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Documento 62012CJ0043

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 6 de maio de 2014.
Comissão Europeia contra Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia.
Recurso de anulação — Diretiva 2011/82/UE — Intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária — Escolha da base jurídica — Artigo 87.°, n.° 2, alínea a), TFUE — Artigo 91.° TFUE — Manutenção dos efeitos da diretiva em caso de anulação.
Processo C‑43/12.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2014:298

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

6 de maio de 2014 ( *1 )

«Recurso de anulação — Diretiva 2011/82/UE — Intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária — Escolha da base jurídica — Artigo 87.o, n.o 2, alínea a), TFUE — Artigo 91.o TFUE — Manutenção dos efeitos da diretiva em caso de anulação»

No processo C‑43/12,

que tem por objeto um recurso de anulação nos termos do artigo 263.o TFUE, interposto em 27 de janeiro de 2012,

Comissão Europeia, representada por T. van Rijn e R. Troosters, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Parlamento Europeu, representado por F. Drexler, A. Troupiotis e K. Zejdová, na qualidade de agentes,

Conselho da União Europeia, representado por J. Monteiro e E. Karlsson, na qualidade de agentes,

recorridos,

apoiados por:

Reino da Bélgica, representado por J.‑C. Halleux e T. Materne, na qualidade de agentes, assistidos por S. Rodrigues e F. Libert, avocats,

Irlanda, representada por E. Creedon, na qualidade de agente, assistida por N. Travers, BL,

Hungria, representada por M. Z. Fehér, K. Szíjjártó e K. Molnár, na qualidade de agentes,

República da Polónia, representada por B. Majczyna e M. Szpunar, na qualidade de agentes,

República Eslovaca, representada por B. Ricziová, na qualidade de agente,

Reino da Suécia, representado por A. Falk e C. Stege, na qualidade de agentes,

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por C. Murrell e S. Behzadi‑Spencer, na qualidade de agentes, assistidas por J. Maurici e J. Holmes, barristers,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, A. Tizzano (relator), L. Bay Larsen, T. von Danwitz, M. Safjan, presidentes de secção, A. Rosas, E. Levits, A. Ó Caoimh, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, C. Toader, D. Šváby, M. Berger e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 4 de junho de 2013,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 10 de setembro de 2013,

profere o presente

Acórdão

1

Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que, por um lado, anule a Diretiva 2011/82/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, que visa facilitar o intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária (JO L 288, p. 1), e, por outro, caso o Tribunal de Justiça anule esta diretiva, indique que os efeitos da mesma são considerados definitivos.

Quadro jurídico

Tratado FUE

2

O artigo 87.o TFUE, que faz parte do capítulo 5, relativo à «Cooperação policial», do título V, intitulado «O espaço de liberdade, segurança e justiça», da terceira parte do Tratado FUE, tem a seguinte redação:

«1.   A União desenvolve uma cooperação policial que associa todas as autoridades competentes dos Estados‑Membros, incluindo os serviços de polícia, das alfândegas e outros serviços responsáveis pela aplicação da lei especializados nos domínios da prevenção ou deteção de infrações penais e das investigações nessa matéria.

2.   Para efeitos do n.o 1, o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, podem estabelecer medidas sobre:

a)

Recolha, armazenamento, tratamento, análise e intercâmbio de informações pertinentes;

[...]»

3

O artigo 91.o, n.o 1, TFUE, que faz parte do título VI, intitulado «Os transportes», da terceira parte deste Tratado, prevê:

«1.   Para efeitos de aplicação do artigo 90.o, e tendo em conta os aspetos específicos dos transportes, o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário e após consulta ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, estabelecem:

[...]

c)

Medidas que permitam aumentar a segurança dos transportes;

d)

Quaisquer outras disposições adequadas.»

Diretiva 2011/82

4

Os considerandos 1, 6, 7, 8, 22, 23 e 26 da Diretiva 2011/82 têm a seguinte redação:

«(1)

A melhoria da segurança rodoviária é um objetivo fulcral da política de transportes da União. A União desenvolve uma política de promoção da segurança rodoviária a fim de reduzir o número de mortos e feridos e os danos materiais. Um elemento importante dessa política é a execução coerente das sanções relativas a infrações às regras de trânsito rodoviário cometidas na União que comprometam de forma considerável a segurança rodoviária.

[...]

(6)

A fim de melhorar a segurança rodoviária em toda a União e de assegurar a igualdade de tratamento dos condutores, a saber, dos infratores residentes e não residentes, deverá ser facilitada a aplicação das normas independentemente do Estado‑Membro de registo do veículo. Para o efeito, deverá ser criado um sistema de intercâmbio transfronteiriço de informações para determinadas infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária, independentemente da sua natureza administrativa ou penal nos termos da legislação do Estado‑Membro em causa, que dê ao Estado‑Membro em que a infração foi cometida acesso aos dados relativos ao registo de veículos do Estado‑Membro de registo.

(7)

Um intercâmbio transfronteiriço mais eficiente de dados relativos ao registo de veículos, que deverá facilitar a identificação das pessoas que se suspeite terem cometido uma infração às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária, pode aumentar o efeito dissuasivo e levar a um comportamento mais cauteloso dos condutores de veículos matriculados num Estado‑Membro distinto do Estado‑Membro da infração, contribuindo assim para reduzir o número de vítimas de acidentes rodoviários.

(8)

As infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária abrangidas pela presente diretiva não são objeto de tratamento homogéneo nos Estados‑Membros. Alguns Estados‑Membros qualificam, no seu direito nacional, essas infrações como ‘administrativas’, enquanto outros as qualificam como ‘penais’. A presente diretiva deverá aplicar‑se independentemente da forma como essas infrações são qualificadas no direito nacional.

[...]

(22)

Nos termos dos artigos 1.° e 2.° do Protocolo n.o 21 relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda em relação ao espaço de liberdade, segurança e justiça, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e sem prejuízo do artigo 4.o do protocolo acima referido, estes Estados‑Membros não participam na adoção da presente diretiva e não ficam a ela vinculados nem sujeitos à sua aplicação.

(23)

Nos termos dos artigos 1.° e 2.° do Protocolo n.o 22 relativo à posição da Dinamarca, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a Dinamarca não participa na adoção da presente diretiva e não fica a ela vinculada nem sujeita à sua aplicação.

[…]

(26)

Atendendo a que o objetivo da presente diretiva, a saber, assegurar um elevado nível de proteção de todos os utilizadores da rede rodoviária na União, facilitando o intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária sempre que estas sejam cometidas com um veículo matriculado num Estado‑Membro distinto daquele em que a infração foi cometida, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros e pode, pois, devido à dimensão e aos efeitos da ação, ser melhor alcançado ao nível da União, esta pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado da União Europeia. […]»

5

O artigo 1.o da Diretiva 2011/82, intitulado «Objetivo», prevê:

«A presente diretiva visa assegurar um elevado nível de proteção de todos os utilizadores da rede rodoviária na União, facilitando o intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária e, consequentemente, a aplicação de sanções, caso essas infrações sejam cometidas com um veículo matriculado num Estado‑Membro distinto daquele em que a infração foi cometida.»

6

O artigo 2.o desta diretiva, intitulado «Âmbito de aplicação», dispõe:

«A presente diretiva é aplicável às seguintes infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária:

a)

Excesso de velocidade;

b)

Não utilização do cinto de segurança;

c)

Desrespeito da obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito;

d)

Condução sob a influência de álcool;

e)

Condução sob a influência de substâncias psicotrópicas;

f)

Não utilização de capacete de segurança;

g)

Circulação numa faixa proibida;

h)

Utilização ilícita de um telemóvel ou de outros dispositivos de comunicação durante a condução.»

7

Os artigos 4.° e 5.° da referida diretiva regulam o procedimento de intercâmbio de informações entre os Estados‑Membros e a notificação das infrações em causa.

8

Nos termos do artigo 12.o, n.o 1, da mesma diretiva, os Estados‑Membros deviam pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento a esta diretiva o mais tardar em 7 de novembro de 2013.

Factos na origem do litígio

9

Em 19 de março de 2008, a Comissão apresentou ao Parlamento e ao Conselho uma proposta de diretiva destinada, no essencial, a facilitar o intercâmbio de informações relativas a determinadas infrações rodoviárias e à execução transfronteiriça das sanções decorrentes dessas infrações. Esta proposta tinha como base jurídica o artigo 71.o, n.o 1, alínea c), CE, cujas disposições foram reproduzidas no artigo 91.o, n.o l, alínea c), TFUE.

10

Em 25 de outubro de 2011, o Parlamento e o Conselho adotaram a Diretiva 2011/82, tendo no entanto escolhido como sua base jurídica o artigo 87.o, n.o 2, TFUE.

11

Em anexo ao texto desta diretiva foi publicada uma declaração da Comissão sobre a base jurídica da referida diretiva (JO 2011, L 288, p. 15). Esta declaração tem a seguinte redação:

«A Comissão regista que tanto o Conselho como o Parlamento Europeu acordam em substituir a base jurídica proposta pela Comissão, nomeadamente o artigo 91.o, n.o 1, alínea c), do TFUE pelo artigo 87.o, n.o 2, do TFUE. Subscrevendo embora a opinião de ambos os colegisladores de que importa perseguir os objetivos da diretiva proposta para melhorar a segurança rodoviária, a Comissão considera que, do ponto de vista jurídico e institucional, o artigo 87.o, n.o 2, do TFUE não constitui a base jurídica adequada, pelo que se reserva o direito de fazer uso de todos os meios jurídicos ao seu dispor.»

12

Por considerar que a adoção da referida diretiva assentou numa base jurídica errada e que a mesma se devia ter baseado no artigo 91.o, n.o 1, alínea c), TFUE, a Comissão interpôs o presente recurso.

Pedidos das partes e tramitação processual no Tribunal de Justiça

13

A Comissão conclui pedindo ao Tribunal de Justiça que se digne:

anular a Diretiva 2011/82;

indicar que os efeitos desta diretiva subsistem;

condenar o Parlamento e o Conselho nas despesas.

14

O Parlamento conclui pedindo que seja negado provimento ao recurso e que a Comissão seja condenada nas despesas.

15

O Conselho conclui pedindo ao Tribunal de Justiça que se digne:

a título principal, negar provimento ao recurso por ser desprovido de fundamento;

a título subsidiário, indicar que os efeitos da Diretiva 2011/82 subsistem durante um período de seis meses; e

condenar a Comissão nas despesas.

16

Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 13 de junho de 2012, foram admitidas, por um lado, as intervenções da Irlanda, da República da Polónia, da República Eslovaca e do Reino da Suécia em apoio dos pedidos do Parlamento e do Conselho e, por outro lado, as intervenções do Reino da Bélgica, da Hungria e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte em apoio dos pedidos do Conselho.

Quanto ao recurso

Argumentos das partes

17

A Comissão pede a anulação da Diretiva 2011/82 pelo facto de esta, ao basear‑se no artigo 87.o, n.o 2, TFUE, ter sido adotada com uma base jurídica errada. Esta disposição, que visa a cooperação policial entre os serviços competentes nos domínios da prevenção ou da deteção das «infrações penais» e das investigações nesta matéria, só pode ser escolhida como base jurídica para as medidas que se refiram especificamente à prevenção ou à deteção das «infrações penais». Assim, não se pode deduzir do mero caráter punitivo do conceito de «infração» nem do objetivo repressivo por ele prosseguido que este conceito é automaticamente equiparável ao conceito de infração «penal», na aceção do artigo 87.o TFUE.

18

É certo que no contexto dos direitos fundamentais reconhecidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, nomeadamente no seu artigo 6.o, o conceito de matéria «penal» tem necessariamente um «alcance material», mais amplo, suscetível de abranger infrações de outra natureza, como as infrações de natureza administrativa. Em contrapartida, no contexto específico dos capítulos 4 e 5 do título V da terceira parte do Tratado FUE, este conceito fixa os limites em matéria de adoção de medidas legislativas e deve, assim, ser definido à luz da competência de que a União dispõe para atuar no domínio penal. Por conseguinte, tendo em conta, por um lado, a sistemática do título V da terceira parte do Tratado FUE e, por outro, as consequências institucionais decorrentes da escolha do artigo 87.o TFUE como base jurídica de um ato legislativo, há que partir de um conceito mais «formal» de infração penal.

19

Assim sendo, a Comissão considera que tanto o objetivo como o conteúdo da Diretiva 2011/82 pertencem ao domínio da política dos transportes, em especial ao domínio do artigo 91.o TFUE, o qual, por conseguinte, deveria ter sido escolhido como base jurídica desta diretiva.

20

Com efeito, ao implementar um mecanismo de intercâmbio de informações entre Estados‑Membros no que respeita às infrações relacionadas com a segurança rodoviária, independentemente de estas revestirem natureza administrativa ou natureza penal, a Diretiva 2011/82 tem por objetivo melhorar a segurança rodoviária. No que respeita ao seu conteúdo, esta diretiva limita‑se a organizar um intercâmbio de informações relativamente a determinados comportamentos em matéria de segurança rodoviária, sem proceder a uma harmonização desses comportamentos e, sobretudo, sem obrigar os Estados‑Membros a incluírem os referidos comportamentos no domínio penal.

21

Na hipótese de o Tribunal de Justiça decidir anular a Diretiva 2011/82, a Comissão pede, no entanto, que, nos termos do artigo 264.o TFUE, os efeitos desta sejam, por motivos de segurança jurídica, mantidos e considerados subsistentes.

22

De opinião contrária, embora invoquem argumentos parcialmente diferentes, o Parlamento e o Conselho, bem como o Reino da Bélgica, a Irlanda, a Hungria, a República da Polónia, a República Eslovaca, o Reino da Suécia e o Reino Unido, alegam que o artigo 87.o, n.o 2, TFUE constitui efetivamente a base jurídica adequada para adotar a Diretiva 2011/82.

23

O Parlamento sustenta que o recurso ao artigo 87.o, n.o 2, TFUE como base de adoção de um ato da União não se pode limitar apenas às hipóteses em que esteja em causa a adoção de medidas pertencentes ao conceito de «matéria penal», na medida em que o capítulo 5 do título V da terceira parte do Tratado FUE, relativo à «Cooperação policial», no qual esta disposição se insere, não contém indicações ou precisões neste sentido. Seja como for, a aplicação da referida disposição não pode ser excluída com base na tese defendida pela Comissão, que assenta, erradamente, numa interpretação demasiado restritiva deste conceito.

24

Deste modo, o Parlamento, apoiado a este respeito pela maioria dos Estados‑Membros intervenientes, considera que, na medida em que a Diretiva 2011/82 prossegue, a título principal, o objetivo de criar um sistema de intercâmbio de informações e só indiretamente finalidades relacionadas com a segurança rodoviária, esta diretiva não podia ter tido por base o artigo 91.o TFUE.

25

O Conselho alega que a Diretiva 2011/82 contém regras respeitantes à execução de sanções relativas a determinadas infrações em matéria de segurança rodoviária. Ora, embora estas infrações possam revestir natureza administrativa ou natureza penal, em função do sistema jurídico de cada Estado‑Membro, deve considerar‑se que o processo de execução destas sanções pertence, em todas as situações, à categoria das regras de processo penal. Contudo, a questão de saber o que pertence ou não à «matéria penal» deve ser interpretada de forma autónoma no direito da União, independentemente da organização interna de cada Estado‑Membro e da respetiva terminologia nacional.

26

A este respeito, o Conselho precisa que devem ser consideradas «penais» na aceção do Tratado FUE, nomeadamente do título V da terceira parte deste, todas as normas que tenham por objetivo defender bens jurídicos tradicionalmente defendidos pelo direito penal, a saber, nomeadamente, a vida e a integridade física, bem como a integridade moral das pessoas, e a propriedade. Neste âmbito, disposições como as da Diretiva 2011/82, que têm por objetivo melhorar a segurança rodoviária através da repressão dos comportamentos considerados perigosos, pertencem necessariamente à matéria «penal» e não podem ser classificadas como normas respeitantes à segurança rodoviária, na aceção do artigo 91.o TFUE.

27

Esta diretiva prossegue assim inteiramente os objetivos referidos no artigo 87.o, n.o 2, TFUE. Com efeito, em primeiro lugar, ainda que a melhoria da segurança rodoviária faça parte, segundo o Conselho, da política dos transportes, a medida em causa visa concretamente facilitar a deteção dos autores de infrações transfronteiriças relacionadas com a segurança rodoviária. Em segundo lugar, a referida diretiva tem efetivamente por objeto a recolha de informações relativas a infrações a fim de facilitar a sua repressão, medidas para as quais a União tem competência nos termos do artigo 87.o TFUE. Em terceiro lugar, a referência a «todas as autoridades competentes» feita no artigo 87.o, n.o 1, TFUE confirma que é indiferente, para efeitos da determinação da aplicabilidade deste artigo, que os serviços envolvidos revistam, em cada Estado‑Membro em causa, natureza administrativa ou natureza penal.

28

Na hipótese de o Tribunal de Justiça decidir anular a Diretiva 2011/82, o Conselho, apoiado nomeadamente pela Irlanda, pela República Eslovaca, pelo Reino da Suécia e pelo Reino Unido, pede, a título subsidiário, que os efeitos desta subsistam durante um período de seis meses, a fim de que um texto seja novamente apresentado com vista a uma negociação ao abrigo do artigo 91.o TFUE. A este respeito, a Irlanda e o Reino Unido precisam, no entanto, que a eventual subsistência dos efeitos desta diretiva até à adoção de um novo texto com uma base jurídica diferente não deve afetar os Estados‑Membros que podem invocar o Protocolo n.o 21 relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda em relação ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça, bem como o Protocolo n.o 22 relativo à posição da Dinamarca, anexados ao Tratado UE e ao Tratado FUE, mas apenas os Estados‑Membros que já estão vinculados pela referida diretiva.

Apreciação do Tribunal

29

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a escolha da base jurídica de um ato da União deve assentar em elementos objetivos suscetíveis de serem objeto de fiscalização jurisdicional, entre os quais figuram a finalidade e o conteúdo desse ato (acórdãos Comissão/Parlamento e Conselho, C‑411/06, EU:C:2009:518, n.o 45 e jurisprudência referida, e Parlamento/Conselho, C‑130/10, EU:C:2012:472, n.o 42 e jurisprudência referida).

30

Se o exame do ato em causa demonstrar que este prossegue uma dupla finalidade ou que tem duas componentes e se uma destas for identificável como principal ou preponderante, enquanto a outra é apenas acessória, este ato deve ter por fundamento uma única base jurídica, a saber, a base jurídica exigida pela finalidade ou pela componente principal ou preponderante (acórdão Comissão/Conselho, C‑137/12, EU:C:2013:675, n.o 53 e jurisprudência referida).

31

Para apreciar o mérito do presente recurso, há desde logo que examinar a finalidade e o conteúdo da Diretiva 2011/82, a fim de determinar se foi adotada validamente, como alegam o Conselho e o Parlamento, ao abrigo do artigo 87.o, n.o 2, TFUE, em vez de ter sido adotada ao abrigo do artigo 91.o, n.o 1, alínea c), TFUE, que a Comissão alega constituir a base jurídica adequada.

32

No presente caso, no que respeita à finalidade da Diretiva 2011/82, o artigo 1.o desta, intitulado «Objetivo» e que reproduz a formulação do seu considerando 26, enuncia expressamente que esta diretiva «visa assegurar um elevado nível de proteção de todos os utilizadores da rede rodoviária na União, facilitando o intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária».

33

Conforme decorre dos considerandos 1 e 6 da referida diretiva, semelhante objetivo, que consiste em melhorar a segurança rodoviária em toda a União, deve ser prosseguido precisamente através da criação de um sistema de intercâmbio transfronteiriço de dados relativos ao registo de veículos, para facilitar a identificação das pessoas que tenham cometido determinadas infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária, independentemente de estas últimas revestirem natureza administrativa ou natureza penal nos termos da legislação do Estado‑Membro em causa.

34

Conforme indicado no considerando 2 da Diretiva 2011/82, esta assenta na constatação do legislador da União de que, frequentemente, as sanções pecuniárias relativas a determinadas infrações rodoviárias não são aplicadas quando essas infrações são cometidas com um veículo matriculado num Estado‑Membro que não aquele onde a infração foi cometida.

35

Neste contexto, como precisa o considerando 7 da Diretiva 2011/82, semelhante sistema de intercâmbio de informações pode aumentar o efeito dissuasivo em matéria de infrações rodoviárias e levar a um comportamento mais cauteloso dos condutores de veículos matriculados num Estado‑Membro distinto do Estado‑Membro onde a infração foi cometida, contribuindo assim para reduzir o número de vítimas de acidentes rodoviários.

36

Resulta claramente do exposto que a Diretiva 2011/82 tem por objetivo principal ou preponderante a melhoria da segurança rodoviária, que, como enuncia o considerando 1 desta diretiva, constitui um objetivo central da política dos transportes da União.

37

Com efeito, embora seja verdade que a referida diretiva implementa um sistema de intercâmbio transfronteiriço de informações relativas a infrações relacionadas com a segurança rodoviária, não é menos certo que este sistema é criado precisamente para que a União possa prosseguir o objetivo que consiste em melhorar a segurança rodoviária.

38

No que respeita ao conteúdo da Diretiva 2011/82, há que começar por sublinhar que esta estabelece um procedimento de intercâmbio de informações entre Estados‑Membros, relativo a oito infrações relacionadas com a segurança rodoviária, enumeradas no seu artigo 2.o e definidas no seu artigo 3.o, a saber, excesso de velocidade, não utilização do cinto de segurança, desrespeito da obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito, condução sob a influência de álcool, condução sob a influência de substâncias psicotrópicas, não utilização de capacete de segurança, circulação numa faixa proibida e utilização ilícita de um telemóvel ou de outros dispositivos de comunicação durante a condução.

39

No que respeita, em seguida, ao desenrolar do procedimento de intercâmbio de informações, este é regulado pelo artigo 4.o da Diretiva 2011/82. O n.o 1 deste artigo prevê que os Estados‑Membros permitem que os pontos de contacto nacionais dos outros Estados‑Membros tenham acesso aos seus dados relativos ao registo de veículos, com direito a efetuar consultas automatizadas respeitantes aos dados relativos aos veículos e aos seus proprietários ou detentores. Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, terceiro parágrafo, desta diretiva, o Estado‑Membro onde a infração foi cometida deve utilizar os dados obtidos para determinar a identidade da pessoa responsável pelas infrações relacionadas com a segurança rodoviária visadas pela referida diretiva.

40

Quando o proprietário ou o detentor do veículo ou qualquer outra pessoas suspeita de ter cometido semelhante infração relacionada com a segurança rodoviária tiver sido identificado, cabe ao Estado‑Membro em cujo território essa infração foi cometida decidir se instaura ou não uma ação. Para esse efeito, o artigo 5.o da Diretiva 2011/82 define as modalidades segundo as quais a infração identificada deve ser notificada à pessoa em causa e prevê o envio de uma carta, redigida de preferência na língua do documento de registo, contendo todas as informações pertinentes, nomeadamente, a natureza da infração relacionada com a segurança rodoviária, o local, a data e a hora da infração, o título dos textos de direito nacional objeto da infração, bem como a sanção respetiva, e, se for caso disso, dados relativos ao dispositivo utilizado para detetar a infração.

41

Por último, o artigo 11.o da Diretiva 2011/82 prevê que até 7 de novembro de 2016 a Comissão apresentará ao Parlamento e ao Conselho, com vista a uma eventual revisão, um relatório sobre a aplicação desta diretiva pelos Estados‑Membros. Este relatório incidirá, nomeadamente, sobre a avaliação da eficácia da referida diretiva quanto à redução do número de mortes nas estradas da União, sobre a possibilidade de a Comissão elaborar orientações a nível da União em matéria de segurança rodoviária, no âmbito da política comum de transportes, a fim de garantir uma maior convergência na aplicação das regras de trânsito pelos Estados‑Membros, e sobre as possibilidades de harmonizar as regras de trânsito, quando oportuno.

42

O exame do conteúdo das disposições da Diretiva 2011/82 precedente confirma que o sistema de intercâmbio de informações entre as autoridades competentes dos Estados‑Membros, estabelecido por esta diretiva, constitui o instrumento através do qual esta prossegue o objetivo de melhorar a segurança rodoviária evocado nos n.os 32 a 43 do presente acórdão e permite que a União realize esse objetivo.

43

Ora, importa precisar que o Tribunal de Justiça já declarou que as medidas destinadas a melhorar a segurança rodoviária fazem parte da política dos transportes e podem, assim, ser adotadas ao abrigo do artigo 91.o, n.o 1, alínea c), TFUE, na medida em que são abrangidas pelo conceito de «[m]edidas que permitam aumentar a segurança dos transportes», na aceção desta disposição (v. acórdão Espanha e Finlândia/Parlamento e Conselho, C‑184/02 e C‑223/02, EU:C:2004:497, n.o 30).

44

Por conseguinte, na medida em que, através das suas finalidades e do seu conteúdo, a Diretiva 2011/82 constitui uma medida que permite melhorar a segurança dos transportes, na aceção do artigo 91.o, n.o 1, alínea c), TFUE, há que concluir que a mesma deveria ter sido adotada ao abrigo desta disposição.

45

A análise que precede não é infirmada pela argumentação do Conselho e do Parlamento segundo a qual o artigo 87.o, n.o 2, TFUE podia validamente constituir a base para a adoção da Diretiva 2011/82.

46

Com efeito, esta disposição deve ser interpretada no contexto em que se insere, a saber, em primeiro lugar, no capítulo 5, intitulado «Cooperação policial», do título V da terceira parte do Tratado FUE.

47

Ora, embora seja verdade que, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a cooperação policial se caracteriza por um âmbito de aplicação mais amplo do que aquele que decorria do artigo 30.o UE, não é menos certo que, como prevê o artigo 87.o, n.o 1, TFUE, esta cooperação continua a interessar, à semelhança do que o artigo 30.o, n.o 1, alínea a), UE previa, as autoridades competentes dos Estados‑Membros, incluindo os serviços de polícia, das alfândegas e outros serviços responsáveis pela aplicação da lei especializados «nos domínios da prevenção ou deteção de infrações penais e das investigações nessa matéria».

48

Em segundo lugar, o artigo 87.o, n.o 2, TFUE deve ser compreendido à luz das «Disposições gerais» que são objeto do capítulo 1 do título V da terceira parte do Tratado FUE, nomeadamente do artigo 67.o TFUE, que abre este capítulo prevendo, no seu n.o 2, que a União «assegura a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas e desenvolve uma política comum em matéria de asilo, de imigração e de controlo das fronteiras externas» e, no seu n.o 3, que a União «envida esforços para garantir um elevado nível de segurança, através de medidas de prevenção da criminalidade, do racismo e da xenofobia e de combate contra estes fenómenos, através de medidas de coordenação e de cooperação entre autoridades policiais e judiciárias e outras autoridades competentes, bem como através do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal e, se necessário, através da aproximação das legislações penais».

49

Nestas condições, há que concluir que, dada a sua finalidade e o seu conteúdo, descritos nos n.os 32 a 43 de presente acórdão, uma medida como a Diretiva 2011/82 não está diretamente relacionada com os objetivos mencionados no número anterior do presente acórdão.

50

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que considerar que a Diretiva 2011/82 não podia ser validamente adotada com base no artigo 87.o, n.o 2, TFUE.

51

Por conseguinte, na medida em que o recurso é julgado procedente, há que anular a Diretiva 2011/82.

Quanto à limitação dos efeitos da anulação

52

A Comissão e o Conselho pedem que, no caso de a diretiva impugnada ser anulada, o Tribunal de Justiça mantenha os respetivos efeitos. A este respeito, embora o Conselho considere que um prazo de seis meses é suficiente para a adoção de uma nova diretiva, a Comissão pediu, na audiência, que os efeitos do ato anulado sejam mantidos durante um período mais longo.

53

A este respeito, há que recordar que, nos termos do artigo 264.o, segundo parágrafo, TFUE, o Tribunal de Justiça pode, quando considerar necessário, indicar quais os efeitos do ato anulado que se devem considerar subsistentes.

54

No presente caso, há que reconhecer que, atendendo à importância que reveste a prossecução dos objetivos visados pela Diretiva 2011/82 em matéria de melhoria da segurança rodoviária, a anulação desta diretiva sem que seja assegurada a subsistência dos seus efeitos pode ter consequências negativas na realização da política da União no domínio dos transportes.

55

Além disso, importa ter em consideração que o prazo previsto no artigo 12.o, n.o 1, desta diretiva para a entrada em vigor, por parte dos Estados‑Membros, das disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para lhe dar cumprimento terminou em 7 de novembro de 2013.

56

Atendendo a estas circunstâncias, importantes motivos de segurança jurídica justificam que o Tribunal de Justiça mantenha os efeitos da referida diretiva até à entrada em vigor, num prazo razoável, que não pode exceder doze meses a contar da data da prolação do presente acórdão, de uma nova diretiva assente na base jurídica adequada, a saber, o artigo 91.o, n.o 1, alínea c), TFUE.

Quanto às despesas

57

Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Parlamento e do Conselho e tendo estes sido vencidos, há que condená‑los nas despesas. Nos termos do artigo 140.o, n.o 1, do referido regulamento, o Reino da Bélgica, a Irlanda, a Hungria, a República da Polónia, a República Eslovaca, o Reino da Suécia e o Reino Unido suportarão as suas próprias despesas.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

 

1)

A Diretiva 2011/82/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, que visa facilitar o intercâmbio transfronteiriço de informações sobre infrações às regras de trânsito relacionadas com a segurança rodoviária, é anulada.

 

2)

Os efeitos da Diretiva 2011/82 subsistem até à entrada em vigor, num prazo razoável, que não pode exceder doze meses a contar da data da prolação do presente acórdão, de uma nova diretiva assente na base jurídica adequada, a saber, o artigo 91.o, n.o 1, alínea c), TFUE.

 

3)

O Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia são condenados nas despesas.

 

4)

O Reino da Bélgica, a Irlanda, a Hungria, a República da Polónia, a República Eslovaca, o Reino da Suécia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte suportam as suas próprias despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

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