportamento desprovido de efeitos jurídicos vinculativos à luz do dever de cooperação leal dos Estados‑Membros que o mesmo deve acontecer num recurso de anulação ( 21 ).

38.

O Tribunal Geral afirmou que a recomendação não enuncia nenhuma regra nem nenhum princípio tendente a harmonizar o mercado dos serviços no setor do jogo em linha, ao contrário do que alega o recorrente. Isso era claro à luz do n.o 2 da recomendação, que confirma expressamente o poder regulamentar dos Estados‑Membros neste domínio ( 22 ). A recomendação não visava restringir a possibilidade de cada Estado‑Membro determinar, segundo as suas próprias preferências, as exigências da proteção desses aspetos morais, religiosos e culturais ( 23 ).

V. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

39.

No seu recurso, o Reino da Bélgica (a seguir «recorrente») pede ao Tribunal de Justiça que anule o despacho do Tribunal Geral, que declare admissível o recurso de anulação, que conheça do mérito do presente processo, que julgue admissíveis os pedidos de intervenção da República Helénica e da República Portuguesa ( 24 ) e que condene a Comissão nas despesas.

40.

A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao recurso e que condene o recorrente nas despesas.

41.

No seu recurso, o recorrente invoca três fundamentos de recurso: i) violação dos princípios da atribuição de competências, da cooperação leal e do equilíbrio institucional; ii) violação do princípio da cooperação leal e desconsideração da posição dos Estados‑Membros como requerentes privilegiados; e iii) interpretação incorreta dos efeitos jurídicos da recomendação relativamente à Bélgica.

42.

No primeiro fundamento de recurso, o recorrente alega que o recurso deveria ter sido julgado admissível porque o Tribunal Geral deveria ter examinado a competência do autor da recomendação, e não apenas se esta produz efeitos jurídicos vinculativos. Mais concretamente, o Tribunal Geral não respeitou os princípios da atribuição de competências, da cooperação leal e do equilíbrio institucional, na medida em que não verificou se existia uma base jurídica substantiva que justificasse a adoção da recomendação. O artigo 292.o TFUE não serve de base jurídica autónoma: habilita o Conselho e a Comissão a adotarem recomendações, mas, para saber qual dos dois é competente, é necessário examinar as competências substantivas atribuídas a cada uma dessas instituições pelos Tratados.

43.

O recorrente alega ainda que até mesmo uma recomendação não vinculativa deveria estar sujeita a fiscalização jurisdicional, com vista a determinar se respeita os princípios supramencionados. Ao excluir a fiscalização jurisdicional, o Tribunal Geral ignorou o princípio da atribuição de competências e aplicou o artigo 263.o TFUE de modo incompatível com a jurisprudência assente: qualquer medida adotada pelas instituições deve indicar claramente a respetiva base jurídica ( 25 ).

44.

Segundo o recorrente, o simples facto de a Comissão adotar um dos instrumentos jurídicos enumerados no artigo 288.o TFUE sem competência para tal produziria, por si só, um efeito jurídico porque perturbaria o equilíbrio de competências entre a União e os Estados‑Membros, e também entre as instituições da União. Consequentemente, deveria estar sujeito à fiscalização do Tribunal de Justiça. O cumprimento desses princípios deveria ser determinado antes de se examinar se constitui uma «verdadeira» recomendação. O recorrente alega que o ato legislativo da União deve ser, ele mesmo, adotado em conformidade com o direito da União e respeitar as prerrogativas das outras instituições da União e dos Estados‑Membros.

45.

No seu segundo fundamento de recurso, o recorrente critica o facto de, com base na diferença entre recurso de anulação e ação por incumprimento, o Tribunal Geral ter considerado irrelevante a jurisprudência segundo a qual os atos com efeitos jurídicos não vinculativos adotados em violação do dever de cooperação leal estão sujeitos a fiscalização jurisdicional nas ações por incumprimento ( 26 ). Essa conclusão contraria fundamentalmente o caráter recíproco do princípio da cooperação leal ( 27 ). Desse modo, o Tribunal Geral priva um Estado‑Membro do acesso ao Tribunal de Justiça nos recursos de anulação, não obstante os Estados‑Membros serem recorrentes privilegiados.

46.

No seu terceiro fundamento de recurso, o recorrente alega que, no exame da recomendação, o Tribunal Geral não aplicou corretamente o acórdão AETR ( 28 ) e a jurisprudência subsequente. Conclui que a legalidade da recomendação pode ser objeto de fiscalização ao abrigo do artigo 263.o TFUE porque produz efeitos jurídicos, pelo menos em relação à Bélgica e a Portugal.

47.

O recorrente considera que o Tribunal Geral deveria ter tido em consideração o facto de que a recomendação está redigida em termos imperativos em várias versões linguísticas, como a portuguesa, mas também em duas das três línguas oficiais da Bélgica, ou seja, neerlandês e alemão, sobretudo porque as recomendações devem ser tidas em conta pelos órgãos jurisdicionais nacionais. O Tribunal Geral não deveria examinar a recomendação em termos gerais, mas sim em termos concretos, determinando se produz efeitos jurídicos em relação à Bélgica. Tendo em conta a redação imperativa nas versões neerlandesa e alemã, é possível concluir que são produzidos efeitos jurídicos «mais intensos» em relação à Bélgica, em comparação com outras versões linguísticas.

48.

Na sua contestação, a Comissão rejeita os argumentos do recorrente quanto às condições de admissibilidade dos recursos de anulação de recomendações. No seu entender, os argumentos do recorrente dizem respeito ao mérito da causa (na medida em que são invocados os princípios da atribuição de competências, da cooperação leal e do equilíbrio institucional, bem como a base jurídica), enquanto o processo pendente tem unicamente por objeto a questão da admissibilidade.

49.

Relativamente ao caráter recíproco do princípio da lealdade (segundo fundamento), a Comissão considera que o Reino da Bélgica não teve razão ao entender que o Tribunal Geral criou uma desigualdade processual favorável à Comissão nas ações por incumprimento e em detrimento dos Estados‑Membros em recursos de anulação. Essa conclusão do Tribunal Geral implica unicamente que a legalidade das recomendações não pode ser objeto de fiscalização jurisdicional com base no artigo 263.o TFUE. Assim, não existe qualquer desigualdade na aplicação do artigo 263.o TFUE.

50.

A Comissão considera que é irrelevante que a versão numa das línguas oficiais do Estado‑Membro apresente uma redação ligeiramente diferente, dado que a apreciação dos efeitos jurídicos produzidos por uma recomendação, a existirem, deve basear‑se também no objetivo e no contexto do instrumento. Segundo a Comissão, os atos da União devem ser objeto de uma interpretação autónoma, independente do direito nacional.

51.

Na sua réplica, o recorrente dedicou especial atenção à base jurídica da recomendação, que considera ser inexistente. Reiterou que uma recomendação da Comissão produz efeitos jurídicos em virtude da sua existência (embora limitados), o que significa que deve poder ser objeto de fiscalização quanto à sua legalidade. Um Estado‑Membro deve poder requerer a fiscalização da validade de qualquer ato da União quando não seja evidente se foi ou não adotado dentro dos limites do princípio da atribuição de competências, especialmente quanto não exista base jurídica substantiva. A mera referência ao artigo 292.o TFUE não é suficiente; não cumpre o requisito de uma base jurídica substantiva.

52.

Na sua tréplica, a Comissão alegou que não existe qualquer lacuna nos procedimentos previstos nos Tratados. As recomendações estão excluídas do âmbito de aplicação do artigo 263.o TFUE. A única questão que se coloca é a de saber se a presente recomendação é uma «verdadeira» recomendação. A questão da base jurídica respeita à apreciação do mérito e, como tal, só deverá ser apreciada se o recurso for julgado admissível. Em qualquer caso, no entender da Comissão, o recorrente não tinha provado a necessidade de uma base jurídica diferente do artigo 292.o TFUE.

53.

Além das suas observações escritas, o Reino da Bélgica e a Comissão apresentaram alegações orais na audiência que teve lugar em 26 de junho de 2017.

VI. Apreciação

54.

No seu recurso, o recorrente invocou três fundamentos. Considero preferível abordar em primeiro lugar o terceiro fundamento de recurso (nos termos do qual o recorrente alega que o Tribunal Geral cometeu um erro na sua apreciação da inexistência de efeitos jurídicos da recomendação controvertida), essencialmente por dois motivos. Primeiro, constitui a essência do recurso perante o Tribunal de Justiça. De uma forma ou de outra, o terceiro fundamento também aborda elementos do primeiro e segundo fundamentos. Em certa medida, num caso como este, há elementos de apreciação substantiva que estão já ligados à fase da admissibilidade e que a permeiam. Segundo, considero procedente o terceiro fundamento de recurso invocado pelo recorrente. O Tribunal Geral cometeu um erro de direito: interpretou incorretamente os efeitos da recomendação em causa e, portanto, apreciou incorretamente a admissibilidade do recurso ( 29 ).

55.

Uma recomendação é um ato «típico» de direito da União, referido no artigo 288.o TFUE. Contrariamente ao que acontece com um leque potencialmente vasto de atos «atípicos» de instituições e organismos da União, ou seja, aqueles que não se encontram enumerados, o artigo 288.o TFUE define as características de uma recomendação: não é vinculativa. Além disso, o primeiro parágrafo do artigo 263.o TFUE exclui claramente as recomendações dos recursos de anulação.

56.

Em face deste panorama legislativo ao nível do direito primário, o alargamento da linha jurisprudencial do acórdão AETR ( 30 ), que visa os atos «atípicos», talvez não seja totalmente automático. Por conseguinte, são possíveis duas abordagens ao tratamento dos recursos de anulação das recomendações. Em primeiro lugar, temos a abordagem da prevalência da substância sobre a forma, segundo a qual, mesmo no caso de atos típicos, é a análise da substância do ato impugnado que determinará a admissibilidade de um recurso de anulação. Se, ao contrário do que indica o seu título, o ato for, na verdade, algo diferente daquilo que diz ser (por exemplo, se não for uma «verdadeira» recomendação), deve estar sujeito a fiscalização, independentemente da sua designação. Em segundo lugar, temos a abordagem segundo a qual a forma determina a substância, que sugere que um charuto é um charuto, mesmo que se apresente sob uma forma algo estranha. Mas enquanto tiver a palavra «charuto» escrita nele, será visto e interpretado como tal.

57.

As presentes conclusões encontram‑se estruturadas da seguinte forma. A secção A descreve a primeira abordagem: começo por regressar às origens do critério enunciado no acórdão AETR (A.1.), antes de me debruçar sobre a jurisprudência subsequente e a interpretação desse critério feita pelo Tribunal Geral no presente caso (A.2.). Seguidamente, explico por que motivo, no caso das recomendações, esse critério é problemático a vários níveis (A.3.), sugerindo depois o seu reajustamento (A.4.). Demonstro então de que modo esse critério, numa formulação mais flexível, se aplicaria à recomendação em causa (A.5.).

58.

Na secção B, começo por descrever a segunda abordagem (B.1.), antes de expor argumentos adicionais em apoio do meu entendimento de que o Tribunal de Justiça não deveria adotar essa abordagem (B.2.). No entanto, caso o Tribunal de Justiça decida, ainda assim, seguir essa via, convido‑o a fornecer, pelo menos, vários esclarecimentos importantes quanto à natureza e aos efeitos das recomendações (B.3.).

A. Prevalência da substância sobre a forma

1.  Acórdão AETR

59.

Na sua primeira versão datada de 1957, o artigo 173.o do Tratado CEE (posteriormente artigo 230.o CE e atualmente artigo 263.o TFUE) estabelecia que a legalidade dos atos jurídicos da Comissão e do Conselho que não fossem recomendações ou pareceres podia ser objeto de fiscalização pelo Tribunal de Justiça, mas não fornecia uma definição positiva dos atos jurídicos que podiam ser fiscalizados. Por conseguinte, competia ao Tribunal de Justiça decidir quais os atos sujeitos a fiscalização: se eram apenas os atos da Comissão e do Conselho explicitamente identificados como atos vinculativos no que era então o artigo 189.o CEE (atual artigo 288.o TFUE), ou seja, os regulamentos, as diretivas e as decisões, ou se incluíam também «atos atípicos» adotados por essas instituições, mas não expressamente mencionados nos Tratados.

60.

No seu acórdão AETR ( 31 ), que dizia respeito à ata de uma sessão do Conselho relativa à negociação e celebração de um acordo internacional, o Tribunal de Justiça estabeleceu um critério para determinar se um recurso de anulação de um ato das instituições era ou não admissível (a seguir «critério AETR»). O Tribunal de Justiça entendeu que, nos termos do artigo 173.o CEE, eram «atos recorríveis todas as disposições tomadas pelas instituições que visem produzir efeitos jurídicos […] Deve, pois, ser possível o recurso de anulação de todas as disposições tomadas pelas instituições que se destinem a produzir efeitos jurídicos, quaisquer que sejam a respetiva natureza ou forma» ( 32 ).

61.

Assim, o critério AETR original compreendia dois elementos: existia um ato da União que se destinava a produzir efeitos jurídicos?

62.

Em jurisprudência subsequente, o Tribunal de Justiça aplicou esse critério a vários atos atípicos, como orientações ou instruções internas da Comissão ( 33 ); códigos de conduta que aplicavam um regulamento da Comissão ( 34 ); comunicações ( 35 ); notas de informação ( 36 ); ou cartas ( 37 ).

63.

Se examinarmos atentamente essas decisões, constatamos que o critério nem sempre está formulado exatamente nos mesmos termos. Porém, existe indiscutivelmente um tema comum: em relação a todos esses atos atípicos, o Tribunal de Justiça sustentou claramente que, na decisão sobre a admissibilidade de um recurso de anulação, a substância de um ato da União prevalece sobre a sua forma ( 38 ). A designação e a forma do ato não são conclusivas para determinar se a sua legalidade pode ou não ser fiscalizada.

2.   A aplicação do critério AETR pelo Tribunal Geral no presente caso

64.

No despacho recorrido, o Tribunal Geral afirmou que: «[r]esulta de jurisprudência constante que são considerados atos recorríveis na aceção do artigo 263.o TFUE todas as disposições adotadas pelas instituições, qualquer que seja a sua forma, que visem produzir efeitos jurídicos obrigatórios […]. [E]stão excluídos da fiscalização jurisdicional prevista no artigo 263.o TFUE os atos que não produzam efeitos jurídicos obrigatórios, como sejam os atos preparatórios, os atos confirmativos e os atos de pura execução, as meras recomendações e pareceres, bem como, em princípio, as instruções internas […]. À luz da jurisprudência, a aptidão de um ato para produzir efeitos jurídicos e, portanto, para ser objeto de um recurso de anulação nos termos do artigo 263.o TFUE implica examinar o seu conteúdo e o contexto em que se inscreve, a sua substância, e a intenção do seu autor» ( 39 ).

65.

Seguidamente, o Tribunal Geral aplicou o critério AETR a uma recomendação, tanto quanto sei, pela primeira vez. O Tribunal Geral examinou a redação, o contexto, a substância e a intenção do autor e concluiu que a recomendação não produzia efeitos jurídicos vinculativos em relação aos seus destinatários. O Tribunal Geral admitiu que os princípios enunciados na recomendação eram muito pormenorizados. Não obstante, sustentou que não tinham caráter «obrigatório», como demonstrava, em especial, a sua formulação sob a forma de um «convite» na maioria das versões linguísticas da recomendação. Consequentemente, ao atribuir mais peso à redação do que a outros fatores, o Tribunal Geral concluiu que o recurso era inadmissível.

66.

Em resumo, o elemento determinante na análise da recomendação controvertida realizada pelo Tribunal Geral afigura‑se ser o facto de a recomendação não produzir efeitos jurídicos vinculativos, facto esse que foi determinado com base na intenção da Comissão, inferida, antes de mais, da forma do ato e da sua redação.

3.   Os elementos problemáticos do critério AETR

67.

Se for concebido e aplicado deste modo, o critério AETR coloca alguns problemas, que podem ser agrupados em duas categorias: primeiro, há os problemas internos relacionadas com a lógica do critério, com as suas condições e a sua articulação, que serão talvez mais visíveis quando este é aplicado a uma recomendação. Segundo, há problemas que poderiam ser apelidados de externos e que estão relacionados com o facto de o critério AETR, que se foi tornando efetivamente cada vez mais restritivo ao longo do tempo, não estar a acompanhar a evolução do panorama normativo da União. Num mundo em que os vários instrumentos de soft law são, de facto, muito mais numerosos e importantes do que em 1971, as condições relativas à legitimidade e à fiscalização jurisdicional deveriam reagir a esses desenvolvimentos.

a)   Problemas internos

68.

Há dois elementos que se destacam a este propósito: o caráter necessariamente vinculativo de um ato da União para que a sua legalidade possa ser fiscalizada (1) e a intenção do autor quanto aos seus efeitos jurídicos (2).

1) Efeitos jurídicos, força vinculativa ou efeitos jurídicos vinculativos?

69.

O n.o 42 do acórdão AETR ( 40 ) não fazia referência a medidas destinadas a produzir efeitos jurídicos vinculativos, mas apenas efeitos jurídicos. O mesmo se afigura válido para as expressões utilizadas em outras versões linguísticas existentes à data ( 41 ).

70.

A mudança na terminologia de meros efeitos jurídicos para «efeitos jurídicos vinculativos» verificou‑se em jurisprudência posterior ( 42 ). Essa tendência parece ter vindo a acentuar‑se recentemente, dado que o Tribunal de Justiça condiciona agora a possibilidade de fiscalização jurisdicional de atos da União à produção de efeitos jurídicos vinculativos ( 43 ).

71.

É certo que poderia ser sugerido que, não obstante a utilização do termo «efeitos jurídicos», o que o Tribunal de Justiça pretendia de facto dizer no acórdão AETR era «força vinculativa», embora esse argumento não seja, tendo conta o tipo de documento em apreço nesse processo (ata do Conselho), totalmente convincente. Esse argumento poderia basear‑se, em especial, na redação do artigo 189.o CEE, que já nessa altura distinguia entre atos vinculativos (regulamentos, diretivas e decisões) e atos não vinculativos (recomendações e pareceres) ( 44 ). Assim, ainda que o Tribunal de Justiça não tenha interpretado claramente o artigo 173.o CEE à luz da nomenclatura estabelecida no artigo 189.o CEE, é provável que esta última disposição tenha influenciado o critério.

72.

Seja como for, é igualmente verdade que ainda é um fenómeno bastante recente o facto de o Tribunal de Justiça ter começado a adotar, em geral, uma posição mais rigorosa, restringindo o âmbito de aplicação do artigo 263.o TFUE aos atos com efeito jurídico vinculativo, acrescentando uma palavra a essa disposição, que se limita apenas a efeitos jurídicos (em relação a terceiros). Contudo, na falta de um debate claro na jurisprudência sobre essa distinção e, acima de tudo, na falta de prova de uma escolha esclarecida num sentido ou noutro, é lícito perguntar se, de facto, o Tribunal de Justiça pretendia seguir uma abordagem mais rigorosa e mais restritiva. Não obstante, é evidente que nem o texto nem a lógica do acórdão AETR tinham necessariamente implícito o termo vinculativos, em aditamento a meros efeitos jurídicos.

73.

Não se trata de um simples jogo de palavras; o seu impacto prático é considerável, como demonstra o presente caso. É possível debater o que constitui exatamente efeitos jurídicos. No entanto, o conceito é claramente bastante abrangente, compreendendo todos os tipos de impacto na lei, na sua interpretação e na sua aplicação. Em contrapartida, o efeito vinculativo (a fortiori, o efeito jurídico vinculativo) representa uma categoria muito mais restrita.

74.

Tradicionalmente, a força vinculativa da lei está associada à coerção. Em caso de incumprimento, podem ser aplicadas medidas coercivas e sanções. Numa tal visão (puramente positivista ( 45 )), a existência de uma sanção é o elemento que define a força vinculativa.

75.

Deixando de lado os debates teóricos, é evidente que, caso se aceite o critério da força jurídica vinculativa, vários atos suscetíveis de produzir efeitos jurídicos significativos sobre o comportamento dos destinatários, mas que não têm, no sentido tradicional, força vinculativa porque não contêm um mecanismo de coerção direto ou independente, escaparão à fiscalização jurisdicional ao abrigo do critério AETR e, em última análise, ao abrigo do artigo 263.o, primeiro parágrafo, TFUE. Como oportunamente se verá, é o que acontece com a recomendação em apreço.

2) Qual o papel da intenção do autor?

76.

Em segundo lugar, o critério AETR, tal como aplicado pelo Tribunal Geral, peca por falta de clareza interna: que papel desempenha exatamente a intenção do autor para determinar se se deve considerar que um ato produz efeitos jurídicos (vinculativos)?

77.

O acórdão AETR, assim como a atual redação do artigo 263.o TFUE, baseiam‑se na intenção do autor. O uso do pretérito na versão inglesa («intended to») indicaria ainda que o que importa é apurar a intenção subjetiva passada (histórica) do autor no momento da adoção do ato em questão. Esse entendimento estaria também possivelmente em sintonia com as regras gerais aplicáveis aos recursos de anulação. No âmbito desses recursos, os atos da União impugnados devem ser apreciados em função dos elementos de facto e de direito existentes à data em que a medida foi adotada ( 46 ).

78.

Porém, se a intenção do autor do ato for supostamente sempre uma intenção histórica objetiva, uma recomendação nunca estará, na prática, sujeita a fiscalização. A apreciação da natureza e dos efeitos de uma recomendação cai rapidamente num ciclo vicioso. Uma vez que a Comissão não tinha a intenção de adotar legislação vinculativa, foi escolhida uma recomendação. Uma vez que a Comissão escolheu uma recomendação, a sua intenção subjetiva era claramente a de que esse instrumento não fosse vinculativo. Em virtude dessa intenção (confirmada, na prática, pela escolha do instrumento), a recomendação nunca poderá ser vinculativa, independentemente do seu conteúdo e da sua redação, porque a Comissão não tinha a intenção de adotar legislação vinculativa.

79.

Deste modo, a escolha do instrumento predeterminará sempre o contexto e a finalidade da medida, que provavelmente irão prevalecer sobre o seu conteúdo e redação.

b)   Problemas externos

80.

Além destes problemas lógicos, inerentes à articulação do critério AETR adotado pelo Tribunal Geral quando aplicado às recomendações, esse mesmo critério enfrenta possivelmente desafios externos, mais vastos. Abordarei dois deles na presente secção: primeiro, a proliferação de vários tipos de instrumentos de soft law que, em rigor, não têm força vinculativa, mas que, ao mesmo tempo, geram efeitos jurídicos (1). Segundo, as recomendações são, na prática, suscetíveis de gerar vários efeitos jurídicos, muitas vezes bastante significativos, tanto ao nível da União como ao nível nacional (2).

1) A proliferação dos instrumentos de soft law

81.

Há um vasto leque de instrumentos no direito da União (e não só), sob várias designações e formas (orientações, comunicações, códigos de conduta, recomendações, pareceres, acordos interinstitucionais, conclusões, declarações, resoluções, etc.), que são genericamente designados por «soft law». Podem ser adotados em qualquer e em todas as fases possíveis do processo de decisão, quer a priori, numa fase inicial (consulta das partes interessadas) quer a posteriori (execução dos atos legislativos). Assim, esses instrumentos podem ser igualmente pré‑legislativos ou pós‑legislativos.

82.

Nas abordagens marcadamente diferentes a tais instrumentos de soft law, há talvez dois elementos relativamente aos quais existe consenso: em primeiro lugar, o conceito de soft law não se enquadra facilmente na distinção binária, rígida, entre efeitos jurídicos vinculativos e não vinculativos. Em segundo lugar, nos últimos 10 ou 20 anos, temos assistido a uma proliferação desses instrumentos, que são cada vez mais frequentes ( 47 ).

83.

Consequentemente, a questão da proliferação dos instrumentos de soft law e a (inexistência de) fiscalização jurisdicional dos mesmos têm sido discutidas não apenas na doutrina ( 48 ), como também pelas instituições da União ( 49 ).

84.

Além disso, os órgãos jurisdicionais superiores de alguns Estados‑Membros procuraram, nos últimos anos, responder ao mesmo fenómeno ao nível nacional. Alargaram o âmbito da fiscalização jurisdicional de modo a incluir atos que não são estritamente vinculativos, alargando efetivamente os critérios de admissibilidade dos recursos de anulação para garantir o direito a uma proteção jurisdicional efetiva ( 50 ). São exemplos os casos em que os destinatários poderão entender o ato impugnado como um ato vinculativo com base num conjunto de elementos, nomeadamente quando preveja incentivos ( 51 ), quando o seu autor disponha do poder de adotar sanções ( 52 ) ou quando possa ter efeitos significativos para o destinatário ( 53 ). Por maioria de razão, o mesmo é válido em relação aos órgãos jurisdicionais sujeitos ao sistema de common law, que têm adotado tradicionalmente uma abordagem muito mais permissiva à admissibilidade da fiscalização jurisdicional de atos não vinculativos do que os seus homólogos de civil law. Na Irlanda, por exemplo, os órgãos jurisdicionais garantem a proteção dos direitos fundamentais mesmo quando a medida impugnada não é vinculativa e não produz quaisquer efeitos concretos sobre os direitos e obrigações dos destinatários ( 54 ).

85.

Por último, vale a pena destacar a abordagem e a prática adotadas pelo Conseil d’État francês nesta matéria. Em primeiro lugar, o Conseil d’État fez o ponto da situação num relatório exaustivo que propunha, designadamente, uma definição de soft law ( 55 ). Em segundo lugar, no ano passado, com base nesse estudo, concebeu também um novo critério judicial centrado nos efeitos económicos e na existência de uma influência significativa sobre o comportamento dos destinatários do instrumento ( 56 ).

86.

Afigura‑se que, não obstante a sua heterogeneidade, tanto ao nível nacional como ao nível da União, os diversos instrumentos de soft law possuem em comum uma característica essencial: não são vinculativos no sentido tradicional. São um tipo de norma imperfeita: por um lado, têm claramente a ambição normativa de induzir os destinatários a adotarem um comportamento conforme. Por outro lado, não estão associados a instrumentos de coerção direta. Sendo habitualmente adotados na sequência de um processo de consulta às diferentes partes interessadas (uma abordagem da base para o topo), poderão conter «obrigações moderadas» ou «exortações veementes» sob a forma de um «convite».

2) Recomendações: não têm força vinculativa mas produzem efeitos jurídicos

87.

As recomendações correspondem geralmente a essa descrição. Nos Tratados, as recomendações apenas são definidas em termos negativos: não são vinculativas (artigo 288.o TFUE). Além dessa definição, a utilização e a prática das recomendações variam ( 57 ). Apresentam habitualmente convites à adoção de um certo comportamento, de uma política ou de regras consideradas adequadas pelo seu autor em face do objetivo prosseguido.

88.

Porém, embora sejam claramente descritas como instrumentos não vinculativos, as recomendações podem gerar efeitos jurídicos consideráveis, no sentido de promoverem a adoção de um certo comportamento ou de modificarem a realidade normativa. São suscetíveis de afetar os direitos e obrigações dos seus destinatários e de terceiros. A título exemplificativo, descreverei alguns desses efeitos na presente secção, a dois níveis distintos mas inter‑relacionados: i) ao nível da União e ii) ao nível dos Estados‑Membros.

i) Ao nível da União

89.

Ao nível da União, as recomendações produzem três tipos de efeitos jurídicos que merecem ser destacados: i) confiança e expectativas legítimas; ii) o seu papel interpretativo; e iii) a possibilidade de as recomendações gerarem conjuntos paralelos de regras que se substituem ao processo legislativo e, como tal, afetam o equilíbrio institucional.

90.

Em primeiro lugar, se uma instituição da União adota recomendações sobre o modo como outros se devem comportar, talvez seja justo presumir que, caso venha a ser relevante, é de esperar que essa instituição siga essa mesma recomendação nas suas próprias práticas e comportamento. Deste ponto de vista, a expectativa legítima assim criada é efetivamente análoga a outros tipos de soft law que emanam das instituições ou organismos da União e que são vistos como uma autolimitação do exercício do seu próprio poder de apreciação no futuro ( 58 ).

91.

Em segundo lugar, é provável que as recomendações sejam utilizadas na interpretação jurídica, especialmente para clarificar o significado de conceitos jurídicos indeterminados contidos em legislação vinculativa. Um exemplo notório (mas certamente não exclusivo) é o caso das recomendações pós‑legislativas que não são adotadas unicamente com base no artigo 292.o TFUE, mas com base num instrumento de direito secundário, precisamente para concretizar os conceitos jurídicos nele enunciados. Mas as recomendações pré‑legislativas também podem desempenhar a mesma função, quer em relação a conceitos jurídicos indeterminados constantes dos Tratados quer para efeitos de interpretação de outro instrumento jurídico que coincida rationae materiae com essa recomendação. Deste modo, ambos os tipos de recomendação podem complementar legislação vinculativa.

92.

Em terceiro lugar, no acórdão Grimaldi, o Tribunal de Justiça já esclareceu em que circunstâncias podem ser adotadas recomendações: estas «são geralmente adotadas pelas instituições da Comunidades quando estas não dispõem, nos termos do Tratado, do poder de adotar atos obrigatórios, ou quando entendem que não há lugar à aplicação de regras mais vinculativas» ( 59 ).

93.

Aquela que é talvez a principal vantagem das recomendações poderá constituir também o seu maior perigo. As recomendações podem ser mais do que meros instrumentos de promoção de políticas que atingiram um impasse quer por motivos políticos (falta de consenso) quer por motivos jurídicos (falta de poderes específicos para esse efeito). Podem também potencialmente ser utilizadas como um instrumento para eludir os mesmos processos legislativos.

94.

Isso cria dois tipos de problemas: um a curto prazo e outro a longo prazo. O problema imediato da exclusão das outras instituições que normalmente participam no processo legislativo já foi reconhecido e discutido ( 60 ). Por conseguinte, é inquestionável que uma recomendação pode afetar o equilíbrio institucional ( 61 ) e, portanto, também a separação de poderes no seio da União. No entanto, se as recomendações fossem excluídas da fiscalização da legalidade unicamente com o fundamento de não serem vinculativas, o princípio do equilíbrio institucional nunca poderia ser respeitado ( 62 ).

95.

Existe, porém, outro tipo de preclusão que pode manifestar‑se, em especial, em recomendações pré‑legislativas: a capacidade de articular as normas antes de ter lugar o processo legislativo propriamente dito, que se poderá inclusivamente traduzir numa preclusão unilateral do processo legislativo. É pacífico que uma recomendação tem por objetivo induzir os seus destinatários a adotarem um comportamento conforme. Se for bem sucedida, ainda que apenas em parte, moldará o leque de soluções normativas concebíveis (aceitáveis) para o futuro. Se algumas instituições da União ou Estados‑Membros atuarem já em conformidade com uma determinada recomendação, é natural que, no processo legislativo que se poderá potencialmente seguir, promovam a solução legislativa que já adotaram. Deste modo, a soft law de hoje é a hard law de amanhã.

ii) Ao nível dos Estados‑Membros

96.

As recomendações produzem, pelo menos, três tipos de efeitos jurídicos ao nível dos Estados‑Membros. O seu exato alcance dependeria da relevância atribuída ao princípio da cooperação leal no contexto das recomendações.

97.

O primeiro e mais importante tipo de obrigações relativas às recomendações identificado, até à data, pelo Tribunal de Justiça é o dever que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais de as terem em consideração ao interpretarem legislação nacional que executa essas disposições. É evidente que as recomendações não podem, elas mesmas, criar direitos invocáveis pelos particulares perante um juiz nacional ( 63 ). Porém, no acórdão Grimaldi, o Tribunal de Justiça também acrescentou que as recomendações «não podem ser considerad[as] como desprovid[as] de qualquer efeito jurídico. Com efeito, os juízes nacionais terão que tomar em consideração as recomendações para resolver os litígios que lhes são submetidos, nomeadamente quando estas auxiliem a interpretação de disposições nacionais adotadas com a finalidade de assegurar a respetiva execução, ou ainda quando se destinam a completar disposições comunitárias com caráter vinculativo» ( 64 ).

98.

Importa salientar que, até agora, o Tribunal de Justiça só reconheceu tais efeitos jurídicos interpretativos no caso das recomendações, diferenciando‑as assim dos restantes atos da União que têm natureza vinculativa ( 65 ).

99.

No entanto, o que significa exatamente a obrigação de tomar em consideração? São possíveis várias interpretações. Num dos potenciais extremos do espetro, corresponderia a uma obrigação de interpretação conforme, do tipo descrito no acórdão Von Colson ( 66 ). Perante a formulação adotada nesse acórdão, não creio que o Tribunal de Justiça tivesse tido a intenção de ir ao ponto de impor sobre os órgãos jurisdicionais nacionais um dever de interpretar o direito nacional em conformidade com recomendações ( 67 ). No outro extremo imaginário, «tomar em consideração» poderia também significar «examinar» e, depois, optar por ignorar completamente o disposto na recomendação.

100.

Em teoria, poderia ser adotada uma posição intermédia: uma autoridade nacional será, pelo menos, obrigada a fundamentar uma decisão que se desvie de uma recomendação, sem estar explicitamente sujeita a um dever de interpretar o direito nacional em conformidade. Essa hipótese já foi formulada, no passado, em relação a outro tipo de instrumento de soft law ( 68 ). É possível compreender por que motivo uma posição aparentemente intermédia poderia merecer algum apoio: embora, até à data, o Tribunal de Justiça só tenha imposto tal dever sobre o próprio autor de regras de conduta estabelecidas em orientações ou medidas internas que produzam efeitos externos ( 69 ), não se pode excluir a possibilidade de essa linha jurisprudencial ser igualmente aplicável às recomendações, que são, sem dúvida, uma forma de soft law mais avançada e sofisticada, uma vez que são um dos atos «típicos» mencionados no artigo 288.o TFUE e devem ser tomadas em consideração pelos órgãos jurisdicionais nacionais ( 70 ).

101.

Porquê apelidar essa posição de «aparentemente intermédia»? Pelo simples motivo de que a obrigação que recai sobre um juiz de fundamentar um desvio a uma certa fonte implica necessariamente que essa fonte tenha natureza vinculativa. O juiz só está obrigado a justificar desvios a fontes obrigatórias ( 71 ). Assim, se a «obrigação de tomar em consideração» fosse interpretada no sentido de impor sobre os juízes nacionais o dever de justificar e explicar por que motivo não seguiram uma recomendação, isso significaria eo ipso que essas recomendações não só produzem «alguns efeitos jurídicos» como são também, de facto, vinculativas.

102.

Em segundo lugar, quais são os deveres exatos das autoridades nacionais relativamente a uma recomendação? Na sua articulação do dever de cooperação leal no seio da União, a redação do artigo 4.o, n.o 3, TUE é, sem dúvida, muito abrangente e tem potencialmente consequências de grande alcance. Poder‑se‑ia argumentar que, uma vez que essa disposição só refere as «obrigações» e que, de acordo com o artigo 288.o TFUE, as recomendações são «não vinculativas», estas não podem, por definição, criar quaisquer obrigações e, como tal, não estão de modo algum abrangidas pelo artigo 4.o, n.o 3, TUE.

103.

Não creio que esse entendimento do artigo 4.o, n.o 3, TUE traduza verdadeiramente a abordagem interpretativa a essa disposição que o Tribunal de Justiça tem vindo a adotar há já algum tempo. O dever de cooperação leal é geralmente aplicado ao nível dos princípios; nem sempre visa uma disposição concreta e específica ou uma obrigação jurídica individual ( 72 ).

104.

Ainda que se parta do princípio de que não existe uma obrigação positiva de aplicar uma recomendação, poderá o mesmo ser dito de obrigações potencialmente «mais moderadas» dos Estados‑Membros, como a obrigação de tomar em consideração uma recomendação quando adotam legislação num determinado domínio? Esse efeito talvez seja mais visível nas recomendações pós‑legislativas, que são usadas para concretizar conceitos jurídicos contidos em legislação vinculativa. Não seria de esperar que, ao executar a legislação original da União a que a recomendação pós‑legislativa está, de certa forma, associada, um Estado‑Membro o fizesse de acordo com as clarificações constantes dessa recomendação? Se a resposta for negativa, para que serve então a recomendação? Se a resposta for positiva, dificilmente poderão ser contestados os efeitos reais e consideráveis que uma recomendação produz.

105.

No entanto, poder‑se‑ia certamente argumentar que não existe uma obrigação de execução porque não está prevista uma sanção separada e distinta para o seu incumprimento. Mesmo pondo de parte o entendimento algo formalista de que a sanção «direta» é o elemento principal e determinante da força vinculativa ( 73 ), o que dizer das potenciais obrigações negativas que recaem sobre os Estados‑Membros no tocante às recomendações? Nesta fase, trata‑se certamente de mera conjetura e não de um elemento de direito válido, mas se o efeito bloqueador das diretivas se aplica ao período que antecede o termo do prazo para a sua transposição e, durante esse período, os Estados‑Membros não podem adotar uma medida suscetível de comprometer seriamente a concretização do resultado prescrito por essa diretiva ( 74 ), não seria de aplicar a mesma lógica às recomendações?

106.

Em terceiro e último lugar, que tipo de efeitos jurídicos poderiam as recomendações produzir no contexto das regras e procedimentos nacionais? No acórdão Grimaldi, o Tribunal de Justiça deixou claro que é possível apresentar um pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação de uma recomendação ( 75 ). Resta saber se um órgão jurisdicional nacional poderia pedir ao Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre a validade de uma recomendação. Tanto quanto é do meu conhecimento, essa situação ainda não se verificou, mas, no acórdão Grimaldi, o Tribunal de Justiça parece ter confirmado a possibilidade de apresentar tal pedido ( 76 ).

107.

Afigura‑se, assim, que o Tribunal de Justiça terá claramente previsto que uma recomendação produzirá efeitos jurídicos ao nível nacional. Afinal, pretende‑se que seja tomada em consideração nos Estados‑Membros, independentemente do que isso signifique na prática. Acrescente‑se que o Tribunal de Justiça já reconheceu e, com efeito, apreciou, no contexto de um processo de reenvio prejudicial, vários atos não vinculativos da União que tinham tido repercussões ao nível nacional, incluindo, recentemente, um comunicado de imprensa do Banco Central Europeu ( 77 ).

108.

Assim, uma recomendação, tal como outros atos jurídicos da União aparentemente que não têm natureza vinculativa, pode ser objeto de um pedido de decisão prejudicial respeitante quer à sua interpretação quer à sua validade. Considero que esse é o único entendimento possível num sistema completo de vias de recurso ( 78 ). A finalidade das recomendações é induzir um comportamento conforme. Imaginemos um Estado‑Membro que, tendo agido de boa‑fé e num espírito de cooperação leal, transpôs uma recomendação para o direito interno. Mediante um ato legislativo nacional, esse Estado‑Membro impôs obrigações aos particulares ao nível nacional. Se esse ato legislativo for impugnado perante os órgãos jurisdicionais nacionais, seria algo estranho que estes se recusassem a fiscalizar a legalidade do instrumento que constitui a base substantiva desse ato, ou seja, a recomendação da União ( 79 ), com o pretexto algo formalista de que essas obrigações tinham sido criadas por um ato legislativo nacional, não por um instrumento de direito da União, e que o Estado‑Membro o tinha feito por sua livre vontade.

4.   Regresso às origens: o critério AETR e os efeitos jurídicos

109.

A análise detalhada realizada na secção anterior tinha uma dupla finalidade: primeiro, expor os problemas suscitados pelo critério AETR (com as modificações que lhe foram sendo gradualmente introduzidas) quando aplicado a recomendações (mas, no meu entender, de um modo mais geral, também quando aplicado a outros instrumentos de soft law); e, segundo, demonstrar que, não obstante o facto de talvez não serem dotadas de força vinculativa no sentido tradicional e bastante restritivo do termo, as recomendações podem produzir efeitos jurídicos significativos, tanto ao nível da União como ao nível nacional.

110.

Por conseguinte, considero que o critério AETR, tal como aplicado pelo Tribunal Geral, carece de um certo reajustamento. A minha sugestão é muito simples: o critério deve reverter às suas origens, ao acórdão AETR, e também ao texto do artigo 263.o, primeiro parágrafo, TFUE. Tanto um como outro fazem referência a «efeitos jurídicos» e não a «efeitos jurídicos vinculativos». Tal como acontece com o leito dos rios, também na jurisprudência se revela por vezes necessária uma operação de limpeza, removendo os sedimentos (verbais) que se vão acumulando ao longo dos anos e que impedem a navegação jurídica.

111.

Esse reajustamento não é a revolução que poderá parecer à primeira vista. A base do critério para determinar se um ato de direito da União produz ou não efeitos jurídicos em relação aos seus destinatários e/ou terceiros seria a mesma: o que será apreciado é o texto, o contexto e a finalidade do ato impugnado. Porém, são necessárias duas clarificações quanto ao modo de aplicação desse critério: primeiro, o que deve ser apreciado é a existência simplesmente de efeitos jurídicos, não de efeitos jurídicos vinculativos. Segundo, dentro do critério, deve ser privilegiado o conteúdo e o contexto da medida, não o mero texto.

112.

Como já explicado na secção anterior, a dicotomia efeitos jurídicos vinculativos/não vinculativos reveste‑se de pouca utilidade analítica no contexto da soft law. Se a condição prévia da existência de efeitos vinculativos é a coerção e um mecanismo de sanções diretas, então, por definição, os instrumentos de soft law nunca serão vinculativos, independentemente das suas disposições.

113.

Ao invés, a apreciação da aptidão para produzir efeitos jurídicos, ou seja, para afetar a situação jurídica dos seus destinatários, deve centrar‑se numa questão diferente: poderia eu, na posição de destinatário médio, inferir do conteúdo, objetivo, esquema geral e contexto global de uma recomendação (ou, em termos mais gerais, de um instrumento de soft law) que se espera que adote uma certa conduta? Seria provável que eu modificasse o meu comportamento em conformidade ou que esse ato afetasse a minha situação jurídica?

114.

Seguidamente, dentro dos três elementos clássicos de interpretação da lei (letra, contexto e finalidade), nos casos de apreciação de uma recomendação ou de outros instrumentos de soft law, o texto (em especial, a denominação e a forma verbal) de um ato não deve prevalecer sobre o seu conteúdo, contexto e finalidade no quadro dessa apreciação. No contexto da admissibilidade, o texto deveria mesmo, através da sua essência, desempenhar um papel secundário em relação aos elementos substantivos. Caso contrário, o facto de se apresentar sob a forma de um «convite» conduziria necessariamente ao afastamento da fiscalização jurisdicional. Na verdade, significaria que a forma prevalece sobre a substância e, consequentemente, que nenhuma recomendação que utilizasse uma terminologia de «incentivo» poderia, em circunstância alguma, ser objeto de fiscalização. Assim, talvez fosse preferível atribuir maior relevância à lógica, ao conteúdo, ao contexto e à finalidade.

115.

Nessa apreciação do contexto e da finalidade, há três fatores que se afiguram pertinentes para determinar se um ato da União é suscetível de produzir efeitos jurídicos e se é razoável esperar que seja cumprido.

116.

O primeiro fator a tomar em consideração é o grau de formalização (a medida da União assume a forma de um ato jurídico?) e de definitividade da medida (foi adotada no final, como culminação de um processo de consulta ou, de modo mais geral, de um processo de elaboração de soft law?). Por outras palavras, e juntando os dois aspetos, o ato da União em causa assemelha‑se a um diploma legislativo finalizado?

117.

Quanto ao formato do ato potencialmente recorrível, deve assemelhar‑se a um texto jurídico para que possa ser justificadamente visto como um ato que produz efeitos jurídicos. Neste aspeto, um ato assemelhar‑se‑á a um ato jurídico se, por exemplo, estiver dividido em artigos ou, pelo menos, em secções, se for publicado no Jornal Oficial (certamente na série L, onde a legislação deve ser publicada).

118.

Quanto ao aspeto da definitividade, é pouco provável que os atos preparatórios preencham esta condição. O mesmo é válido para os atos preparatórios no contexto do processo de tomada de decisão da União ( 80 ). Deveria a fortiori ser igualmente válido para os processos de elaboração de soft law. Essa exclusão dos atos preparatórios da fiscalização jurisdicional afigura‑se ainda mais importante no contexto da soft law, em que o processo de consulta pode implicar a adoção de vários atos.

119.

O segundo fator prende‑se com o conteúdo e a finalidade global do ato impugnado: qual o grau de precisão das «obrigações» nele previstas? Qual é a finalidade global por ele prosseguida? Quanto mais gerais e abstratos forem os atos da União, menor será a probabilidade de induzirem os seus destinatários a adotarem um comportamento conforme concreto, específico. Se, por outro lado, o ato da União enunciar uma série de compromissos específicos e precisos, esse elemento é certamente relevante. Além disso, se o texto tiver claramente uma finalidade de harmonização, será ainda mais provável que seja visto como um ato suscetível de produzir efeitos jurídicos.

120.

O terceiro fator diz respeito à coerção. A medida prevê mecanismos claros e específicos de avaliação do cumprimento, coerção ou sanção? Naturalmente, este fator não visa apenas a coerção direta, que dificilmente estará presente, mas a coerção ou mecanismos indiretos, tanto estruturais como institucionais.

121.

Entre os mecanismos estruturais de avaliação do cumprimento poderão figurar vários mecanismos indiretos, como a comunicação de informações, a notificação, os controlos e a supervisão. Poderão ser igualmente relevantes elementos de pressão de grupo, como a publicação de quadros de desempenho, de relatórios que envolvam a identificação e condenação públicas dos prevaricadores, etc.

122.

O elemento institucional também é relevante: que instituição adotou o instrumento em causa? É a mesma instituição que, em áreas de regulamentação conexas, ou até nas mesmas áreas de regulamentação, tem competência para impor sanções aos mesmos destinatários ( 81 )? Se for efetivamente esse o caso, é provável que o ato impugnado induza, de facto, um comportamento conforme.

5.   A aplicação do critério ao presente caso

123.

Olhando para a recomendação controvertida dessa perspetiva, sou forçado a concluir que, no geral, essa recomendação vai consideravelmente além do que se poderia esperar de um documento que simplesmente recomenda certos princípios. Neste caso específico, é efetivamente possível argumentar que essa recomendação produzirá certamente efeitos jurídicos e que o destinatário médio modificará provavelmente o seu comportamento a fim de cumprir, pelo menos em parte, a recomendação.

124.

Se, na análise da verdadeira natureza de um ato, a substância prevalecer sobre a sua designação formal, o que importa analisar, pondo de parte o título formal do documento, é a sua redação, conteúdo, contexto e finalidade para determinar o que ele aparenta ser.

125.

Começando pela finalidade global da recomendação, os seus considerandos ( 82 ) e os documentos que acompanham a sua adoção ( 83 ) estabelecem, de forma bem explícita, que a recomendação visa alcançar um grau mínimo de harmonização, na medida em que se recomendam certos princípios com vista a um elevado nível de proteção dos consumidores, jogadores e menores, relativamente aos serviços de jogo em linha. Simultaneamente, é também claro que o faz num domínio bastante sensível, pelo menos do ponto de vista de alguns Estados‑Membros ( 84 ).

126.

Seguidamente, há vários elementos relativos ao conteúdo e ao contexto que merecem serem destacados. Primeiro, o ato impugnado é um texto extremamente estruturado e com a aparência de um texto jurídico. Possui nada mais nada menos que 30 considerandos. A recomendação em si está dividida em 12 secções numeradas. Foi publicada na série L do Jornal Oficial da União Europeia.

127.

Consequentemente, em virtude da forma que reveste, a recomendação cria a impressão de que produzirá necessariamente efeitos jurídicos. Isso é também confirmado pelo facto de a recomendação não ser um ato preparatório. Representa já a culminação de um processo de consulta, dado que concretiza as disposições de um Livro Verde anterior e de uma comunicação da Comissão. Por conseguinte, cristaliza claramente a posição desta última sobre o tema da proteção dos consumidores no contexto dos serviços de jogo em linha, emitindo algumas recomendações muito concretas aos Estados‑Membros.

128.

Segundo, o nível de detalhe e precisão de disposições concretas da recomendação é extraordinário. Longe de estabelecer meros «princípios», a recomendação define regras bastante claras e precisas.

129.

Eis alguns exemplos: na secção III, a recomendação estabelece pormenorizadamente o conteúdo das informações que devem ser exibidas na página inicial do sítio web de jogo do operador e ser acessíveis a partir de todas as suas páginas. Na secção V, a recomendação convida os Estados‑Membros a assegurar que uma pessoa só possa participar num serviço de jogo em linha quando estiver registada como jogador e detiver uma conta junto do operador. Este último deve verificar os dados de identificação do jogador. A secção VIII visa regular a comunicação comercial. Em especial, obsta a que os Estados‑Membros façam certas declarações, como, por exemplo, apresentar o jogo como socialmente atraente ou sugerir que o jogo pode resolver problemas pessoais.

130.

Terceiro, a recomendação contém «convites» muito detalhados e abrangentes em matéria de supervisão e comunicação de informações. Na secção XI, os Estados‑Membros são «convidados a designar autoridades reguladoras do setor do jogo, ao aplicar os princípios estabelecidos na presente recomendação, para assegurar e controlar de forma independente o cumprimento efetivo das medidas nacionais adotadas em consonância com os princípios estabelecidos na presente recomendação». A secção XII diz respeito à comunicação de informações. De acordo com as suas disposições, não só são os Estados‑Membros convidados a notificar quaisquer medidas de execução à Comissão, como também a recolher dados anuais para fins estatísticos dentro de certos prazos.

131.

No que respeita aos «convites» em matéria de seguimento e supervisão, impõem‑se duas observações. Em primeiro lugar, no passado e em termos gerais, o Tribunal de Justiça terá demonstrado uma sensibilidade especial relativamente à inserção de mecanismos de avaliação do cumprimento ou de controlo em vários instrumentos atípicos. Pelo menos em duas ocasiões, anulou atos atípicos da Comissão porque regulavam pormenorizadamente requisitos de comunicação de informações e possivelmente ultrapassavam o que seria adequado para aquele tipo de ato ( 85 ). Segundo, no contexto desta recomendação específica, é curioso que uma recomendação não vinculativa que os Estados‑Membros não são obrigados a executar espere, ainda assim, que esses Estados‑Membros (ou até mesmo apenas aqueles que decidam aceitar o «convite») designem, controlem notifiquem, avaliem, recolham dados e comuniquem à Comissão informações dentro de determinados prazos relativamente a todas essas atividades (totalmente voluntárias).

132.

O n.o 54 da recomendação dispõe que a Comissão deverá avaliar a implementação da recomendação (sic!) até 19 de janeiro de 2017. No entanto, foi apurado durante a audiência que a Comissão não o fez até agora porque está à espera dos relatórios dos Estados‑Membros antes de elaborar o seu próprio relatório. Nesta fase, diria que o grau de dissonância cognitiva presente em tais argumentos se assemelha a um sofisticado truque mental digno de um Jedi.

133.

Quarto, a recomendação visa induzir os Estados‑Membros a adotarem uma certa legislação e, através dessa legislação, influenciarem as empresas de jogo e os jogadores, que são os seus destinatários indiretos. Assim, embora seja obviamente possível argumentar que, em termos formais, não é a própria recomendação mas a potencial legislação nacional que afetará os direitos de terceiros, dificilmente se poderá negar que a verdadeira fonte da legislação nacional é essa recomendação ( 86 ).

134.

Quinto, embora talvez seja, em si mesmo, um ponto marginal, é interessante chamar a atenção para o considerando 29 e para o n.o 2 da recomendação, a fim de salientar a dissonância entre o conteúdo e o título. Essas disposições referem, respetivamente, que a presente recomendação não interfere com as diretivas (válidas e vinculativas) da União e que não interfere com o direito dos Estados‑Membros de regulamentarem os serviços de jogo. Em face dessas declarações, justifica‑se perguntar por que motivo seria necessário referir expressamente tudo isto se, de facto, a recomendação fosse um ato puramente não vinculativo que não se destinasse a produzir qualquer tipo de efeitos jurídicos. Um verdadeiro instrumento de soft law não vinculativo nunca poderia, por definição, interferir com legislação válida e vinculativa da União nem com as competências dos Estados‑Membros.

135.

Em resumo, com base nesses elementos de finalidade, conteúdo e contexto, se um leitor fosse convidado a ler o texto sem conhecer o título do documento, é seguro presumir que poderia pensar que estava a ler uma diretiva ou, em certos pontos, até mesmo um regulamento, mas seguramente um documento legislativo que pretende impor obrigações claras e precisas e induzir um comportamento conforme.

136.

Só agora me debruçarei sobre a redação utilizada na recomendação, mais concretamente sobre o texto específico de cada disposição (tendo já abordado, nos pontos anteriores desta secção, o nível de detalhe e precisão dessas disposições). O raciocínio desenvolvido pelo Tribunal Geral parece atribuir um papel decisivo à redação. Porém, pelos motivos que procurei explicar, em geral, na secção anterior ( 87 ), entendo que a redação é importante, mas não decisiva, sobretudo se, em si e por si mesma, for de facto inconclusiva.

137.

Tanto nas suas observações escritas como nas alegações orais, o recorrente contestou a apreciação linguística realizada pelo Tribunal Geral no seu despacho. Em especial, o recorrente defendeu que, em duas das três línguas oficiais do Reino da Bélgica (a saber, em neerlandês e em alemão), a redação das disposições afigura‑se mais «intensa» do que noutras versões linguísticas. Assim, a consequência lógica seria a de que a recomendação produz efeitos jurídicos mais «intensos» na Bélgica.

138.

Este argumento específico do recorrente não é convincente. É certo que algumas versões linguísticas poderiam ser vistas como «mais vinculativas» do que outras. É o que acontece, em especial, com as versões alemã, espanhola, neerlandesa e portuguesa. Contrariamente às afirmações do Tribunal Geral, as versões polaca e checa talvez também não sejam conclusivas.

139.

No entanto, o facto de as versões neerlandesa e alemã utilizarem aparentemente uma linguagem mais imperativa do que outras tem pouca relevância. O seu estatuto como línguas oficiais da Bélgica não lhes confere mais peso do que a quaisquer outras versões linguísticas. O bem conhecido princípio de que todas as versões linguísticas de fontes da União devem fazer igualmente fé deveria, no meu entender, ser aplicável às recomendações, tal como o é a qualquer outra medida adotada ao abrigo do artigo 288.o TFUE. É jurisprudência assente que, em caso de disparidade entre versões linguísticas, a disposição em causa deve ser interpretada em função do contexto e da finalidade da regulamentação a que pertence ( 88 ).

140.

São precisamente essas comparações linguísticas discutíveis que demonstram e sublinham a relevância limitada, para a apreciação de tal medida, do número de vezes em que é utilizada a expressão «são convidados a» em vez de «devem». Normalmente, todas as versões linguísticas apontam no mesmo sentido e permitem extrair uma conclusão clara quanto à natureza do texto, dispensando uma análise aprofundada do contexto e da finalidade de uma medida. Quanto existam divergências entre elas, o texto de uma recomendação não deve prevalecer sobre o seu contexto e finalidade. Porém, não é correto afirmar que existem discrepâncias entre as várias versões linguísticas, mas defender, ainda assim, que, uma vez que a maioria refere X, essa deveria ser a interpretação correta. Num sistema em que todas as versões linguísticas produzem igualmente fé, no âmbito da interpretação nenhuma delas pode ser excluída por se encontrar em minoria ( 89 ).

141.

Em última análise, porém, a análise minuciosa da utilização de linguagem (não) imperativa em algumas línguas da União será sempre inconclusiva, especialmente no contexto do exame dos efeitos jurídicos dos instrumentos de soft law. Para esse tipo de apreciação, o contexto, a sistemática e a lógica são muito mais importantes. A declaração «Convido‑o a enviar‑me os seus comentários sobre esta matéria, por escrito, até às 12h00 de sexta‑feira» será inevitavelmente interpretada de modo muito diferente consoante seja proferida por um superior hierárquico, por um colega de uma equipa de investigação ou pelo nosso companheiro. Naturalmente, depende da relação em causa, mas é muito provável que, no primeiro caso, o «convite» seja, de facto, uma ordem, no segundo uma mera sugestão, e no terceiro uma brincadeira.

142.

Em resumo, cada um dos elementos individuais do conteúdo e do contexto, considerados isoladamente, poderia talvez ser, ainda assim, visto como uma recomendação que não visa produzir quaisquer efeitos jurídicos. No entanto, considerados em conjunto, a conjugação destes diferentes elementos no contexto desta recomendação específica, tendo ainda o conta o facto de ter sido adotada pela instituição incumbida da missão de fiscalizar o cumprimento das regras no mesmo domínio (ou seja, a regulamentação do mercado interno), leva‑me a concluir que pretende claramente produzir efeitos jurídicos e induzir um comportamento conforme, indo além de meras sugestões de política.

143.

Por todos estes motivos, considero procedente o terceiro fundamento de recurso do recorrente. O Tribunal Geral cometeu um erro ao apreciar incorretamente os efeitos jurídicos da recomendação em causa e, consequentemente, declarou incorretamente inadmissível o recurso de anulação.

B. A forma determina a substância

144.

Contrariamente aos atos «atípicos» emanados de instituições ou organismos da União, para os quais foi originalmente formulado o critério AETR, as recomendações são atos «típicos» enumerados no artigo 288.o TFUE, que estão expressamente excluídos da fiscalização jurisdicional por força do artigo 263.o, primeiro parágrafo, TFUE. Deve este facto ser relevante para a análise das recomendações e da sua admissibilidade?

145.

A argumentação desenvolvida na parte A das presentes conclusões assentava na premissa de que o critério AETR, embora talvez com alguns ajustamentos, é aplicável às recomendações, bem como a qualquer outra forma de soft law. A primeira parte da presente secção descreve uma abordagem alternativa, que atribuiria maior relevância ao facto de as recomendações serem atos «típicos», relativamente aos quais a forma deveria determinar a interpretação da substância (1). Contudo, por diversos motivos, recomendaria ao Tribunal de Justiça que mantivesse a abordagem (modificada) da prevalência da substância sobre a forma, descrita na parte A das presentes conclusões (2). Se, não obstante, o Tribunal de Justiça entender que, no caso das recomendações, a forma deve efetivamente determinar a interpretação da substância, clarifico seguidamente, de forma concisa, alguns aspetos importantes (3).

1.   Exclusão (completa): uma recomendação é uma recomendação

146.

No seu raciocínio, o Tribunal Geral partiu da premissa de que o critério definido pelo Tribunal de Justiça no acórdão AETR para os atos «atípicos» das instituições e organismos da União também é aplicável a um ato «típico», como as recomendações. Esse ponto de partida poderá ser discutível a dois níveis: normativo e prático. Ao nível normativo, o artigo 288.o TFUE refere claramente que uma recomendação não é vinculativa. Depois, o primeiro período do artigo 263.o, primeiro parágrafo, TFUE exclui explicitamente as recomendações da Comissão do âmbito dessa disposição e, consequentemente, dos recursos de anulação. Essas duas disposições lidas em conjunto afirmam claramente que uma recomendação não pode ser vinculativa e não pode ser objeto de fiscalização.

147.

A isso, acrescente‑se porém a declaração do Tribunal de Justiça no acórdão Grimaldi, que (re)introduziu a apreciação substantiva: as recomendações estão excluídas da fiscalização desde que sejam «verdadeiras recomendações» ( 90 ). Portanto, implicitamente, uma «falsa recomendação» poderia estar sujeita a fiscalização. Não obstante o texto dos Tratados ser bastante claro, encontramos assim algum apoio na jurisprudência do Tribunal de Justiça para aplicar o critério AETR às recomendações, apesar de serem atos «típicos» (a que carecem de força vinculativa, conforme claramente estabelecido no Tratado) ( 91 ).

148.

Não obstante, o que acontece ao nível prático é que, na análise destinada a determinar se um documento é uma recomendação «verdadeira» ou «falsa», o facto de o documento ser designado de recomendação compromete inevitavelmente a apreciação do seu contexto e finalidade. Mais uma vez, um critério que foi concebido para atos «atípicos» tem de ser aplicado em moldes em grande parte indiferentes à forma, ignorando o título/frontispício do documento. Caso contrário, somos inevitavelmente conduzidos a um tipo de raciocínio circular, em que a forma acaba por determinar a interpretação da substância ( 92 ).

149.

Chego assim à possível abordagem alternativa. Nessa abordagem, ao invés de se permitir que a forma de um ato «típico» comprometesse silenciosamente a interpretação da natureza de um ato «atípico», essa distinção seria levada às suas últimas consequências lógicas: uma forma «típica» implica consequências «típicas», independentemente do conteúdo. Uma recomendação nunca será vinculativa e não deveria produzir quaisquer efeitos jurídicos. Ponto final. Não haveria necessidade de realizar qualquer análise adicional para determinar se é uma recomendação «verdadeira» ou «falsa». Uma recomendação é uma recomendação.

150.

Neste aspeto, pode ser traçado um paralelismo com os pareceres emitidos ao abrigo do Tratado CECA: atos que eram também expressamente não vinculativos e não estavam sujeitos a fiscalização. O Tribunal de Justiça confirmou, já em 1957, que esses atos não podiam ser fiscalizados. Em especial, deixou claro que os pareceres fornecem apenas orientações. Eram vistos como «meros conselhos dirigidos às empresas. Estas são, assim, livres de os seguir ou de os ignorar, mas devem compreender que, ao ignorarem um parecer desfavorável, aceitam os riscos decorrentes de uma situação que elas mesmas ajudaram a criar. Por outras palavras, a liberdade de decisão e a responsabilidade das empresas, assim como da Alta Autoridade, não mudam» ( 93 ). Essa mesma declaração poderia ser efetivamente parafraseada in extenso no caso das recomendações.

2.   Substância ou forma?

151.

Há dois argumentos a favor da abordagem formal aos atos jurídicos «típicos»: i) o argumento da segurança jurídica e da previsibilidade, e ii) o argumento da necessidade de uma certa flexibilidade legislativa.

152.

Em primeiro lugar, essa abordagem permanece fiel à letra do artigo 263.o TFUE, que, desde 1957, exclui consistentemente e explicitamente as recomendações e os pareceres do âmbito dos recursos de anulação.

153.

Associados a esse argumento, temos os aspetos da confiança e das expectativas. Embora seja quase sempre apresentado como algo nefasto, o formalismo também tem dimensões positivas. Promove a segurança jurídica e a previsibilidade. O que se chama de charuto deveria ser realmente um charuto, sem a constante necessidade de uma reavaliação substantiva, contextual.

154.

Esta afirmação é particularmente válida em relação a fontes «típicas», formalizadas. Até que ponto poderia alargada a abordagem da prevalência da substância sobre a forma? Será que outras fontes típicas de direito da União, como os regulamentos e as diretivas, deveriam ser também apreciadas quanto ao seu conteúdo verdadeiro, real? Poderiam ser também potencialmente «reclassificadas» em virtude de o seu título não corresponder ao seu conteúdo? Em casos extremos, poderia essa reclassificação conduzir inclusivamente ao afastamento da fiscalização jurisdicional? Poderia o Tribunal de Justiça declarar inadmissível um recurso de anulação de, por exemplo, um regulamento por esse regulamento estar tão mal redigido que, na prática, não esteja apto a produzir quaisquer efeitos jurídicos (vinculativos)?

155.

Em segundo lugar, as recomendações podem ser pontos válidos de referência, inspiração e boas práticas. Podem permitir que diferentes soluções e ideias sejam testadas para determinar quais devem ser desenvolvidas e quais devem ser abandonadas. Deste modo, podem ser vistas como uma espécie de laboratório legislativo. Será talvez justo admitir que, se qualquer recomendação pudesse ser atacada e questionada, essa flexibilidade de um laboratório legislativo deixaria de existir. Em especial, a Comissão poderia ser impedida, na prática, de adotar formas de intervenção mais informais para promover a sua agenda no interesse da União.

156.

A resposta a esses dois argumentos da perspetiva da abordagem da prevalência da substância sobre a forma não é complicada: primeiro, essa abordagem justifica‑se exatamente nos casos em que os limites formais de um ato «típico» não são respeitados. Assim, longe de pôr em causa todos os atos típicos, essa abordagem está, por natureza, reservada a cenários extremos. Segundo, as vantagens de um laboratório legislativo flexível devem ser claramente limitadas pelo princípio da legalidade dos atos públicos e pelo princípio da atribuição de competências. Até mesmo os laboratórios legislativos bem intencionados se podem rapidamente transformar em «legislação sub‑reptícia».

157.

Em contrapartida, há pelo menos três argumentos que militam a favor da abordagem substantiva, descrita na parte A: i) a omnipresença da prevalência da substância sobre a forma; ii) a necessidade de garantir uma proteção jurisdicional efetiva; e iii) a coerência global das vias de recurso previstas no direito da União.

158.

Em primeiro lugar, ainda que existam efetivamente algumas exceções dignas de nota, a abordagem global e a mentalidade no direito da União é simplesmente substantiva: em inúmeras áreas do direito da União, o que é examinado é a substância, a essência de um fenómeno, categoria ou instituição, não a sua denominação formal ou rótulo. A forma é certamente importante. Porém, no direito da União, a forma constitui uma primeira aproximação à verdadeira natureza de um ato. Não é decisiva.

159.

Em segundo lugar, conforme acima explicado detalhadamente ( 94 ), dificilmente se poderá questionar o facto de que as recomendações produzem uma série de efeitos jurídicos significativos, mesmo que não sejam, em rigor, vinculativas no caso concreto. Se assim for, é necessário garantir uma proteção jurídica efetiva. Recorde‑se que no passado, tanto originalmente no acórdão AETR como também em acórdãos posteriores, o Tribunal de Justiça não hesitou em reconhecer a evolução social e jurídica e em preencher as lacunas desse modo criadas na proteção jurídica ( 95 ). Foi igualmente sugerido que o surgimento de novos modos de governação, mais «suaves», traduz essa evolução ( 96 ).

160.

Em terceiro lugar, o argumento respeitante à coerência das vias de recurso previstas no direito da União é relevante a dois níveis: por um lado, a coerência entre o artigo 263.o TFUE (recurso de anulação) e o artigo 267.o TFUE (processo de reenvio prejudicial) e, por outro, a posição dos recorrentes (não) privilegiados nesses processos.

161.

É jurisprudência assente que «[a] fiscalização da legalidade dos atos da União assegurada pelo Tribunal de Justiça nos termos dos Tratados assenta […] em dois processos judiciais complementares. Com efeito, o Tratado FUE estabeleceu, nos seus artigos 263.° e 277.°, por um lado, e no seu artigo 267.o, por outro, um sistema completo de vias de recurso e de meios processuais destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos atos da União, confiando‑a ao juiz da União […]. É inerente a este sistema completo de vias de recurso e de meios processuais que os particulares disponham, no âmbito de um recurso interposto junto de um órgão jurisdicional nacional, do direito de contestar a legalidade das disposições contidas em atos da União que servem de fundamento a uma decisão ou a um ato nacional adotado contra eles […]» ( 97 ).

162.

Importa destacar dois adjetivos que constam dessa citação: «complementares» e «completo». Talvez de forma algo paradoxal, esse segundo adjetivo poderá ser problemático para um recorrente privilegiado, concretamente para um Estado‑Membro que seja «convidado» por uma recomendação a fazer algo, e que se oponha a esse «convite», sem que exista, porém (ainda) um processo relacionado com essa recomendação ao nível nacional.

163.

Por um lado, como já foi explicado ( 98 ), afigura‑se possível apresentar um pedido de decisão prejudicial sobre a validade de uma recomendação. Sendo esse o caso, não se compreende por que motivo seria mais difícil para um recorrente privilegiado impugnar um ato diretamente perante o Tribunal de Justiça com base no artigo 263.o TFUE do que para um recorrente não privilegiado indiretamente com base no artigo 267.o TFUE.

164.

Por outro lado, ainda que prevalecesse a lógica global da complementaridade, desencorajando impugnações diretas da validade e procurando canalizá‑las através do processo de reenvio prejudicial, a posição de um Estado‑Membro não seria muito mais fácil. Na prática, como deveria agir um Estado‑Membro? Deveria primeiro executar a recomendação (o que não desejava fazer) e depois impugná‑la perante os órgãos jurisdicionais nacionais? Deveria simular um litígio?

165.

Sem querer reabrir nenhuma destas questões ( 99 ) basta sublinhar que os Estados‑Membros simplesmente não são particulares que, talvez mais tarde, poderão ser obrigados a cumprir uma medida da União depois de esta lhes ter sido aplicada por uma decisão individual, com base no direito nacional ou no direito da União. São os Estados‑Membros que, antes de mais, são convidados a executar essas regras. Por conseguinte, seria ilógico induzir os Estados‑Membros a adotarem um certo comportamento e, simultaneamente, privá‑los da possibilidade de recorrerem para o Tribunal de Justiça. Isso iria contra os interesses da boa administração da justiça, uma vez que protelaria um possível recurso contra uma recomendação, mas também contra os interesses do autor da própria recomendação. Ao invés de poder canalizar o potencial conflito, resolvê‑lo e seguir em frente, o Estado‑Membro simplesmente seria forçado a recusar‑se a cooperar e a esperar que um dos seus próprios órgãos jurisdicionais e possivelmente um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro apresentassem um pedido de decisão prejudicial ao abrigo do artigo 267.o TFUE sobre a validade do ato impugnado. Não me parece que essa solução faça muito sentido em termos práticos.

3.   As clarificações (potencialmente necessárias)

166.

Em resumo, vislumbro muitas razões válidas para convidar o Tribunal de Justiça a alargar o âmbito do critério AETR modificado, a fim de incluir a potencial fiscalização jurisdicional das recomendações.

167.

Porém, caso o Tribunal de Justiça perfilhe o entendimento de que a forma de um ato «típico» determina a perceção e a interpretação da sua substância, sem que seja necessário um exame autónomo, creio ser essencial clarificar vários pontos. Essas clarificações necessárias estariam, na prática, relacionadas com elementos anteriormente identificados a propósito dos efeitos jurídicos reais das recomendações ( 100 ). Destacaria, em especial, três elementos‑chave: i) o dever de cooperação leal que incumbe aos Estados‑Membros no contexto das recomendações; ii) a inexistência de um efeito de substituição das recomendações relativamente a um potencial e futuro processo legislativo ao nível da União; e iii) a clarificação do alcance da obrigação que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais, enunciada no acórdão Grimaldi.

168.

Em primeiro lugar, as recomendações não são vinculativas nem podem produzir quaisquer efeitos jurídicos. Consequentemente, não podem criar quaisquer direitos ou obrigações, quer para os Estados‑Membros quer para os particulares. No que respeita aos Estados‑Membros, o princípio da cooperação leal não pode ser utilizado para atacar esse entendimento, seja de que modo for. Os Estados‑Membros têm todo o direito de ignorar completamente o conteúdo de uma recomendação sem que haja a possibilidade de impor sanções diretas ou indiretas. Isso é válido tanto para as «obrigações» concretas que os Estados‑Membros são encorajados a cumprir como para quaisquer «convites» à comunicação de informações. De uma recomendação não podem decorrer obrigações positivas nem negativas. Uma recomendação também não pode ser utilizada para definir uma norma ou um conceito jurídico indeterminado que, depois de ter sido concretizado por essa recomendação, seja aplicado contra um Estado‑Membro ou um particular.

169.

Em segundo lugar, uma recomendação, sobretudo uma recomendação pré‑legislativa, é simplesmente uma declaração unilateral, não vinculativa, do entendimento de uma instituição. Se eventualmente for seguida por legislação vinculativa, esse processo legislativo deve começar do zero. Em especial, uma recomendação não pode criar um «atalho» legislativo ou ter um efeito de «substituição», excluindo certos intervenientes do processo legislativo posterior, ou penalizando na prática alguns intervenientes no processo subsequente por estes não terem já apresentado os seus pontos de vista, observações, dados ou relatórios sobre a recomendação e/ou no processo da sua «execução».

170.

Por último, há o acórdão Grimaldi ( 101 ). Se as recomendações não são vinculativas, não podem, por definição, gerar para os órgãos jurisdicionais nacionais a obrigação de tomarem em consideração tais orientações não vinculativas, já para não falar, a fortiori, de qualquer dever de interpretação conforme. Se o Tribunal de Justiça optar por seguir esta linha de uma abordagem mais formal a um ato «típico» de direito da União, seria necessário rever neste ponto o acórdão Grimaldi e afirmar claramente que não existe qualquer obrigação de tomar em consideração uma recomendação. Os órgãos jurisdicionais nacionais podem fazê‑lo se considerarem que seria útil, mas certamente não são obrigados a tal.

171.

Isso significaria então que os órgãos jurisdicionais nacionais deveriam tratar as recomendações como qualquer outra fonte permissível de inspiração no processo de interpretação jurídica, como a doutrina ou o direito comparado. Podem incorporá‑las no seu raciocínio se o desejarem, mas podem também ignorá‑las totalmente, sem estarem obrigados a justificá‑lo.

VII. Conclusão

172.

À luz do exposto, a minha conclusão é que o Tribunal Geral cometeu um erro na sua apreciação dos efeitos jurídicos da recomendação controvertida. O terceiro fundamento de recurso do recorrente deve, por conseguinte, ser julgado procedente, sem necessidade de examinar separadamente o primeiro e segundo fundamentos de recurso. Nessa conformidade, na medida em que declarou o recurso inadmissível, o despacho do Tribunal Geral deve ser anulado.

173.

De acordo com o primeiro parágrafo do artigo 61.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal de Justiça poderá também, após anular a decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado.

174.

No presente caso, o Tribunal de Justiça não está em condições de se pronunciar definitivamente sobre o mérito do recurso interposto no Tribunal Geral. Uma vez que o Tribunal Geral declarou o recurso inadmissível, apenas teve lugar nessa instância um debate muito limitado e, de certa forma, indireto sobre o mérito da causa. Acresce que, pelos mesmos motivos, não foi dada a quaisquer outros intervenientes a possibilidade de apresentarem as suas observações ( 102 ). Caso o Tribunal de Justiça declare o recurso admissível, é provável que esses intervenientes, e possivelmente também outros, estejam interessados em apresentar as suas observações.

175.

Considero, porém, que o Tribunal de Justiça dispõe de todos os elementos necessários para proferir uma decisão que julgue improcedente a exceção de inadmissibilidade suscitada pela Comissão em primeira instância. No interesse da eficiência e economia processual, proponho que o Tribunal de Justiça siga essa via, declarando o recurso admissível e devolvendo o processo ao Tribunal Geral para que este profira uma decisão sobre o mérito.

176.

Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça:

anule o despacho proferido pelo Tribunal Geral da União Europeia no processo T‑721/14 e julgue admissível o recurso de anulação interposto pelo recorrente nesse processo;

devolva o processo ao Tribunal Geral para uma decisão sobre o mérito;

ordene que a decisão quanto às despesas seja reservada para final.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Hart, H. L. A., O Conceito de Direito, 6.a ed. (com um pós‑escrito), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011 (primeira edição da obra original publicada em 1961).

( 3 ) Dworkin, R., Levando os Direitos a Sério (nova edição com uma resposta aos críticos), São Paulo, Martins Fontes, 2002 (primeira edição da obra original publicada em 1977), pp. 23 e segs.

( 4 ) Recomendação 2014/478/UE da Comissão, de 14 de julho de 2014 (JO L 214, p. 38). O sublinhado é nosso.

( 5 ) Despacho de 27 de outubro de 2015, Bélgica/Comissão (T‑721/14, EU:T:2015:829).

( 6 ) COM (2011) 128 final.

( 7 ) COM (2012) 596 final.

( 8 ) P7_TA(2013)0348.

( 9 ) 2012/2322(INI).

( 10 ) IP/14/828 de 14 de julho de 2014, disponível em: http://europa.eu/rapid/press‑release_IP‑14‑828_pt.htm.

( 11 ) MEMO/14/484 de 14 de julho de 2014, versão inglesa disponível em: http://europa.eu/rapid/press‑release_MEMO‑14‑484_en.htm.

( 12 ) Despacho de 27 de outubro de 2015, Bélgica/Comissão (T‑721/14, EU:T:2015:829).

( 13 ) V. n.o 37 do despacho recorrido.

( 14 ) V. n.o 21 e segs. do despacho recorrido.

( 15 ) V. n.o 29 do despacho recorrido.

( 16 ) V. n.os 32 a 35 do despacho recorrido.

( 17 ) V. n.o 36 do despacho recorrido.

( 18 ) V. n.os 38 a 40 do despacho recorrido.

( 19 ) V. n.os 42 a 48 do despacho recorrido.

( 20 ) V. n.os 51 a 52 do despacho recorrido.

( 21 ) V. n.os 54 a 55 do despacho recorrido.

( 22 ) V. n.o 64 do despacho recorrido.

( 23 ) V. n.o 68 do despacho recorrido.

( 24 ) A República Portuguesa e a República Helénica pediram para intervir em apoio do recorrente perante o Tribunal Geral. Porém, uma vez que julgou o recurso inadmissível, o Tribunal Geral declarou que não havia que decidir sobre esses pedidos de intervenção (n.o 86 do despacho recorrido).

( 25 ) O recorrente invoca o parecer 2/00 para salientar a importância constitucional da escolha da base jurídica adequada [parecer 2/00 (Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança), de 6 de dezembro de 2001, EU:C:2001:664, n.o 5). V., também, acórdão de 1 de outubro de 2009, Comissão/Conselho (C‑370/07, EU:C:2009:590, n.o 47).

( 26 ) Acórdãos de 12 de fevereiro de 2009, Comissão/Grécia (C‑45/07, EU:C:2009:81), e de 20 de abril de 2010, Comissão/Suécia (C‑246/07, EU:C:2010:203).

( 27 ) Acórdão de 16 de outubro de 2003, Irlanda/Comissão (C‑339/00, EU:C:2003:545, n.o 71).

( 28 ) Acórdão de 31 de março de 1971, Comissão/Conselho (22/70, EU:C:1971:32).

( 29 ) No meu entender, a interpretação dos efeitos jurídicos (ou da sua inexistência) de uma (potencial) fonte de direito da União, como uma recomendação, é uma questão de direito pura, que, como tal, está sujeita a fiscalização plena em sede de recurso. Iura [item «ius mollis»] novit Curia.

( 30 ) Acórdão de 31 de março de 1971, Comissão/Conselho (22/70, EU:C:1971:32).

( 31 ) Acórdão de 31 de março de 1971, Comissão/Conselho (22/70, EU:C:1971:32).

( 32 ) N.os 39 e 42 desse acórdão (itálico meu). A referência a «atos que produzem efeitos jurídicos» foi então incorporada no artigo 173.o pelo Tratado de Maastricht.

( 33 ) V. acórdãos de 9 de outubro de 1990, França/Comissão (C‑366/88, EU:C:1990:348), e de 6 de abril de 2000, Espanha/Comissão (C‑443/97, EU:C:2000:190).

( 34 ) V. acórdão de 13 de novembro de 1991, França/Comissão (C‑303/90, EU:C:1991:424).

( 35 ) V. acórdãos de 16 de junho de 1993, França/Comissão (C‑325/91, EU:C:1993:245), e de 20 de março de 1997, França/Comissão (C‑57/95, EU:C:1997:164).

( 36 ) V. acórdão de 1 de dezembro de 2005, Itália/Comissão (C‑301/03, EU:C:2005:727), bem como as esclarecedoras conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs (C‑301/03, EU:C:2005:550, n.os 70 e segs.).

( 37 ) V. acórdão de 5 de outubro de 1999, Países Baixos/Comissão (C‑308/95, EU:C:1999:477).

( 38 ) V., em relação aos atos da Alta Autoridade, acórdão de 10 de dezembro de 1957, Société des usines à tubes de la Sarre/Alta Autoridade (1/57 e 14/57, EU:C:1957:13).

( 39 ) V. n.os 16 a 18 do despacho recorrido (o sublinhado é nosso).

( 40 ) V. nota 31 supra.

( 41 ) Em francês, «qui visent à produire des effets de droit»; em alemão, «Rechtswirkungen zu erzeugen»; em italiano, «che miri a produrre effetti giuridici»; em neerlandês, «die beogen rechtsgevolgen teweeg te brengen».

( 42 ) V., por exemplo, despacho de 17 de maio de 1989, Itália/Comissão (151/88, EU:C:1989:201, n.o 21). V., igualmente, acórdão de 5 de outubro de 1999, Países Baixos/Comissão (C‑308/95, EU:C:1999:477, n.o 30). Porém, referindo‑se a meros «efeitos jurídicos», v., por exemplo, acórdão de 1 de dezembro de 2005, Itália/Comissão (C‑301/03, EU:C:2005:727, n.os 22 a 24).

( 43 ) V. acórdãos de 13 de outubro de 2011, Deutsche Post e Alemanha/Comissão (C‑463/10 P e C‑475/10 P, EU:C:2011:656, n.o 36), e de 13 de fevereiro de 2014, Hungria/Comissão (C‑31/13 P, EU:C:2014:70, n.o 54).

( 44 ) V. acórdão de 31 de março de 1971, Comissão/Conselho (22/70, EU:C:1971:32, n.o 39), à luz das conclusões do advogado‑geral A. Dutheillet de Lamothe no processo Comissão/Conselho (22/70, não publicadas, EU:C:1971:23, p. 91), onde afirma que «os artigos 173.° e 189.° do Tratado formam um conjunto coerente». V., também, acórdão de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento (294/83, EU:C:1986:166, n.o 24).

( 45 ) Neste sentido, muito mais kelseniana do que a já referida tradição hartiana, uma vez que esta é muito mais «sociológica». Hart admitiu que uma norma jurídica pode ser vinculativa não apenas por ter sido aprovada em conformidade com uma determinada norma secundária que declara que a norma é vinculativa, mas também porque um grupo de pessoas aceita essa norma como um padrão do seu comportamento, gerando no seio do grupo uma pressão social interna no sentido do seu cumprimento — v. Hart, H. L. A., O Conceito de Direito, 6.a ed. (com um pós‑escrito), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011, capítulos V e VI.

( 46 ) V., por exemplo, acórdãos de 7 de fevereiro de 1979, França/Comissão (15/76 e 16/76, EU:C:1979:29, n.o 7), e de 29 de abril de 2004, Alemanha/Comissão (C‑277/00, EU:C:2004:238, n.o 39).

( 47 ) Tendo em conta a quantidade de obras académicas e a atenção dedicados a esse tema.

( 48 ) Para obras gerais sobre os instrumentos de soft law no contexto da União, v., por exemplo, Wellens, K.C. e Borchardt, G.M., «Soft Law in European Community law», European Law Review 14, 1989, p. 267; Klabbers, J., «Informal Instruments before the European Court of Justice», Common Market Law Review 31, 1994, p. 997; Senden, L., Soft Law in European Community Law, Hart Publishing, Oxford and Portland, Oregon, 2004; Schwarze, J., «Soft Law im Recht der Europäischen Union», Europarecht, 2011, p. 3; Scott, J., «In Legal Limbo: Post‑Legislative Guidance as a Challenge for European Administrative Law», Common Market Law Review 48, 2011, p. 329; Knauff, M., «Europäisches Soft Law als Gegenstand des Vorabentscheidungsverfahrens», Europarecht, 2011, p. 735; Stefan, O., Soft Law in Court. Competition Law, State Aid and the Court of Justice of the European Union, Kluwer, Alphen aan den Rijn, 2013; Bertrand, B., «Les enjeux de la soft law dans l’Union européenne», Revue de l’Union européenne, 2014, p. 73.

( 49 ) V., em especial, estudo do Parlamento Europeu intitulado «Checks and Balances of soft EU rule‑making», Direção‑Geral das Políticas Internas, Departamento Temático C, Direitos dos Cidadãos e dos Assuntos Constitucionais, 2012 (PE 462.433), especialmente pp. 54 a 58.

( 50 ) Por exemplo, o Bundesverwaltungsgericht alemão, acórdão de 15 de novembro de 2010 — 19 BV 10.871 (relativo a circulares administrativas que fixavam taxas de emissão em matéria ambiental).

( 51 ) V. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sueco de 24 de maio de 1996, processo 2904‑1994 (I) (RA 1996 ref 43).

( 52 ) V., por exemplo, em relação a circulares administrativas, acórdão 237/674 do Conseil d’État belga, de 16 de março de 2017; v., também, quanto às tomadas de posição (prises de position) ou relatórios adotados por autoridades administrativas independentes com o poder de impor sanções, acórdãos do Conseil d’État francês de 17 de novembro de 2010, Syndicat français des ostéopathes, n.o 332771; e de 11 de outubro de 2012, Société Casino Guichard‑Perrachon, n.o 357193.

( 53 ) Por exemplo, na Suécia, tanto os organismos públicos como privados podem impugnar a legalidade de um ato administrativo caso o tenham entendido com um ato vinculativo e tenham agido em conformidade com o mesmo [acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de fevereiro de 2004, processo 2696‑03 (RA 2004 ref 8) sobre uma «informação» suscetível de produzir efeitos concretos sobre a situação pessoal e económica do destinatário].

( 54 ) V., por exemplo, sobre uma ação judicial contra um relatório administrativo no contexto de um processo de planeamento, High Court, De Burca c. Wicklow County Manager (2009) IEHE 54; também sobre as orientações da autoridade da concorrência irlandesa, v. High Court, Law Society of Ireland c. Competition Authority (2006) 2 IR 262.

( 55 ) No seu relatório anual de 2013, definiu soft law como o conjunto de instrumentos que cumprem três critérios, a saber: 1) devem ter por finalidade modificar ou orientar o comportamento dos destinatários no sentido do seu cumprimento; 2) não criam, por eles mesmos, direitos ou obrigações para os seus destinatários; 3) representam, pelo seu conteúdo e pela forma como estão estruturados, um grau de formalização e de estruturação que os aproxima das regras de direito (Conseil d’État, Etude annuelle 2013 — Le droit souple, La Documentation française, 2013, pp. 61 a 63).

( 56 ) Conseil d’État, acórdãos de 21 de março de 2016, Numericable, n.o 390023, e de 21 de março de 2016, Société Fairvesta International GmBH, n.o 368082, respetivamente sobre uma prise de position da autoridade da concorrência francesa e sobre comunicados de imprensa da autoridade francesa dos mercados financeiros.

( 57 ) Para alguns dos primeiros estudos sobre esta matéria (agora considerados «clássicos»), v., por exemplo, Morand, C., «Les recommandations, les résolutions et les avis du droit communautaire», Cahiers de droit européen, 1970, p. 523; Soldatos, P., Vandersanden, G., «La recommendation, source indirecte du rapprochement des legislations nationales dans le cadre de la Communauté économique européenne», in De Ripainsel‑Landy, D. et al., Les instruments de rapprochement des législations dans la Communauté économique européenne, Editions de l’Université de Bruxelles, Bruxelas, 1976, p. 94.

( 58 ) V. acórdãos de 29 de setembro de 2011, Arkema/Comissão (C‑520/09 P, EU:C:2011:619, n.o 88), e de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão (C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.o 209 a 211). Porém, para uma abordagem mais flexível em relação às comunicações no contexto do direito da concorrência, v. acórdão de 13 de dezembro de 2012, Expedia (C‑226/11, EU:C:2012:795, n.o 29).

( 59 ) Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.o 13).

( 60 ) A iniciativa «Legislar Melhor» colocou em destaque esta dimensão problemática da soft law. V., em especial, Acordo‑quadro sobre as relações entre o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia (JO 2010, L 304, p. 47). O n.o 43 dispõe, designadamente: «[n]os domínios em que o Parlamento intervém geralmente no processo legislativo, a Comissão utiliza, se adequado e com a devida justificação, instrumentos jurídicos não vinculativos após dar ao Parlamento a possibilidade de expressar as suas opiniões. A Comissão dá explicações pormenorizadas ao Parlamento sobre a forma como as opiniões do Parlamento foram tidas em consideração ao adotar a sua proposta.»

( 61 ) Recorde‑se que foram a atribuição de poderes e o equilíbrio institucional que também levaram o Tribunal de Justiça a proferir o seu acórdão de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento (294/83, EU:C:1986:166, n.o 25).

( 62 ) É esse por acaso o argumento aduzido pelo recorrente no seu segundo fundamento de recurso. De uma certa perspetiva, é verdade que a sujeição da admissibilidade do recurso de anulação à existência de efeitos jurídicos vinculativos (e não apenas de efeitos jurídicos) obsta a que seja garantido que o autor do ato impugnado agiu dentro da sua esfera de competência. Suscita‑se então a questão de saber se apenas podem ser adotados instrumentos de soft law, nomeadamente recomendações, dentro da esfera de competências atribuídas à União e à instituição em causa. Mas (e encontramo‑nos, de certo modo, num beco sem saída) uma vez que não existem tais efeitos jurídicos vinculativos, não é admissível a fiscalização jurisdicional desses instrumentos através de um recurso de anulação.

( 63 ) V. acórdão de 13 de dezembro de 1989, Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.o 16). V., também, acórdãos de 21 de janeiro de 1993, Deutsche Shell (C‑188/91, EU:C:1993:24, n.o 18); de 11 de setembro de 2003, Altair Chimica (C‑207/01, EU:C:2003:451, n.o 41) e de 18 de março de 2010, Alassini e o. (C‑317/08 a C‑320/08, EU:C:2010:146, n.o 40).

( 64 ) Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.o 18).

( 65 ) Em especial, o Tribunal de Justiça recusou‑se a reconhecer que as comunicações da Comissão produzissem tal efeito jurídico [acórdão de 13 de dezembro de 2012, Expedia (C‑226/11, EU:C:2012:795, n.o 31)].

( 66 ) Acórdão de 10 de abril de 1984, von Colson e Kamann (14/83, EU:C:1984:153).

( 67 ) Como sucessivamente desenvolvida e consolidada, por exemplo, nos acórdãos de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.os 114 a 115); de 4 de julho de 2006, Adeneler e o. (C‑212/04, EU:C:2006:443, n.os 108 a 109); e de 15 de abril de 2008, Impact (C‑268/06, EU:C:2008:223, n.os 99 a 101).

( 68 ) V. conclusões no processo Expedia (C‑226/11, EU:C:2012:544, n.os 38 a 39), em que a advogada‑geral J. Kokott considerou que as autoridades e os tribunais nacionais devem ter devidamente em conta as comunicações da Comissão em matéria de política da concorrência. Naquele caso concreto, esse dever implicava, em especial, que essas autoridades e tribunais teriam de tomar em consideração as valorações acerca do caráter sensível das restrições da concorrência, expressas pela Comissão nessas comunicações, e, em caso de divergência, justificá‑la apresentando motivos suscetíveis de verificação judicial.

( 69 ) V. acórdãos de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão (C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.os 209 a 211), e de 29 de setembro de 2011, Arkema/Comissão (C‑520/09 P, EU:C:2011:619, n.o 88).

( 70 ) V. acórdão de 13 de dezembro de 2012, Expedia (C‑226/11, EU:C:2012:795, n.o 26).

( 71 ) Por oposição a fontes permissivas ou persuasivas — v., por exemplo, Peczenik, A. On Law and Reason, Kluwer, Dordrecht, 1989, pp. 319 e segs.

( 72 ) V., por analogia, casos em que a cooperação leal foi utilizada para criar obrigações no contexto do efeito direito, da responsabilidade dos Estados‑Membros por violações do direito da União ou da adoção de sanções (respetivamente, a título exemplificativo, acórdãos de 16 de dezembro de 1976, Comet (45/76, EU:C:1976:191, n.o 12); de 2 de fevereiro de 1977, Amsterdam Bulb (50/76, EU:C:1977:13, n.o 32); e de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428, n.o 36).

( 73 ) Como referido anteriormente (nota 45), esse entendimento restritivo nem sequer é perfilhado em algumas correntes da teoria jurídica positivista. Além disso, esse mesmo entendimento está muito longe do modo como a «intenção não vinculativa» expressa pelo mesmo regulador (que pode também, no dia seguinte, adotar legislação vinculativa e sanções no mesmo domínio ou num domínio conexo) será, na prática, entendida e interpretada pelos seus destinatários. Assim, além das sanções diretas, podem existir também sanções indiretas, certamente em casos de intervenientes recorrentes dos dois lados (o mesmo regulador e o mesmo grupo de destinatários). Recorde‑se que essa lógica similar levou algumas instâncias judiciais nacionais superiores a sujeitar a fiscalização jurisdicional atos «não vinculativos» emanados desse tipo de reguladores (supra, nota 52).

( 74 ) Começando com o acórdão de 18 de dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonie (C‑129/96, EU:C:1997:628).

( 75 ) «Ora, convém recordar que, segundo jurisprudência assente, o facto de um ato de direito comunitário ser desprovido de efeito obrigatório não constitui obstáculo a que o Tribunal decida, no âmbito de um processo prejudicial, nos termos do artigo 177.o, sobre a interpretação desse ato» [acórdãos de 13 de dezembro de 1989, Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.o 9), e de 21 de janeiro de 1993, Deutsche Shell (C‑188/91, EU:C:1993:24, n.o 18 e jurisprudência referida)].

( 76 ) «[…] diferentemente do que acontece com o artigo 173.o do Tratado CEE, que afasta a fiscalização pelo Tribunal de atos com a natureza de recomendações, o artigo 177.o atribui ao Tribunal competência para decidir, a título prejudicial, sobre a validade e a interpretação de atos adotados pelas instituições da Comunidade, sem qualquer exceção» — acórdão de 13 de dezembro de 1989, Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.o 8) — itálico meu.

( 77 ) Acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o. (C‑62/14, EU:C:2015:400). O Tribunal de Justiça não examinou a admissibilidade do recurso de um comunicado de imprensa enquanto tal. V., porém, conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Gauweiler e o. (C‑62/14, EU:C:2015:7, n.o 70 e segs.).

( 78 ) V., por exemplo, acórdãos de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento (294/83, EU:C:1986:166, n.o 23), e de 28 de março de 2017, Rosneft (C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 66).

( 79 ) Especialmente em casos em que a impugnação do ato nacional de transposição perante os órgãos jurisdicionais nacionais simplesmente reflete a mesma questão potencial da própria recomendação — v. sobre esta matéria, por analogia, acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.os 54 a 55).

( 80 ) Acórdão de 12 de setembro de 2006, Reynolds Tobacco e o./Comissão (C‑131/03 P, EU:C:2006:541, n.o 55 e jurisprudência referida).

( 81 ) V., também, nota 73, supra.

( 82 ) Considerandos 8 e 9, citados nos n.os 11 e 12 das presentes conclusões.

( 83 ) V. n.o 30 das presentes conclusões.

( 84 ) V., por exemplo, acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta (C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 51).

( 85 ) Acórdão de 13 de novembro de 1991, França/Comissão (C‑303/90, EU:C:1991:424, n.os 20 a 25), em que um código de conduta de execução de um regulamento do Conselho pedia aos Estados‑Membros que fornecessem informações com uma certa frequência e através de certos meios; acórdão de 16 de junho de 1993, França/Comissão (C‑325/91, EU:C:1993:245, n.os 22 a 23), em que uma comunicação da Comissão que explicitava as disposições de uma diretiva impunha obrigações adicionais, como a comunicação anual de dados financeiros à Comissão em determinada data.

( 86 ) V., também, n.os 102 a 105, supra. V. ainda n.os 97 e 98 e o potencial da recomendação para moldar a interpretação das regras nacionais em vigor no mesmo domínio e com o mesmo objeto.

( 87 ) V. n.o 114, supra.

( 88 ) V., por exemplo, acórdão de 26 de abril de 2012, DR e TV2 Danmark (C‑510/10, EU:C:2012:244, n.o 45 e jurisprudência referida).

( 89 ) Inclusive, para este efeito, as situações extremas em que se afigura evidente que há um erro de tradução em apenas uma das versões linguísticas da medida da União — v., por exemplo, acórdão de 19 de abril de 2007, Profisa (C‑63/06, EU:C:2007:233).

( 90 ) Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.o 16).

( 91 ) O que levou então o Tribunal Geral a afirmar que «o simples facto de a recomendação controvertida ser formalmente designada de recomendação e de ter sido adotada ao abrigo do artigo 292.o TFUE não é suscetível de excluir automaticamente a sua qualificação como ato recorrível» (n.o 20 do despacho recorrido).

( 92 ) Descrito em pormenor, n.os 77 a 79, supra.

( 93 ) Acórdão de 10 de dezembro de 1957, Société des usines à tubes de la Sarre/Alta Autoridade (1/57 e 14/57, EU:C:1957:13) Recueil, p. 115.

( 94 ) V. n.os 87 a 108, supra.

( 95 ) Para um exemplo notável, v., por ex., acórdão de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento (294/83, EU:C:1986:166, n.o 24).

( 96 ) V. n.os 81 a 86, supra.

( 97 ) Acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft (C‑72/15, EU:C:2017:236, n.os 66 a 67 e jurisprudência referida). V., igualmente, parecer 1/09 (Acordo que cria um sistema unificado de resolução de litígios em matéria de patentes) de 8 de março de 2011 (EU:C:2011:123, n.o 70).

( 98 ) V. n.os 106 a 108, supra.

( 99 ) Decidido por acórdão de 1 de abril de 2004, Comissão/Jégo‑Quéré (C‑263/02 P, EU:C:2004:210).

( 100 ) V. n.os 87 a 108, supra.

( 101 ) V. n.os 97 a 101, supra.

( 102 ) V. nota 24, supra.

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