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Documento 62009CJ0264

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 15 de Septembro de 2011.
Comissão Europeia contra República Eslovaca.
Incumprimento de Estado - Energia - Mercado interno da electricidade - Directiva 2003/54/CE - Contrato de investimento - Acordo bilateral sobre a protecção dos investimentos celebrado antes da adesão à União Europeia - Artigo 307.º CE.
Processo C-264/09.

Colectânea de Jurisprudência 2011 I-08065

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2011:580

Processo C‑264/09

Comissão Europeia

contra

República da Eslováquia

«Incumprimento de Estado – Energia – Mercado interno da electricidade – Directiva 2003/54/CE – Contrato de investimento – Acordo bilateral sobre a protecção dos investimentos celebrado antes da adesão à União Europeia – Artigo 307.° CE»

Sumário do acórdão

Aproximação das legislações – Medidas destinadas ao estabelecimento e ao funcionamento do mercado interno da electricidade – Directiva 2003/54 – Acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade

(Artigo 307.° CE; Directiva 2003/54 do Parlamento Europeu e do Conselho)

Não incumpre as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 2003/54, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92, um Estado‑Membro cuja gestora da rede eléctrica celebrou, antes da adesão desse Estado à Comunidade, com uma sociedade estabelecida num Estado terceiro, um contrato de acesso privilegiado que confere a essa sociedade um direito de transporte na rede eléctrica de alta tensão nacional em contrapartida pela sua participação financeira na construção da linha de transporte, na qual beneficia desse direito, consequentemente, o acesso privilegiado concedido à sociedade em causa pode ser considerado um investimento protegido pelo acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos, celebrado entre o Estado terceiro e o Estado‑Membro em causa antes da adesão de este último a Comunidade e que uma eventual resolução do contrato implicaria, à luz das obrigações internacionais do Estado‑Membro, uma violação desse acordo por esse Estado‑Membro.

Com efeito, o artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE tem por objecto precisar, em conformidade com os princípios do direito internacional, tal como resultam, nomeadamente, do artigo 30.°, n.° 4, alínea b), da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, que a aplicação do Tratado CE não prejudica o compromisso de o Estado‑Membro em causa respeitar os direitos dos países terceiros resultantes de uma convenção anterior e cumprir as obrigações correspondentes.

A este respeito, para determinar se uma norma comunitária pode ser tornada inoperante por uma convenção internacional anterior, importa examinar se esta impõe ao Estado‑Membro em causa obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido pelos Estados terceiros que são partes na convenção.

Por outro lado, embora, no quadro do artigo 307.° CE, os Estados‑Membros tenham o direito de escolher as medidas apropriadas a tomar com vista a eliminar as incompatibilidades existentes entre uma convenção pré‑comunitária e o Tratado CE, se um Estado‑Membro encontrar dificuldades que tornem impossível a modificação de um acordo, não se pode excluir que lhe compete denunciar esse acordo. Tal não sucede quando o contrato não contém nenhuma cláusula relativa à possibilidade de ser denunciado e que uma resolução teria por efeito privar a sociedade da remuneração que o referido contrato prevê como contrapartida pela sua participação financeira na construção da linha de transporte violaria os direitos dessa sociedade e teria, assim, o mesmo efeito que uma expropriação proibida pelo acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos.

Nestas condições, mesmo admitindo que o acesso privilegiado concedido à sociedade não seja conforme à Directiva 2003/54, este acesso privilegiado está protegido pelo artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE.

(cf. n.os 38, 41, 42, 44, 46, 48, 51, 52)








ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de Setembro de 2011 (*)

«Incumprimento de Estado – Energia – Mercado interno da electricidade – Directiva 2003/54/CE – Contrato de investimento – Acordo bilateral sobre a protecção dos investimentos celebrado antes da adesão à União Europeia – Artigo 307.° CE»

No processo C‑264/09,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 14 de Julho de 2009,

Comissão Europeia, representada por O. Beynet, F. Hoffmeister e J. Javorský, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Eslovaca, representada por B. Ricziová, na qualidade de agente,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, J.‑J. Kasel, A. Borg Barthet (relator), E. Levits e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 15 de Março de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede que o Tribunal de Justiça declare que, não tendo garantido um acesso não discriminatório à rede de transporte de electricidade, a República Eslovaca não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 20.°, n.° 1, e 9.°, alínea e), da Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE (JO L 176, p. 37).

 Quadro jurídico

 Acordo entre a Confederação Helvética e a República Federativa Checa e Eslovaca relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos

2        Nos termos do artigo 1.°, n.° 1, do Acordo celebrado em 5 de Outubro de 1990 entre a Confederação Helvética e a República Federativa Checa e Eslovaca relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos (a seguir «acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos»), o termo «investidor» designa:

«[...]

(b)      as entidades jurídicas, incluindo as sociedades, as sociedades registadas, as sociedades de pessoas ou outras organizações, que são constituídas ou organizadas de qualquer outra forma em conformidade com a legislação dessa Parte Contratante e que têm a sua sede e, simultaneamente, desenvolvem actividades económicas reais no território dessa mesma Parte Contratante;

[...]»

3        Nos termos do artigo 1.°, n.° 2, desse acordo, o termo «investimentos» engloba todo o tipo de valores patrimoniais e, em especial:

«[…];

(c)      reivindicações e direitos a uma qualquer prestação com valor económico;

[…]»

4        O artigo 4.° do referido acordo, intitulado «Protecção, tratamento», determina:

«[…]

(2)      Cada Parte Contratante assegurará um tratamento justo e equitativo, no seu território, dos investimentos da outra Parte Contratante. […]

[…]»

5        Nos termos do artigo 6.° do mesmo acordo, intitulado «Expropriação, indemnização»:

«(1)      Nenhuma das Partes Contratantes adoptará, directa ou indirectamente, medidas de expropriação, nacionalização ou qualquer outra medida de natureza ou efeito equivalentes contra os investimentos de investidores da outra Parte Contratante, salvo se as medidas forem para fins de interesse público, não discriminatórias e realizadas nos devidos termos da lei, e desde que seja providenciada uma indemnização adequada e efectiva. […]

[…]»

 Tratado da Carta da Energia

6        Segundo o artigo 10.°, n.° 1, do Tratado da Carta da Energia, assinado em Lisboa a 17 de Dezembro de 1994 (a seguir «TCE»), aprovado em nome das Comunidades Europeias pela Decisão 98/181/CE, CECA, Euratom do Conselho e da Comissão, de 23 de Setembro de 1997, relativa à conclusão pelas Comunidades Europeias do Tratado da Carta da Energia e do Protocolo da Carta da Energia relativo à eficiência energética e aos aspectos ambientais associados (JO 1998, L 69, p. 1):

«Em conformidade com as disposições do presente Tratado, cada Parte Contratante incentivará e criará condições estáveis, equitativas, favoráveis e transparentes para que investidores de outras Partes Contratantes realizem investimentos no seu território. Essas condições incluirão o compromisso de concessão de um tratamento justo e equitativo, em todos os momentos, a investimentos de investidores de outras Partes Contratantes. Esses investimentos devem também gozar da mais constante protecção e segurança e nenhuma Parte Contratante deve, de forma alguma, prejudicar, através de medidas desproporcionadas ou discriminatórias, a sua gestão, manutenção, uso, fruição ou alienação. Esses investimentos não devem, em caso algum, ser tratados de forma menos favorável que o exigido pelo direito internacional, incluindo obrigações decorrentes de tratados. Cada Parte Contratante deve cumprir quaisquer obrigações contraídas em relação a um investidor ou a um investimento de um investidor de outra Parte Contratante.»

7        Nos termos do artigo 13.° desse Tratado, intitulado «Expropriação»:

«1.      Os investimentos de investidores de uma Parte Contratante no território de qualquer outra Parte Contratante não serão nacionalizados, expropriados ou sujeitos a uma medida ou medidas com efeito equivalente à nacionalização ou expropriação (a seguir denominadas ‘expropriação’), excepto se essa expropriação for:

a)      Para fins de interesse público;

b)      Não discriminatória;

c)      Realizada nos devidos termos da lei, e

d)      Acompanhada pelo pagamento de indemnização rápida, adequada e efectiva.

A indemnização corresponderá ao justo valor de mercado do investimento expropriado no momento imediatamente antes da expropriação ou em que a expropriação iminente tenha sido tornada pública de forma a afectar o valor do investimento (a seguir denominada ‘data de avaliação’).

A pedido do investidor, o justo valor de mercado será expresso numa moeda livremente convertível, com base na taxa de câmbio do mercado para essa moeda à data de avaliação. A indemnização incluirá também juros a uma taxa comercial estabelecida numa base de mercado, a partir da data de expropriação até à data de pagamento.

[…]»

 Regulamentação da União

8        Nos termos do artigo 2.° do Acto relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO L 2003, L 236, p. 33), «[a] partir da data da adesão, as disposições dos Tratados originários e os actos adoptados pelas Instituições […] antes da adesão vinculam os novos Estados‑Membros e são aplicáveis nesses Estados nos termos desses Tratados e do presente Acto».

9        O artigo 9.°, alínea e), da Directiva 2003/54 dispõe:

«Para efeitos da presente directiva, o operador da rede de transporte é responsável por:

[…]

e)      Velar por que não haja discriminação, designadamente entre os utilizadores ou categorias de utilizadores da rede, em especial em benefício das empresas suas coligadas.

[…]»

10      O artigo 20.°, n.° 1, da referida directiva prevê:

«Os Estados‑Membros devem garantir a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição baseado em tarifas publicadas, aplicáveis a todos os clientes elegíveis e aplicadas objectivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede. Os Estados‑Membros devem assegurar que essas tarifas, ou as metodologias em que se baseia o respectivo cálculo, sejam aprovadas nos termos do artigo 23.° antes de entrarem em vigor, bem como a publicação dessas tarifas – e das metodologias, no caso de apenas serem aprovadas metodologias – antes da respectiva entrada em vigor.»

 Antecedentes do litígio e procedimento pré‑contencioso

11      Em 27 de Outubro de 1997, a Aare‑Tessin AG für Elektrizität (a seguir «ATEL»), empresa com sede em Olten (Suíça), e a Slovenské elektrárne a.s., empresa com sede em Bratislava (Eslováquia), à qual sucedeu a Slovenskà elekrtrizačná prenosová sústava a.s. (a seguir «SEPS»), agindo na qualidade de gestora da rede de transporte eslovaca, celebraram um contrato de reconhecimento de um direito de transporte na rede de alta tensão da Slovenské elektrárne a.s. na Eslováquia (a seguir «contrato em causa»). Nos termos do artigo 3.° desse contrato, a SEPS concedeu à ATEL um direito de transporte de 300 MW entre a Polónia e a Hungria, para o período compreendido entre 1 de Outubro de 1998 e 30 de Setembro de 2014. A ATEL pode dispor livremente deste direito.

12      O direito de transporte reservado à ATEL representa a contrapartida pela sua participação financeira na construção da linha de transporte, na qual beneficia desse direito, participação essa que ascende a mais de 50% dos respectivos custos de construção.

13      Depois de ter enviado à República Eslovaca uma notificação para cumprir, a Comissão enviou‑lhe, em 15 de Dezembro de 2006, um parecer fundamentado no qual considerava que, tendo reservado uma capacidade ao nível da «interconexão SEPS» nas linhas que ligam a rede eslovaca às redes polacas e húngaras, a República Eslovaca não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 2003/54.

14      Por carta de 9 de Fevereiro de 2007, a República Eslovaca respondeu a esse parecer fundamentado, alegando que o contrato em causa não era um contrato de acesso privilegiado, mas sim um contrato de investimento. A República Eslovaca referiu também que, apesar das negociações havidas com vista à resolução ou à alteração desse contrato, a ATEL exigia a sua execução e a observância do acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos.

15      Considerando que a República Eslovaca não tinha eliminado o incumprimento que lhe era imputado, a Comissão intentou a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

16      Em primeiro lugar, a Comissão alega que a República Eslovaca não cumpriu as obrigações que decorrem dos artigos 9.°, alínea e), e 20, n.° 1, da Directiva 2003/54, que exigem que seja assegurado um acesso não discriminatório à rede de transporte.

17      Com efeito, na opinião da Comissão, o direito preferencial de transporte que a SEPS reconheceu à ATEL até 30 de Setembro de 2014 coloca esta empresa numa situação privilegiada em relação aos outros utilizadores da rede.

18      Em segundo lugar, a Comissão alega que, contrariamente ao que a República Eslovaca sustenta, a violação da referida directiva não pode ser justificada pelo artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE. Com efeito, esta disposição só se destina a ser aplicada se houver incompatibilidade entre as obrigações resultantes, para os Estados aderentes, das convenções celebradas antes da data da sua adesão à União Europeia e o direito comunitário. Ora, na opinião da Comissão, não existe nenhuma incompatibilidade entre o acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos e este direito. Além disso, esse acordo não obriga de forma alguma a República Eslovaca a manter em vigor o contrato em causa. Pelo contrário, esta tem toda a liberdade para pôr termo a esse contrato, de modo a respeitar as obrigações resultantes da Directiva 2003/54.

19      Em terceiro lugar, a Comissão alega que, uma vez que os artigos 4.°, n.° 2, e 6.° do referido acordo não exigem que o contrato em causa seja cumprido até ao seu termo, isto é, até 30 de Setembro de 2014, não existe nenhuma obrigação, na acepção do artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE, que impeça que a República Eslovaca resolva esse contrato e institua, assim, um acesso não discriminatório à rede de transporte, em conformidade com a Directiva 2003/54.

20      Na sua contestação, a República Eslovaca considera, em primeiro lugar, que o contrato em causa não é discriminatório relativamente aos outros operadores do mercado eslovaco da electricidade.

21      Em segundo lugar, a República Eslovaca é da opinião que é necessário considerar que o contrato em causa não é um contrato de acesso privilegiado, mas sim um contrato de investimento. Precisa que o direito de transporte constitui unicamente uma forma específica de retribuição do investimento efectuado contratualmente pela ATEL e que a própria revogação da garantia do direito de transporte levaria a uma discriminação dessa sociedade face aos outros operadores do mercado. Com efeito, essa revogação submeteria a ATEL às mesmas condições a que estão sujeitos os outros operadores do mercado, apesar de estes não terem efectuado nenhum investimento na rede de transporte eslovaca. Tal equivaleria a uma privação dos direitos dessa sociedade, sem a adequada compensação, e seria não apenas contrária ao contrato em causa mas ainda ao TCE, que faz parte integrante do direito comunitário.

22      Em terceiro lugar, no que diz respeito à protecção do investimento efectuado pela ATEL com base no TCE, a República Eslovaca alega que esse Tratado não permite uma interpretação da Directiva 2003/54 no sentido de impor a revogação da garantia do direito de transporte de que a SATEL beneficia, dado que a referida directiva não pode prejudicar a protecção dos investidores garantida pelo TCE. Ora, a interpretação da Directiva 2003/54 que a Comissão defende tem por efeito permitir à ATEL sustentar, numa eventual arbitragem, que a revogação da garantia do direito de transporte, sem a concessão de uma compensação adequada, constitui uma violação das disposições em matéria de expropriação (artigo 13.° do TCE), uma violação do direito a um tratamento justo e equitativo (artigo 10.° do TCE) ou uma violação da cláusula do contrato em causa (artigo 10.°, n.° 1, último parágrafo, do TCE).

23      Em quarto lugar, a República Eslovaca alega que, mesmo que a revogação da garantia do direito de transporte não preenchesse os requisitos de uma expropriação directa e mesmo que essa medida fosse adoptada no interesse geral, a ATEL poderia demonstrar a existência de uma expropriação indirecta por via regulamentar que só poderia ser efectuada se fossem respeitados todos os requisitos previstos em matéria de expropriação, incluindo a que impõe o pagamento de uma compensação ao investidor em causa.

24      Em quinto lugar, este Estado‑Membro considera improcedentes as afirmações da Comissão segundo as quais, por um lado, a resolução do contrato em causa não é contrária às disposições do artigo 4.°, n.° 2, do acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos, que exige um tratamento justo e equitativo dos investimentos, uma vez que a ATEL estava em condições de antecipar a entrada da República Eslovaca na União e a liberalização do mercado da energia, e, por outro, a República Eslovaca não se tinha comprometido perante a Confederação Helvética a não introduzir alterações regulamentares que levassem à resolução do contrato em causa antes do termo do prazo de 30 de Setembro de 2014.

25      Na réplica, a Comissão alega que são destituídos de fundamento os argumentos da República Eslovaca segundo os quais, por um lado, o incumprimento cessou, visto que as práticas em vigor foram alteradas a partir de 1 de Janeiro de 2008, pelo que, depois dessa alteração, a ATEL deixou de beneficiar de um acesso privilegiado, e, por outro, a alteração do contrato em causa requer a concessão de uma compensação ao abrigo do direito internacional, a qual tem carácter oneroso.

26      A este respeito, a Comissão sustenta que, por um lado, segundo jurisprudência constante, uma simples prática não pode pôr termo a um incumprimento, quando sejam mantidas em vigor disposições vinculativas contrárias ao direito comunitário, e que, no caso em apreço, o incumprimento perdura até o contrato em causa ser alterado ou resolvido. Por outro lado, é possível que as empresas beneficiem de uma compensação, por força das disposições do direito internacional ou do direito nacional, pela perda dos direitos contratuais nos quais assenta o tratamento preferencial resultante dos investimentos que efectuaram.

27      A Comissão daí conclui que, uma vez que a República Eslovaca não consegue demonstrar que a Directiva 2003/54 é contrária ao TCE, a sua argumentação a respeito do artigo 307.° CE, relativo aos compromissos internacionais da Comunidade Europeia, é improcedente.

28      Relativamente ao argumento invocado pela República Eslovaca segundo o qual a resolução do contrato em causa é contrária ao artigo 4.°, n.° 2, do acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos, uma vez que não constitui um tratamento justo e equitativo, a Comissão replica que nenhum investidor pode legitimamente esperar que o quadro regulamentar seja imutável e que os investidores prudentes sabiam, ou deviam saber, que as repercussões da adesão à União na situação jurídica da República Eslovaca seriam consideráveis. Assim, o artigo 4.°, n.° 2, desse acordo não obriga de modo algum a República Eslovaca a manter um sistema de acesso discriminatório à rede de transporte, como o que resulta do contrato em causa.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

29      A defesa da República Eslovaca assenta quer no TCE quer no acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos.

30      Uma vez que o referido acordo visa directamente a protecção dos investimentos, há que examinar a defesa da República Eslovaca baseada nesse acordo.

31      O acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos foi celebrado em 5 de Outubro de 1990, isto é, antes da adesão da República Eslovaca à União, a qual só ocorreu em 1 de Maio de 2004. Esse acordo, que vincula a República Eslovaca no que diz respeito aos investimentos efectuados no seu território, contém estipulações que garantem a protecção dos investimentos efectuados na Eslováquia pelos investidores suíços.

32      Consequentemente, como afirmou o advogado‑geral no n.° 77 das suas conclusões, se a República Eslovaca devesse, nos termos desse acordo, satisfazer as obrigações decorrentes do contrato em causa, a eventual discriminação relacionada com o tratamento privilegiado concedido à ATEL estaria justificada, ainda que devesse ser considerada contrária à Directiva 2003/54.

33      Para verificar se assim é, há que examinar se o acesso privilegiado concedido à ATEL deve ser considerado um investimento abrangido, à época, pelo referido acordo. Só nesse caso é que haverá também que examinar se a República Eslovaca teria podido resolver o contrato em causa, sem violar esse acordo.

34      Nos termos do seu artigo 1.°, n.° 2, alínea c), o acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos aplica‑se aos investimentos, definidos como «todo o tipo de valores patrimoniais», e, nomeadamente, às «reivindicações e direitos a uma qualquer prestação com valor económico».

35      No caso em apreço, por ter pago mais de 50% dos custos de construção da linha de transporte de Krosno (Polónia) a Lemesany (Eslováquia), a ATEL pôde adquirir um direito de transporte nessa linha para uma capacidade específica. Por outras palavras, a obrigação da SEPS de conceder à ATEL uma capacidade de transporte, mediante simples pedido dessa empresa, faz parte da remuneração contratualmente prevista como contrapartida pela participação financeira da ATEL na construção da linha de transporte em causa.

36      Nestas circunstâncias, o direito de transporte adquirido pela ATEL tem manifestamente um valor económico, na medida em que lhe garante, para uma capacidade específica, o acesso à rede de transporte eslovaca, necessário para poder vender electricidade na Polónia passando através da Hungria.

37      Consequentemente, como afirmou o advogado‑geral no n.° 71 das suas conclusões, o investimento efectuado pela ATEL deve ser considerado um investimento, na acepção do artigo 1.°, alínea c), do acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos, que a República Eslovaca está obrigada a proteger nos termos do artigo 4.°, n.os 1 e 2, do mesmo acordo.

38      Há, portanto, que examinar se uma eventual resolução do contrato em causa pela SEPS implicaria, à luz das obrigações internacionais da República Eslovaca, uma violação do referido acordo por esse Estado‑Membro.

39      No caso vertente, contrariamente ao que a República Eslovaca alega, a Comissão considera que a resolução desse contrato não é contrária nem ao artigo 4.°, n.° 2, desse acordo, que prevê um tratamento justo e equitativo dos investimentos, nem ao artigo 6.° do mesmo acordo, na medida em que não constitui uma expropriação na acepção dessa disposição.

40      A este respeito, importa recordar que, embora não seja da competência do Tribunal de Justiça interpretar o acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos, há, contudo, que examinar os elementos que permitem determinar se esse acordo prevê, para a República Eslovaca, uma obrigação que, na acepção do artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE, não pode ser afectada pelas disposições do Tratado CE.

41      Ora, segundo jurisprudência constante, o artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE tem por objecto precisar, em conformidade com os princípios do direito internacional, tal como resultam, nomeadamente, do artigo 30.°, n.° 4, alínea b), da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, que a aplicação do Tratado CE não prejudica o compromisso de o Estado‑Membro em causa respeitar os direitos dos países terceiros resultantes de uma convenção anterior e cumprir as obrigações correspondentes (v., neste sentido, acórdão de 14 de Outubro de 1980, Burgoa, 812/79, Recueil, p. 2787, n.° 8).

42      Além disso, para determinar se uma norma comunitária pode ser tornada inoperante por uma convenção internacional anterior, importa examinar se esta impõe ao Estado‑Membro em causa obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido pelos Estados terceiros que são partes na convenção (acórdão de 2 de Agosto de 1993, Levy, C‑158/91, Colect., p. I‑4287, n.° 13).

43      Na opinião da República Eslovaca, o acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos exige que esta mantenha em vigor a obrigação de a SEPS garantir o acesso privilegiado da ATEL à linha de transporte visada no contrato em causa.

44      Ora, há que recordar que, no processo que deu origem ao acórdão de 4 de Julho de 2000, Comissão/Portugal (C‑62/98, Colect., p. I‑5171, n.° 49), o Tribunal de Justiça precisou que, embora, no quadro do artigo 307.° CE, os Estados‑Membros tenham o direito de escolher as medidas apropriadas a tomar com vista a eliminar as incompatibilidades existentes entre uma convenção pré‑comunitária e o Tratado CE, se um Estado‑Membro encontrar dificuldades que tornem impossível a modificação de um acordo, não se pode excluir que lhe compete denunciar esse acordo.

45      Nesse processo, o Tribunal de Justiça considerou, nomeadamente, que, na medida em que o acordo em causa continha uma cláusula que visava explicitamente a possibilidade de o denunciar, a sua denúncia pela República Portuguesa não contrariaria os direitos que, no caso em apreço, emergiam desse acordo para a República Popular de Angola (acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 46).

46      Porém, é imperioso constatar que o contrato em causa não contém nenhuma cláusula relativa à possibilidade de ser denunciado.

47      Quanto à possibilidade de a República Eslovaca resolver o referido contrato no respeito do artigo 6.° do acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos, importa observar que essa disposição consagra uma ampla protecção dos investimentos, abrangendo não só as medidas de expropriação directa e indirecta como também as medidas que tenham o mesmo efeito que a expropriação.

48      Por conseguinte, na medida em que tal resolução do contrato em causa teria por efeito privar a ATEL da remuneração que o referido contrato prevê como contrapartida pela sua participação financeira na construção da linha de transporte entre Krosno e Lemesany, tal medida violaria os direitos da ATEL e teria, assim, o mesmo efeito que uma expropriação na acepção do artigo 6.° do acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos.

49      É verdade que o referido artigo 6.° consagra também o direito a uma indemnização pela violação do direito de não ser expropriado, que assiste ao investidor. Contudo, a obrigação de indemnização em caso de expropriação não tem por efeito suprimir a obrigação de a República Eslovaca não tomar medidas de expropriação contra os investimentos protegidos pelo acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos.

50      Há que acrescentar que, como observou o advogado‑geral no n.° 105 das suas conclusões, a República Eslovaca não pode alterar os termos ou os efeitos do contrato em causa através da sua legislação, nem torná‑lo desprovido de efeitos jurídicos. Uma lei eslovaca que declarasse inválidos e inaplicáveis os contratos que proporcionam um acesso privilegiado à rede de transporte não alteraria o facto de que a SEPS permaneceria vinculada pelo contrato em causa. Portanto, a única possibilidade de que a República Eslovaca disporia para cumprir a sua obrigação consistiria na adopção de uma legislação que visasse a SEPS e a impedisse de executar o dito contrato, o que se traduziria numa expropriação indirecta do direito de transporte de que a ATEL beneficia.

51      Face ao exposto, há que concluir que o acesso privilegiado concedido à ATEL pode ser considerado um investimento protegido pelo acordo relativo à promoção e à protecção recíprocas dos investimentos e, nos termos do artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE, este não pode ser afectado pelas disposições do Tratado CE.

52      Nestas condições, há que considerar que, mesmo admitindo que o acesso privilegiado concedido à ATEL não seja conforme à Directiva 2003/54, este acesso privilegiado está protegido pelo artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE.

53      Consequentemente, a acção da Comissão deve ser julgada improcedente.

 Quanto às despesas

54      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Eslovaca pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que a condenar nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:

1)      A acção é julgada improcedente.

2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: eslovaco.

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