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Documento 62007CC0239

Conclusões da advogada-geral Kokott apresentadas em 12 de Junho de 2008.
Julius Sabatauskas e o.
Pedido de decisão prejudicial: Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas - Lituânia.
Mercado interno da electricidade - Directiva 2003/54/CE - Artigo 20.º - Redes de transporte e de distribuição - Acesso de terceiros - Obrigações dos Estados-Membros - Livre acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade.
Processo C-239/07.

Colectânea de Jurisprudência 2008 I-07523

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2008:344

CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 12 de Junho de 2008 ( 1 )

Processo C-239/07

Processo de fiscalização da constitucionalidade

apresentado por

Julius Sabatauskas e o.

«Mercado interno da electricidade — Directiva 2003/54/CE — Artigo 20.o — Redes de transporte e de distribuição — Acesso de terceiros — Obrigações dos Estados-Membros — Livre acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade»

I — Introdução

1.

A Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade (a seguir «Directiva 2003/54») ( 2 ) regula, entre outros, o acesso de terceiros a redes de electricidade. No quadro da análise da regulamentação sobre a ligação à rede na lei de transposição nacional, o Tribunal Constitucional da República da Lituânia (Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas) pede a interpretação da directiva.

2.

A regulamentação nacional controvertida prevê que os clientes devem ligar-se, em primeiro lugar, à rede de distribuição. Um cliente só obtém acesso directo à rede de transporte quando o operador da rede de distribuição recusar a ligação à sua rede por razões técnicas. Para determinados clientes é mais atractivo poder escolher livremente a ligação à rede de transporte, a fim de não terem de suportar as despesas de encaminhamento para a rede de distribuição. Não é claro se o artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54, que regula o acesso de terceiros à rede, assegura esse direito de escolha.

II — Quadro jurídico

A — Direito comunitário

3.

O artigo 2.o da Directiva 2003/54 contém as definições seguintes:

«3)

‘Transporte’, o transporte de electricidade, mas sem incluir o fornecimento, numa rede interligada de muito alta tensão e de alta tensão, para efeitos de fornecimento a clientes finais ou a distribuidores;

[…]

5)

‘Distribuição’, o transporte de electricidade em redes de distribuição de alta, média e baixa tensão, para entrega ao cliente, mas sem incluir o fornecimento;

[…]

12)

‘Cliente elegível’, o cliente livre de comprar electricidade ao fornecedor da sua escolha na acepção do artigo 21.o;

[…]

18)

‘Utilizador da rede’, pessoa singular ou colectiva que alimenta uma rede de transporte ou de distribuição ou que é por ela servida;

19)

‘Fornecimento’, a venda de electricidade a clientes, incluindo a revenda;

[…]».

4.

O Artigo 3.o regula as obrigações de serviço público e protecção dos consumidores que os Estados-Membros podem impor às empresas do sector da electricidade. Os n.os 2, 3, 5 e 8 do artigo 3.o dispõem resumidamente o seguinte:

«2.   Tendo plenamente em conta as disposições pertinentes do Tratado, nomeadamente do seu artigo 86.o, os Estados-Membros podem impor às empresas do sector da electricidade, no interesse económico geral, obrigações de serviço público em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, qualidade e preço dos fornecimentos, assim como de protecção do ambiente, incluindo a eficiência energética e a protecção do clima. Essas obrigações devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, verificáveis e garantir a igualdade de acesso das empresas do sector da energia eléctrica da União Europeia aos consumidores nacionais. […]

3.   Os Estados-Membros devem garantir que todos os clientes domésticos e, nos casos em que o considerem adequado, as pequenas empresas, entendidas como empresas com menos de 50 trabalhadores e um volume de negócios ou um balanço anual não superior a 10 milhões de EUR, beneficiem de um serviço universal, ou seja, do direito de serem abastecidos, a preços razoáveis, fácil e claramente comprováveis e transparentes, de electricidade de uma qualidade específica no seu território. […] Os Estados-Membros devem impor às empresas de distribuição a obrigação de ligarem os clientes às respectivas redes, de acordo com condições e tarifas estabelecidas em conformidade com o disposto no n.o 2 do artigo 23.o […]

[…]

5.   Os Estados-Membros devem adoptar medidas adequadas para proteger os clientes finais e devem, em especial, garantir a existência de salvaguardas adequadas para proteger os clientes vulneráveis, incluindo medidas que os ajudem a evitar o corte da ligação. […] Os Estados-Membros devem garantir níveis elevados de protecção dos consumidores, especialmente no que respeita à transparência das condições contratuais, às informações gerais e aos mecanismos de resolução de litígios. Devem ainda assegurar que os clientes elegíveis possam efectivamente mudar de fornecedor. Pelo menos no que respeita aos clientes domésticos, essas medidas devem incluir as fixadas no anexo A.

[…]

8.   Os Estados-Membros podem decidir não aplicar os artigos 6.o, 7.o, 20.o e 22.o, na medida em que a sua aplicação possa dificultar, de direito ou de facto, o cumprimento das obrigações impostas às empresas de electricidade no interesse económico geral e desde que o desenvolvimento do comércio não seja afectado de maneira contrária aos interesses da Comunidade. Os interesses da Comunidade incluem, nomeadamente, a concorrência no que respeita aos clientes elegíveis, nos termos do disposto na presente directiva e no artigo 86.o do Tratado.»

5.

O artigo 5.o prevê as normas técnicas seguintes:

«Os Estados-Membros devem assegurar que sejam elaboradas e publicadas normas técnicas que estabeleçam os requisitos mínimos de concepção e funcionamento em matéria de ligação à rede das instalações de produção, redes de distribuição, equipamento de clientes ligados directamente, circuitos de interligação e linhas directas. Essas normas técnicas devem garantir a interoperabilidade das redes e ser objectivas e não discriminatórias. […]»

6.

O artigo 20.o da directiva regula o acesso de terceiros do seguinte modo:

«1.   Os Estados-Membros devem garantir a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição baseado em tarifas publicadas, aplicáveis a todos os clientes elegíveis e aplicadas objectivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede. Os Estados-Membros devem assegurar que essas tarifas, ou as metodologias em que se baseia o respectivo cálculo, sejam aprovadas nos termos do artigo 23.o antes de entrarem em vigor, bem como a publicação dessas tarifas — e das metodologias, no caso de apenas serem aprovadas metodologias — antes da respectiva entrada em vigor.

2.   O operador da rede de transporte ou de distribuição pode recusar o acesso no caso de não dispor da capacidade necessária. Essa recusa deve ser devidamente fundamentada, especialmente tendo em conta o disposto no artigo 3.o Os Estados-Membros devem assegurar, se apropriado e quando o acesso for recusado, que o operador da rede de transporte ou distribuição forneça informações relevantes sobre as medidas necessárias para reforçar a rede. Pode ser cobrada ao requerente dessas informações uma taxa razoável que reflicta o custo do fornecimento das mesmas.»

7.

O artigo 21.o, n.o 1, da directiva prevê uma abertura progressiva do mercado, segundo a qual os Estados-Membros deviam alargar o círculo de clientes elegíveis até 1 de Julho de 2004 a todos os clientes não domésticos e até a todos os clientes.

B — Legislação nacional

8.

A fim de transpor a Directiva 2003/54, foi aprovada a lei que modifica a lei lituana da electricidade (a seguir «lei»), que entrou em vigor em 10 de Julho de 2004. O artigo 15.o, n.o 2, da lei dispõe:

«O operador da rede de transporte está obrigado a garantir que as condições de ligação dos produtores de electricidade, dos operadores da rede de distribuição e dos equipamentos dos clientes à rede de transporte satisfazem as exigências impostas pela legislação e não são discriminatórias. Os equipamentos de um cliente só podem ser ligados a uma rede de transporte se, devido às exigências técnicas ou de exploração impostas, o operador da rede de distribuição recusar ligar à rede de distribuição os equipamentos do cliente situados na zona de actividade definida na sua licença de rede de distribuição.»

III — Processo principal, questão prejudicial e tramitação processual

9.

Na Lituânia, os equipamentos da maioria dos clientes estão ligados à rede de distribuição de um dos dois operadores de rede de distribuição. Além disso, cinco empresas industriais dispõem de uma licença de distribuição e exploram redes locais para fornecimento da população num território muito pequeno ou para fornecimento das suas empresas. Além das empresas distribuidoras ( 3 ), estão ligadas à rede de transporte também seis empresas industriais com necessidades energéticas elevadas. A sua ligação foi efectuada no tempo da União Soviética em que não se fazia qualquer distinção entre redes de transporte e de distribuição. De acordo com a nova versão da lei de electricidade de 2004 estas empresas permanecem ligadas à rede de transporte. A partir dessa data, só é possível efectuar ligações a esta rede em conformidade com o artigo 15.o, n.o 2, da lei.

10.

Em 28 de Outubro de 2004, um grupo de deputados ao Parlamento lituano (Seismas, a seguir «requerentes») requereu ao Konstitucinis Teismas a fiscalização da conformidade do artigo 15.o, n.o 2, da lei da electricidade com a Constituição e com a Directiva 2003/54.

11.

os requerentes sustentam que da directiva resulta um direito dos clientes de escolherem livremente a rede a que pretendem ligar-se. O Seimas, na qualidade de interveniente no processo, defendeu, pelo contrário, a tese de que a questão não entra no âmbito de aplicação da directiva, podendo ser regulada livremente pelos Estados-Membros. Neste contexto, remete-se para a comunicação D/1255 do membro da Comissão Europeia responsável pela área da Energia, A. Piebalgs, de 21 de Dezembro de 2005. À questão colocada por uma empresa o Comissário esclareceu que «a Directiva 2003/54 não obriga a conferir ao cliente o direito de escolher discricionariamente entre a ligação a uma rede de transporte ou a uma rede de distribuição. O cliente tem direito a ligar-se à rede eléctrica; a concretização desse direito é uma questão a tratar na base da subsidiariedade.»

12.

Na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, o texto do artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54 confirma a tese dos requerentes. Por outro lado, o tribunal remete para os objectivos de política social prosseguidos pelo legislador comunitário, em especial no artigo 3.o da directiva. A regulamentação nacional tem isso em conta, ao proteger os pequenos clientes contra o encarecimento da utilização da rede. As despesas da rede são suportadas uniformemente por todos os clientes que recebem energia através da respectiva rede. Se os grandes consumidores pudessem ligar-se sem restrições à rede de transporte em vez de se ligarem à rede de distribuição, isso conduziria a uma diminuição da quantidade de energia encaminhada pela rede de distribuição e, deste modo, a um aumento das despesas da rede para os restantes clientes.

13.

Devido a estas dúvidas de interpretação, o Tribunal Constitucional apresentou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 20.o da Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE, deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados-Membros a instituírem uma regulamentação nos termos da qual, desde que a rede de electricidade disponha da «capacidade necessária», qualquer terceiro tem o direito discricionário de escolher a rede — de transporte de electricidade ou de distribuição de electricidade — a que pretende aceder, estando o operador da rede em causa obrigado a fornecer-lhe o acesso à rede?»

14.

Os requerentes no processo principal, os Governos da Lituânia, de Itália e da Finlândia, bem com a Comissão das Comunidades Europeias apresentaram observações escritas no processo no Tribunal de Justiça e, à excepção do Governo italiano, pronunciaram-se na audiência.

IV — Apreciação

A — Admissibilidade

15.

Segundo jurisprudência constante, resulta do artigo 234.o CE que os órgãos jurisdicionais nacionais só podem pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie se perante eles se encontrar pendente um litígio e se forem chamados a pronunciar-se no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão de carácter jurisdicional ( 4 ).

16.

Não há dúvidas sobre a qualidade de órgão jurisdicional do Konstitucinis Teismas. Os tribunais constitucionais são igualmente abrangidos no conceito de órgão jurisdicional na acepção do artigo 234.o CE ( 5 ).

17.

Além disso, o Konstitucinis Teismas, no processo principal, é chamado a tomar uma decisão de carácter jurisprudencial. Para esse efeito, não se trata de saber se o processo de fiscalização de normas a pedido de um grupo de deputados do Seismas tem carácter contraditório ( 6 ). O que é decisivo é antes, por um lado, o facto de o processo não ser um processo administrativo, em que o particular e o tribunal desempenham uma função de natureza administrativa ( 7 ). Por outro lado, o tribunal não pode exercer funções de órgão meramente consultivo ( 8 ).

18.

Nessa medida, há que verificar que o processo principal visa a fiscalização de uma lei que já entrou em vigor. Não se trata, portanto, de uma consulta ao Tribunal constitucional no decurso do processo legislativo. No processo de fiscalização das normas, o Tribunal constitucional tem competência para declarar a inaplicabilidade, com eficácia erga omnes, da lei nacional, como esclarece no pedido de decisão prejudicial.

19.

Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

B — Quanto à questão prejudicial

20.

Antes da liberalização do mercado da electricidade existiam monopólios das empresas de fornecimento de electricidade em muitos Estados-Membros. Uma única empresa efectuava todas as operações necessárias ao abastecimento dos clientes na sua zona. Produzia e distribuía a energia e fornecia-a através das suas próprias redes de electricidade a todos os clientes ligados a essas mesmas redes.

21.

Com vista à liberalização do mercado interno da electricidade, a Directiva 96/92/CE ( 9 ) já previa que, progressivamente, cada vez mais clientes na qualidade de «clientes admissíveis» pudessem escolher livremente a empresa de abastecimento de que recebem electricidade. Actualmente, o quarto e o vigésimo considerandos da Directiva 2003/54 expressam este elemento central da liberalização:

«(4)

As liberdades que o Tratado garante aos cidadãos europeus, nomeadamente a liberdade de circulação de mercadorias, de prestação de serviços e de estabelecimento, pressupõem um mercado plenamente aberto que permita a todos os consumidores a livre escolha de fornecedores e a todos os fornecedores o livre abastecimento dos seus clientes.

[…]

(20)

Os clientes do sector da electricidade deverão poder escolher livremente os seus fornecedores.

[…]»

22.

A fim de possibilitar aos clientes a livre escolha da empresa de abastecimento, foi abolido o monopólio natural das empresas estabelecidas, que resultava do controlo sobre a rede, de modo a conferir a terceiros um direito de acesso não discriminatório à rede. A abertura das redes a terceiros é, portanto, a condição decisiva para a criação do mercado interno da electricidade, tal como salienta o legislador, em especial, no sétimo considerando da Directiva 2003/54 ( 10 ). Desse modo, um cliente já não depende unicamente do fornecimento pela empresa a cuja rede está ligado, podendo escolher outra empresa de fornecimento que lhe encaminha a energia através dessa rede.

23.

Com efeito, em diversos aspectos, o texto do artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54, que regula o acesso à rede por parte de terceiros não é unívoco. Antes de mais, há que esclarecer se o conceito de terceiro inclui apenas as empresas de produção e de fornecimento ou também os clientes. A questão principal consiste em saber o que se deve entender pelo conceito de acesso à rede de transporte e à rede de distribuição. Em substância, é controvertida a questão de saber se isso abrange igualmente o direito do cliente de escolher livremente a rede a que pretende ligar-se.

O conceito de terceiro na acepção do artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54

24.

O Governo finlandês é de opinião de que o conceito de terceiro do artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54 significa os produtores ou fornecedores que não pertencem à empresa integrada verticalmente, que explora a rede em questão e, além disso, reúnem as funções de produção e distribuição ( 11 ). A disposição proíbe que uma empresa integrada verticalmente desfavoreça esses terceiros relativamente aos seus próprios parceiros de produção e de distribuição no acesso às redes. A disposição não regula os direitos de acesso do cliente.

25.

O texto alemão do artigo 20.o, n.o 1, da directiva parece não excluir, à partida, esta interpretação. Em especial, a passagem «die Zugangsregelung gilt für alle zugelassenen Kunden» pode ser entendida no sentido de que o acesso de terceiros produtores ou fornecedores se aplica no que se refere ao fornecimento de todos os clientes elegíveis ( 12 ). Por outras palavras: o operador de rede pode recusar a utilização da rede a produtores ou fornecedores, desde que estes não visem abastecer clientes não elegíveis ( 13 ). Nalgumas das outras versões linguísticas, a referência aos clientes elegíveis parece dizer respeito apenas a uma regulamentação a adoptar relativamente às tarifas de utilização da rede, mas não ao próprio direito de acesso ( 14 ).

26.

No entanto, não se pode retirar a passagem citada do contexto. Há que observar sobretudo que a disposição continua a declarar que o «sistema de acesso […] baseado em tarifas aplicáveis a todos os clientes elegíveis e aplicadas objectivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede» [sublinhado nosso].

27.

Os requerentes indicam com razão que o conceito de utilizadores da rede, na acepção do artigo 2.o, n.o 18, da Directiva 2003/54, abrange quer as pessoas que alimentam a electricidade numa rede de transporte ou numa rede de distribuição quer as pessoas que são por elas servidas. Por conseguinte, o artigo 20.o, n.o 1, da directiva confere igualmente um direito de acesso não discriminatório aos clientes, na medida em que inclui todos os utilizadores da rede no seu âmbito de aplicação.

28.

Tal como salienta o Governo lituano neste contexto, para a concretização do objectivo da directiva da livre escolha pelo cliente da empresa de fornecimento ( 15 ), o acesso irrestrito à rede deve ser possível para ambas as partes desta relação de fornecimento ( 16 ). O direito de acesso seria inútil para uma empresa de fornecimento se o cliente que deve ser abastecido não tivesse direito de acesso à rede.

29.

Portanto, a opinião contrária defendida pelo Governo finlandês deve ser considerada improcedente.

Indicações do artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54 sobre o acesso à rede ou a ligação à rede

30.

Segundo o artigo 15.o, n.o 2, da lei da electricidade, só existe um direito à ligação não discriminatória à rede de transporte quando o operador de rede de distribuição recusar a ligação do cliente em questão. Antes de se poder analisar se o artigo 20.o, n.o 1, da directiva se opõe a esta restrição à escolha de uma rede, há que esclarecer a questão preliminar de saber se a disposição regula efectivamente a ligação a uma rede.

31.

Ao contrário dos requerentes e do Governo italiano, os Governos lituano e finlandês, bem como a Comissão, defenderam a opinião segundo a qual há que distinguir entre ligação e acesso; o artigo 20.o da directiva apenas regula o acesso. É certo que a Comissão na sua tomada de posição escrita partilhou a posição dos requerentes de que o direito de acesso não discriminatório nos termos do artigo 20.o da directiva se opõe igualmente a restrições quanto à escolha da ligação à rede. No entanto, a Comissão desistiu desta tese na audiência e concordou com a Finlândia e a Lituânia.

32.

A opinião dos Governos lituano e finlandês, bem como da Comissão, é corroborada pelo texto do artigo 20.o, n.o 1, da directiva, que apenas menciona o acesso. Acesso e ligação não podem ser considerados conceitos sinónimos. Tal como com razão os referidos intervenientes sustentaram, os dois conceitos são utilizados na directiva com significados diferentes.

33.

Isto é demonstrado claramente no artigo 23.o, n.o 2, alínea a), da directiva ao estabelecer que as entidades reguladoras são responsáveis por fixar ou aprovar, antes da sua entrada em vigor, as condições de «ligação e acesso às redes nacionais, incluindo as tarifas de transporte e distribuição». Se os conceitos de ligação e acesso tivessem o mesmo significado, não teriam de ser mencionados ao lado um do outro nesta disposição.

34.

O conceito de acesso à rede abrange o direito de utilização de uma rede para encaminhamento de electricidade ou para a sua recepção mediante remuneração. O artigo 20.o é a disposição central da directiva sobre o acesso à rede, sem o qual a liberalização do mercado interno da electricidade não seria possível. O operador de uma rede de transporte ou de distribuição só pode recusar o acesso, nos termos do artigo 20.o, n.o 2, da directiva, quando a rede não dispuser de capacidade suficiente.

35.

Por outro lado, o artigo 3.o, n.o 3, terceiro período, da directiva, contém disposições específicas sobre a ligação à rede, impondo às empresas de distribuição uma obrigação (de serviço público) de ligar todos os clientes domésticos e outros pequenos consumidores à sua rede. Além disso, o artigo 5.o da directiva impõe aos Estados-Membros a adopção de normas técnicas em matéria de ligação à rede que devem garantir a interoperabilidade das redes e ser objectivas e não discriminatórias. Finalmente, nos termos do artigo 23.o, n.o 1, alíneas c) e f), da directiva, as entidades reguladoras têm determinadas obrigações de fiscalização no que respeita às condições de ligação.

36.

Do conjunto destas disposições resulta que o conceito de ligação significa a criação de uma ligação física entre uma rede e os equipamentos dos clientes, as instalações de produção, outras redes e demais instalações.

37.

O artigo 20.o, n.o 1, da directiva, como resulta claramente da sua letra, não regula directamente a ligação a uma rede. Mas ainda há que analisar, por um lado, se das disposições sobre a ligação à rede resulta um direito ilimitado à ligação a uma rede de transporte ( 17 ). Por outro lado, do artigo 20.o, n.o 1, da directiva, podem deduzir-se indicações indirectas sobre a ligação, dado que a ligação a uma rede constitui uma condição prévia para o exercício do direito de acesso.

38.

As disposições sobre a ligação à têm carácter técnico e não conferem um direito geral de ligação a uma rede à escolha do cliente. Do artigo 3.o, n.o 3, terceira frase, da directiva apenas se pode deduzir um direito de determinados clientes à ligação à rede de distribuição, mas não à rede de transporte.

39.

De resto, o artigo 5.o obriga à adopção de disposições não discriminatórias sobre a ligação à rede. Daí resulta que os clientes comparáveis, ou seja, em especial, os clientes com níveis e características de consumo correspondentes, devem ser ligados nas mesmas condições a determinada rede. Em caso de violação desta proibição de discriminação pelas regulamentações nacionais correspondentes, pode existir um direito fundado directamente na directiva dos utilizadores da rede desfavorecidos a um tratamento igual ao do grupo favorecido, o que no entanto só pode ser apreciado com base em casos concretos.

40.

Além disso, da regulamentação sobre o acesso à rede do artigo 20.o, n.o 1, da directiva, pode resultar indirectamente um direito de escolha no que respeita à ligação à rede, quando sem esse direito de escolha o acesso seja também afectado.

41.

O objectivo do acesso de terceiros à rede consiste, como referimos, em que o cliente possa escolher livremente a empresa de fornecimento da qual recebe electricidade. A livre escolha da empresa de fornecimento não está, no entanto, directamente relacionada com a rede a que o cliente está ligado. É certo que, em princípio, os clientes finais podem abastecer-se igualmente através da rede de transporte, tal como resulta do artigo 2.o, n.o 3, da directiva. No entanto, a escolha da empresa de fornecimento continua assegurada quando o cliente esteja ligado a uma rede de distribuição. Porque a empresa de fornecimento pode encaminhar electricidade para o cliente através da rede de transporte e da rede de distribuição.

42.

O sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição que os Estados-Membros devem aplicar em conformidade com o artigo 20.o, n.o 1, da directiva, não pressupõe, portanto, que todos os clientes tenham direito de ligação à rede de transporte. Ao invés, os Estados-Membros podem criar livremente o sistema tendo em consideração os dados técnicos, de modo a que cada cliente seja ligado a uma rede adequada através da qual possa receber a electricidade de uma empresa de fornecimento à sua escolha.

43.

O Estado-Membro também pode ter em conta interesses públicos, tais como a carga uniforme da infra-estrutura e a distribuição proporcionada das despesas da rede, sem ter de recorrer à excepção prevista no artigo 3.o, n.o 8, da directiva. Isso só seria necessário se a regulamentação nacional se afastasse do artigo 20.o, n.o 1.

44.

Nos termos do artigo 20.o, n.o 1, segundo período, da directiva, a regulamentação do acesso de terceiros à rede deve ser aplicada objectivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede. Isto não exclui que alguns clientes disponham de acesso directo à rede de transporte (por exemplo, os operadores de distribuição ou certos grandes clientes), enquanto outros clientes apenas têm acesso indirecto à rede de transporte através da rede de distribuição. Ao assegurar o acesso directo à rede de transporte ou à rede de distribuição, o operador de rede em questão não pode efectuar distinções arbitrárias, devendo seguir critérios objectivos como os níveis e as características do consumo.

45.

Os requerentes sustentam ainda que a lei da electricidade de 2004 permite manipulações na fixação dos custos de funcionamento das redes de distribuição. A possibilidade de ligação à rede de transporte em lugar da ligação à rede de distribuição pode evitar a sobrecarga de despesas de rede injustificadas.

46.

Esta afirmação, que não foi reproduzida no despacho de reenvio, mesmo que fosse correcta, não coloca em dúvida a solução aqui defendida. Para garantir a fixação equilibrada das tarifas de utilização da rede e um controlo dos elementos dos custos a ter em conta nesse contexto, a Directiva 2003/54 instituiu uma regulamentação da facturação. A «concorrência entre as redes», pelo contrário, não é uma solução razoável para enfrentar a fixação de um sistema abusivo da estrutura de custos de exploração da rede. Isto porque a mudança para outra rede (a rede de transporte) com um sistema de tarifas correcto, que alguns grandes consumidores estariam tecnicamente em posição de efectuar, não alteraria em nada a sobrecarga injustificada dos restantes clientes, pelo contrário, reforçá-la-ia.

V — Conclusão

À luz do exposto, há que responder à questão prejudicial do Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas do seguinte modo:

O artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade, não se opõe a uma regulamentação nacional que prevê de modo não discriminatório que os equipamentos de um cliente só podem estar ligados a uma rede de transporte se, devido às exigências técnicas ou de exploração impostas, o operador da rede de distribuição se recusar a ligar à rede de distribuição os equipamentos do cliente situados na zona de actividade definida na licença do operador da rede de distribuição.


( 1 ) Língua original: alemão.

( 2 ) Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE — Declarações relativas às actividades de desmantelamento e gestão dos resíduos ( JO L 176, p. 37).

( 3 ) Do pedido de decisão prejudicial não resulta com clareza se todas as empresas com licença de distribuição, portanto também as cinco empresas industriais, estão ligadas à rede de transporte.

( 4 ) Despacho de 5 de Março de 1986, Greis Unterweger (318/85, Colect., p. 955, n.o 4); acórdãos de , Job Centre (C-111/94, Colect., p. I-3361, n.o 9), de , Salzmann (C-178/99, Colect., p. I-4421, n.o 14), de , Längst (C-165/03, Colect., p. I-5637, n.o 25) e de , Standesamt Niebüll (C-96/04, Colect., p. I-3561, n.o 13).

( 5 ) Assim, o Verfassungsgerichtshof austríaco e a Cour d’arbitrage belga, actualmente Cour constitutionnelle, apresentaram pedidos de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça em diversas ocasiões, sem que se duvidasse da sua qualidade de órgãos jurisdicionais [v., por exemplo, acórdão de 20 de Maio de 2003, Österreichischer Rundfunk e o. (C-465/00, C-138/01 e C-139/01, Colect., p. I-4989), e de , Governo da Communauté française e Governo da Valónia (C-212/06, Colect., p. I-1683)].

( 6 ) Acórdãos de 17 de Maio de 1994, Corsica Ferries (C-18/93, Colect., p. I-1783, n.o 12) e Standesamt Niebüll, já referido na nota 4, n.o 13.

( 7 ) V. acórdãos Job Centre, já referido na nota 4, n.o 11, Salzmann, já referido na nota 3, n.o 15, e Standesamt Niebüll, já referido na nota 4, n.o 14.

( 8 ) V. despacho Greis Unterweger, já referido na nota 4, n.o 14.

( 9 ) Directiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de Dezembro de 1996 que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade ( JO L 27, p. 20 ).

( 10 ) O sétimo considerando declara: «Para a plena realização do mercado interno da electricidade é da máxima importância o acesso não discriminatório à rede do operador da rede de transporte ou de distribuição. O operador de uma rede de transporte ou de distribuição pode compreender uma ou mais empresas». V. igualmente as conclusões do advogado-geral J. Mazák de 13 de Dezembro de 2007, citiworks (C-439/06, Colect., p. I-3913, n.os 72 a 74). V. em geral, sobre o significado do acesso não discriminatório de terceiros à rede, também o acórdão de , VEMW e o. (C-17/03, Colect., p. I-4983, n.os 42 a 46).

( 11 ) V. quanto à definição do conceito de «empresa integrada verticalmente», artigo 2.o, alínea 21) da Directiva 2003/54.

( 12 ) V. igualmente neste sentido, por exemplo, a versão francesa: «Les États membres veillent à ce que soit mis en place, pour tous les clients éligibles, un système d’accès des tiers aux réseaux de transport et de distribution. CE système, fondé sur des tarifs publiés, doit être appliqué objectivement et sans discrimination entre les utilisateurs du réseau.»

( 13 ) Pressupondo que a Directiva 2003/54 é transposta regularmente, uma vez que já não existem clientes admissíveis desde 1 de Julho de 2007, esta situação já não tem relevância prática.

( 14 ) V., por exemplo, as versões italiana e espanhola do artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2003/54:

«Gli Stati membri garantiscono l’attuazione di un sistema di accesso dei terzi ai sistemi di trasmissione e di distribuzione basato su tariffe pubblicate, praticabili a tutti i clienti idonei, ed applicato obiettivamente e senza discriminazioni tra gli utenti del sistema.»

«Los Estados miembros garantizarán la aplicación de un sistema de acceso de terceros a las redes de transporte y distribución basado en tarifas publicadas, aplicables a todos los clientes cualificados de forma objetiva y sin discriminación entre usuarios de la red.»

( 15 ) V. n.o 22 supra.

( 16 ) V., neste sentido, acórdão citiworks, já referidos na nota 10, n.o 43, com remissão para as conclusões do advogado-geral J. Mazák neste processo.

( 17 ) É certo que o órgão jurisdicional de reenvio não pede a interpretação de outras disposições da Directiva 2003/54, para além do seu artigo 20.o No entanto, segundo jurisprudência constante, com vista a fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional que submeteu a questão prejudicial, o Tribunal pode ser levado a tomar em consideração normas de direito comunitário às quais o juiz nacional não fez referência na sua questão [acórdãos de 20 de Março de 1986, Tissier (35/85, Colect., p. 1207, n.o 9), de , Teckal (C-107/98, Colect., p. I-8121, n.o 39) e de , Abraham e o. (C-2/07, Colect., p. I-1197, n.o 24)].

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