EUR-Lex Acesso ao direito da União Europeia

Voltar à página inicial do EUR-Lex

Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62015CC0627

Conclusões do advogado-geral N. Wahl apresentadas em 14 de setembro de 2017.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2017:690

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 14 de setembro de 2017 (1)

Processo C627/15

Dumitru Gavrilescu

Liana Gavrilescu

contra

SC Banca Transilvania SA, anteriormente denominado SC Volksbank România SA

SC Volksbank România SA – sucursala Câmpulung

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Judecătoria Câmpulung (Tribunal de Primeira Instância de Câmpulung, Roménia)]

«Competência do Tribunal de Justiça — Existência de um litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio — Disposições nacionais que permitem a desistência da instância depois da apresentação de um pedido prejudicial ao Tribunal de Justiça — Disposições nacionais que permitem que um tribunal de recurso proceda à revisão de um despacho de suspensão da instância proferido pelo tribunal de primeira instância, enquanto se aguarda uma decisão do Tribunal de Justiça sobre o pedido prejudicial — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13/CEE — Contratos de mútuo numa divisa estrangeira — Cláusulas subtraídas à apreciação do seu caráter abusivo»






1.        Dumitru e Liana Gavrilescu (a seguir «D. e L. Gavrilescu») celebraram na Roménia um contrato de mútuo com o SC Volksbank România SA (a seguir «Volksbank» ou «banco») em francos suíços, tendo sido estabelecida a obrigação de reembolso na mesma divisa. Durante a vigência do contrato, porém, a divisa local (leu romeno) sofreu uma desvalorização significativa em relação ao franco suíço, o que teve um impacto negativo no valor das prestações mensais devidas ao banco por D. e L. Gavrilescu, uma vez que recebiam a sua remuneração em lei romenos.

2.        D. e L. Gavrilescu decidiram instaurar uma ação contra o Volksbank no Judecătoria Câmpulung (Tribunal de Primeira Instância de Câmpulung, Roménia), invocando, em especial, o caráter abusivo das condições de reembolso do empréstimo na divisa estrangeira. No seu entender, em virtude dessas condições tinham de suportar os riscos associados a eventuais flutuações da taxa de câmbio.

3.        No contexto desse processo, o Judecătoria Câmpulung (Tribunal de Primeira Instância de Câmpulung) decidiu submeter ao Tribunal de Justiça certas questões sobre a interpretação da Diretiva 93/13/CEE (2). No entanto, posteriormente, D. e L. Gavrilescu celebraram um acordo com o Volksbank e, em conformidade com as regras nacionais aplicáveis, decidiram desistir da instância no processo perante o órgão jurisdicional de reenvio.

4.        Não obstante a desistência da instância, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que desejava, por um lado, manter as suas questões e, por outro, submeter duas questões adicionais sobre o âmbito da competência do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.° TFUE.

5.        O presente caso proporciona assim ao Tribunal de Justiça a oportunidade de clarificar a sua jurisprudência sobre a exigência, prevista no artigo 267.° TFUE, de que a sua decisão sobre as questões prejudiciais seja necessária ao julgamento da causa no processo principal.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

6.        Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

7.        O artigo 4.° da Diretiva 93/13 dispõe:

«1.      Sem prejuízo do artigo 7.°, o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.

2.      A avaliação do caráter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

B.      Direito romeno

1.      Lei n.° 193/2000

8.        A Lei n.° 193/2000, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados entre comerciantes e consumidores (Legea nr. 193/2000 privind clauzele abuzive din contractele încheiate între comercianţi şi consumatori), de 10 de novembro de 2000, conforme republicada (3) (a seguir «Lei n.° 193/2000»), destina‑se a transpor a Diretiva 93/13.

2.      Código de Processo Civil

9.        O artigo 406.° do Codul de procedură civilă (Código de Processo Civil romeno) dispõe:

«1)      O autor pode em qualquer altura desistir da instância, na totalidade ou em parte, tanto verbalmente na audiência como através de pedido escrito.

2)      Este pedido deverá ser feito pessoalmente ou por intermédio de um mandatário com procuração com poderes especiais.

3) Se a desistência ocorrer depois da notificação da petição, o órgão jurisdicional condenará o autor, a pedido do réu, nas despesas efetuadas por este último.

4) Se o autor desistir da instância na primeira audiência para a qual as partes são devidamente convocadas ou posteriormente, a desistência só pode fazer‑se com o acordo expresso ou tácito da outra parte. Se o réu não estiver presente na audiência durante a qual o autor declara desistir da instância, o tribunal conceder‑lhe‑á um prazo para manifestar a sua posição relativamente ao pedido de desistência. A falta de resposta dentro desse prazo equivale à aceitação tácita da desistência […].»

10.      O artigo 414.° do Código de Processo Civil romeno dispõe:

«1.      A suspensão da instância é decretada por despacho, que pode ser objeto de recurso, separadamente, para o tribunal hierarquicamente superior. […]

2.      O recurso pode ser interposto enquanto a instância estiver suspensa, tanto contra o despacho de suspensão como contra o despacho de indeferimento do pedido de continuação da instância.»

II.    Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

11.      Resulta dos factos do processo principal conforme expostos pelo órgão jurisdicional de reenvio que, em 5 de setembro de 2008, D. e L. Gavrilescu celebraram um contrato de mútuo com o Volksbank no montante de 45 000 francos suíços (CHF). A duração do empréstimo era de 276 meses, com uma taxa de juro anual de 3,99% O contrato foi sucessivamente alterado pelas adendas n.° 1, de 20 de agosto de 2010, e n.° 2, de 25 de junho de 2013.

12.      O contrato dispunha que, em princípio, todos os pagamentos tinham de ser efetuados na divisa do empréstimo. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, qualquer variação da taxa de câmbio seria suportada, de acordo com as condições do contrato, totalmente pelo mutuário.

13.      O n.° 4.2 das condições gerais dispunha que o mutuário aceitava expressamente que, durante a vigência do contrato de mútuo, se a taxa de câmbio da divisa do empréstimo aumentasse mais de 10% relativamente ao valor da mesma taxa aplicável à data da celebração do contrato, e para evitar que a exposição ao risco cambial continuasse a aumentar, o banco tinha o direito, mas não a obrigação, de converter unilateralmente o empréstimo em lei romenos, utilizando a taxa de câmbio franco suíço/leu romeno por ele aplicada à data da conversão. Consequentemente, o valor do empréstimo corresponderia, a partir desse momento, ao valor em lei romenos que resultasse da conversão. Nesse contexto, os mutuários comprometiam‑se igualmente a suportar todos os custos decorrentes dessa conversão.

14.      Nos termos do n.° 4.3 das condições gerais, os mutuários podiam, na vigência do crédito, pedir ao banco que procedesse à conversão em lei romenos, mas o banco não estava obrigado a satisfazer esse pedido.

15.      Por entenderem que as cláusulas que exigiam o reembolso do empréstimo em francos suíços e que estabeleciam que o risco cambial seria suportado pelos mutuários eram abusivas, D. e L. Gavrilescu instauraram uma ação contra o Volksbank no Judecătoria Câmpulung (Tribunal de Primeira Instância de Câmpulung). Por ter dúvidas quanto à correta interpretação das disposições da Diretiva 93/13, esse órgão jurisdicional decidiu, por despacho de 22 de outubro de 2015, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões para decisão a título prejudicial:

«1.      Deve o artigo 4.°, n.° 2, da [Diretiva 93/13] ser interpretado no sentido de que as expressões “objeto principal do contrato” e “adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro” abrangem uma cláusula, inserida num contrato de [mútuo] celebrado em divisa estrangeira entre um profissional e um consumidor e que não [foi] objeto de negociação individual, com base na qual, para o reembolso em prestações do mútuo, o devedor é obrigado a assumir [sozinho] o “risco cambial”, que consiste no [eventual] efeito negativo constituído [por um] aumento da obrigação mensal de pagamento, decorrente da flutuação das taxas de câmbio, [que o devedor pode ter de] suportar em consequência da [celebração do contrato de mútuo] e do reembolso dos montantes pagos com base no contrato […] numa divisa diferente da moeda nacional romena?

2.      Deve entender‑se, [à luz do] artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13, que a obrigação do consumidor de suportar, no momento do reembolso do mútuo, a diferença resultante do aumento da taxa de câmbio da divisa em que o mútuo foi concedido [francos suíços] representa uma remuneração cuja adequação […] ao serviço prestado não pode [servir de base para] apreciar o seu caráter abusivo?

3.      Caso a resposta à questão anterior [for] no sentido de que tal cláusula não escapa à apreciação do caráter abusivo, pode considerar‑se que a referida cláusula satisfaz as exigências de boa‑fé, de equilíbrio e de transparência previstas na [Diretiva 93/13], permitindo ao consumidor prever, com base em critérios claros e compreensíveis, as consequências que para [ele] decorrem [dela]?

4.      Uma cláusula contratual como a prevista no [n.°] 4.2 das Condições gerais do contrato, segundo a qual [, para evitar o aumento da sua exposição ao risco comercial um] banco, [pode converter em moeda nacional um empréstimo] concedido em [francos suíços se a], taxa de câmbio [aumentar mais de] 10% relativamente ao valor da mesma taxa [aplicável] à data da celebração do contrato, […] sem que seja reconhecido um direito análogo ao consumidor, é abrangida pelo âmbito da proteção da Diretiva 93/13 ou escapa à apreciação do seu caráter abusivo?»

16.      Por carta de 18 de março de 2016, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que os demandantes no processo principal tinham requerido a desistência da instância. Essa circunstância levou o órgão jurisdicional de reenvio a manifestar dúvidas quanto à compatibilidade de uma disposição nacional como o artigo 406.° do Código de Processo Civil romeno com o artigo 267.° TFUE. Nesse cenário, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu submeter ao Tribunal de Justiça uma quinta questão para decisão a título prejudicial:

«O artigo 267.° [TFUE], nos termos do qual os órgãos jurisdicionais nacionais têm a liberdade de recorrer ao [Tribunal de Justiça], opõe‑se a uma disposição, como a prevista no artigo 406.° do Código de Processo Civil romeno, que não proíbe expressamente a desistência da instância depois da apresentação de questões [prejudiciais] ao [Tribunal de Justiça], desistência [essa] que priva o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de se pronunciar sobre o invocado caráter abusivo das cláusulas contratuais?»

17.      Posteriormente, por despacho de 2 de junho de 2016, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que, no âmbito de um recurso contra o seu despacho de 22 de outubro de 2015, interposto pelo Volksbank, o Tribunalul Argeş (Tribunal de Argeş, Roménia) tinha, por decisão de 17 de março de 2016, anulado o despacho e devolvido o processo ao órgão jurisdicional de reenvio para continuação da instância.

18.      Se bem entendi, na sua decisão, o Tribunalul Argeş (Tribunal de Argeş) critica o órgão jurisdicional de reenvio por não ter extraído do pedido de desistência da instância formulado por D. e L. Gavrilescu as devidas consequências previstas no direito nacional. De acordo com as disposições de direito nacional, o órgão jurisdicional de reenvio deveria ter declarado a extinção da instância, o que teria resultado na inutilidade superveniente do pedido de decisão prejudicial apresentado ao Tribunal de Justiça. Nesse cenário, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu submeter ao Tribunal de Justiça uma sexta questão, nova e adicional, para decisão a título prejudicial:

«O artigo 267.° TFUE opõe‑se a disposições de direito nacional, como a prevista no artigo 414.° do Código de Processo Civil, que permite ao tribunal de recurso rever um despacho de suspensão da instância, no âmbito de um recurso, quando, através desse despacho, o juiz competente quanto ao mérito decidiu submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia?»

19.      Foram apresentadas observações escritas pelo Volksbank, pelos Governos polaco e romeno e pela Comissão. O Volksbank, o Governo romeno e a Comissão apresentaram também alegações orais na audiência que teve lugar em 8 de junho de 2017.

III. Análise

20.      Antes de mais, cumpre referir que concordo com o Volksbank, com o Governo romeno e com a Comissão: o Tribunal de Justiça não é competente, nos termos do artigo 267.° TFUE, para se pronunciar sobre a maioria das questões submetidas.

21.      Porém, uma vez que a quinta e sexta questões – que o Judecătoria Câmpulung (Tribunal de Primeira Instância de Câmpulung) aditou posteriormente às quatro questões inicialmente colocadas – dizem precisamente respeito ao âmbito da competência do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.° TFUE, debruçar‑me‑ei, sem mais delongas, sobre essas questões. À luz das respostas dadas a essas questões, tornar‑se‑á evidente que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o Tribunal de Justiça não tem – ou deixou de ter – competência para proferir uma decisão quanto às quatro primeiras questões.

A.      Quinta e sexta questões

22.      Com as suas quinta e sexta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se o artigo 267.° TFUE se opõe (i) a regras processuais nacionais que permitem a desistência da instância depois da apresentação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, privando assim o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de se pronunciar sobre o alegado caráter abusivo das cláusulas contratuais, e (ii) as regras processuais nacionais que permitem a um tribunal de recurso rever um despacho de suspensão da instância, no âmbito de um recurso, quando, através desse despacho, o juiz competente quanto ao mérito decidiu submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

23.      No essencial, essas questões pretendem determinar se as disposições nacionais que obrigam o órgão jurisdicional de reenvio a declarar a extinção da instância no seguimento da desistência da instância por parte dos demandantes são incompatíveis com o direito da União. De outra perspetiva, as referidas questões consistem em saber se nesse caso ainda se pode considerar que o litígio no processo principal está pendente para efeitos do artigo 267.° TFUE.

1.      Competência do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.° TFUE

24.      Como já tive a oportunidade de salientar no processo Gullotta (4), o papel e as funções do Tribunal de Justiça são regulados, tal como os de qualquer outra instituição da União Europeia, pelo princípio da atribuição. A este respeito, o artigo 13.°, n.° 2, TUE dispõe: «Cada instituição atua dentro dos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados, de acordo com os procedimentos, condições e finalidades que estes estabelecem.» Consequentemente, a competência do Tribunal de Justiça é estabelecida pelo sistema jurisdicional previsto nos Tratados, ao qual apenas se pode recorrer quando estejam preenchidas as condições estabelecidas nas disposições aplicáveis.

25.      No que respeita aos pedidos de decisão prejudicial, o artigo 267.° TFUE faz depender expressamente a competência do Tribunal de Justiça do preenchimento de certas condições. Mais concretamente, nos termos do primeiro parágrafo desta disposição, as questões submetidas devem incidir sobre disposições de direito da União cuja interpretação ou validade suscite dúvidas no processo principal. Além disso, de acordo com o segundo parágrafo da mesma disposição, o organismo que procede ao reenvio deve ser um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro e a decisão sobre a questão submetida deve ser necessária ao julgamento da causa no processo principal.

26.      Estas condições devem estar preenchidas não só no momento em que o órgão jurisdicional nacional apresenta o pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, mas também ao longo de todo o processo. Se essas condições não estiverem preenchidas, ou se deixarem de estar preenchidas, o Tribunal de Justiça deve declarar‑se incompetente, podendo fazê‑lo em qualquer momento durante o processo (5).

27.      De crucial importância no presente processo é a condição de a decisão do Tribunal de Justiça sobre as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio ser necessária ao julgamento da causa no processo principal. Esta condição significa, em especial, que terá de estar pendente no órgão jurisdicional de reenvio um verdadeiro litígio, e que a resposta a dar pelo Tribunal de Justiça terá de ser relevante para a resolução desse litígio. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem declarado sistematicamente que resulta tanto dos termos como da economia do artigo 267.° TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe que esteja efetivamente pendente nos órgãos jurisdicionais nacionais um litígio no âmbito do qual eles são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão prejudicial (6).

28.      A justificação para tal condição reside na própria função atribuída ao Tribunal de Justiça pelo artigo 267.° TFUE: contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros (7), facilitando a resolução efetiva de litígios respeitantes ao direito da União, e não formular opiniões de natureza consultiva sobre questões gerais ou hipotéticas (8).

29.      É neste contexto que examinarei mais detalhadamente a quinta e sexta questões submetidas pelo Judecătoria Câmpulung (Tribunal de Primeira Instância de Câmpulung).

2.      Disposições nacionais que permitem a desistência da instância depois da apresentação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça

30.      O órgão jurisdicional de reenvio manifestou dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, de disposições nacionais, como o artigo 406.° do Código Civil romeno, que permitem a desistência da instância depois da apresentação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. Explica que a desistência da instância tem o efeito de privar o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de se pronunciar sobre pedidos relacionados com cláusulas abusivas nos contratos com os consumidores.

31.      Não creio que essas dúvidas sejam justificadas. Pelos motivos que explicarei abaixo, não vislumbro qualquer razão para considerar que uma regra processual nacional que permite a desistência da instância depois da apresentação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, provocando assim a inutilidade superveniente do processo de reenvio prejudicial, é incompatível com o artigo 267.° TFUE. Muito pelo contrário: essa regra nacional está plenamente de acordo com o espírito do artigo 267.° TFUE.

a)      Princípios da autonomia privada e da boa administração da justiça

32.      Desde logo, importa não esquecer que as regras que permitem que os demandantes desistam da totalidade ou de parte da instância – especialmente em matéria civil e comercial – são absolutamente cruciais para a boa administração da justiça. Essas regras constituem a expressão do princípio da autonomia privada (também designado em algumas ordens jurídicas por «princípio dispositivo»): a decisão de recorrer à via judicial para fazer valer os seus direitos e o alcance dessa decisão dependem, em última análise, da vontade da pessoa em causa (9).

33.      Com efeito, em muitas ordens jurídicas, – incluindo no âmbito de processos perante os tribunais da União Europeia (10) – a faculdade de desistir da instância pode ser exercida unilateralmente pelo demandante, sem que o demandado possa deduzir oposição. A obrigação (ou até a mera possibilidade) de um órgão jurisdicional dar continuidade ao processo quando já não existe nenhum litígio perante ele não serviria qualquer fim útil: deixa de haver um pedido sobre o qual os juízes se possam pronunciar. Com efeito, tal obrigação serviria apenas para agravar o problema da acumulação de processos judiciais (que afeta muitos órgãos jurisdicionais) e aumentar a despesa pública.

34.      A continuação «forçada» da instância poderia, além disso, desencorajar as partes de celebrarem acordos judiciais ou extrajudiciais, um objetivo que é prosseguido por muitos sistemas jurídicos (11). Nessa matéria, saliente‑se que, nos termos do artigo 147.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, salvo disposição em contrário, «[se], antes de o Tribunal decidir, as partes chegarem a acordo sobre a solução a dar ao litígio e informarem o Tribunal de que renunciam às suas pretensões, o presidente ordena o cancelamento do processo no registo e decide sobre as despesas em conformidade com o disposto no artigo 141.°, tendo em conta, se for caso disso, aquilo que haja sido proposto pelas partes».

35.      A interpretação do artigo 267.° TFUE proposta pelo órgão jurisdicional de reenvio não é compatível com os princípios supramencionados.

b)      É inútil responder a questões hipotéticas

36.      Mais importante ainda, o Tribunal de Justiça tem sistematicamente afirmado que não pode responder a questões que lhe tenham sido submetidas a título prejudicial quando o processo perante o órgão jurisdicional de reenvio já tiver terminado (12). O mesmo princípio é aplicável quando, embora ainda não se tenha verificado formalmente a extinção da instância no processo nacional, a interpretação do direito da União solicitada ao Tribunal de Justiça já não tenha qualquer utilidade porque o processo principal perdeu, de facto, o seu objeto (13).

37.      Por exemplo, o Tribunal de Justiça declarou que é inútil responder a certas questões prejudiciais quando, não obstante o facto de o órgão jurisdicional de reenvio não ter retirado o pedido prejudicial apresentado nos termos do artigo 267.° TFUE, as pretensões da demandante no processo principal tinham sido integralmente satisfeitas (14). O Tribunal de Justiça reconheceu igualmente que, em princípio, o demandante no processo principal pode privar de utilidade o reenvio prejudicial, bastando para tal desistir da instância no processo perante o órgão jurisdicional de reenvio (15).

38.      Em todos esses processos, as questões prejudiciais tinham‑se tomado hipotética, dado que as disposições de direito da União cuja interpretação era solicitada pelo órgão jurisdicional nacional não podiam ser subsequentemente aplicadas no processo principal. O mero desejo do órgão jurisdicional de reenvio de manter uma ou mais questões, não obstante o processo principal ter ficado privado do seu objeto, não podia alterar esta situação (16). É evidente que o desejo do órgão jurisdicional nacional de manter o seu pedido de decisão prejudicial não pode ter o efeito de alargar o âmbito da competência atribuída ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.° TFUE. Tão‑pouco é relevante que a resposta do Tribunal de Justiça possa ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio (ou a outros órgãos jurisdicionais nacionais) no contexto de outros processos pendentes que suscitem questões similares (17) ou de futuros processos que possam estar relacionados com o processo principal (18).

39.      Com efeito, a resposta do Tribunal de Justiça deve ser aplicável, com caráter vinculativo inquestionável (19), no próprio processo em que as questões foram suscitadas (20). A resposta do Tribunal de Justiça a um pedido apresentado nos termos do artigo 267.° TFUE, ainda que formulada de forma abstrata, baseia‑se sempre no contexto factual e jurídico do processo efetivamente pendente no órgão jurisdicional de reenvio. Não obstante as suas semelhanças, processos distintos poderão apresentar certas diferenças que sejam relevantes para a resposta a dar pelo Tribunal de Justiça.

40.      É por este motivo que, nas suas «Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais», o Tribunal de Justiça declarou que «[q]uando o desfecho de vários processos pendentes perante [o órgão jurisdicional de reenvio] depender da resposta que o Tribunal de Justiça der às questões submetidas [por esse órgão jurisdicional], pode ser útil apensar esses processos para efeitos do pedido de decisão prejudicial, a fim de permitir ao Tribunal de Justiça responder às questões submetidas apesar da eventual retirada de um ou vários processos»(21).

c)      Consequências para o processo no Tribunal de Justiça

41.      A interpretação do artigo 267.° TFUE proposta pelo órgão jurisdicional de reenvio também teria consequências importantes para o processo no Tribunal de Justiça.

42.      Primeiro, é natural que as partes no processo principal se abstivessem frequentemente de apresentar observações ao Tribunal de Justiça (pois não teriam interesse em fazê‑lo) ou só o fizessem para referir a inutilidade superveniente da lide no processo principal. Essa situação é ilustrada pelo presente processo: os demandantes no processo principal (D. e L. Gavrilescu) não apresentaram observações escritas nem compareceram na audiência oral, e o demandado no processo principal (Volksbank Romania) apresentou observações escritas e orais que incidem, em grande parte, sobre a competência do Tribunal de Justiça. Nesse caso, o Tribunal de Justiça pronunciar‑se‑ia sobre as questões substantivas suscitadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, não obstante as partes no processo principal terem aduzido poucos ou nenhuns argumentos sobre essas questões. Facilmente se compreende que esse não é o cenário ideal.

43.      Segundo, e mais importante ainda, as partes no processo em que o acórdão do Tribunal de Justiça seria aplicado (pelo órgão jurisdicional de reenvio ou por outros órgãos jurisdicionais) ficariam, em substância, privadas da possibilidade de intervir no processo no Tribunal de Justiça. No meu entender, isso constituiria uma utilização indevida, ou, no mínimo, uma tramitação pouco ortodoxa do processo previsto no artigo 267.° TFUE. Enquanto esses casos semelhantes ou futuros não forem objeto de um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, não possuem – da perspetiva deste último – «maturidade» suficiente para efeitos de uma decisão (22).

d)      Princípio da autonomia processual

44.      A interpretação do artigo 267.° TFUE aqui proposta também é mais consentânea com o princípio da autonomia processual. Segundo jurisprudência assente, na falta de regras da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro estabelecer as regras processuais aplicáveis nas ações destinadas a proteger os direitos dos cidadãos, desde que, no entanto, não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (23).

45.      No presente caso, creio que ambos os princípios são respeitados. Segundo a minha leitura, o artigo 406.° do Código de Processo Civil romeno é aplicável indistintamente a ações fundadas numa alegada violação do direito da União e a ações semelhantes fundadas numa alegada violação do direito nacional (24). Além disso, dificilmente se poderá considerar que esta disposição torna impossível na prática, ou excessivamente difícil, o exercício de direitos conferidos pelo direito da União: as pessoas que aleguem uma violação da Diretiva 93/13 terão apenas de continuar o processo já iniciado para que a sua pretensão seja apreciada pelos órgãos jurisdicionais nacionais competentes.

46.      É verdade que, no domínio da proteção dos consumidores, o Tribunal de Justiça impôs alguns limites ao princípio da autonomia processual, a fim de proteger adequadamente os direitos dos consumidores, uma vez que estes se encontram geralmente numa situação de inferioridade face aos profissionais (25). No entanto, essas exceções diziam respeito a casos em que as regras processuais nacionais dificultavam ou tornavam impossível, no contexto de processos judiciais pendentes, a proteção dos direitos dos consumidores. Essa situação devia‑se, em especial ao facto de o consumidor ignorar os seus direitos ou ter dificuldade em exercê‑los (26) (por exemplo, não ter sido ouvido ou ter sido impedido de invocar as disposições da Diretiva 93/13, ou o juiz não poder suscitar oficiosamente questões ao abrigo desta diretiva) (27). Assim, a intervenção oficiosa do órgão jurisdicional «compensou» a impossibilidade de o consumidor defender adequadamente os seus direitos no contexto de processos judiciais.

47.      Em contrapartida, no presente caso, D. e L. Gavrilescu conheciam perfeitamente os direitos que a Diretiva 93/13 confere aos consumidores, uma vez que instauraram uma ação judicial para fazer valer os seus alegados direitos ao abrigo dessa diretiva. Mais tarde, porém, tomaram conscientemente a decisão de desistir da instância porque – presume‑se – consideraram o acordo proposto pelo banco satisfatório. Assim, neste caso, não existe qualquer desconhecimento ou dificuldade de exercício de direitos por parte do consumidor que deva ser «compensado» pela intervenção oficiosa do órgão jurisdicional nacional.

48.      Além disso, a intervenção oficiosa do órgão jurisdicional nacional no processo principal traduzir‑se‑ia em contrariar e subverter a vontade inequívoca do consumidor. No entanto, o Tribunal de Justiça tem sistematicamente afirmado que os atos do órgão jurisdicional nacional neste contexto não podem contrariar a vontade inequívoca dos consumidores em causa (28).

49.      Neste contexto, devo salientar que o que aconteceu no processo principal não é, de modo algum, invulgar ou anómalo: muitas vezes, os demandantes instauram a ação exatamente com a intenção de forçar os demandados a satisfazerem as suas pretensões ou, pelo menos, de os encorajar a encetarem negociações tendo em vista um possível acordo. Assim, a desistência da instância deve‑se frequentemente ao facto de os pedidos do demandante serem satisfeitos na íntegra, ou em medida por ele considerada satisfatória, no contexto de um acordo extrajudicial. A desistência também poderá resultar da ponderação, por parte do demandante, dos custos do processo em relação aos potenciais benefícios, à luz das suas probabilidades de sucesso.

50.      É óbvio que, em alguns casos, o consumidor pode aperceber‑se, no decurso do processo, de que é provável que a sua ação seja julgada total ou parcialmente improcedente. Nesses casos, a continuação «forçada» da instância – resultante da recusa do órgão jurisdicional nacional de ter em consideração a vontade das partes – poderia ter um efeito «perverso»: se o consumidor acabasse por ser a parte vencida, o banco poderia revogar a sua proposta inicial e, possivelmente, obter junto dele o reembolso das despesas legais incorridas (incluindo os custos adicionais decorrentes da continuação «forçada» da instância).

51.      Na verdade, é bem possível que seja essa a situação no presente processo. Com efeito, dos documentos juntos aos autos não resulta claramente que os dois conjuntos de cláusulas contratuais impugnadas pelos demandantes no processo principal com fundamento no seu caráter alegadamente abusivo violem as disposições da Diretiva 93/13. No que respeita às cláusulas que exigem que o empréstimo seja reembolsado na divisa em que foi contraído e que, como tal, impõem sobre os consumidores um certo «risco cambial», vários elementos indicam que essas cláusulas poderão escapar a uma avaliação do seu caráter abusivo porque incidem sobre o «objetivo principal do contrato» na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13 (29). Acresce que, relativamente à cláusula que confere ao banco o direito de converter o empréstimo na divisa local em certas condições – apesar de ser altamente improvável que esteja abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13 (30) –, o seu potencial caráter abusivo não é de modo algum evidente (31).

52.      Uma vez que, de acordo com as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, as exigências de D. e L. Gavrilescu foram em larga medida aceites pelo banco no acordo entre eles negociado, podemos apenas especular se teria sido sensato, da sua perspetiva, prosseguir os processos judiciais. Embora não caiba ao Tribunal de Justiça tomar posição sobre essa questão, é indiscutível que, em muitos casos, a intervenção oficiosa do órgão jurisdicional nacional iria contrariar a vontade das partes e, em última análise, poderia frustrar, ao invés de concretizar, o objetivo de proteger a parte mais fraca.

53.      Assim, a interpretação do artigo 267.° TFUE proposta pelo órgão jurisdicional de reenvio não só contraria o texto e a finalidade dessa disposição, como também é incompatível com alguns princípios gerais de direito da União. Além disso, longe de corrigir o desequilíbrio existente entre o consumidor e o profissional, a intervenção oficiosa do juiz nacional poderia, pelo menos em alguns casos, ser contraproducente para o consumidor.

e)      Necessidade de distinguir o presente caso do processo Matei

54.      Por último, resta‑me chamar a atenção para a necessidade de distinguir o presente caso do processo Matei (32), que é reiteradamente mencionado no despacho de reenvio. Nesse processo, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que, não obstante as partes terem celebrado um acordo, não podia homologar esse acordo por não ser compatível com o direito nacional. Consequentemente, o processo ainda se encontrava pendente no órgão jurisdicional de reenvio. Em contrapartida, no presente caso, os demandantes desistiram da instância em conformidade com o direito nacional, como reconheceu o órgão jurisdicional de reenvio nas cartas dirigidas ao Tribunal de Justiça.

55.      Além disso, enquanto no processo Matei o acordo entre as partes teria ficado cristalizado na decisão do órgão jurisdicional nacional (adquirindo assim potencialmente autoridade de caso julgado), no presente caso D. e L. Gavrilescu não ficam impedidos de instaurar uma nova ação se considerarem que as cláusulas contratuais estabelecidas no acordo com o Volksbank violam as disposições da Diretiva 93/13.

f)      Conclusão provisória

56.      Neste cenário, nenhum dos elementos ao dispor do Tribunal de Justiça põe em causa a conformidade de uma regra processual nacional como a que está em causa com o direito da União. À luz do exposto, entendo que o artigo 267.° TFUE não se opõe a regras processuais nacionais que permitem a desistência da instância depois da apresentação de questões ao Tribunal de Justiça, ainda que essa desistência prive o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de se pronunciar sobre o alegado caráter abusivo das cláusulas contratuais.

57.      A resposta proposta à quinta questão prejudicial parece suficiente para resolver o presente caso: uma vez que já não se encontra pendente qualquer litígio no Judecătoria Câmpulung, não é necessário responder a qualquer outra questão apresentada por esse órgão jurisdicional. Porém, uma vez que a sexta questão está intimamente ligada à quinta questão, analisarei agora, por motivos de exaustividade, a dúvida por ela suscitada.

3.      Disposições nacionais que permitem a um tribunal de recurso rever um despacho de suspensão da instância

58.      Segundo jurisprudência assente, o artigo 267.° TFUE não se opõe a que as decisões de um órgão jurisdicional cujas decisões sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, e que tenha submetido um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, continuem a estar sujeitas às vias normais de recurso previstas pelo direito nacional, que permitem ao órgão jurisdicional superior resolver, ele próprio, o litígio objeto do reenvio prejudicial e, portanto, assumir a responsabilidade de assegurar a observância do direito da União (33).

59.      Em conformidade com este princípio, o Tribunal de Justiça concluiu noutras ocasiões – por exemplo, nos processos Pohotovosť (34)bem como BNP Paribas Personal Finance e Facet (35) – que um processo pode ficar privado do seu objeto se um órgão jurisdicional de recurso decidir, segundo as normas de direito processual nacional aplicáveis, anular a recusa do órgão jurisdicional de reenvio de ter em conta a desistência da recorrente no processo principal, e ordenar a retirada do pedido de decisão prejudicial apresentado por esse órgão jurisdicional.

60.      Embora a formulação do acórdão Pohotovost’ (36) pareça, à primeira vista, deixar ao Tribunal de Justiça uma certa discricionariedade para decidir se naquele tipo de situação é possível, ainda assim, prosseguir a instância, essa seria obviamente uma leitura incorreta do acórdão.

61.      A margem de manobra de que o Tribunal de Justiça dispõe neste contexto – e à qual se refere o acórdão Pohotovost’ – só pode respeitar à apreciação da importância, do peso e da credibilidade das informações que lhe forem fornecidas, pelas partes ou por outros órgãos jurisdicionais diferentes do órgão jurisdicional de reenvio, sobre a extinção ou a inutilidade superveniente da lide no processo principal.

62.      Com efeito, no que toca à competência do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.° TFUE, encontramo‑nos perante uma situação em que não existe meio‑termo: ou o Tratado confere ao Tribunal de Justiça o poder (e a obrigação) de conhecer do processo, ou não o faz. Por um lado, desde que seja competente e que o pedido seja admissível, o Tribunal de Justiça está obrigado a pronunciar‑se sobre todos os processos que lhe forem submetidos nos termos do artigo 267.° TFUE(37) Por outro lado, o Tribunal de Justiça não pode decidir conhecer de um processo que não esteja abrangido pela sua competência.

63.      Assim, quando as informações recebidas pelo Tribunal de Justiça revelem inequivocamente a inutilidade superveniente da lide no processo principal, aquele está obrigado a declarar‑se incompetente. É precisamente o que acontece no presente processo, uma vez foi o próprio órgão jurisdicional de reenvio que informou o Tribunal de Justiça de que os demandantes tinham desistido (licitamente, em conformidade com o direito nacional) da instância.

64.      Importa salientar que a razão pela qual o tribunal de recurso criticou o despacho de suspensão da instância do órgão jurisdicional de reenvio é exatamente o facto de este último se ter recusado a extrair as devidas consequências da desistência da instância por parte dos demandantes. A decisão do tribunal de recurso não dizia respeito – como observou o Governo romeno – aos aspetos desse despacho que estavam relacionados com o pedido de decisão prejudicial apresentado ao abrigo do artigo 267.° TFUE.

65.      A situação em causa no processo principal é, portanto, semelhante à que foi analisada pelo Tribunal de Justiça, por exemplo, nos processos Nationale Loterij (38) e Cloet e Cloet (39): o tribunal de recurso interpretou e aplicou a disposição nacional em causa de modo a decidir apenas sobre o próprio litígio, com base em regras que não implicavam a interpretação de disposições de direito da União. Ao contrário da situação analisada no processo Cartesio (40), a regra processual nacional em causa no processo principal não foi interpretada ou aplicada de modo a privar o órgão jurisdicional de reenvio da possibilidade de submeter uma questão prejudicial.

66.      À luz das considerações precedentes, entendo que o artigo 267.° TFUE não se opõe a regras processuais nacionais que permitem a um tribunal de recurso rever, no âmbito de um recurso, um despacho de suspensão da instância a fim de determinar se o processo ainda está pendente, mesmo que, através desse despacho, o juiz competente quanto ao mérito tenha decidido submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.

4.      Observações finais

67.      Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda à quinta e sexta questões prejudiciais no sentido de que o artigo 267.° TFUE não se opõe a regras processuais nacionais que permitem a desistência da instância depois da apresentação de questões ao Tribunal de Justiça, ainda que essa desistência prive o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de se pronunciar sobre o alegado caráter abusivo das cláusulas contratuais. Além disso, essa disposição não se opõe a regras processuais nacionais que permitem a um tribunal de recurso rever, no âmbito de um recurso, um despacho de suspensão da instância a fim de determinar se o processo ainda está pendente, mesmo que, através desse despacho, o juiz competente quanto ao mérito tenha decidido submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.

68.      Daqui decorre que o Tribunal de Justiça já não é competente para responder às quatro primeiras questões. Uma vez que as regras nacionais que permitem a desistência da instância não são incompatíveis com o direito da União, já não existe um processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio para efeitos do artigo 267.° TFUE. Consequentemente, essas questões tornaram‑se hipotéticas. Nestes termos, proponho que, em conformidade com o artigo 100.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça declare que não é necessário responder à primeira, segunda, terceira e quarta questões prejudiciais.

IV.    Conclusão

69.      Concluindo, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas, a título prejudicial, pelo Judecătoria Câmpulung nos seguintes termos:

–        O artigo 267.° TFUE não se opõe a regras processuais nacionais que permitem a desistência da instância depois da apresentação de questões ao Tribunal de Justiça, ainda que essa desistência prive o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de se pronunciar sobre o alegado caráter abusivo das cláusulas contratuais;

–        O artigo 267.° TFUE não se opõe a regras processuais nacionais que permitem a um tribunal de recurso rever, no âmbito de um recurso, um despacho de suspensão da instância a fim de determinar se o processo ainda está pendente, quando, através desse despacho, o juiz competente quanto ao mérito tenha decidido submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29).


3      Mais recentemente republicada no Monitorul Oficial al României, parte I, n.° 543 de 3 de agosto de 2012.


4      Conclusões apresentadas no processo Gullotta e Farmacia di Gullotta Davide & C. (C‑497/12, EU:C:2015:168, n.os 16 a 19 e referências citadas).


5      V. artigo 100.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.


6      V., em especial, despacho de 5 de junho de 2014, Antonio Gramsci Shipping e o. (C‑350/13, EU:C:2014:1516, n.° 10 e jurisprudência aí referida).


7      V., entre muitos outros, acórdão de 15 de setembro de 2011, Unió de Pagesos de Catalunya (C‑197/10, EU:C:2011:590, n.° 18 e jurisprudência aí referida).


8      V., entre outros, acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2014:101, n.° 29 e jurisprudência aí referida).


9      V., recentemente, conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo British Airways/Comissão, C‑122/16 P, EU:C:2017:406, n.os 84 e 85 e referências citadas. Em geral, relativamente à importância desse princípio, v. também conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Belov (C‑394/11, EU:C:2012:585, n.° 45, nota 39): «O princípio dispositivo, nos termos do qual a abertura, o termo e a organização do processo incumbe[m] às partes, vigora nos Códigos de Processo (Civi[l]) de vários Estados‑Membros e permite às partes, por exemplo, pôr termo a um litígio através de um acordo, renunciando [assim] a uma sentença.»


10      V., em especial, artigo 148.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Para um exemplo, v. despacho do presidente do Tribunal de 19 de março de 1996, Comissão/Grécia (C‑120/94, EU:C:1996:116, n.os 5 a 13).


11      Para dar apenas um exemplo, as regras da Organização Mundial do Comércio («OMC») dispõem: «É preferível uma solução mutuamente aceitável para as partes e conforme aos acordos [da OMC] [em vez do recurso ao sistema de resolução de litígios]» (itálico meu) (v. artigo 3.°, n.° 7, do Memorando de Entendimento sobre as Regras e Processos que regem a Resolução de Litígios).


12      V., em especial, acórdãos de 21 de abril de 1988, Pardini, 338/85, EU:C:1988:194, n.os 10 e11, e de 16 de julho de 1992, Lourenço Dias (C‑343/90, EU:C:1992:327, n.° 18).


13      V., nesse sentido, acórdão de 15 de junho de 1995, Zabala Erasun e o. (C‑422/93 a C‑424/93, EU:C:1995:183, n.° 30).


14      V. acórdãos de 12 de março de 1998, Djabali (C‑314/96, EU:C:1998:104, n.os 15 a 23), e de 20 de janeiro de 2005, García Blanco (C‑225/02, EU:C:2005:34, n.os 29 a 32.)


15      V., neste sentido, acórdão de 17 de maio de 2001, TNT Traco (C‑340/99, EU:C:2001:281, n.° 34).


16      V., neste sentido, despachos de 10 de junho de 2011, Mohammad Imran (C‑155/11 PPU, EU:C:2011:387, n.os 16 a 22), e de 22 de outubro de 2012, Šujetová (C‑252/11, não publicado, EU:C:2012:653, n.° 10 e segs).


17      V. acórdão de 20 de janeiro de 2005, García Blanco (C‑225/02, EU:C:2005:34, n.os 22 a 24 e 30 a 32). V. também conclusões da advogada‑geral J. Kokott no mesmo processo, n.° 34.


18      V., em especial, despacho de 10 de junho de 2011, Mohammad Imran (C‑155/11 PPU, EU:C:2011:387, n.os 19 e 20).


19      V., neste sentido, acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o. (C‑62/14, EU:C:2015:400, n.° 12 e jurisprudência aí referida).


20      V., neste sentido, acórdão de 3 de fevereiro de 2014, Da Silva (C‑189/13, não publicado, EU:C:2014:2043, n.° 34).


21      Ponto 25 (itálico meu) (JO 2016 C 439, p. 1).


22      Emprego aqui um termo muito utilizado no direito norte‑americano. Como referiu a Court of Appeal for the Second Circuit dos EUA, «a “maturidade constitucional” (“constitucional ripeness”) é uma doutrina […] que limita o poder dos órgãos jurisdicionais, na medida em que os impede de interpretarem a lei em abstrato e de formularem normas jurídicas de caráter geral, a menos que a resolução de um litígio efetivamente pendente o exija. […] A “maturidade prudencial” (“prudential ripeness”) é, portanto, um instrumento que os órgãos jurisdicionais podem utilizar para melhorar o rigor das suas decisões e evitar o envolvimento em decisões que possam mais tarde revelar‑se inúteis ou exigir um exame prematuro, em especial, questões constitucionais que, com o decurso do tempo, podem tornar‑se menos complexas ou controversas» (v. acórdão Simmonds c. Immigration and Naturalization Service, 326 F.3d 351, 357 (2d Cir. 2003). Estas considerações parecem‑me, mutatis mutandis, pertinentes no presente contexto.


23      V., entre muitos outros, acórdão de 17 de março de 2016, Bensada Benallal (C‑161/15, EU:C:2016:175, n.° 24 e jurisprudência aí referida).


24      V., no mesmo sentido, acórdão de 20 de outubro de 2016, Danqua (C‑429/15, EU:C:2016:789, n.° 30).


25      V., nesse sentido, acórdão de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o. (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980, n.° 56).


26      V. acórdão de 26 de outubro de 2006, Mostaza Claro (C‑168/05, EU:C:2006:675, n.° 28 e jurisprudência aí referida).


27      V., por exemplo, acórdãos de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164); de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349); e de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing (C‑137/08, EU:C:2010:659).


28      V., por exemplo, acórdãos de 4 de junho de 2009, Pannon GSM (C‑243/08, EU:C:2009:350, n.° 33 e dispositivo), e de 21 de fevereiro de 2013, Banif Plus Bank (C‑472/11, EU:C:2013:88, n.° 35). V. também conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Duarte Hueros (C‑32/12, EU:C:2013:128, n.° 53), e conclusões do advogado‑geral M. Szpunar nos processos Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:15, n.os 69 e 70).


29      Sobre esta questão, v. minhas conclusões no processo Andriciuc e o. (C‑186/16, EU:C:2017:313, n.os 34 a 59).


30      Em primeiro lugar, uma cláusula como a que está em causa não incide sobre a essência da relação entre o banco e o consumidor, mas sim sobre um aspeto secundário dessa relação. Com efeito, a referida cláusula é acessória no esquema geral do contrato: limita‑se a conceder ao mutuante a faculdade de converter a divisa do crédito noutra divisa. Além disso, é separável do resto do contrato: se essa cláusula não existisse, as características essenciais do contrato de mútuo seriam as mesmas. Em segundo lugar, a referida cláusula não parece incidir sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços fornecidos, por outro. Não prevê a prestação de qualquer serviço pelo banco em contrapartida da obrigação imposta aos consumidores. A faculdade concedida ao banco – que pode ser exercida livre e unilateralmente por este, sem que seja concedida uma faculdade semelhante aos consumidores – não pode, portanto, constituir uma «remuneração» cuja adequação como contrapartida de um serviço prestado pelo mutuante pudesse ser apreciada. Sobre estas questões, v., em geral, acórdãos de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai (C‑26/13, EU:C:2014:282, n.os 36 a 59), e de 23 de abril de 2015, Van Hove (C‑96/14, EU:C:2015:262, n.os 33 a 39).


31      Nesse aspeto, o órgão jurisdicional nacional teria de determinar, inter alia, se o possível desequilíbrio entre as partes criado por essa cláusula é, nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13, «em detrimento do consumidor». Essa conclusão não é automática: o objetivo declarado do n.° 4.2 das condições gerais do contrato de mútuo no caso em apreço era «evitar a continuação do aumento da exposição ao risco cambial». Consequentemente, o efeito dessa cláusula parece ser, pelo menos indiretamente, também a proteção do consumidor. Possivelmente, será também no interesse do banco que o consumidor evite uma situação de incumprimento no caso de desvalorização significativa da divisa local em relação à divisa estrangeira em que o crédito foi concedido.


32      Acórdão de 26 de fevereiro de 2015, Matei (C‑143/13, EU:C:2015:127, n.os 37 a 42).


33      V. acórdão de 9 de setembro de 2015, X e van Dijk (C‑72/14 e C‑197/14, EU:C:2015:564, n.° 62 e jurisprudência aí referida).


34      Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2014:101, n.° 33).


35      Despacho do presidente do Tribunal de 25 de setembro de 2013, BNP Paribas Personal Finance e Facet (C‑564/12, EU:C:2013:642).


36      O n.° 33 do acórdão dispõe o seguinte: «Só quando o órgão jurisdicional de recurso decidir, segundo as normas de direito processual nacional aplicáveis, anular a recusa do órgão jurisdicional de reenvio de ter em conta a desistência da recorrente no processo principal e ordenar a retirada do pedido de decisão prejudicial apresentado por esse órgão jurisdicional é que o Tribunal de Justiça pode considerar retirar as consequências da decisão do órgão jurisdicional de recurso arquivando eventualmente o processo e eliminando‑o do registo do Tribunal de Justiça depois de ter recolhido, se for caso disso, as observações do órgão jurisdicional de reenvio a este respeito.» (itálico meu.)


37      V. acórdãos de 19 de dezembro de 1968, De Cicco (19/68, EU:C:1968:56, p. 478), e de 26 de janeiro de 2017, Banco Primus (C‑421/14, EU:C:2017:60, n.° 29).


38      Acórdão de 15 de dezembro de 2016, Nationale Loterij (C‑667/15, EU:C:2016:958).


39      Despacho de 4 de junho de 2009, Cloet e Cloet (C‑129/08, EU:C:2009:347).


40      Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723).

Início