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Documento 62014CJ0375

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 28 de janeiro de 2016.
Processo penal contra Rosanna Laezza.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Frosinone.
Reenvio prejudicial — Artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Jogos de fortuna e azar — Acórdão do Tribunal de Justiça que declarou a legislação nacional sobre as concessões para a atividade de recolha de apostas incompatível com o direito da União — Reorganização do sistema através de um novo concurso — Cessão, a título gratuito, da utilização de bens materiais e imateriais na posse do concessionário e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas — Restrição — Razões imperiosas de interesse geral — Proporcionalidade.
Processo C-375/14.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2016:60

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

28 de janeiro de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Jogos de fortuna e azar — Acórdão do Tribunal de Justiça que declarou a legislação nacional sobre as concessões para a atividade de recolha de apostas incompatível com o direito da União — Reorganização do sistema através de um novo concurso — Cessão, a título gratuito, da utilização de bens materiais e imateriais na posse do concessionário e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas — Restrição — Razões imperiosas de interesse geral — Proporcionalidade»

No processo C‑375/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunale di Frosinone (Itália), por decisão de 9 de julho de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de agosto de 2014, no processo penal contra

Rosanna Laezza,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente da Segunda Secção, exercendo funções de presidente da Terceira Secção, A. Arabadjiev, C. Toader (relatora), E. Jarašiūnas e C. G. Fernlund, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: V. Giacobbo‑Peyronnel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 17 de setembro de 2015,

vistas as observações apresentadas:

em representação de R. Laezza, por D. Agnello, R. Jacchia, A. Terranova, F. Ferraro e M. Mura, avvocati,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Marrone e S. Fiorentino, avvocati dello Stato,

em representação do Governo belga, por J. Van Holm, L. Van den Broeck e M. Jacobs, na qualidade de agentes, assistidas por P. Vlaemminck, B. Van Vooren e R. Verbeke, advocaten,

em representação da Comissão Europeia, por E. Montaguti e H. Tserepa‑Lacombe, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de novembro de 2015,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra R. Laezza por infração à legislação italiana que regula a recolha de apostas.

Quadro jurídico

3

O artigo 10.o, n.os 9‑G e 9‑H, do Decreto‑Lei n.o 16, que aprova disposições urgentes em matéria de simplificação fiscal, de melhoria da eficácia e de reforço dos procedimentos de controlo (decreto‑legge — Disposizioni urgenti in materia di semplificazioni tributarie, di efficientamento e potenziamento delle procedure di accertamento), de 2 de março de 2012 (GURI n.o 52, de 2 de março de 2012), convertido, após alteração, na Lei n.o 44, de 26 de abril de 2012 (suplemento ordinário do GURI n.o 99, de 28 de abril de 2012, a seguir «Decreto‑Lei de 2012»), prevê:

«9‑G   No âmbito de uma reorganização das disposições em matéria de jogos públicos, incluindo apostas sobre eventos desportivos, igualmente hípicos, e não desportivos, as disposições do presente número têm por objetivo favorecer essa reorganização através de um primeiro alinhamento temporal dos prazos das concessões relativas à recolha das apostas em causa, respeitando a exigência de adaptação das regras nacionais de seleção de pessoas que, por conta do Estado, recolhem apostas sobre eventos desportivos, igualmente hípicos, e não desportivos, aos princípios estabelecidos no acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 16 de fevereiro de 2012, nos processos [Costa e Cifone (C‑72/10 e C‑77/10, EU:C:2012:80)]. Para o efeito, atendendo à caducidade próxima de um grupo de concessões para a recolha das referidas apostas, a Administração Autónoma dos Monopólios do Estado [(posteriormente Agência das Alfândegas e dos Monopólios — Agenzia delle dogane e dei Monopoli, a seguir ‘ADM’»)] abre imediatamente, e, em todo o caso, o mais tardar em 31 de julho de 2012, um concurso para a seleção das pessoas responsáveis pela recolha dessas apostas, respeitando, pelo menos, os seguintes critérios:

a)

possibilidade de participação das pessoas que já exerciam uma atividade de recolha de jogos num dos Estados do Espaço Económico Europeu, para aí terem a sua sede legal ou operacional, ao abrigo de uma autorização válida e eficaz, emitida segundo as disposições em vigor na ordem jurídica do referido Estado, e que sejam igualmente idóneas e fiáveis e possuam as capacidades económicas e patrimoniais indicadas pela [ADM] tendo em conta as disposições na matéria, indicadas na Lei n.o 220, [que aprova disposições para a elaboração do orçamento anual e plurianual do Estado (Lei de estabilidade de 2011) [legge n.o 220 — Disposizioni per la formazione del bilancio annuale e pluriennale dello Stato (legge di stabilita’ 2011)], de 13 de dezembro de 2010 (suplemento ordinário do GURI n.o 297, de 21 de dezembro de 2010, conforme alterada pela Lei n.o 111, de 15 de julho de 2011 (a seguir ‘Lei de estabilidade de 2011’), e pelo Decreto‑Lei n.o 98, de 6 de julho de 2011, convertido, com alterações, na Lei n.o 111, de 15 de julho de 2011;

b)

adjudicação de concessões, válidas até 30 de junho de 2016, para a recolha, exclusivamente numa rede física, de apostas sobre eventos desportivos, igualmente hípicos, e não desportivos, em agências, até ao máximo de 2000, que tenham por atividade exclusiva a comercialização de produtos de jogos públicos, sem obrigação de distâncias mínimas entre as agências ou relativamente a outros pontos de recolha, já ativos, de apostas idênticas;

c)

prevê‑se, como componente do preço, um valor de base do mercado de 11000 euros por agência;

d)

celebração de contratos de concessão de teor conforme aos princípios estabelecido no referido acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 16 de fevereiro de 2012, bem como com as disposições nacionais compatíveis, em vigor em matéria de jogos públicos;

e)

possibilidade de gerir as agências em qualquer município ou província, sem limites numéricos de caráter territorial nem condições mais favoráveis em comparação com concessionários já autorizados a recolher apostas idênticas ou que, em todo o caso, se possam revelar favoráveis a estes últimos;

f)

constituição de cauções em conformidade com o disposto no artigo 24.o do Decreto‑Lei n.o 98, de 6 de julho de 2011, convertido, após alteração, na Lei n.o 111, de 15 de julho de 2011.

9‑H   Os concessionários para a recolha das apostas referidas no n.o 9‑G, cujos contratos terminem em 30 de junho de 2012, prosseguem a atividade de recolha até à data da celebração dos contratos de concessão adjudicados em conformidade com o referido número.»

4

Com fundamento nas disposições anteriormente referidas do Decreto‑Lei de 2012, foram atribuídas concessões por um período de 40 meses, enquanto as concessões anteriormente adjudicadas o haviam sido por um período entre nove e doze anos.

5

Nos termos do artigo 1.o, n.o 77, da Lei de estabilidade de 2011:

«Para assegurar um equilíbrio correto entre os interesses públicos e privados no âmbito da organização e da gestão dos jogos públicos, tendo em conta o monopólio do Estado em matéria de jogos […] bem como os princípios, igualmente da União Europeia, em matéria de seleção concorrencial, que se aplicam neste setor, e contribuindo igualmente para consolidar as bases de uma maior eficiência e eficácia das ações de luta contra a difusão do jogo irregular ou ilegal em Itália, da proteção dos consumidores, em especial dos menores, da ordem pública, da luta contra o jogo de menores e a infiltração do crime organizado no setor dos jogos […], [a ADM] procede, de imediato, à atualização do esquema‑tipo de contrato que permite aceder às concessões para o exercício e a recolha, que não se efetuam à distância, mas, em todo o caso, através de uma rede física, dos jogos públicos.»

6

Segundo o artigo 1.o, n.o 78, alínea b), ponto 26, da Lei de estabilidade de 2011, o contrato de concessão deve obrigatoriamente conter uma cláusula que preveja «a cessão a título gratuito ou […] a devolução da rede de infraestruturas de gestão e de recolha de apostas à [ADM] no termo do prazo da concessão, exclusivamente a pedido prévio desta, comunicado, pelo menos, seis meses antes do termo do referido prazo, ou comunicado no momento da decisão de revogação ou de caducidade da concessão».

7

O projeto de contrato de concessão, junto ao concurso organizado durante o ano de 2012 (a seguir «projeto de contrato»), enuncia as causas de revogação e de caducidade das concessões.

8

Assim, segundo o artigo 23.o, n.o 2, alíneas a), e) e k), do projeto de contrato, a revogação ou a caducidade podem ocorrer, nomeadamente, em caso de sujeição a apreciação judicial das infrações que a ADM considere passíveis de excluir a fiabilidade, o profissionalismo e a idoneidade necessárias do concessionário, em caso de organização, exercício e recolha de jogos públicos de acordo com modalidades e técnicas diferentes das previstas nas disposições legislativas, regulamentares e contratuais em vigor, ou ainda em caso de violação da legislação em matéria de repressão das apostas e do jogo, constatada pelos órgãos competentes.

9

O artigo 25.o do projeto de contrato prevê:

«1.   A pedido expresso da ADM, e para o período estabelecido por esta, o concessionário obriga‑se, no momento da cessação da atividade devido ao termo do prazo da concessão ou por efeito de decisões de caducidade ou de revogação, a ceder a título gratuito à ADM ou a outro concessionário por ela designado por concurso público a utilização dos bens materiais e imateriais na sua posse e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas, livres de direitos e de reclamações de terceiros, nos termos previstos nos números seguintes.

2.   Os bens objeto da cessão são designados no inventário e nas respetivas alterações posteriores, de acordo com as disposições do artigo 5.o, n.o 1, alínea e).

3.   As operações de cessão — que devem ocorrer no âmbito de uma negociação entre a ADM e o concessionário, com redação das respetivas atas — terão início nos seis meses que antecedem o termo do prazo do contrato, respeitando a exigência de não comprometer, durante esse período, o bom funcionamento do sistema, uma vez que os bens deverão ser devolvidos à ADM em condições que permitam assegurar a continuidade do funcionamento da rede telemática. Os custos da eventual transferência física dos aparelhos, do equipamento e de qualquer outro componente da rede telemática são da responsabilidade do concessionário.

[…]».

Litígio no processo principal e questão prejudicial

10

A Stanley International Betting Ltd, sociedade registada no Reino Unido, assim como a sua filial maltesa, a Stanleybet Malta Ltd, desenvolvem a sua atividade em Itália no domínio da recolha de apostas através de operadores denominados «centros de transmissão de dados» (a seguir «CTD»). Os titulares dos CDT exercem a sua atividade em Itália há cerca de quinze anos, com base numa relação sob a forma contratual do mandato, sem possuírem título de concessão nem autorização de polícia.

11

Em 5 de junho de 2014, na sequência de uma inspeção efetuada pela Polícia Aduaneira e Financeira (Guardia di Finanza) de Frosinone (Itália) às instalações de um CDT gerido por R. Laezzae, filiado da Stanleybet Malta Lda, que permitiu descobrir o exercício, nessa agência, de uma atividade não autorizada de recolha de apostas, procedeu‑se à apreensão de determinados equipamentos informáticos utilizados para a receção e transmissão dessas apostas.

12

Por decisão de 10 de junho de 2014, o juiz de instrução do Tribunale di Cassino (tribunal de Cassino) validou essa apreensão e ordenou a apreensão preventiva dos referidos equipamentos.

13

R. Laezza apresentou no órgão jurisdicional de reenvio um pedido de anulação da decisão de apreensão. Nesse pedido, a interessada fez igualmente referência ao recurso interposto pelas sociedades do grupo Stanley, às quais o CDT por si gerido está filiado, contra o concurso organizado, com fundamento no artigo 10.o, n.os 9‑G e 9‑H, do Decreto‑Lei de 2012, para as concessões de jogos de fortuna e azar em Itália, invocando a sua natureza discriminatória.

14

O órgão jurisdicional de reenvio observa que o Consiglio di Stato (Conselho de Estado) já submeteu ao Tribunal de Justiça duas questões prejudiciais relativas, designadamente, à duração reduzida das novas concessões em relação às antigas, no processo que deu origem ao acórdão Stanley International Betting e Stanleybet Malta (C‑463/13, EU:C:2015:25), mas considera que o direito da União não se opõe à disposição nacional que fixa essa duração.

15

Todavia, este órgão jurisdicional recorda que o artigo 25.o do projeto de contrato prevê a obrigação de o concessionário, no momento da cessação da atividade pela ocorrência do termo do prazo da concessão ou por efeito de decisões de caducidade ou de revogação, ceder a título gratuito a utilização dos bens materiais e imateriais na sua posse e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas.

16

Ora, de acordo com o referido órgão jurisdicional, embora essa disposição, sem precedente legislativo em Itália, possa eventualmente ser justificada por uma lógica de sanção, no caso de caducidade ou de revogação da concessão, revela‑se especialmente desvantajosa nos casos em que a cessação da atividade ocorre apenas devido ao termo do prazo da concessão. Acresce, ainda, a obrigação de o concessionário suportar todos os custos dessa cessão a título gratuito.

17

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre se tal diferença de tratamento entre os anteriores e os novos concessionários pode ser justificada por uma exigência imperativa de interesse público.

18

Neste contexto, o Tribunale de Frosinone (tribunal de Frisonone) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

Quanto à questão prejudicial

19

Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que impõe ao concessionário a cessão, a título gratuito, no momento da cessação da atividade devido ao termo do prazo da concessão ou por efeito de decisões de caducidade ou de revogação, da utilização dos bens materiais e imateriais na sua posse e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas.

20

A título preliminar, importa sublinhar que, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 27 e 28 das suas conclusões, o processo principal diz apenas respeito à compatibilidade do artigo 25.o do projeto de contrato com o direito da União e não pode ser analisado como pretendendo pôr globalmente em causa o novo sistema de concessões implementado em Itália, em 2012, no setor dos jogos de fortuna e azar.

Quanto à existência de uma restrição das liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE

21

Em primeiro lugar, há que recordar que devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento e/ou à livre prestação de serviços as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício das liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE (acórdão Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 45 e jurisprudência referida).

22

O Tribunal de Justiça já decidiu que uma legislação de um Estado‑Membro que sujeita o exercício de uma atividade económica à obtenção de uma concessão e prevê diversos casos de caducidade da concessão constitui um entrave às liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE (acórdão Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 46 e jurisprudência referida).

23

No caso dos autos, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 62 e 63 das suas conclusões, uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que impõe ao concessionário a cessão, a título gratuito, no momento da cessação da atividade, incluindo no caso em que essa cessação ocorre apenas devido ao termo do prazo da concessão, da utilização dos bens utilizados para a recolha das apostas, pode tornar menos atraente o exercício dessa atividade. Com efeito, o risco que corre uma empresa de ter de ceder, sem contrapartida financeira, a utilização de bens na sua posse é suscetível de a impedir de rentabilizar o seu investimento.

24

Por conseguinte, há que declarar que a disposição nacional em causa no processo principal constitui uma restrição às liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.

Quanto ao caráter pretensamente discriminatório da restrição às liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE

25

Em segundo lugar, importa precisar que, embora o Tribunal de Justiça já tenha identificado um certo número de razões imperiosas de interesse geral que podem ser invocadas para justificar uma restrição às liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE, estes objetivos não podem ser invocados para justificar restrições aplicadas de forma discriminatória (v., neste sentido, acórdão Blanco e Fabretti, C‑344/13 e C‑367/13, EU:C:2014:2311, n.o 37).

26

Com efeito, se a disposição restritiva em causa no processo principal fosse discriminatória, apenas poderia ser justificada por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, previstas nos artigos 51.° TFUE e 52.° TFUE, entre as quais não figuram a luta contra a criminalidade ligada aos jogos de fortuna e azar nem a continuidade da atividade legal de recolha de apostas, invocadas no caso em apreço (v., por analogia, acórdão Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, C‑451/03, EU:C:2006:208, n.o 36 e jurisprudência referida).

27

A este respeito, R Laezza alega que a disposição em causa no processo principal é discriminatória, uma vez que institui uma diferença de tratamento entre os operadores que obtiveram uma concessão no concurso organizado com fundamento no artigo 10.o, n.os 9‑G e 9‑H, do Decreto‑Lei de 2012 e os operadores que obtiveram uma concessão nos concursos anteriores, já que estes últimos operadores puderam beneficiar de um período mais longo de amortização dos seus bens antes de serem submetidos à obrigação eventual de cessão, a título gratuito, da utilização dos bens utilizados para a atividade de recolha de apostas no termo do prazo da concessão.

28

Todavia, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 66 e 67 das suas conclusões, parece decorrer dos elementos apresentados ao Tribunal de Justiça que a disposição em causa no processo principal se aplica indistintamente a todos os operadores que participaram no concurso lançado em 2012 com fundamento no artigo 10.o, n.os 9‑G e 9‑H, do Decreto‑Lei de 2012, independentemente do local de estabelecimento.

29

Assim, a circunstância de as autoridades italianas terem decidido alterar, num determinado momento, as condições em que todos os operadores autorizados desempenham a sua atividade de recolha de apostas no território italiano não parece pertinente para a apreciação do eventual caráter discriminatório da disposição em causa no processo principal.

30

No entanto, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, após uma análise global de todas as circunstâncias que envolvem o novo processo de concurso, apreciar se a referida disposição tem caráter discriminatório.

Quanto à justificação da restrição às liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE

31

Em terceiro lugar, importa apreciar se a restrição que a disposição em causa no processo principal constitui para as liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE pode ser admitida a título de medidas derrogatórias, por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, expressamente previstas nos artigos 51.° TFUE e 52.° TFUE, aplicáveis, igualmente, em matéria de livre prestação de serviços nos termos do artigo 62.o TFUE, ou justificada, no caso de o órgão jurisdicional de reenvio considerar que esta disposição é aplicada de modo não discriminatório, por razões imperiosas de interesse geral (v., neste sentido, acórdão Digibet e Albers, C‑156/13, EU:C:2014:1756, n.o 22 e jurisprudência aí referida), como a proteção dos consumidores e a prevenção da fraude e da incitação dos cidadãos a uma despesa excessiva ligada ao jogo (acórdão HIT e HIT LARIX, C‑176/11, EU:C:2012:454, n.o 21 e jurisprudência referida).

32

A este respeito, no que se refere à regulamentação italiana dos jogos de fortuna e azar, o Tribunal de Justiça declarou que o objetivo relacionado com a luta contra a criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar é suscetível de justificar as restrições às liberdades fundamentais que decorrem desta regulamentação (v., neste sentido, acórdão Biasci e o., C‑660/11 e C‑8/12, EU:C:2013:550, n.o 23).

33

No caso vertente, o Governo italiano alega que a disposição em causa no processo principal é justificada, no quadro do objetivo da luta contra a criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar, pelo interesse em assegurar a continuidade da atividade legal de recolha de apostas a fim de conter o desenvolvimento de uma atividade ilegal paralela.

34

Esse objetivo pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral capaz de justificar uma restrição às liberdades fundamentais como a que está em causa no processo principal.

35

A identificação dos objetivos efetivamente prosseguidos pela referida disposição é, em todo o caso, da competência do órgão jurisdicional de reenvio (v., neste sentido, acórdão Pfleger e o., C‑390/12, EU:C:2014:281, n.o 47).

Quanto à proporcionalidade da restrição às liberdades garantidas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE

36

Em quarto lugar, importa analisar se a restrição em causa no processo principal é adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não ultrapassa o que é necessário para o atingir, dado que uma legislação nacional restritiva só preenche este requisito se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma maneira coerente e sistemática (v., neste sentido, acórdão HIT e HIT LARIX, C‑176/11, EU:C:2012:454, n.o 22 e jurisprudência referida).

37

A este respeito, recorde‑se que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, tendo em conta as indicações do Tribunal de Justiça, verificar, através da apreciação global das circunstâncias que envolvem a adjudicação de novas concessões, se a restrição em causa no processo principal preenche os requisitos que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça quanto à sua proporcionalidade (v., neste sentido, acórdão Digibet e Albers, C‑156/13, EU:C:2014:1756, n.o 40 e jurisprudência referida).

38

Quanto à questão de saber se a restrição em causa no processo principal é adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido, o órgão jurisdicional de reenvio deverá analisar, designadamente, como salientou o advogado‑geral nos n.os 91 a 93 das suas conclusões, se a circunstância de a cessão, a título gratuito, à ADM ou a outro concessionário da utilização dos bens materiais e imateriais que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas não ser imposta de modo sistemático mas ocorrer apenas «[a] pedido expresso da ADM» é suscetível de afetar ou não a aptidão da disposição em causa no processo principal para atingir o objetivo prosseguido.

39

No que se refere à questão de saber se esta disposição ultrapassa o que é necessário para atingir o objetivo prosseguido, não se pode excluir que, no caso da caducidade ou da revogação, a título de sanção, do contrato de concessão em causa, a cessão, a título gratuito, à ADM ou a outro concessionário da utilização dos bens materiais e imateriais que constituam a rede de gestão e de recolha de apostas é proporcionada.

40

Em contrapartida, esse não é necessariamente o caso, como salientou o advogado‑geral no n.o 88 das suas conclusões, quando a cessação da atividade ocorre apenas devido ao termo do prazo da concessão.

41

Com efeito, no caso de o contrato de concessão, celebrado por um prazo sensivelmente mais curto do que os contratos celebrados antes da adoção do Decreto‑Lei de 2012, se extinguir pelo decurso natural do prazo, o caráter gratuito dessa cessão forçada parece contrário à exigência de proporcionalidade, especialmente quando o objetivo da continuidade da atividade de recolha de apostas possa ser alcançado através de medidas menos restritivas, como a cessão forçada, mas a título oneroso ao preço de mercado dos bens em causa.

42

Como salientou o advogado‑geral nos n.os 96 e 97 das suas conclusões, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, no quadro da análise da proporcionalidade da disposição em causa no processo principal, ter igualmente em conta o valor venal dos bens objeto da cessão forçada.

43

Além disso, importa sublinhar a violação do princípio da segurança jurídica a que a falta de transparência da disposição em causa no processo principal é suscetível de dar origem. Com efeito, esta disposição, que prevê que a cessão a título gratuito da utilização de bens que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas, aplica‑se não de modo sistemático mas apenas «[a] pedido expresso da ADM» e não precisa as condições nem as modalidades em que esse pedido expresso deve ser formulado. Ora, as condições e modalidades de um concurso, como o que está em causa no processo principal, devem ser formuladas de modo claro, preciso e unívoco (v., neste sentido, acórdão Costa e Cifone, C‑72/10 e C‑77/10, EU:C:2012:80, n.o 92 e dispositivo).

44

Vistas todas as considerações expostas, há que responder à questão colocada que os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição nacional restritiva, como a que está em causa no processo principal, que impõe ao concessionário a cessão, a título gratuito, no momento da cessação da atividade devido ao termo do prazo da concessão, da utilização dos bens materiais e imateriais na sua posse e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas, sempre que essa restrição ultrapasse o que é necessário para a realização do objetivo efetivamente prosseguido por essa disposição, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

45

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

Os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição nacional restritiva, como a que está em causa no processo principal, que impõe ao concessionário a cessão, a título gratuito, no momento da cessação da atividade devido ao termo do prazo da concessão, da utilização dos bens materiais e imateriais na sua posse e que constituem a rede de gestão e de recolha de apostas, sempre que essa restrição ultrapasse o que é necessário para a realização do objetivo efetivamente prosseguido por essa disposição, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 )   Língua do processo: italiano.

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