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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62013CJ0157

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 4 de setembro de 2014.
    Nickel & Goeldner Spedition GmbH contra «Kintra» UAB.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas.
    Reenvio prejudicial – Cooperação judiciária em matéria civil – Regulamento (CE) n.° 1346/2000 – Artigo 3.°, n.° 1 – Conceito de ‘ação ligada a um processo de insolvência e com ele estreitamente relacionada’ – Regulamento (CE) n.° 44/2001 – Artigo 1.°, n.° 2, alínea b) – Conceito de ‘insolvência’ – Ação para pagamento de uma dívida, proposta pelo administrador da insolvência – Dívida relativa a um transporte internacional de mercadorias – Relação entre os Regulamentos n.os 1346/2000 e 44/2001 e a Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR).
    Processo C‑157/13.

    Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2014:2145

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    4 de setembro de 2014 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 1346/2000 — Artigo 3.o, n.o 1 — Conceito de ‘ação ligada a um processo de insolvência e com ele estreitamente relacionada’ — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Artigo 1.o, n.o 2, alínea b) — Conceito de ‘insolvência’ — Ação para pagamento de uma dívida, proposta pelo administrador da insolvência — Dívida relativa a um transporte internacional de mercadorias — Relação entre os Regulamentos n.os 1346/2000 e 44/2001 e a Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR)»

    No processo C‑157/13,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Lituânia), por decisão de 20 de março de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 26 de março de 2013, no processo

    Nickel & Goeldner Spedition GmbH

    contra

    «Kintra» UAB,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: A. Tizzano, presidente de secção, A. Borg Barthet, E. Levits, M. Berger (relatora) e S. Rodin, juízes,

    advogado‑geral: N. Jääskinen,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da Nickel & Goeldner Spedition GmbH, por F. Heemann, advokatas,

    em representação da «Kintra» UAB, por V. Onačko, advokatas,

    em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e G. Taluntytė, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo alemão, por T. Henze, J. Möller e J. Kemper, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo suíço, M. Jametti, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão Europeia, por A. Steiblytė e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

    vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 3.°, n.o 1, e 44.°, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1), bem como dos artigos 1.°, n.o 2, alínea b), e 71.° do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Nickel & Goeldner Spedition GmbH (a seguir «Nickel & Goeldner Spedition»), sociedade de direito alemão, à «Kintra» UAB (a seguir «Kintra»), sociedade de direito lituano, em liquidação, a respeito do pagamento, a título principal, do montante de 194077,76 litas lituanas (LTL) por serviços de transporte internacional de mercadorias.

    Quadro jurídico

    Regulamento n.o 1346/2000

    3

    De acordo com o seu sexto considerando, o Regulamento n.o 1346/2000 limita‑se às «disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas».

    4

    O artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento, respeitante à competência internacional, institui a seguinte regra geral de competência:

    «Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume‑se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas coletivas é o local da respetiva sede estatutária.»

    5

    O artigo 44.o, n.o 3, alínea a), do referido regulamento prevê:

    «O presente regulamento não é aplicável:

    a)

    Em nenhum dos Estados‑Membros, quando incompatível com as obrigações em matéria de falência resultantes de uma convenção concluída por esse Estado com um ou mais países terceiros antes da entrada em vigor do presente regulamento».

    Regulamento n.o 44/2001

    6

    Nos termos do sétimo considerando do Regulamento n.o 44/2001, «[o] âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial com exceção de certas matérias bem definidas».

    7

    O artigo 1.o deste regulamento define o âmbito de aplicação deste último nos seguintes termos:

    «1.   O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

    2.   São excluídos da sua aplicação:

    [...]

    b)

    As falências, as concordatas e os processos análogos;

    [...]»

    8

    Tratando‑se de regras de competência, o artigo 2.o, n.o 1, do referido regulamento contém a seguinte regra de princípio:

    «Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

    9

    Em matéria contratual, o artigo 5.o, n.o 1, do mesmo regulamento prevê uma regra especial com a seguinte redação:

    «Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

    1.

    a)

    Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

    b)

    Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

    no caso da venda de bens, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

    no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

    c)

    Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)».

    10

    O artigo 71.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001, que trata das relações com convenções relativas a matérias especiais (a seguir «convenções especiais») em que os Estados‑Membros são partes, dispõe:

    «O presente regulamento não prejudica as convenções em que os Estados‑Membros são partes e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões.»

    CMR

    11

    A Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, assinada em Genebra, em 19 de maio de 1956, conforme alterada pelo Protocolo assinado em Genebra, em 5 de julho de 1978 (a seguir «CMR»), aplica‑se, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1, «a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto […] estão situados em dois países diferentes, sendo um, pelo menos, país contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes».

    12

    A CMR foi negociada no âmbito da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa. Mais de 50 Estados, entre os quais a República da Lituânia, a República Federal da Alemanha e a República Francesa, aderiram à CMR.

    13

    Nos termos do artigo 31.o, n.o 1, da CMR:

    «Para todos os litígios provocados pelos transportes sujeitos à presente convenção, o autor poderá recorrer, além das jurisdições dos países contratantes designados de comum acordo pelas partes, para a jurisdição do país no território do qual:

    a)

    O réu tiver a sua residência habitual, a sua sede principal ou sucursal ou agência por intermédio da qual se estabeleceu o contrato de transporte, ou

    b)

    Estiver situado o lugar do carregamento da mercadoria ou o lugar previsto para a entrega, e só poderá recorrer a essas jurisdições.»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    14

    Em 28 de maio de 2009 foi instaurado no Vilniaus apygardos teismas (Tribunal de Comarca de Vilnius) o processo de insolvência relativo à Kintra, cuja sede estatutária se situa na Lituânia.

    15

    O administrador da insolvência da Kintra propôs ação no Vilniaus apygardos teismas, pedindo a condenação da Nickel & Goeldner Spedition, cuja sede estatutária se situa na Alemanha, no pagamento, a título principal, do montante de 194077,76 LTL, devido por serviços de transporte internacional de mercadorias prestados pela Kintra à Nickel & Goeldner Spedition, designadamente em França e na Alemanha.

    16

    Segundo o administrador da insolvência da Kintra, a competência do Vilniaus apygardos teismas fundava‑se no artigo 14.o, n.o 3, da Lei lituana relativa à insolvência de empresas. A Nickel & Goeldner Spedition contestou esta competência, alegando que o litígio se integra no âmbito de aplicação do artigo 31.o da CMR e do Regulamento n.o 44/2001.

    17

    Por acórdão de 29 de agosto de 2011, o Vilniaus apygardos teismas deferiu o pedido do administrador da insolvência da Kintra, depois de declarar que a sua competência decorre das disposições da Lei lituana relativa à insolvência de empresas e do Regulamento n.o 1346/2000.

    18

    Por decisão de 6 de junho de 2012, o Lietuvos apeliacinis teismas (Tribunal de Recurso da Lituânia) confirmou a decisão proferida em primeira instância. Declarou que o litígio decorria da exceção em matéria de falência, prevista no artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 44/2001, e que a jurisdição competente para essa apreciação devia ser determinada em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1346/2000 e com as disposições da Lei lituana relativa à insolvência de empresas.

    19

    Em sede de recurso, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Tribunal Supremo da Lituânia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    No caso de uma ação ser proposta por um administrador da insolvência, agindo no interesse dos credores da empresa [insolvente] e com o objetivo de restabelecer a solvência e aumentar o valor do ativo da empresa insolvente, de modo a que o maior número possível de credores possa ver os seus pedidos satisfeitos — deve observar‑se que os mesmos efeitos são procurados através das ações de um administrador da insolvência com vista [a] obter a anulação de transações (ações paulianas) que foram consideradas estreitamente relacionadas com o processo de insolvência —, e dado que, no presente caso, é pedido, em aplicação da […] CMR e do Código Civil lituano (disposições gerais de direito civil), o pagamento de uma dívida resultante de um transporte internacional de mercadorias, deve esta ação ser considerada estreitamente relacionada (com um nexo direto) com o processo de insolvência da demandante e a competência para a sua apreciação ser determinada em conformidade com as regras do Regulamento n.o 1346/2000, sendo abrangida pela exceção à aplicação do Regulamento n.o 44/2001?

    2)

    Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas solicita ao Tribunal de Justiça que esclareça se, quando a obrigação em causa (a obrigação da demandada, baseada no incumprimento das suas obrigações contratuais, de pagar o montante devido e os juros vencidos à demandante insolvente pelo transporte internacional de mercadorias) tiver sido constituída antes da abertura do processo de insolvência respeitante à demandante, deve aplicar‑se o artigo 44.o, n.o 3, alínea a), do Regulamento n.o 1346/2000 [de modo que este regulamento não é aplicável, porque] a competência para julgar o litígio [deve] ser determinada em conformidade com o artigo 31.o da […] CMR, como disposição de uma convenção especial?

    3)

    Em caso de resposta negativa à primeira questão e de o presente litígio ser abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas solicita ao Tribunal de Justiça que esclareça se, no presente caso, dado que o artigo 31.o, n.o 1, da [...] CMR e o artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 não estão em conflito entre si, é de considerar que, enquadrando‑se as relações em causa no âmbito de aplicação da [...] CMR ([como] convenção especial), [se aplicam] as regras enunciadas no artigo 31.o desta para determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar o litígio, desde que tais regras não sejam contrárias aos objetivos fundamentais do Regulamento n.o 44/2001, não conduzam a resultados menos favoráveis para o funcionamento do mercado interno e sejam suficientemente claras e precisas?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    20

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a ação para pagamento de uma dívida resultante de uma prestação de serviços de transporte, proposta pelo administrador da insolvência, designado no âmbito de um processo de insolvência, instaurado num Estado‑Membro e dirigido contra o beneficiário destes serviços, estabelecido num outro Estado‑Membro, entra no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1346/2000 ou no do Regulamento n.o 44/2001.

    21

    A este respeito, há que recordar que, tendo por base os trabalhos preparatórios da Convenção de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), que foi substituída pelo Regulamento n.o 44/2001, o Tribunal de Justiça julgou que este último regulamento e o Regulamento n.o 1346/2000 deviam ser interpretados de forma a evitar qualquer sobreposição entre as normas jurídicas que estes textos enunciam e um vazio jurídico. Assim, as ações excluídas, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 44/2001, do âmbito de aplicação deste último, na medida em que integrem «as falências, as concordatas e os processos análogos», integram o âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1346/2000. Simetricamente, as ações que não integrem o âmbito de aplicação do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1346/2000 integram o âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001 (acórdão F‑Tex, C‑213/10, EU:C:2012:215, n.os 21, 29 e 48).

    22

    O Tribunal de Justiça salientou igualmente que, tal como indica designadamente o sétimo considerando do Regulamento n.o 44/2001, a intenção do legislador da União foi de adotar uma conceção ampla do conceito de «matéria civil e comercial» constante do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento e, consequentemente, um amplo âmbito de aplicação deste último. Em contrapartida, o âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1346/2000, em conformidade com o seu sexto considerando, não deve ser objeto de uma interpretação ampla (acórdão German Graphics Graphische Maschinen, C‑292/08, EU:C:2009:544, n.os 23 a 25).

    23

    Aplicando estes princípios, o Tribunal de Justiça julgou que apenas as ações diretamente decorrentes de um processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas estão excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001. Consequentemente, apenas estas ações entram no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1346/2000 (acórdão F‑Tex, EU:C:2012:215, n.os 23, 29 e jurisprudência referida).

    24

    Quanto à aplicação desta distinção, o Tribunal de Justiça julgou que a ação para cobertura do passivo social, que em direito francês pode ser proposta pelo administrador da insolvência relativamente aos administradores sociais, de forma a acionar a sua responsabilidade, deve ser considerada uma ação que deriva diretamente de um processo de insolvência e que está estritamente relacionada com este. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal de Justiça baseou‑se, em substância, na consideração de que esta ação tem como fundamento jurídico as disposições que derrogam as regras gerais de direito civil (v., no âmbito da Convenção de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, acórdão Gourdain, 133/78, EU:C:1979:49, n.os 4 a 6). O Tribunal de Justiça fez uma apreciação semelhante relativamente a uma ação revogatória, que, no direito alemão, pode ser proposta pelo administrador da insolvência, de forma a impugnar atos praticados antes da abertura do processo de insolvência, e que sejam prejudiciais para os credores. O Tribunal de Justiça salientou que, neste contexto, a ação tinha por fundamento as normas nacionais relativas aos processos de insolvência (acórdão Seagon, C‑339/07, EU:C:2009:83, n.o 16).

    25

    Ao invés, o Tribunal de Justiça julgou que uma ação proposta tendo por fundamento uma cláusula de reserva de propriedade contra um administrador da insolvência apenas apresenta um nexo que não é nem suficientemente direto nem suficientemente estreito com um processo de insolvência, dado que, em substância, a questão de direito levantada numa tal ação é independente da abertura de um processo de insolvência (acórdão German Graphics Graphische Maschinen, EU:C:2009:544, n.os 30 e 31). Da mesma forma, a ação intentada por um demandante, tendo por base uma cessão de crédito consentida por um administrador da insolvência e relativa ao direito de revogação reconhecido a este último pelo direito alemão em matéria de falência, foi considerada como não se encontrando estritamente relacionada com o processo de insolvência. O Tribunal de Justiça salientou, a este respeito, que o exercício pelo cessionário do direito que adquiriu obedecia a regras diferentes das aplicáveis no âmbito de um processo de insolvência (acórdão F‑Tex, EU:C:2012:215, n.os 41 e 42).

    26

    Decorre desta jurisprudência que, na sua apreciação, o Tribunal de Justiça teve em consideração o facto de os diversos tipos de ações que lhe foram submetidas terem sido intentadas no contexto de um processo de insolvência. Todavia, visou sobretudo determinar, em cada caso, se o ato em questão tinha origem no direito processual relativo aos processos de insolvência ou noutras normas.

    27

    Daqui decorre que o critério determinante a que o Tribunal de Justiça atende para identificar o domínio onde se integra uma ação não é o contexto processual em que essa ação se inscreve, mas o fundamento jurídico desta última. Segundo esta abordagem, há que aferir se o direito ou a obrigação que está na base da ação tem a sua origem nas regras comuns do direito civil e comercial ou nas normas derrogatórias específicas dos processos de insolvência.

    28

    No processo principal, está assente que a ação em causa é uma ação para pagamento de uma dívida decorrente de uma prestação de serviços, em cumprimento de um contrato de transporte. Esta ação podia ter sido proposta pelo próprio credor, antes de ter perdido a correspondente faculdade para o fazer, devido à abertura de um processo de insolvência a esse respeito e, nessa hipótese, essa ação seria regida pelas regras de competência judiciária aplicáveis em matéria civil ou comercial.

    29

    O facto de, após a abertura de um processo de insolvência contra o prestador de serviços, a ação destinada a obter o pagamento da dívida ser proposta pelo administrador da insolvência designado no âmbito deste procedimento e de este último agir no interesse dos credores não modifica substancialmente a natureza do crédito invocado, que, quanto ao mérito, continua a estar sujeito a regras jurídicas inalteradas.

    30

    Há, pois, que constatar que a ação em análise no processo principal não apresenta um nexo direto com o processo de insolvência instaurado contra a demandante.

    31

    Assim, e sem que seja necessário aferir se esta ação está estreitamente relacionada com o processo de insolvência, há que considerar que ela não se integra no âmbito de aplicação do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1346/2000 e, simetricamente, não se enquadra no conceito de falência, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 44/2001.

    32

    Consequentemente, há que responder à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que se integra no conceito de «matéria civil e comercial», na aceção desta disposição, a ação para pagamento de uma dívida relativa a uma prestação de serviços de transporte, proposta pelo administrador da insolvência, designado no âmbito de um processo de insolvência de uma empresa, instaurado num Estado‑Membro e dirigido contra o beneficiário destes serviços, estabelecido num outro Estado‑Membro.

    Quanto à segunda questão

    33

    A segunda questão só foi colocada na hipótese de o litígio no processo principal se integrar no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1346/2000.

    34

    Tendo em conta a resposta à primeira questão, não há que responder a esta questão.

    Quanto à terceira questão

    35

    Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional pergunta se, na hipótese de um litígio se integrar no âmbito de aplicação tanto do Regulamento n.o 44/2001 como da CMR, um Estado‑Membro pode, em conformidade com o artigo 71.o, n.o 1, deste regulamento, aplicar as regras de competência judiciária previstas pela CMR e não as fixadas pelo referido regulamento.

    36

    Embora decorra da resposta à primeira questão que o litígio no processo principal se integra no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, único com competência para apreciar a matéria de facto, verificar se os serviços de transporte sobre os quais versa a ação para pagamento que lhe foi submetida preenchem os requisitos para a aplicação da CMR, conforme enunciados no artigo 1.o desta última.

    37

    Se o órgão jurisdicional de reenvio chegar a essa conclusão, há que recordar que, segundo a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao artigo 71.o do Regulamento n.o 44/2001, as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões, previstas pelas convenções especiais, das quais os Estados‑Membros são já parte no momento da entrada em vigor deste regulamento têm, em princípio, por efeito afastar a aplicação das disposições deste regulamento que versam sobre a mesma questão (acórdão TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.os 39 e 45 a 48). A CMR, relativa ao transporte internacional de mercadorias por estrada, à qual a República da Lituânia aderiu em 1993, é uma das convenções especiais visadas por esta disposição.

    38

    Todavia, o Tribunal de Justiça precisou que a aplicação, quanto às matérias regidas por convenções especiais, das normas previstas por estas últimas não pode violar os princípios basilares da cooperação judiciária em matéria civil e comercial no seio da União Europeia, tal como os evocados no sexto, décimo primeiro, décimo segundo e décimo quinto a décimo sétimo considerandos do Regulamento n.o 44/2001, relativos à livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, à certeza jurídica dos tribunais competentes e, consequentemente, à segurança jurídica dos cidadãos, à boa administração da justiça, à redução ao máximo do risco de processos concorrentes, bem como à confiança recíproca na justiça no seio da União (acórdãos TNT Express Nederland, EU:C:2010:243, n.o 49, e Nipponkoa Insurance Co. (Europe), C‑452/12, EU:C:2013:858, n.o 36).

    39

    Tratando‑se das normas que constituem o objeto da terceira questão, ou seja, as regras de competência judiciária previstas no artigo 31.o, n.o 1, da CMR, decorre designadamente desta disposição que o demandante pode escolher entre os órgãos jurisdicionais do país em que o demandado tem a sua residência habitual, os do país do carregamento da mercadoria ou os do lugar previsto para a entrega.

    40

    A opção assim conferida ao demandante corresponde, em substância, à prevista pelo Regulamento n.o 44/2001. Com efeito, em matéria contratual, o demandante pode, em virtude dos artigos 2.°, n.o 1, e 5.°, n.o 1, deste regulamento, escolher entre os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro no qual o demandado tem o seu domicílio ou os do lugar onde a obrigação que está na base do pedido foi ou deve ser cumprida. No que diz respeito ao contrato de transporte, que se integra na categoria dos contratos de prestação de serviços (v., neste sentido, acórdão Rehder, C‑204/08, EU:C:2009:439, n.os 29 e 30), este lugar é, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 1, alínea b), segundo travessão, do referido regulamento, o de um Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou deviam ter sido prestados.

    41

    É verdade que o artigo 5.o, n.o 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.o 44/2001, cuja redação apenas visa um único lugar de cumprimento, oferece ao demandante uma escolha mais restrita que o artigo 31.o, n.o 1, da CMR, que lhe permite escolher entre o lugar do carregamento e o da entrega da mercadoria. Todavia, esta circunstância não põe em causa a compatibilidade do artigo 31.o, n.o 1, da CMR com os princípios basilares da cooperação judiciária em matéria civil e comercial no seio da União. Com efeito, o Tribunal de Justiça admitiu em matéria de contratos de transporte que, em certas situações, o demandante pode escolher entre os órgãos jurisdicionais do lugar de partida e os do lugar de destino. Salientou, a este respeito, que tal faculdade de escolha reconhecida ao demandante não só respeita o critério da proximidade mas satisfaz igualmente a exigência de certeza jurídica, na medida em que permite, quer ao demandante quer ao demandado, identificar facilmente os órgãos jurisdicionais que podem ser chamados a decidir. Acresce que está em conformidade com o objetivo da segurança jurídica, dado que a escolha do demandante é limitada, no âmbito do artigo 5.o, n.o 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.o 44/2001, a dois órgãos jurisdicionais (acórdão Rehder, EU:C:2009:439, n.o 45).

    42

    Atendendo ao exposto, importa responder à terceira questão que o artigo 71.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese em que um litígio se integre no âmbito de aplicação tanto deste regulamento como da CMR, um Estado‑Membro pode, em conformidade com o artigo 71.o, n.o 1, do referido regulamento, aplicar as regras de competência judiciária previstas pelo artigo 31.o, n.o 1, da CMR.

    Quanto às despesas

    43

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que se integra no conceito de «matéria civil e comercial», na aceção desta disposição, a ação para pagamento de uma dívida decorrente de uma prestação de serviços de transporte, proposta pelo administrador da insolvência, designado no âmbito de um processo de insolvência de uma empresa, instaurado num Estado‑Membro e dirigido contra o beneficiário destes serviços, estabelecido num outro Estado‑Membro.

     

    2)

    O artigo 71.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese em que um litígio se integre no âmbito de aplicação tanto deste regulamento como da Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, assinada em Genebra, em 19 de maio de 1956, conforme alterada pelo Protocolo assinado em Genebra, em 5 de julho de 1978, um Estado‑Membro pode, em conformidade com o artigo 71.o, n.o 1, do referido regulamento, aplicar as regras de competência judiciária previstas pelo artigo 31.o, n.o 1, desta convenção.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: lituano.

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