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Documento 62015CJ0015

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 21 de junho de 2016.
New Valmar BVBA contra Global Pharmacies Partner Health Srl.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo rechtbank van koophandel te Gent.
Reenvio prejudicial — Livre circulação de mercadorias — Proibição de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à exportação — Artigo 35.° TFUE — Sociedade estabelecida na região de língua neerlandesa do Reino da Bélgica — Legislação que impõe a redação das faturas em língua neerlandesa sob pena de nulidade do contrato — Contrato de concessão com caráter transfronteiriço — Restrição — Justificação — Inexistência de proporcionalidade.
Processo C-15/15.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2016:464

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

21 de junho de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Livre circulação de mercadorias — Proibição de medidas com efeito equivalente a restrições quantitativas à exportação — Artigo 35.o TFUE — Sociedade estabelecida na região de língua neerlandesa do Reino da Bélgica — Legislação que impõe a redação das faturas em língua neerlandesa sob pena de nulidade do contrato — Contrato de concessão com caráter transfronteiriço — Restrição — Justificação — Inexistência de proporcionalidade»

No processo C‑15/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo rechtbank van koophandel te Gent (Tribunal de Comércio de Gand, Bélgica), por decisão de 18 de dezembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de janeiro de 2015, no processo

New Valmar BVBA

contra

Global Pharmacies Partner Health Srl,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidentee, R. Silva de La Puerta, L. Bay Larsen, A. Arabadjiev e F. Biltgen, presidentes de secção, J. Malenovský, J.‑C. Bonichot, C. Vajda, S. Rodin e E. Regan (relator), juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 26 de janeiro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação da New Valmar BVBA, por P. Devos, advocaat,

em representação do Governo belga, por J. Van Holm e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes, assistidas por H. de Bauw e B. Martel, advocaten,

em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e R. Dzikovič, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por E. Manhaeve, M. van Beek e G. Wilms, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 21 de abril de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 45.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a New Valmar BVBA à Global Pharmacies Partner Health Srl (a seguir «GPPH») a respeito do não pagamento de várias faturas.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 226.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2010/45/UE do Conselho, de 13 de julho de 2010 (JO 2010, L 189, p. 1) (a seguir «Diretiva 2006/112»), enuncia as menções que devem obrigatoriamente constar das faturas.

4

O artigo 248.o‑A desta diretiva dispõe o seguinte:

«Para fins de controlo, e no que respeita às faturas relativas a entregas de bens ou prestações de serviços efetuadas no seu território, bem como às faturas recebidas pelos sujeitos passivos estabelecidos no seu território, os Estados‑Membros podem, relativamente a determinados sujeitos passivos ou determinados casos, exigir a tradução para as suas línguas oficiais. Os Estados‑Membros podem, todavia, não impor um requisito geral de que as faturas sejam traduzidas.»

Direito belga

5

O artigo 4.o da Grondwet (Constituição), na sua versão coordenada de 17 de fevereiro de 1994 (Belgisch Staatsblad, 17 de fevereiro de 1994, p. 4054), diz o seguinte:

«A Bélgica compreende quatro regiões linguísticas: a região de língua francesa, a região de língua neerlandesa, a região bilingue de Bruxelas‑Capital e a região de língua alemã.

Cada comunidade do Reino faz parte de uma destas regiões linguísticas.

[...]»

6

O artigo 129.o, n.o 1, ponto 3, da Constituição dispõe:

«Os Parlamentos da Comunidade Francesa e da Comunidade Flamenga, dentro da competência respetiva, legislam por decreto, com exclusão do legislador federal, a utilização das línguas para:

[...]

3.

as relações sociais entre os empregadores e os seus trabalhadores assim como os atos e documentos das empresas previstas na lei e nos regulamentos.»

7

Nos termos do artigo 52.o, n.o 1, primeiro parágrafo, das wetten op het gebruik van de talen in bestuurzaken (Leis sobre a utilização das línguas em matéria administrativa), coordenadas pelo Decreto Real de 18 de julho de 1966 (Belgisch Staatsblad, 2 de agosto de 1966, p. 7798) (a seguir «lei sobre a utilização das línguas»):

«Nos atos e documentos previstos na lei e nos regulamentos [...], as empresas industriais, comerciais e financeiras usam a língua da região em que estiver estabelecida a sua sede ou as diferentes sedes de exploração.»

8

O decreet tot regeling van het gebruik van de talen voor de sociale betrekkingen tussen de werkgevers en de werknemers, alsmede van de voor de wet en de verordeningen voorgeschreven akten en bescheiden van de ondernemingen (Decreto que regula a utilização das línguas em matéria de relações laborais entre empregadores e trabalhadores e em matéria de atos e documentos de empresa previstos na lei e nos regulamentos), da Vlaamse Gemeenschap (Comunidade Flamenga, Bélgica), de 19 de julho de 1973 (Belgisch Staatsblad, 6 de setembro de 1973, p. 10089, a seguir «decreto relativo à utilização das línguas»), foi adotado com base no artigo 129.o, n.o 1, ponto 3, da Constituição.

9

O artigo 1.o deste decreto dispõe:

«O presente decreto é aplicável às pessoas singulares e coletivas que tenham uma sede de exploração na região de língua neerlandesa e regula a utilização das línguas em matéria de relações sociais entre empregadores e trabalhadores, bem como em matéria de atos e documentos das empresas previstos na lei.

[...]»

10

O artigo 2.o do referido decreto precisa que «[a] língua a utilizar nas relações sociais entre os empregadores e os trabalhadores, bem como nos atos e documentos das empresas previstos na lei, é o neerlandês».

11

Nos termos do artigo 10.o do mesmo decreto:

«Os documentos ou atos que violem as disposições do presente decreto são nulos. A nulidade é oficiosamente declarada pelo tribunal.

[...].

A sentença ordena a substituição oficiosa dos documentos em causa.

A sanação da nulidade só produz efeitos a partir do dia da substituição e no caso de documentos escritos a partir do dia em que forem registados na Secretaria do Tribunal do Trabalho.

[...]»

Factos do processo principal e questão prejudicial

12

Em 12 de novembro de 2010, a New Valmar, sociedade de direito belga estabelecida em Evergem (Bélgica), e a GPPH, sociedade de direito italiano estabelecida em Milão (Itália), celebraram um contrato que designava a segunda como concessionária exclusiva da New Valmar em Itália para a distribuição de artigos para crianças. O contrato expirava em 31 de dezembro de 2014.

13

Nos termos do artigo 18.o desse contrato de concessão, o mesmo regia‑se pelo direito italiano e os tribunais de Gand (Bélgica) eram os competentes para conhecer de eventuais diferendos.

14

Por carta registada de 29 de dezembro de 2011, a New Valmar denunciou esse contrato antecipadamente, com efeitos a partir de 1 de junho de 2012.

15

Por citação de 30 de março de 2012, a New Valmar propôs uma ação no rechtbank van koophandel te Gent (Tribunal de Comércio de Gand, Bélgica) pedindo que a GPPH fosse condenada a pagar‑lhe um montante de cerca de 234192 euros a título de regularização de várias faturas em dívida.

16

A GPPH deduziu um pedido reconvencional em que pede a condenação da New Valmar no pagamento de uma indemnização de 1467448 euros por denúncia ilegal do contrato de concessão.

17

Para se opor ao pedido da New Valmar, a GPPH a invocou a nulidade das faturas em causa no processo principal, alegando que estas, embora sendo «atos e documentos previstos na lei e nos regulamentos» na aceção da lei sobre a utilização das línguas e do decreto relativo à utilização das línguas (a seguir, em conjunto, «legislação em causa no processo principal»), não respeitam as normas de ordem pública previstas nessa legislação, porquanto, com exceção dos dados relativos à New Valmar, ao IVA e ao banco, todas as menções constantes das faturas, incluindo as condições gerais, estão redigidas numa língua diferente do neerlandês, a saber, a língua italiana, sendo certo que a New Valmar está estabelecida na região de língua neerlandesa do Reino da Bélgica.

18

Em 14 de janeiro de 2014, durante a pendência do processo, a New Valmar entregou à GPPH uma tradução em neerlandês das faturas em causa. No entanto, resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça que as faturas continuam viciadas de nulidade nos termos da legislação em causa no processo principal.

19

A New Valmar não contesta que as faturas em causa não respeitam a legislação em causa no processo principal. Alega, no entanto, que aquela é contrária às disposições do direito da União relativas à livre circulação de mercadorias, em especial, ao artigo 26.o, n.o 2, e aos artigos 34.° e 35.° TFUE.

20

O tribunal de reenvio interroga‑se sobre se, tendo em conta o acórdão de 16 de abril de 2013, Las (C‑202/11, EU:C:2013:239), a obrigação que incumbe às empresas com sede na região de língua neerlandesa do Reino da Bélgica de emitirem as suas faturas em língua neerlandesa, sob pena de nulidade, pode constituir um entrave às trocas internacionais, se esse eventual entrave pode ser justificado por um ou vários objetivos de interesse geral, como os que visam promover e incentivar o emprego de uma língua oficial ou garantir a eficácia dos controlos administrativos, e se tal eventual entrave é proporcionado aos objetivos prosseguidos.

21

Nestas circunstâncias, o rechtbank van koophandel te Gent (Tribunal de Comércio de Gand) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo [45.° TFUE] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma norma de uma entidade federada de um Estado‑Membro, como in casu a Comunidade Flamenga do Estado Federal da Bélgica, que impõe a todas as empresas que tenham a sua sede de exploração no território desta entidade, por força do artigo 52.o [da lei sobre a utilização das línguas] e do artigo 10.o do [decreto relativo à utilização das línguas], a obrigação de redigir as faturas com caráter transfronteiriço exclusivamente na língua oficial desta unidade federal, sob pena de nulidade destas faturas, a suscitar oficiosamente pelo órgão jurisdicional?»

Quanto à questão prejudicial

Quanto à admissibilidade e ao âmbito da questão

22

Em primeiro lugar, resulta da decisão de reenvio que o contrato em causa no processo principal previa expressamente a sua sujeição ao direito italiano. Ora, a questão baseia‑se na premissa de que, sem prejuízo da aplicação do direito italiano como lei do contrato, a legislação em causa no processo principal é aplicável no âmbito do litígio no processo principal.

23

A este respeito, importa recordar que, dado que cabe exclusivamente ao juiz nacional que deve decidir o litígio e assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar apreciar, à luz das particularidades do litígio, quer a necessidade quer a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça (v., designadamente, acórdão de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC, C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 27), há que responder à questão submetida com base nessa premissa, cuja correção compete ao tribunal de reenvio verificar, tendo em conta, em especial, como referiu o advogado‑geral nos n.os 25 a 28 das suas conclusões, as disposições do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6).

24

Em segundo lugar, nas suas observações escritas e na audiência o Governo belga alegou que, contrariamente ao que o tribunal de reenvio indicou na sua decisão, a legislação em causa no processo principal impõe o emprego da língua neerlandesa não em todas as menções constantes da fatura, mas apenas nas legalmente obrigatórias nos termos da regulamentação do IVA. Ora, estando essas menções enumeradas no artigo 226.o da Diretiva 2006/112, seria fácil fazer a sua tradução em todas as línguas da União Europeia.

25

A este respeito, importa recordar que incumbe ao Tribunal de Justiça tomar em consideração, no quadro da repartição das competências entre os tribunais da União e os tribunais nacionais, o contexto factual e legislativo em que se inserem as questões prejudiciais, tal como definido na decisão de reenvio. Assim, quaisquer que sejam as críticas do Governo belga à interpretação feita pelo tribunal de reenvio do direito nacional, o exame do presente reenvio prejudicial deve ser efetuado à luz da interpretação que lhe é dada por esse tribunal (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 29 de outubro de 2009, Pontin, C‑63/08, EU:C:2009:666, n.o 38).

26

No caso em apreço, há que dar uma resposta à questão submetida pelo tribunal de reenvio com base na premissa de que a totalidade das menções constantes da fatura, em conformidade com a legislação em causa no processo principal, deve ser redigida em língua neerlandesa.

27

Em terceiro lugar, o Governo belga, nas suas observações escritas, sustenta que, na inexistência de um nexo entre a situação em causa no processo principal e a livre circulação dos trabalhadores, o presente pedido prejudicial é inadmissível ou, pelo menos, não carece de resposta, uma vez que diz respeito à interpretação do artigo 45.o TFUE.

28

A este propósito, há apenas que recordar que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, cabe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe foram apresentadas. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais (v., designadamente, acórdão de 17 de dezembro de 2015, Szemerey, C‑330/14, EU:C:2015:826, n.o 30).

29

Por conseguinte, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado a sua questão à interpretação do artigo 45.o TFUE, tal não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado da sua questão. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, em particular da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que necessitam de interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (v., por analogia, acórdão de 17 de dezembro de 2015, Szemerey, C‑330/14, EU:C:2015:826, n.o 31).

30

No caso em apreço, apesar da menção ao artigo 45.o TFUE na questão prejudicial resulta claramente dos motivos da decisão de reenvio que o tribunal de reenvio procura determinar se a legislação em causa no processo principal é conforme com as regras do Tratado FUE em matéria de livre circulação de mercadorias, tendo esse tribunal mencionado expressamente, a este respeito, que a New Valmar invocou no processo principal o artigo 26.o, n.o 2, e os artigos 34.° e 35.° TFUE.

31

Dado que o processo principal diz respeito não à importação, mas à exportação de mercadorias a partir da Bélgica para outro Estado‑Membro, no caso, a Itália, há que constatar que apenas o artigo 35.o TFUE, que proíbe as medidas de efeito equivalente às restrições quantitativas, é passível de aplicação.

32

O Governo belga sustenta, no entanto, que a legislação em causa no processo principal deve ser apreciada à luz não do direito primário da União, mas apenas da Diretiva 2006/112, visto que esta operou a harmonização completa desta matéria. Com efeito, o artigo 248.o‑A desta diretiva autoriza os Estados‑Membros a prever na sua legislação que as faturas emitidas num contexto transfronteiriço sejam redigidas numa língua diferente da do Estado‑Membro de destino dos serviços ou mercadorias. Ao conceder aos Estados‑Membros a faculdade de exigirem, no tocante a entregas de bens ou de prestações de serviços efetuadas no seu território, a tradução das faturas na sua língua oficial, esta disposição implicaria também que as faturas sejam, regra geral, redigidas na língua oficial do Estado‑Membro em que se estabeleceu a empresa emitente das faturas.

33

Importa recordar, a este respeito, que o regime da União em matéria de IVA só realiza uma harmonização progressiva e parcial das legislações nacionais (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 26 de fevereiro de 2015, VDP Dental Laboratory e o., C‑144/13, C‑154/13 e C‑160/13, EU:C:2015:116, n.o 60 e jurisprudência aí referida).

34

Assim, nem o artigo 226.o da Diretiva 2006/112, relativo ao conteúdo das faturas, nem o artigo 248.o‑A da mesma diretiva, que permite aos Estados‑Membros de destino impor, em determinados casos, a tradução para uma das suas línguas oficiais das faturas relativas a uma entrega com caráter transfronteiriço, regulam, como referiu o advogado‑geral nos n.os 45 a 48 das suas conclusões, a possibilidade de os Estados‑Membros submeterem as empresas estabelecidas no seu território à obrigação de redigirem todas as faturas na sua língua oficial ou na língua desse território.

35

À luz das considerações precedentes, há que reformular a questão submetida no sentido de que o tribunal de reenvio pergunta se o artigo 35.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de uma entidade federada de um Estado‑Membro, como a Comunidade Flamenga do Reino da Bélgica, que impõe a todas as empresas com sede de exploração no território dessa entidade a obrigação de redigirem todas as menções constantes de faturas relativas a transações transfronteiriças apenas na língua oficial dessa entidade, sob pena de a nulidade das faturas ser declarada oficiosamente pelo juiz.

Quanto à existência de uma restrição prevista no artigo 35.o TFUE

36

O Tribunal de Justiça declarou que uma medida nacional aplicável a todos os operadores que atuam no território nacional que afete mais a saída dos produtos do mercado do Estado‑Membro de exportação do que a comercialização dos produtos no mercado nacional desse Estado‑Membro se enquadra na proibição prevista no artigo 35.o TFUE (v., neste sentido, acórdão de 16 de dezembro de 2008, Gysbrechts e Santurel Inter, C‑205/07, EU:C:2008:730, n.os 40 a 43).

37

Além disso, há que recordar que toda e qualquer restrição, mesmo de menor importância, a uma das liberdades fundamentais previstas no Tratado FUE é por este proibida (v., neste sentido, acórdão de 1 abril de 2008, Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, C‑212/06, EU:C:2008:178, n.o 52 e jurisprudência aí referida).

38

No caso sub judicio, resulta da decisão de reenvio que, em virtude da legislação em causa no processo principal, as faturas, incluindo as que se referem a transações transfronteiriças, emitidas por empresas com sede de exploração na região de língua neerlandesa do Reino da Bélgica devem imperativamente ser redigidas, sob pena de nulidade a declarar oficiosamente pelo juiz, na língua neerlandesa, única que faz fé.

39

Segundo o Governo belga, tal legislação não pode ser considerada como uma restrição à livre circulação de mercadorias, visto que as faturas, único objeto da referida legislação, não fazem mais do que confirmar um crédito decorrente de um contrato celebrado pelas partes em causa. Ora, tal legislação, ao invés da que estava em causa no processo que deu origem ao acórdão de 16 de abril de 2013, Las (C‑202/11, EU:C:2013:239), não afeta a liberdade das partes de redigirem esse contrato numa língua à sua escolha e, portanto, não viola o mútuo consentimento das partes. Não poderia, portanto, considerar‑se que a legislação em causa no processo principal tem influência nas trocas entre os Estados‑Membros.

40

Todavia, ao privar os operadores em causa da possibilidade de escolherem livremente uma língua que dominem em conjunto na redação das suas faturas e ao impor‑lhes para esse efeito uma língua que não corresponde necessariamente à que escolheram utilizar nas suas relações contratuais, uma legislação como a que está em causa no processo principal é suscetível de fazer aumentar o risco de contestação e de não pagamento das faturas, dado que os destinatários das mesmas poderiam ser incentivados a invocar a sua incapacidade, real ou não, de compreenderem o seu conteúdo para se oporem ao pagamento.

41

Ao invés, o destinatário de uma fatura redigida numa língua diferente do neerlandês poderia, tendo em conta a nulidade que fere a fatura, ser incentivado a contestar a validade da fatura apenas por este motivo, mesmo que essa fatura estivesse redigida numa língua que compreende. Tal nulidade poderia ainda dar origem a graves inconvenientes para o emitente da fatura, tais como a perda de juros de mora, uma vez que resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça que, na falta de uma disposição contratual em sentido contrário, esses juros só seriam devidos a contar da emissão de uma nova fatura em língua neerlandesa.

42

Daqui decorre que uma legislação como a que está em causa no processo principal, mesmo atinente à versão linguística em que devem ser redigidas as menções constantes da fatura e não ao conteúdo da relação contratual subjacente, comporta, devido à insegurança jurídica que cria, efeitos restritivos das trocas comerciais suscetíveis de dissuadir o estabelecimento ou continuação de relações contratuais com uma empresa estabelecida na região de língua neerlandesa do Reino da Bélgica.

43

Ora, se é verdade que tal legislação, por se aplicar indistintamente a qualquer fatura emitida por uma empresa com sede de exploração nessa região, é suscetível de afetar quer as trocas internas ao Estado‑Membro em causa quer as trocas transfronteiriças, não deixa de poder causar maior entrave a estas últimas, como referiu o advogado‑geral nos n.os 61 a 68 das suas conclusões, uma vez que é menos provável que um comprador estabelecido num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica esteja em condições de compreender a língua neerlandesa do que um comprador estabelecido nesse Estado‑Membro que tem essa língua como uma das línguas oficiais.

44

Tendo em conta a argumentação do Governo belga sobre o âmbito da legislação em causa no processo principal, mencionada no n.o 24 do presente acórdão, importa esclarecer que o caráter restritivo de tal legislação não é minimamente posto em causa se se verificar, o que incumbe ao tribunal de reenvio apurar, que só as menções obrigatórias enumeradas no artigo 226.o da Diretiva 2006/112 devem ser redigidas em língua neerlandesa, porque nesse caso é criada a mesma insegurança jurídica constatada no n.o 42 do presente acórdão.

45

Por outro lado, os efeitos restritivos induzidos por essa legislação não podem ser considerados como demasiado aleatórios ou demasiado indiretos para que se possa considerar, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente dos acórdãos de 7 de março de 1990, Krantz (C‑69/88, EU:C:1990:97, n.os 10 e 11), e de 13 de outubro de 1993, CMC Motorradcenter (C‑93/92, EU:C:1993:838, n.os 10 a 12), que não constitui uma restrição na aceção do artigo 35.o TFUE.

46

Com efeito, como resulta dos n.os 41 a 44 do presente acórdão, tal legislação pode ter uma influência, mesmo de menor importância, nas relações contratuais, tanto mais que, como foi indicado na audiência, não raro essas relações concretizam‑se apenas através da emissão de uma fatura. Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 69 das suas conclusões, essa influência depende não de um facto futuro e hipotética mas do exercício do direito à livre circulação de mercadorias (v., por analogia, designadamente, acórdão de 1 de abril de 2008, Gouvernement de la Communauté française e gouvernement wallon, C‑212/06, EU:C:2008:178, n.o 51).

47

Daqui resulta que uma legislação como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição abrangida pelo artigo 35.o TFUE.

Quanto à existência de uma justificação

48

Segundo jurisprudência assente, uma medida nacional que restringe o exercício das liberdades fundamentais garantidas só pode ser admitida na condição de prosseguir um objetivo de interesse geral, de ser apta a garantir a sua realização e de não ir para além do que é necessário para o atingir (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 1 de outubro de 2015, Trijber e Harmsen, C‑340/14 e C‑341/14, EU:C:2015:641, n.o 70).

49

No caso em apreço, o Governo belga alega que a legislação em causa no processo principal visa, por um lado, incentivar a utilização da língua oficial da região linguística em questão e, por outro, garantir a eficácia da fiscalização pelos serviços competentes em matéria de IVA.

50

A este respeito, importa recordar que o objetivo de promover e incentivar a utilização de uma das línguas oficiais de um Estado‑Membro constitui um objetivo legítimo suscetível de justificar, em princípio, uma restrição às obrigações impostas pelo direito da União (v., neste sentido, acórdãos de 28 de novembro de 1989, Groener, C‑379/87, EU:C:1989:599, n.o 19; de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 85; e de 16 de abril de 2013, Las, C‑202/11, EU:C:2013:239, n.os 25 a 27).

51

Aliás, o Tribunal de Justiça já reconheceu que a necessidade de preservar a eficácia da fiscalização tributária constitui um objetivo de interesse geral suscetível de justificar uma restrição ao exercício das liberdades fundamentais reconhecidas pelo Tratado (v., neste sentido, acórdãos de 20 de fevereiro de 1979, Rewe‑Zentral, 120/78, EU:C:1979:42, n.o 8, e de 15 de maio de 1997, Futura Participations e Singer, C‑250/95, EU:C:1997:239, n.o 31).

52

Importa considerar que uma legislação como a que está em causa no processo principal é apta para atingir estes dois objetivos, uma vez que pretende, por um lado, preservar a utilização corrente da língua neerlandesa na redação de documentos oficiais como faturas e, por outro, porque é suscetível de facilitar a fiscalização desses documentos pelas autoridades nacionais competentes.

53

Todavia, para satisfazer as exigências do direito da União, uma legislação como a que está em causa no processo principal deve ser proporcionada a esses objetivos.

54

Ora, no caso em apreço, como referiu o advogado‑geral nos n.os 90 a 92 das suas conclusões, uma legislação de um Estado‑Membro que não se limitasse a impor a utilização da sua língua oficial nas faturas relativas a transações transfronteiriças, mas que permitisse também elaborar uma versão oficial dessas faturas igualmente numa língua conhecida pelas partes em questão, seria menos gravosa para a liberdade de circulação de mercadorias do que a legislação em causa no processo principal, continuando a ser apta a garantir os objetivos prosseguidos por essa legislação (v., por analogia, acórdão de 16 de abril de 2013, Las, C‑202/11, EU:C:2013:239, n.o 32).

55

Assim, no tocante ao objetivo que consiste em assegurar a eficácia da fiscalização tributária, o Governo belga indicou na audiência que, segundo uma circular administrativa datada de 23 de janeiro de 2013, o direito a dedução do IVA não pode ser recusado pela Administração Fiscal pela única razão de as menções legais de uma fatura terem sido redigidas numa língua diferente do neerlandês, o que tende a sugerir que o emprego dessa outra língua não impede a realização desse objetivo.

56

Em face do exposto, deve considerar‑se que uma legislação como a que está em causa no processo principal vai para além do que é estritamente necessário para alcançar os objetivos mencionados nos n.os 49 a 51 do presente acórdão e, por conseguinte, não pode ser considerada proporcionada.

57

Por consequência, há que responder à questão submetida que o artigo 35.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de uma entidade federada de um Estado‑Membro, como a Comunidade Flamenga do Reino da Bélgica, que impõe às empresas com sede de exploração no seu território a redação de todas as menções constantes das faturas relativas a transações transfronteiriças exclusivamente na língua oficial dessa entidade, sob pena de nulidade dessas faturas a declarar oficiosamente pelo juiz.

Quanto às despesas

58

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O artigo 35.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de uma entidade federada de um Estado‑Membro, como a Comunidade Flamenga do Reino da Bélgica, que impõe às empresas com sede de exploração no seu território a redação de todas as menções constantes das faturas relativas a transações transfronteiriças exclusivamente na língua oficial dessa entidade, sob pena de nulidade dessas faturas a declarar oficiosamente pelo juiz.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

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