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Documento 62005CJ0150

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 28 de Septembro de 2006.
Jean Leon Van Straaten contra Staat der Nederlanden e Republiek Italië.
Pedido de decisão prejudicial: Rechtbank 's-Hertogenbosch - Países Baixos.
Convenção de aplicação do acordo de Schengen - Princípio ne bis in idem - Conceitos de "mesmos factos' e de "factos julgados' - Exportação para um Estado e importação noutro Estado - Absolvição do arguido.
Processo C-150/05.

Colectânea de Jurisprudência 2006 I-09327

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2006:614

Processo C‑150/05

Jean Leon Van Straaten

contra

Staat der Nederlanden

e

Republiek Italië

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Rechtbank 's‑Hertogenbosch)

«Convenção de aplicação do Acordo de Schengen – Princípio ne bis in idem – Conceitos de ‘mesmos factos’ e de ‘factos julgados’ – Exportação para um Estado e importação noutro Estado – Absolvição do arguido»

Conclusões do advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer apresentadas em 8 de Junho de 2006 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 28 de Setembro de 2006 

Sumário do acórdão

1.     Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites

(Artigo 234.º CE)

2.     Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites

(Artigo 234.º CE)

3.     União Europeia – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Protocolo que integra o acervo de Schengen – Convenção de aplicação do Acordo de Schengen – Princípio ne bis in idem

(Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, artigo 54.°)

4.     União Europeia – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Protocolo que integra o acervo de Schengen – Convenção de aplicação do Acordo de Schengen – Princípio ne bis in idem

(Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, artigo 54.°)

1.     No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 234.º CE, compete apenas ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir.

A recusa de decisão sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando for manifesto que a interpretação do direito comunitário pedida não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas.

(cf. n.os 33, 34)

2.     Embora o Tribunal de Justiça não tenha competência, nos termos do artigo 234.° CE, para aplicar a norma comunitária a um caso determinado e, consequentemente, para qualificar uma disposição de direito nacional à luz dessa norma, pode, no entanto, no âmbito da cooperação judiciária estabelecida por esse artigo, fornecer a um órgão jurisdicional nacional, a partir dos elementos do processo, os elementos de interpretação do direito comunitário que lhe possam ser úteis na apreciação dos efeitos dessa disposição.

(cf. n.o 37)

3.     O artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen deve ser interpretado no sentido de que o critério relevante para efeitos da aplicação deste artigo é o da identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si, independentemente da qualificação jurídica desses factos ou do bem jurídico protegido.

No que respeita aos crimes relacionados com estupefacientes, por um lado, não é necessário que as quantidades de droga em causa nos dois Estados contratantes ou as pessoas que alegadamente participaram nos factos nos dois Estados sejam idênticas. Por conseguinte, não se exclui que uma situação em que não exista tal identidade constitua um conjunto de factos que, pela sua própria natureza, estão indissociavelmente ligados. Por outro, os factos puníveis que consistem na exportação e na importação dos mesmos estupefacientes e objecto de acções penais em diferentes Estados contratantes nesta Convenção devem, em princípio, ser considerados «os mesmos factos», na acepção do artigo 54.°, cabendo a apreciação definitiva a este respeito às instâncias nacionais competentes.

(cf. n.os 48‑51, 53, disp. 1)

4.     O princípio ne bis in idem, consagrado ao artigo 54.º da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (CAAS), que tem por objectivo evitar que uma pessoa, por exercer o seu direito de livre circulação, seja objecto de acção penal pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes, aplica‑se a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado contratante que absolve definitivamente um arguido por insuficiência de provas.

Efectivamente, a oração principal contida na única frase que constitui o artigo 54.º da CAAS não faz qualquer referência ao conteúdo da sentença definitiva. É apenas na oração subordinada que o artigo 54.º visa a hipótese de uma condenação, enunciando que, neste caso, a proibição de acções penais está sujeita a uma condição específica. Se a norma geral enunciada na oração principal só se aplicasse às sentenças condenatórias, seria supérfluo precisar que a norma especial se aplica em caso de condenação.

Além disso, a não aplicação deste artigo a uma decisão definitiva de absolvição por insuficiência de provas teria o efeito de colocar em perigo o exercício do direito à livre circulação.

Por último, a abertura de um procedimento criminal noutro Estado contratante pelos mesmos factos comprometeria, no caso de uma absolvição definitiva por insuficiência de provas, os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima. Com efeito, o arguido recearia novos procedimentos penais noutro Estado contratante quando já tinha sido definitivamente julgado pelos mesmos factos.

(cf. n.os 56‑59, 61, disp. 2)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

28 de Setembro de 2006 (*)

«Convenção de aplicação do Acordo de Schengen – Princípio ne bis in idem – Conceitos de ‘mesmos factos’ e de ‘factos julgados’ – Exportação para um Estado e importação noutro Estado – Absolvição do arguido»

No processo C‑150/05,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 35.º UE, apresentado pelo Rechtbank ’s‑Hertogenbosch (Países Baixos), por decisão de 23 de Março de 2005, entrado no Tribunal de Justiça em 4 de Abril de 2005, no processo

Jean Leon van Straaten

contra

Staat der Nederlanden,

Republiek Italië,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: K. Schiemann, presidente da Quarta Secção, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, N. Colneric (relator), J. N. Cunha Rodrigues, M. Ilešič e E. Levits, juízes,

advogado‑geral: D. Ruiz‑Jarabo Colomer,

secretário: H. von Holstein,

vistos os autos e após a audiência de 4 de Maio de 2006,

vistas as observações apresentadas:

–       em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster e D. J. M. de Grave, na qualidade de agentes,

–       em representação do Governo italiano, por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por G. Aiello, avvocato dello Stato,

–       em representação do Governo checo, por T. Boček, na qualidade de agente,

–       em representação do Governo espanhol, por M. Muñoz Pérez, na qualidade de agente,

–       em representação do Governo francês, por G. de Bergues e J.‑C. Niollet, na qualidade de agentes,

–       em representação do Governo austríaco, por E. Riedl, na qualidade de agente,

–       em representação do Governo polaco, por T. Nowakowski, na qualidade de agente,

–       em representação do Governo sueco, por K. Wistrand, na qualidade de agente,

–       em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por W. Bogensberger e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 8 de Junho de 2006,

profere o presente

Acórdão

1       O presente pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19, a seguir «CAAS»), assinada em Schengen (Luxemburgo), em 19 de Junho de 1990.

2       Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe J. L. van Straaten ao Staat der Nederlanden e à Republiek Italië a respeito da indicação no Sistema de Informação Schengen (a seguir «SIS»), pelas autoridades italianas, da condenação penal de que foi objecto na Itália por tráfico de estupefacientes, para efeitos da sua extradição.

 Quadro jurídico

 Direito comunitário

3       Nos termos do artigo 1.° do Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia, anexado ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (a seguir «protocolo»), treze Estados‑Membros da União Europeia, entre os quais a República Italiana e o Reino dos Países Baixos, estão autorizados a instituir entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação do acervo de Schengen, tal como está definido no anexo do referido protocolo.

4       Fazem parte do acervo de Schengen assim definido, designadamente, o Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de Junho de 1985 (JO 2000, L 239, p. 13, a seguir «acordo de Schengen»), bem como a CAAS. A República Italiana assinou um acordo de adesão à CAAS em 27 de Novembro de 1990 (JO 2000, L 239, p. 63), que entrou em vigor em 26 de Outubro de 1997.

5       Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do protocolo, a partir da data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, o acervo de Schengen será imediatamente aplicável aos treze Estados‑Membros a que se refere o artigo 1.º do referido protocolo.

6       Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, segundo período, do protocolo, o Conselho da União Europeia adoptou, em 20 de Maio de 1999, a Decisão 1999/436/CE, que determina, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen (JO L 176, p. 17). Resulta do artigo 2.º desta decisão, em conjugação com o seu anexo A, que o Conselho designou os artigos 34.° UE e 31.° UE, que fazem parte do título VI do Tratado da União Europeia, intitulado «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal», como bases jurídicas dos artigos 54.° a 58.° da CAAS.

7       Estes últimos artigos formam o capítulo 3, intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem», do título III, por sua vez intitulado «Polícia e segurança».

8       O artigo 54.º da CAAS dispõe:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

9       Nos termos do artigo 55.º, n.° 1, da CAAS:

«1.      Uma parte contratante pode, no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, declarar que não está vinculada pelo artigo 54.º num ou mais dos seguintes casos:

a)      Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido, no todo, ou em parte, no seu território; neste último caso, esta excepção não é, todavia, aplicável se estes factos ocorreram em parte no território da parte contratante em que a sentença foi proferida;

[...]»

10     O artigo 71.º, n.° 1, da CAAS, para o qual o artigo 34.º UE e os artigos 30.º UE e 31.º UE foram designados base jurídica, dispõe:

«1. As partes contratantes comprometem‑se, no que diz respeito à cessão directa ou indirecta de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas de qualquer natureza, incluindo o canabis, bem como à detenção destes produtos e substâncias para efeitos de cessão ou exportação, a adoptar, em conformidade com as convenções das Nações Unidas […], todas as medidas necessárias à prevenção e à repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.»

11     O artigo 95.º, n.os 1 e 3, da CAAS tem a seguinte redacção:

«1.      Os dados relativos às pessoas procuradas para detenção para efeitos de extradição serão inseridos a pedido da autoridade judiciária da parte contratante requerente.

[...]

3.      A parte contratante requerida pode fazer acompanhar as indicações no ficheiro da parte nacional do Sistema de Informação Schengen de uma referência que tenha por objectivo proibir, até que essa referência seja eliminada, a detenção por motivo da indicação. A referência deve ser eliminada, o mais tardar, 24 horas após a inserção da indicação, a menos que esta parte contratante recuse a detenção solicitada, invocando razões jurídicas ou razões especiais de oportunidade. Se, em casos muito excepcionais, a complexidade dos factos que se encontram na origem da indicação o justificar, o prazo acima referido pode ser prorrogado até uma semana. Sem prejuízo de uma referência ou de uma decisão de recusa, as outras partes contratantes podem executar a detenção solicitada pela indicação.»

12     O artigo 106.º, n.° 1, da CAAS dispõe:

«1.      Apenas a parte contratante autora das indicações é autorizada a alterar, a completar, a rectificar ou a eliminar os dados que introduziu.»

13     O artigo 111.º da CAAS estabelece:

«1.      Qualquer pessoa pode instaurar, no território de cada parte contratante, perante um órgão jurisdicional ou a autoridade competentes por força do direito nacional, uma acção, que tenha por objecto, nomeadamente, a rectificação, a eliminação, a informação ou a indemnização por uma indicação que lhe diga respeito.

2.      As partes contratantes comprometem‑se mutuamente a executar as decisões definitivas tomadas pelos órgãos jurisdicionais ou autoridades a que se refere o n.° 1 sem prejuízo do disposto no artigo 116.º»

14     A competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial na matéria está regulada no artigo 35.º UE, cujo n.° 3, alínea b), tem a seguinte redacção:

«Qualquer Estado‑Membro que apresente uma declaração nos termos do n.° 2 deve especificar que:

[…]

b)      Qualquer órgão jurisdicional desse Estado pode pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente perante esse órgão jurisdicional relativa à validade ou interpretação de um acto a que se refere o n.° 1, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa.»

15     O Reino dos Países Baixos declarou que aceitava a competência do Tribunal de Justiça segundo as modalidades previstas no artigo 35.º, n.os 2 e 3, alínea b), UE (JO 1997, C 340, p. 308).

 Direito internacional

16     O artigo 4.° do Protocolo n.° 7 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, tem a seguinte redacção:

«1.      Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.

2.      As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento.

3.      Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo com fundamento no artigo 15.° da Convenção.»

17     O artigo 14.º, n.° 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, adoptado em 16 de Dezembro de 1966, que entrou em vigor em 23 de Março de 1976, tem a seguinte redacção:

«Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país.»

18     O artigo 36.º da Convenção Única sobre Estupefacientes, concluída em Nova Iorque em 30 de Março de 1961, no âmbito das Nações Unidas, tem a seguinte redacção:

«1.      a)     Com reserva das suas disposições constitucionais, cada Parte adoptará as medidas necessárias para que a cultura e a produção, o fabrico, a extracção, a preparação, a detenção, a apresentação, a comercialização, a distribuição, a compra, a venda, a entrega, seja a que título for, a corretagem, o envio, a expedição em trânsito, o transporte, a importação e a exportação de estupefacientes não conformes com as disposições da presente Convenção, ou qualquer outro acto que, no entender da referida Parte, seja contrário às disposições da presente Convenção, constituam infracções puníveis quando cometidas intencionalmente e para que as infracções graves sejam passíveis de sanção adequada, nomeadamente de penas de prisão, ou de outras penas privativas da liberdade.

b)      […]

2.      Sob reserva das disposições constitucionais de cada Parte, do respectivo sistema jurídico e da respectiva legislação nacional:

a)      i)     Cada uma das infracções enumeradas no parágrafo 1 será considerada como uma infracção distinta, caso sejam cometidas em países diferentes;

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19     Resulta do despacho de reenvio que J. L. van Straaten tinha na sua posse em Itália, numa data próxima de 27 de Março de 1983, uma quantidade de cerca de 5 quilogramas de heroína, que esta heroína foi enviada de Itália para os Países Baixos e que J. L. van Straaten dispôs, no período de 27 a 30 de Março de 1983, de 1 000 gramas dessa quantidade de heroína.

20     O interessado foi acusado nos Países Baixos, em primeiro lugar, de ter importado para os Países Baixos, proveniente de Itália, conjuntamente com A. Yilmaz, em 26 de Março de 1983 ou numa data próxima, uma quantidade de aproximadamente 5 500 gramas de heroína, em segundo lugar, de ter na sua posse nos Países Baixos uma quantidade de aproximadamente 1 000 gramas de heroína no período de 27 a 30 de Março de 1983 ou num período próximo, e, em terceiro lugar, de ter na sua posse nos Países Baixos armas de fogo e munições durante o mês de Março de 1983. Por decisão de 23 de Junho de 1983, o Arrondissementsrechtbank te ’s‑Hertogenbosch (Países Baixos) absolveu J. L. van Straaten do crime de importação de heroína, considerando a acusação não provada de forma legal e convincente, e condenou‑o pelos dois outros crimes numa pena privativa de liberdade de 20 meses.

21     Em Itália, J. L. van Straaten foi acusado, conjuntamente com outras pessoas, por ter em sua posse, em 27 de Março de 1983 ou numa data próxima, e por ter exportado para os Países Baixos, por diversas vezes, conjuntamente com Karakus Coskun, uma quantidade considerável, aproximadamente 5 quilogramas no total, de heroína. Por acórdão proferido à revelia pelo Tribunale ordinario di Milano (Itália), J. L. van Straaten e duas outras pessoas foram condenadas, a este título, numa pena de prisão de dez anos e numa multa de 50 milhões de liras italianas (ITL), bem como nas custas do processo.

22     O litígio no processo principal opõe J. L. van Straaten ao Staat der Nederlanden e à Republiek Italië. O órgão jurisdicional de reenvio refere uma indicação relativa a J. L. van Straaten cuja regularidade está em causa neste litígio e que analisa à luz da CAAS. Por despacho proferido em 16 de Julho de 2004, a Republiek Italië foi chamada a intervir no processo principal.

23     Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a Republiek Italië refutou as alegações de J. L. van Straaten segundo as quais, por força do artigo 54.º da CAAS, não podia ter sido objecto de procedimento criminal pelo Estado italiano ou em seu nome e que todos os actos relativos a esse procedimento são ilegais. Segundo a Republiek Italië, através da sentença de 23 de Junho de 1983, na parte respeitante à acusação de importação de heroína, não se decidiu quanto à culpa de J. L. van Straaten, uma vez que o mesmo foi absolvido dessa acusação. J. L. van Straaten não foi julgado, na acepção do artigo 54.º da CAAS, por esse facto. Além disso, a Republiek Italië alegou que, em consequência da declaração a que se refere o artigo 55.º, n.° 1, initio e alínea a), da CAAS, que efectuou, não está vinculada pelo artigo 54.º desta mesma Convenção. Este último fundamento foi rejeitado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

24     A decisão de reenvio não fornece qualquer outro elemento de informação sobre a natureza do processo.

25     Segundo o Governo neerlandês, a decisão do Arrondissementsrechtbank te ’s‑Hertogenbosch de 23 de Junho de 1983 foi confirmada por acórdão do Gerechtshof te ’s‑Hertogenbosch de 3 de Janeiro de 1984, que alterou a qualificação jurídica da segunda acusação proferida contra J. L. van Straaten. Este último órgão jurisdicional qualificou os factos como «posse voluntária de uma quantidade de aproximadamente 1 000 gramas de heroína nos Países Baixos durante o período de 27 a 30 de Março de 1983 ou à volta deste período». Foi negado provimento ao recurso que J. L. van Straaten interpôs deste acórdão, por acórdão do Hoge Raad der Nederlanden de 26 de Fevereiro de 1985. Esse acórdão transitou em julgado. J. L. van Straaten cumpriu a pena que lhe foi aplicada.

26     Segundo o mesmo Governo, a pedido das autoridades judiciárias italianas, foi introduzida uma indicação em 2002 no SIS, com vista à detenção de J. L. van Straaten para efeitos da sua extradição, com base num mandado de detenção do Ministério Público de Milão de 11 de Setembro de 2001. O Reino dos Países Baixos juntou a esta indicação a referência prevista no artigo 95.º, n.° 3, da CAAS, de modo que a detenção em causa não podia ser efectuada nos Países Baixos.

27     Após ter sido informado da referida indicação em 2003 e, em consequência, da sua condenação em Itália, J. L. van Straaten dirigiu‑se, em primeiro lugar, em vão, às autoridades judiciárias italianas, para obter a eliminação dos dados que lhe diziam respeito constantes do SIS. O Korps Landelijke Politiediensten (Polícia Nacional neerlandesa, a seguir «KLPD») tinha indicado a J. L. van Straaten, por carta de 16 de Abril de 2004, que, uma vez que não era a autoridade autora da indicação, na acepção do artigo 106.º da CAAS, não estava autorizado a proceder à eliminação da indicação do SIS.

28     Em seguida, J. L. van Straaten apresentou ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido no sentido de o Ministro em causa e/ou o KPLD serem intimados a eliminar os seus dados do registo de polícia. O referido órgão jurisdicional referiu, num despacho de 16 de Julho de 2004, que, por força do artigo 106.º, n.° 1, da CAAS, só a Republiek Italië estava autorizada a proceder à eliminação dos dados solicitada por J. L. van Straaten. Tendo em conta este facto, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que o pedido se destinava a intimar a Republiek Italië a eliminar os dados em questão. Por consequência, esta última foi chamada a intervir no processo principal.

29     O órgão jurisdicional de reenvio observou, em seguida, que, por força do artigo 111.º, n.° 1, da CAAS, J. L. van Straaten tem a faculdade de intentar no tribunal competente nos termos do direito neerlandês uma acção contra a inserção no SIS, pela Republiek Italië, de dados que lhe dizem respeito. Nos termos do n.° 2 deste artigo, a Republiek Italië deve executar uma decisão definitiva do órgão jurisdicional neerlandês que decida dessa acção.

30     Foi nestas condições que o Rechtbank ’s‑Hertogenbosch decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O que se deve entender por ‘mesmos factos’ na acepção do artigo 54.° da [CAAS]? (A posse de cerca de 1 000 gramas de heroína nos Países Baixos, no período compreendido entre 27 e 30 de Março de 1983, é o mesmo facto que a posse de cerca de 5 quilogramas de heroína em Itália numa data próxima de 27 de Março de 1983, tendo em conta que o lote de heroína dos Países Baixos fazia parte do lote de heroína detido em Itália? A exportação de uma quantidade de heroína de Itália para os Países Baixos é o mesmo facto que a importação nos Países Baixos da mesma quantidade de heroína proveniente de Itália, tendo igualmente em conta que os co‑arguidos de J. L. van Straaten nos Países Baixos e em Itália não são exactamente os mesmos? O conjunto de actos constituído por posse em Itália, exportação de Itália, importação nos Países Baixos e posse nos Países Baixos de heroína pode ser considerado os ‘mesmos factos’?)

2)       Pode considerar‑se que uma pessoa foi ‘julgada’, na acepção do artigo 54.° da [CAAS], quando essa pessoa tiver sido absolvida por sentença por não se ter provado de forma legal e convincente a acusação contra ela deduzida?»

 Quanto à admissibilidade do reenvio prejudicial

31     Antes de mais, há que referir que, no caso vertente, o Tribunal de Justiça tem competência para decidir quanto à interpretação do artigo 54.º da CAAS, uma vez que o regime previsto no artigo 234.º CE se aplica ao reenvio prejudicial por força do artigo 35.º UE, sem prejuízo das condições previstas nesse artigo (v., a este respeito, acórdão de 16 de Junho de 2005, Pupino, C‑105/03, Colect., p. I‑5285, n.° 28), e uma vez que o Reino dos Países Baixos apresentou uma declaração, nos termos do artigo 35.º, n.° 3, alínea b), UE, que produziu efeitos a partir de 1 de Maio de 1999, data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão.

32     O Governo francês tem dúvidas quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial devido ao carácter lacónico das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que não permitem compreender qual é o objecto do processo e por que razões as respostas a estas duas questões submetidas são necessárias.

33     A este respeito, há que recordar que compete apenas ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça (v. acórdãos de 9 de Março de 2000, EKW e Wein & Co, C‑437/97, Colect., p. I‑1157, n.° 52, e de 4 de Dezembro de 2003, EVN e Wienstrom, C‑448/01, Colect., p. I‑14527, n.° 74). Consequentemente, quando as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir.

34     A recusa de decisão sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando for manifesto que a interpretação do direito comunitário pedida não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (v., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 2001, PreussenElektra, C‑379/98, Colect., p. I‑2099, n.° 39; de 19 de Fevereiro de 2002, Arduino, C‑35/99, Colect., p. I‑1529, n.° 25, e de 11 de Julho de 2006, Chacón Navas, C‑13/05, Colect., p. I‑0000, n.° 33).

35     No caso vertente, há que referir que, pese embora o seu carácter sucinto e pouco estruturado, os fundamentos da decisão de reenvio incluem elementos suficientes para que, por um lado, esteja excluída a possibilidade de as questões submetidas não terem nenhuma relação com a realidade e com o objecto do litígio no processo principal ou de o problema ser de natureza hipotética e, por outro lado, o Tribunal de Justiça possa dar uma resposta útil às referidas questões. Com efeito, resulta do contexto da decisão de reenvio que a acção de J. L. van Straaten visa a anulação da indicação que lhe diz respeito, inserida no SIS, e que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, só pode obter ganho de causa se, em aplicação do princípio ne bis in idem, ao abrigo do artigo 54.º da CAAS, a condenação proferida nos Países Baixos obstar a que seja objecto, em Itália, da acção penal que está na origem da referida indicação.

36     O Governo espanhol considera que a primeira questão é inadmissível. Alega que esta questão diz apenas respeito aos factos do processo principal e que o órgão jurisdicional de reenvio pede, na realidade, ao Tribunal de Justiça para aplicar o artigo 54.º da CAAS aos factos que deram origem ao processo nacional.

37     A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça não tenha competência, nos termos do artigo 234.° CE, para aplicar a norma comunitária a um caso determinado, pode, no entanto, no âmbito da cooperação judiciária estabelecida por esse artigo, fornecer a um órgão jurisdicional nacional, a partir dos elementos do processo, os elementos de interpretação do direito comunitário que lhe possam ser úteis na apreciação dos efeitos dessa disposição (acórdão de 5 de Março de 2002, Reisch e o., C‑515/99, C‑519/99 a C‑524/99 e C‑526/99 a C‑540/99, Colect., p. I‑2157, n.° 22).

38     Ora, através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede a interpretação do artigo 54.º da CAAS à luz dos elementos de facto que precisa entre parêntesis. Em contrapartida, não pede ao Tribunal de Justiça para aplicar esse artigo aos factos enunciados.

39     Do exposto resulta que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

40     Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, essencialmente, quais são os critérios pertinentes para efeitos da aplicação do conceito de «mesmos factos» na acepção do artigo 54.° da CAAS, relativamente aos elementos de facto que precisou entre parêntesis.

41     A este respeito, o Tribunal de Justiça, no n.° 27 do acórdão de 9 de Março de 2006, Van Esbroeck (C‑436/04, Colect., p. I‑2333), declarou que resulta da redacção do artigo 54.° da CAAS, que utiliza os termos «os mesmos factos», que esta disposição visa apenas a materialidade dos factos em causa, com exclusão da sua qualificação jurídica.

42     Os termos utilizados no referido artigo distinguem‑se, assim, dos que constam de outros instrumentos internacionais que consagram o princípio ne bis in idem (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 28).

43     O princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.º da CAAS, implica necessariamente que exista uma confiança mútua dos Estados contratantes nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um dos referidos Estados aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados contratantes, ainda que a aplicação do seu direito nacional pudesse conduzir a uma solução diferente (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 30).

44     A eventualidade de qualificações jurídicas divergentes dos mesmos factos em dois Estados contratantes diferentes não pode impedir a aplicação do artigo 54.° da CAAS (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 31).

45     Isto é ainda reforçado pelo objectivo do referido artigo 54.°, que visa evitar que uma pessoa, pelo facto de exercer o seu direito à livre circulação, seja objecto de acções penais pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 33 e jurisprudência aí referida).

46     Esse direito à livre circulação só é garantido de forma útil se o autor de um acto souber que, uma vez condenado e depois de cumprir a pena ou, se for caso disso, uma vez absolvido definitivamente num Estado contratante, se pode deslocar no interior do espaço Schengen sem o receio de ser objecto de acções penais noutro Estado contratante, por esse acto constituir uma infracção distinta no ordenamento jurídico deste último Estado‑Membro (v. acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 34).

47     Ora, devido à inexistência de harmonização das legislações penais nacionais, um critério baseado na qualificação jurídica dos factos ou no interesse jurídico protegido é susceptível de criar tantos obstáculos à liberdade de circulação no espaço Schengen quantos os sistemas penais dos Estados contratantes (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 35).

48     Nestas condições, o único critério relevante para efeitos da aplicação do artigo 54.° da CAAS é o da identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 36).

49     No que respeita aos crimes relacionados com estupefacientes, não se exige que as quantidades de droga em causa nos dois Estados contratantes em causa ou as pessoas que alegadamente participaram nos factos nos dois Estados sejam idênticas.

50     Por conseguinte, não se exclui que uma situação em que não exista tal identidade constitua um conjunto de factos que, pela sua própria natureza, estão indissociavelmente ligados.

51     Além disso, o Tribunal de Justiça já decidiu que os factos puníveis que consistem na exportação e na importação dos mesmos estupefacientes e objecto de acções penais em diferentes Estados contratantes da CAAS devem, em princípio, ser considerados «os mesmos factos», na acepção do artigo 54.° (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 42).

52     No entanto, a apreciação definitiva sobre esse aspecto compete, como refere com razão o Governo neerlandês, às instâncias nacionais competentes, que deverão determinar se os factos materiais em causa constituem um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto (acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 38).

53     Assim, à luz destas considerações, há que responder à primeira questão que o artigo 54.° da CAAS deve ser interpretado no sentido de que:

–       o critério pertinente para efeitos da aplicação do referido artigo é o da identidade dos factos materiais, entendida como a existência de um conjunto de factos indissociavelmente ligados entre si, independentemente da qualificação jurídica desses factos ou do bem jurídico protegido;

–       no que respeita aos crimes relacionados com estupefacientes, não é necessário que as quantidades de droga em causa nos dois Estados contratantes ou as pessoas que alegadamente participaram nos factos nos dois Estados sejam idênticas;

–       os factos puníveis que consistem na exportação e na importação dos mesmos estupefacientes e objecto de acções penais em diferentes Estados contratantes da CAAS devem, em princípio, ser considerados «os mesmos factos», na acepção deste artigo 54.°, cabendo às instâncias nacionais competentes a apreciação definitiva deste aspecto.

 Quanto à segunda questão

54     Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, essencialmente, se o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.º da CAAS, se aplica a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado contratante que absolve um arguido por insuficiência de provas.

55     Nos termos do artigo 54.° da CAAS, ninguém pode ser submetido a uma acção penal [judicial] num Estado contratante pelos mesmos factos pelos quais já tenha sido «definitivamente julgado» noutro Estado contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em execução ou já não possa ser executada.

56     A oração principal contida na única frase que constitui o artigo 54.º da CAAS não faz qualquer referência ao conteúdo da sentença definitiva. É apenas na oração subordinada que o artigo 54.º da CAAS visa a hipótese de uma condenação, enunciando que, neste caso, a proibição de acções penais está sujeita a uma condição específica. Se a norma geral enunciada na oração principal só se aplicasse às sentenças condenatórias, seria supérfluo precisar que a norma especial se aplica em caso de condenação.

57     É ponto assente que o artigo 54.° da CAAS tem por objectivo evitar que, pelo facto de exercer o seu direito à livre circulação, uma pessoa seja, pelos mesmos factos, objecto de acção penal no território de vários Estados contratantes (v. acórdão de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge, C‑187/01 e C‑385/01, Colect., p. I‑1345, n.° 38).

58     Ora, não aplicar este artigo a uma decisão definitiva de absolvição por insuficiência de provas teria o efeito de colocar em perigo o exercício do direito à livre circulação (v., neste sentido, acórdão Van Esbroeck, já referido, n.° 34).

59     Além disso, a abertura de um procedimento criminal noutro Estado contratante pelos mesmos factos comprometeria, no caso de uma absolvição definitiva por insuficiência de provas, os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima. Com efeito, o arguido recearia novos procedimentos penais noutro Estado contratante quando já tinha sido definitivamente julgado pelos mesmos factos.

60     Há que acrescentar que, no seu acórdão de 10 de Março de 2005, Miraglia (C‑469/03, Colect., p. I‑2009, n.° 35), o Tribunal de Justiça decidiu que o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.° da CAAS, não é aplicável a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado‑Membro que arquiva um processo, após o Ministério Público, sem qualquer apreciação de mérito, ter decidido não instaurar a acção penal com o único fundamento de já ter sido instaurada noutro Estado‑Membro uma acção penal contra o mesmo arguido e pelos mesmos factos. Ora, sem que seja necessário decidir, no presente processo, a questão de saber se uma absolvição que não se baseie numa apreciação de mérito pode ser abrangida por esse artigo, há que referir que uma absolvição por insuficiência de provas se baseia nessa apreciação.

61     Em consequência, há que responder à segunda questão que o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.º da CAAS, se aplica a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado contratante que absolve definitivamente um arguido por insuficiência de provas.

 Quanto às despesas

62     Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, deve ser interpretado no sentido de que:

–       o critério pertinente para efeitos da aplicação do referido artigo é o da identidade dos factos materiais, entendida como a existência de um conjunto de factos indissociavelmente ligados entre si, independentemente da qualificação jurídica desses factos ou do bem jurídico protegido;

–       no que respeita aos crimes relacionados com estupefacientes, não é necessário que as quantidades de droga em causa nos dois Estados contratantes ou as pessoas que alegadamente participaram nos factos nos dois Estados sejam idênticas;

–       os factos puníveis que consistem na exportação e na importação dos mesmos estupefacientes e objecto de acções penais em diferentes Estados contratantes dessa Convenção devem, em princípio, ser considerados «os mesmos factos», na acepção desse artigo 54.°, cabendo às instâncias nacionais competentes a apreciação definitiva deste aspecto.

2)      O princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.º da referida Convenção, aplica‑se a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado contratante que absolve definitivamente um arguido por insuficiência de provas.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.

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