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Documento 62008CJ0447

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 8 de Julho de 2010.
Processos penais contra Otto Sjöberg (C-447/08) e Anders Gerdin (C-448/08).
Pedidos de decisão prejudicial: Svea hovrätt - Suécia.
Livre prestação de serviços - Jogos de fortuna ou azar - Exploração de jogos de fortuna ou azar através da Internet - Promoção de jogos organizados noutros Estados-Membros - Actividades reservadas a organismos públicos ou sem fins lucrativos - Sanções penais.
Processos apensos C-447/08 e C-448/08.

Colectânea de Jurisprudência 2010 I-06921

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2010:415

Processos apensos C‑447/08 e C‑448/08

Processos penais

contra

Otto Sjöberg e Anders Gerdin

(pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Svea hovrätt)

«Livre prestação de serviços – Jogos de fortuna ou azar – Exploração de jogos de fortuna ou azar através da Internet – Promoção de jogos organizados noutros Estados‑Membros – Actividades reservadas a organismos públicos ou sem fins lucrativos – Sanções penais»

Sumário do acórdão

1.        Livre prestação de serviços – Restrições – Jogos de fortuna ou azar

(Artigo 49.° CE)

2.        Livre prestação de serviços – Restrições – Jogos de fortuna ou azar

(Artigo 49.° CE)

1.        O artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que proíbe a publicidade, destinada aos residentes desse Estado, de jogos de fortuna ou azar organizados noutros Estados‑Membros, com fins lucrativos, por operadores privados.

Considerações de ordem cultural, moral ou religiosa podem, com efeito, justificar restrições à livre prestação de serviços por operadores de jogos de fortuna ou azar, nomeadamente na medida em que se pode considerar inaceitável permitir que lucros privados resultem da exploração de um flagelo social ou da fraqueza dos jogadores e do seu infortúnio. Segundo a própria escala de valores de cada um dos Estados‑Membros e tendo em conta o poder de apreciação de que estes dispõem, é portanto, possível que um Estado‑Membro limite a exploração dos jogos de fortuna ou azar, confiando esses jogos a organismos públicos ou caritativos. A proibição da promoção dos serviços dos operadores que são empresas privadas com fim lucrativo junto dos consumidores residentes no Estado‑Membro em causa responde, assim, ao objectivo de excluir interesses lucrativos privados do sector dos jogos de fortuna ou azar e pode, de resto, ser considerada necessária para atingir um tal objectivo.

(cf. n.os 43‑46, disp. 1)

2.        O artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que submete os jogos de fortuna ou azar a um regime de direitos exclusivos e segundo a qual a promoção desses jogos organizados noutro Estado‑Membro é passível de sanções mais severas do que a promoção desses mesmos jogos explorados sem autorização em território nacional.

Consequentemente, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se as duas infracções em causa, embora abrangidas por regimes diferentes, são, contudo, objecto de tratamento equivalente nos termos da legislação nacional aplicável. Este órgão jurisdicional deverá, em particular, verificar se, de facto, as referidas infracções são reprimidas pelas autoridades competentes com a mesma diligência e levam à aplicação de penas equivalentes pelos tribunais competentes.

(cf. n.os 55, 57, disp. 2)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

8 de Julho de 2010 (*)

«Livre prestação de serviços – Jogos de fortuna ou azar – Exploração de jogos de fortuna ou azar através da Internet – Promoção de jogos organizados noutros Estados‑Membros – Actividades reservadas a organismos públicos ou sem fins lucrativos – Sanções penais»

Nos processos apensos C‑447/08 e C‑448/08,

que têm por objecto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentados pelo Svea hovrätt (Suécia), por decisões de 8 de Outubro de 2008, entrados no Tribunal de Justiça em 13 de Outubro de 2008, nos processos penais contra

Otto Sjöberg (C-447/08),

Anders Gerdin (C‑448/08),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: J.-C. Bonichot, presidente de secção, C. Toader, K. Schiemann (relator), P. Kūris e L. Bay Larsen, juízes,

advogado-geral: Y. Bot,

secretário: C. Strömholm, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de Janeiro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de O. Sjöberg, por U. Isaksson, advokat,

–        em representação de A. Gerdin, por S. Widmark e J. Gyllenberg, advokater,

–        em representação do Governo sueco, por A. Falk, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, na qualidade de agente, assistida por P. Vlaemminck e A. Hubert, advocaten,

–        em representação do Governo helénico, por M. Tassopoulou e O. Patsopoulou, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo espanhol, por F. Díez Moreno, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo austríaco, por E. Riedl, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, P. Mateus Calado e A. Barros, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo norueguês, por K. Moen e K. Moe Winther, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por E. Traversa, K. Simonsson e P. Dejmek, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 23 de Fevereiro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação do artigo 49.º CE.

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de processos penais instaurados contra O. Sjöberg e A. Gerdin, acusados de violação do § 54, n.° 2, da Lei das lotarias e dos jogos de fortuna ou azar (lotterilagen, SFS 1994, n.° 1000), na sua versão aplicável aos litígios nos processos principais (a seguir «lotterilag»).

 Quadro jurídico nacional

3        A lotterilag rege todas as categorias de jogos de fortuna ou azar propostos ao público na Suécia.

4        Os objectivos da política sueca em matéria de jogo foram resumidos da seguinte forma nos trabalhos preparatórios da lotterilag:

«Os objectivos da política de jogo devem […] continuar a ser a manutenção de um mercado de jogo saudável e seguro em que os interesses de protecção social e a procura do jogo sejam satisfeitos de forma controlada. Os resultados do jogo devem ser protegidos e sempre reservados para fins públicos ou de interesse público, ou seja, a vida associativa, os desportos hípicos e o Estado. A tendência deve continuar a ser, como até à data, a de dar prioridade às considerações de protecção social, tendo simultaneamente em conta o interesse de uma oferta de jogo variada e o risco de burlas e de jogos ilícitos.»

5        Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a legislação sueca em matéria de jogos de fortuna ou azar visa:

–        evitar a criminalidade;

–        evitar danos sociais e económicos;

–        salvaguardar os interesses da protecção dos consumidores; e

–        distribuir os rendimentos das lotarias para fins públicos ou de interesse público.

 Exigência de uma autorização para organizar jogos de fortuna ou azar

6        O § 9 da lotterilag dispõe que, em princípio, é exigida uma autorização para organizar jogos de fortuna ou azar na Suécia.

7        Nos termos do § 15 da lotterilag, a autorização pode ser concedida a pessoas colectivas de direito sueco sem fins lucrativos, cuja principal finalidade consista, segundo os seus estatutos, em prosseguir um objectivo de utilidade pública no território nacional e que exerçam actividades que visem principalmente a prossecução desse objectivo. Nos termos do § 45 da mesma lei, o Governo sueco pode conceder autorizações especiais para a organização de jogos de fortuna ou azar noutros casos diferentes dos previstos na referida lei.

8        Em conformidade com um princípio fundamental da legislação sueca em matéria de jogos de fortuna ou azar, segundo o qual a exploração desses jogos deve ser consagrada a objectivos de utilidade pública ou de interesse geral, o mercado sueco dos jogos de fortuna ou azar está distribuído entre, por um lado, associações sem fins lucrativos com actividade no território nacional e com objectivos de utilidade pública a quem são concedidas autorizações ao abrigo do § 15 da lotterilag e, por outro, dois operadores detidos pelo Estado ou maioritariamente controlados por este, a saber, a sociedade pública de jogo Svenska Spel AB e a sociedade mista Trav och Galopp AB, controlada pelo Estado e pelas organizações de desportos hípicos, sendo essas sociedades titulares de autorizações especiais conferidas ao abrigo do § 45 da referida lei.

9        Nos termos do § 48 da lotterilag, uma autoridade pública, a Lotteriinspektion, fiscaliza, a nível central, o cumprimento dessa lei. Com base nessa mesma lei, a Lotteriinspektion pode elaborar as regulamentações relativas à fiscalização e ao regulamento interno necessárias para os diferentes jogos. Superintende a actividade da Svenska Spel AB e efectua inspecções e fiscalizações permanentes.

10      Segundo o § 52 da lotterilag, a Lotteriinspektion pode dirigir injunções e ordenar proibições necessárias ao cumprimento das disposições dessa lei e dos regulamentos e condições adoptados ao abrigo da mesma. Essas injunções ou proibições podem ser acompanhadas de uma coima.

 Proibição de organizar jogos de fortuna ou azar sem autorização

11      Nos termos do § 14 do capítulo 16 do Código Penal (brottsbalken, a seguir «brottsbalk»), a organização de jogos de fortuna ou azar sem autorização constitui um crime de jogo ilegal. Este crime é punível com multa ou pena de prisão até dois anos. Se a infracção for considerada grave, é punível, como crime de jogo ilegal grave previsto no § 14a do mesmo capítulo 16, com pena de prisão de seis meses a quatro anos.

12      Além disso, nos termos do § 54, n.° 1, da lotterilag, quem, com dolo ou negligência grave, organizar jogos de fortuna ou azar ilegais ou detiver ilegalmente determinados tipos de máquinas de jogo é punido com multa ou pena de prisão até seis meses.

13      As disposições do brottsbalk relativas ao crime de jogo ilegal visam actos delituosos qualificados de forma específica. Os actos delituosos cuja qualificação é menos grave e que, por essa razão, não são, portanto, abrangidos pelo referido § 14 entram nas previsões do § 54, n.° 1, da lotterilag. Segundo o § 57, n.° 1, dessa lei, esta última disposição não é aplicável se o acto delituoso for objecto de uma sanção prevista no brottsbalk.

14      Sendo a lotterilag apenas aplicável no território sueco, a proibição de organizar uma lotaria sem autorização não se aplica aos jogos de fortuna ou azar organizados no estrangeiro. Essa proibição também não visa os jogos de fortuna ou azar propostos através da Internet aos consumidores suecos a partir de outro Estado e a mesma lei não lhes proíbe participar em jogos de fortuna ou azar organizados no estrangeiro. Do mesmo modo, uma autorização concedida nos termos da referida lei confere ao seu titular o direito de propor serviços de jogos de fortuna ou azar limitados unicamente ao âmbito de aplicação territorial dessa lei, isto é, no território sueco.

 Proibição da promoção de jogos de fortuna ou azar não autorizados

15      O § 38, n.º 1, ponto 1, da lotterilag contém uma proibição de promover, sem autorização especial e com fins lucrativos, a título profissional ou de outro modo, a participação em jogos de fortuna ou azar não autorizados, organizados no território sueco ou no estrangeiro.

16      Nos termos do mesmo § 38, n.° 2, pode ser concedida uma excepção à proibição prevista no n.° 1 desta disposição, relativamente aos jogos de fortuna ou azar organizados no âmbito de uma cooperação internacional com participação sueca por um operador estrangeiro autorizado a organizar, nos termos das normas aplicáveis no Estado em que está estabelecido, jogos de fortuna ou azar e a cooperar a nível internacional.

17      O § 54, n.° 2, da lotterilag prevê que quem promover ilegalmente com fins lucrativos, no âmbito de uma actividade profissional ou de outro modo, a participação em jogos de fortuna ou azar organizados no estrangeiro é punido com multa ou pena de prisão até seis meses se a promoção visar especificamente consumidores residentes na Suécia.

18      Nos termos do § 4, n.° 1, do capítulo 23 do brottsbalk, a responsabilidade prevista para determinados actos delituosos não é apenas imputada ao seu autor mas também a quem assegurar a sua promoção, através de auxílio ou de assistência. Além disso, por força do n.° 2 da mesma disposição, mesmo quem não é considerado co-autor do crime é condenado se tiver incitado um terceiro a cometer a infracção, se a tiver provocado ou se tiver ajudado de outro modo o respectivo autor.

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

19      À data dos factos dos processos principais, O. Sjöberg era chefe de redacção e responsável editorial do jornal Expressen. Nessa qualidade, era o único responsável pela publicação nesse jornal, entre Novembro de 2003 e Agosto de 2004, de anúncios de jogos de fortuna ou azar organizados no estrangeiro pelas sociedades Expekt, Unibet, Ladbrokes e Centrebet.

20      Por seu turno, à data dos factos dos processos principais, A. Gerdin era chefe de redacção e responsável editorial do jornal Aftonbladet. Nessa qualidade, era o único responsável pela publicação nesse jornal, entre Novembro de 2003 e Junho de 2004, de anúncios de jogos de fortuna ou azar organizados no estrangeiro pelas referidas sociedades.

21      A Expekt, a Unibet, a Ladbrokes e a Centrebet são operadores privados com fins lucrativos estabelecidos em Estados‑Membros diferentes do Reino da Suécia que propõem, nomeadamente aos residentes neste país, jogos de fortuna ou azar pela Internet. Estes jogos incluem, entre outros, apostas desportivas e «poker».

22      O Åklagaren (Ministério Público) procedeu criminalmente contra O. Sjöberg e A. Gerdin pelo crime previsto no § 54, n.° 2, da lotterilag, por terem promovido ilegalmente e com fins lucrativos a participação de residentes suecos em jogos de fortuna ou azar organizados no estrangeiro.

23      O Stockholms tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância de Estocolmo) condenou O. Sjöberg, em 21 de Junho de 2005, e A. Gerdin, em 6 de Setembro de 2005, ao pagamento de uma multa no montante de 50 000 SEK por violação da lotterilag.

24      O. Sjöberg e A. Gerdin recorreram das respectivas sentenças para o Svea hovrätt (Tribunal de Recurso de Svea), que, todavia, não admitiu nenhum dos recursos.

25      Tendo os arguidos recorrido das decisões de inadmissibilidade do Svea hovrätt para o Högsta domstolen (Supremo Tribunal), este último, em 5 de Fevereiro de 2008, julgou admissíveis os recursos interpostos e devolveu‑os a esse tribunal.

26      Na sua decisão, o Högsta domstolen considerou que existia alguma incerteza quanto à questão de saber se as disposições repressivas da lotterilag constituem ou não uma sanção discriminatória da promoção dos jogos de fortuna ou azar consoante sejam organizados na Suécia ou noutro Estado‑Membro. Em qualquer caso, coloca‑se a questão de saber se as restrições à livre prestação de serviços contidas nos §§ 38 e 54 da mesma lei podem ser aceites com o fundamento de que são abrangidas pelas excepções expressamente previstas no Tratado CE ou podem ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral.

27      Nestas condições, o Svea hovrätt decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, que têm idêntica redacção nos dois processos principais:

«1)      Pode a discriminação em razão da nacionalidade, em determinadas circunstâncias, ser aceite nos mercados nacionais do jogo e da lotaria, por razões imperiosas de interesse geral?

2)      Se a política restritiva aplicada a um mercado nacional de jogo e de lotaria prosseguir vários objectivos, sendo um deles o financiamento de actividades sociais, pode considerar‑se que este último constitui uma consequência benéfica acessória da política restritiva? Em caso de resposta negativa a esta questão, pode, ainda assim, essa política restritiva ser aceitável se o objectivo do financiamento de actividades sociais não puder ser considerado o objectivo principal da política restritiva?

3)      Pode o Estado invocar razões imperiosas de interesse geral como fundamento de uma política de jogo restritiva, se determinadas sociedades controladas pelo Estado promoverem jogos e lotarias, cujas receitas revertem para o Estado, e um dos vários objectivos dessa promoção for o financiamento de actividades sociais? Em caso de resposta negativa a esta questão, pode, ainda assim, essa política restritiva ser aceitável se o financiamento de actividades sociais não for considerado o objectivo principal da promoção?

4)      Pode uma proibição total da promoção de jogos e lotarias organizados noutro Estado‑Membro por uma sociedade de jogo nele estabelecida, sob a supervisão das autoridades desse Estado‑Membro, ser considerada proporcionada relativamente ao objectivo de supervisionar e fiscalizar a actividade do jogo quando, simultaneamente, não existam limites para a promoção de jogos e lotarias organizados por sociedades de jogo estabelecidas no Estado‑Membro que adoptou essa política restritiva? Qual é a resposta se o objectivo dessa regulamentação for a limitação do jogo?

5)      Um operador de jogo que tenha autorização para exercer uma determinada actividade de jogo num Estado e que seja fiscalizado pelas autoridades competentes desse Estado tem o direito de promover a sua oferta de jogo noutros Estados‑Membros, por exemplo, através de anúncios nos jornais, sem requerer previamente uma autorização às autoridades competentes desses Estados[…]? Em caso de resposta afirmativa a esta questão, quer isso dizer que a regulamentação de um Estado‑Membro que criminaliza a promoção da participação em lotarias organizadas no estrangeiro constitui um entrave à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços que nunca pode ser aceite por razões imperiosas de interesse geral? É relevante, para efeitos da resposta a dar à primeira [questão], que o Estado‑Membro em que o operador de jogo está estabelecido invoque as mesmas razões de interesse geral que o Estado[…] onde o operador pretende promover a sua actividade de jogo?»

28      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 7 de Novembro de 2008, os processos C‑447/08 e C‑448/08 foram apensados para efeitos da fase escrita, da fase oral e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à segunda a quinta questões

29      A título liminar, há que observar que o § 38, n.° 1, da lotterilag, com base no qual foram deduzidas as acusações nos processos principais, contém uma proibição de promover, sem autorização especial e com fins lucrativos, a título profissional, ou de outro modo, a participação em jogos de fortuna ou azar não autorizados, organizados no território sueco ou no estrangeiro.

30      Contudo, é dado assente que as acusações em causa nos processos principais apenas visam pessoas que promoveram jogos de fortuna ou azar organizados noutros Estados‑Membros com fins lucrativos por operadores privados. Nestas condições, o Tribunal de Justiça deve pronunciar‑se sobre as questões do órgão jurisdicional de reenvio tendo unicamente em conta esta situação.

31      Consequentemente, com a segunda a quinta questões, às quais cumpre dar uma resposta conjunta antes de examinar a primeira questão, deve considerar‑se que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa nos processos principais, que proíbe a publicidade de jogos de fortuna ou azar organizados noutros Estados‑Membros com fins lucrativos por operadores privados.

32      Antes de mais, deve recordar‑se que o artigo 49.° CE exige a eliminação de qualquer restrição à livre prestação de serviços, ainda que indistintamente aplicada aos prestadores nacionais e aos de outros Estados‑Membros, quando seja susceptível de impedir, entravar ou tornar menos atractivas as actividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde preste legalmente serviços análogos. Por outro lado, a liberdade de prestação de serviços beneficia tanto o prestador como o destinatário dos serviços (acórdão de 8 de Setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, ainda não publicado na Colectânea, n.º 51 e jurisprudência aí referida).

33      A este respeito, é dado assente que o §  38, n.° 1, ponto 1, da lotterilag, que proíbe a promoção na Suécia tanto de jogos de fortuna ou azar organizados licitamente noutros Estados‑Membros como os organizados sem autorização na Suécia, restringe a participação nesses jogos de consumidores suecos. O objectivo dessa disposição consiste em que esses consumidores adiram aos jogos de fortuna ou azar apenas no sistema autorizado a nível nacional, assegurando assim, nomeadamente, a exclusão dos interesses lucrativos privados desse sector.

34      A referida disposição constitui, por conseguinte, uma restrição à liberdade dos residentes suecos de beneficiarem, através da Internet, de serviços oferecidos noutros Estados‑Membros. Além disso, impõe, no que diz respeito aos prestadores de jogos de fortuna ou azar estabelecidos em Estados‑Membros diferentes do Reino da Suécia, uma restrição à livre prestação dos seus serviços neste Estado.

35      Consequentemente, importa examinar em que medida a restrição em causa nos processos principais pode ser admitida como excepção expressamente prevista no Tratado CE ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral.

36      O artigo 46.°, n.° 1, CE, aplicável na matéria por força do artigo 55.º CE, admite restrições justificadas por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública. A jurisprudência identificou, além disso, um certo número de razões imperiosas de interesse geral, tais como a protecção dos consumidores e a prevenção da fraude e da incitação dos cidadãos a uma despesa excessiva ligada ao jogo, bem como a prevenção das perturbações da ordem social em geral (v. acórdãos de 6 de Março de 2007, Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.º 46, e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.º 56).

37      Neste contexto, importa observar que a legislação dos jogos de fortuna ou azar é um dos domínios em que há divergências consideráveis de ordem moral, religiosa e cultural entre os Estados‑Membros. Na falta de harmonização comunitária na matéria, compete a cada Estado‑Membro apreciar, nesses domínios, segundo a sua própria escala de valores, o que é exigido para assegurar a protecção dos interesses em questão (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.º 57).

38      A mera circunstância de um Estado‑Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por outro Estado‑Membro não pode ter incidência na apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições tomadas nessa matéria. Estas devem ser apreciadas apenas à luz dos objectivos prosseguidos pelas autoridades competentes do Estado‑Membro interessado e do nível de protecção que as mesmas pretendem garantir (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.º 58).

39      Os Estados‑Membros têm, por consequência, a faculdade de fixar os objectivos da sua política em matéria de jogos de fortuna ou azar e, eventualmente, de definir com precisão o nível de protecção pretendido. No entanto, as restrições que impõem devem preencher as condições que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito da sua proporcionalidade (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.º 59).

40      Há que examinar, nomeadamente, se, nos processos principais, a restrição à publicidade imposta pela lotterilag dos jogos de fortuna ou azar organizados noutros Estados‑Membros diferentes do Reino da Suécia com fins lucrativos por operadores privados é adequada para garantir a realização do objectivo ou objectivos invocados por esse Estado‑Membro e se não ultrapassa o que é necessário para os atingir. Em todo o caso, uma legislação nacional só é apta a garantir a realização do objectivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.os 60 e 61).

41      A este respeito, é dado assente, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que a exclusão dos interesses lucrativos privados do sector dos jogos de fortuna ou azar é um princípio fundamental da legislação sueca na matéria. Essas actividades estão reservadas na Suécia a organismos que prosseguem objectivos de utilidade pública ou de interesse geral e apenas foram concedidas autorizações para exploração de jogos de fortuna ou azar a entidades públicas ou caritativas.

42      Neste contexto, há que observar que o objectivo de instaurar uma limitação estrita do carácter lucrativo da exploração dos jogos de fortuna ou azar foi reconhecido pela jurisprudência, tendo o Tribunal de Justiça reconhecido a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que visa evitar que as lotarias sejam exclusivamente exploradas numa base comercial e geridas por organizadores privados que podem dispor eles próprios dos lucros provenientes dessa actividade (v., neste sentido, acórdão de 24 de Março de 1994, Schindler, C‑275/92, Colect.,  p. I‑1039, n.os 57 a 59).

43      Considerações de ordem cultural, moral ou religiosa podem, com efeito, justificar restrições à livre prestação de serviços por operadores de jogos de fortuna ou azar, nomeadamente na medida em que se pode considerar inaceitável permitir que lucros privados resultem da exploração de um flagelo social ou da fraqueza dos jogadores e do seu infortúnio. Segundo a própria escala de valores de cada um dos Estados‑Membros e tendo em conta o poder de apreciação de que estes dispõem, é portanto, possível que um Estado‑Membro limite a exploração dos jogos de fortuna ou azar, confiando esses jogos a organismos públicos ou caritativos.

44      Nos processos principais, os operadores que difundiram os anúncios por causa dos quais foram instaurados os processos são empresas privadas com fins lucrativos, que, como de resto confirmou o Governo sueco na audiência, nunca poderiam beneficiar, ao abrigo da legislação sueca, de uma autorização de exploração de jogos de fortuna ou azar.

45      A proibição da promoção dos serviços desses operadores junto dos consumidores residentes na Suécia responde, assim, ao objectivo de excluir interesses lucrativos privados do sector dos jogos de fortuna ou azar e pode, de resto, ser considerada necessária para atingir um tal objectivo.

46      Há, assim, que responder à segunda a quinta questões que o artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa nos processos principais, que proíbe a publicidade, destinada aos residentes desse Estado, de jogos de fortuna ou azar organizados noutros Estados‑Membros, com fins lucrativos, por operadores privados.

 Quanto à primeira questão

47      A primeira questão prende‑se com o facto de o § 54, n.° 2, da lotterilag apenas prever a aplicação de sanções penais à promoção de jogos de fortuna ou azar organizados noutro Estado‑Membro e não ser aplicável à promoção desses jogos organizados na Suécia sem autorização, sendo esta infracção sancionada pela lotterilag, por força do § 52 dessa mesma lei, unicamente com uma coima. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se essa diferença relativamente às sanções previstas pela referida lei constitui uma discriminação incompatível com o artigo 49.º CE.

48      Há, assim, que entender a primeira questão como visando saber, no essencial, se o artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que submete os jogos de fortuna ou azar a um regime de direitos exclusivos e segundo a qual a promoção desses jogos organizados noutro Estado‑Membro é passível de sanções mais severas do que a promoção desses mesmos jogos organizados sem autorização em território nacional.

49      Embora, em princípio, a legislação penal caiba no âmbito das competências dos Estados‑Membros, é jurisprudência assente que o direito da União impõe limites a esta competência, não podendo tal legislação, com efeito, restringir as liberdades fundamentais garantidas por esse mesmo direito (acórdão Placanica e o., já referido, n.º 68).

50      Além disso, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as restrições impostas pelos Estados‑Membros para garantir a realização de objectivos de interesse geral devem ser aplicadas de maneira não discriminatória (acórdãos, já referidos, Placanica e o., n.º 49, e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.º 60).

51      A este respeito, existe um desacordo entre o Governo sueco, por um lado, e O. Sjöberg e A. Gerdin, por outro, sobre a questão de saber se a legislação sueca, nomeadamente o § 4 do capítulo 23 do brottsbalk, prevê sanções para a promoção de jogos de fortuna ou azar organizados na Suécia sem autorização que são equivalentes às aplicadas ao abrigo do § 54, n.° 2, da lotterilag para a promoção desses jogos organizados noutro Estado‑Membro.

52      Segundo o Governo sueco, a promoção de jogos de fortuna ou azar organizados na Suécia sem autorização é punível, nos termos do § 4 do capítulo 23 do brottsbalk, como cumplicidade no crime de jogo ilegal, previsto no § 14 do capítulo 16 do mesmo código, ou no crime de organização de jogos de fortuna ou azar sem autorização ou de detenção de determinados tipos de máquinas de jogo, previsto no § 54, n.° 1, da lotterilag.

53      Em contrapartida, O. Sjöberg e A. Gerdin contestam a aplicabilidade do § 4 do capítulo 23 do brottsbalk à promoção de jogos de fortuna ou azar organizados na Suécia sem autorização. Na sua opinião, não existe nenhuma medida que sancione essa promoção, quer os jogos de fortuna ou azar sejam autorizados ou não. A. Gerdin precisa que a referida disposição é apenas aplicável à assistência dada à organização de jogos de fortuna ou azar proibidos, mas não visa a sua promoção.

54      Neste contexto, há que recordar que o sistema de cooperação estabelecido pelo artigo 267.º TFUE se baseia numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça. No âmbito de um processo ao abrigo deste artigo, a interpretação das disposições nacionais cabe aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros e não ao Tribunal de Justiça. (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Placanica e o., n.º 36, e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.º 37).

55      Consequentemente, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se as duas infracções em causa, embora abrangidas por regimes diferentes, são, contudo, objecto de tratamento equivalente nos termos da legislação nacional aplicável. Este órgão jurisdicional deverá, em particular, verificar se, de facto, as referidas infracções são reprimidas pelas autoridades competentes com a mesma diligência e levam à aplicação de penas equivalentes pelos tribunais competentes.

56      Como afirmou o advogado‑geral nos n.os 81 a 85 das suas conclusões, se as duas infracções em causa forem objecto de um tratamento equivalente, o regime nacional não pode ser considerado discriminatório, apesar de as disposições em que as acusações se basearam e que prevêem as sanções aplicáveis serem enunciadas em textos diferentes. Pelo contrário, se quem promove jogos de fortuna ou azar organizados na Suécia sem autorização incorrer em sanções menos severas do que as que são aplicáveis a quem faz publicidade a esses jogos organizados noutros Estados‑Membros, não se pode deixar de concluir que o referido regime contempla uma discriminação e que as disposições do § 54, n.° 2, da lotterilag são contrárias ao artigo 49.º CE e, consequentemente, inoponíveis aos arguidos nos litígios nos processos principais.

57      Consequentemente, há que responder à primeira questão que o artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que submete os jogos de fortuna ou azar a um regime de direitos exclusivos e segundo a qual a promoção desses jogos organizados noutro Estado‑Membro é passível de sanções mais severas do que a promoção desses mesmos jogos explorados sem autorização em território nacional. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se é esse o caso da legislação nacional em causa nos processos principais.

 Quanto às despesas

58      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

1)      O artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa nos processos principais, que proíbe a publicidade, destinada aos residentes desse Estado, de jogos de fortuna ou azar organizados noutros Estados‑Membros, com fins lucrativos, por operadores privados.

2)      O artigo 49.º CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que submete os jogos de fortuna ou azar a um regime de direitos exclusivos e segundo a qual a promoção desses jogos organizados noutro Estado‑Membro é passível de sanções mais severas do que a promoção desses mesmos jogos explorados sem autorização em território nacional. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se é esse o caso da legislação nacional em causa nos processos principais.

Assinaturas


* Língua do processo: sueco.

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