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Documento 62003CJ0199

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 15 de Septembro de 2005.
Irlanda contra Comissão das Comunidades Europeias.
Recurso de anulação - Fundo Social Europeu - Redução de uma contribuição financeira comunitária - Erro manifesto de apreciação - Proporcionalidade - Segurança jurídica - Confiança legítima.
Processo C-199/03.

Colectânea de Jurisprudência 2005 I-08027

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2005:548

Processo C‑199/03

Irlanda

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Recurso de anulação – Fundo Social Europeu – Redução de uma contribuição financeira comunitária – Erro manifesto de apreciação – Proporcionalidade – Segurança jurídica – Confiança legítima»

Conclusões do advogado‑geral A. Tizzano apresentadas em 24 de Fevereiro de 2005 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 15 de Setembro de 2005 

Sumário do acórdão

1.     Coesão económica e social – Intervenções estruturais – Financiamentos comunitários concedidos em relação a acções nacionais – Princípios – Decisão de suspensão, redução ou supressão de uma contribuição inicialmente concedida devido a irregularidades – Irregularidades que não têm um impacto financeiro preciso – Admissibilidade

(Regulamento n.° 4253/88 do Conselho, artigo 24.°, n.° 2)

2.     Tramitação – Petição inicial – Requisitos formais – Identificação do objecto do litígio – Exposição sumária dos fundamentos invocados

[Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigo 38.°, n.° 1, alínea c)]

3.     Coesão económica e social – Intervenções estruturais – Financiamentos comunitários concedidos em relação a acções nacionais – Decisão da Comissão de reduzir uma contribuição devido a irregularidades – Irregularidades toleradas durante o exercício precedente por razões de equidade – Violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima – Inexistência

1.     Por força do artigo 24.°, n.° 2, do Regulamento n.° 4253/88, que estabelece as disposições de aplicação do Regulamento n.° 2052/88 no que respeita à coordenação entre as intervenções dos diferentes fundos estruturais, por um lado, e entre estas e as do Banco Europeu de Investimento e dos outros instrumentos financeiros existentes, por outro, tal como alterado pelo Regulamento n.° 2082/93, a Comissão pode reduzir, suspender ou suprimir a contribuição para a acção ou medida em causa quando a análise desta confirmar a existência de uma irregularidade.

A este respeito, mesmo as irregularidades que não tenham um impacto financeiro preciso podem justificar a aplicação de correcções financeiras pela Comissão, na medida em que podem lesar seriamente os interesses financeiros da União e o respeito do direito comunitário.

(cf. n.os 27, 31)

2.     Resulta do artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e da jurisprudência a ele relativa que a petição inicial deve indicar o objecto do litígio e a exposição sumária dos fundamentos do pedido, e que esta indicação deve ser suficientemente clara e precisa para permitir ao recorrido preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer o seu controlo. Daqui resulta que os elementos essenciais de facto e de direito em que se funda um recurso devem decorrer, de forma coerente e compreensível, do texto da própria petição.

(cf. n.° 50)

3.     No âmbito de uma decisão da Comissão de deduzir uma contribuição financeira, a circunstância de esta instituição não ter procedido à rectificação das despesas declaradas devida durante o exercício precedente, tendo tolerado as irregularidades por razões de equidade, não implica para o Estado‑Membro em causa o direito de exigir a mesma atitude para as irregularidades do exercício seguinte com base nos princípios da segurança jurídica ou da confiança legítima.

A este respeito, o princípio da segurança jurídica que exige que as normas jurídicas sejam claras e precisas e tem por finalidade garantir a previsibilidade das situações e das relações jurídicas abrangidas pelo direito comunitário, também não é violado por essa decisão, uma vez que a regulamentação aplicável no momento dos factos previa a possibilidade de a Comissão reduzir a contribuição financeira no caso de se ter constatado a existência de irregularidades.

(cf. n.os 68, 69)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

15 de Setembro de 2005 (*)

«Recurso de anulação – Fundo Social Europeu – Redução de uma contribuição financeira comunitária – Erro manifesto de apreciação – Proporcionalidade – Segurança jurídica – Confiança legítima»

No processo C‑199/03,

que tem por objecto um recurso de anulação nos termos do artigo 230.° CE, entrado em 13 de Maio de 2003,

Irlanda, representada por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por P. Gallagher, SC, e McGarry, BL, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por L. Flynn, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta (relatora), R. Schintgen, G. Arestis e J. Klučka, juízes,

advogado‑geral: A. Tizzano,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 13 de Janeiro de 2005,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 24 de Fevereiro de 2005,

profere o presente

Acórdão

1       Na sua petição, a Irlanda pede a anulação da decisão da Comissão C (2003) 99, de 27 de Fevereiro de 2003, que reduz a contribuição do Fundo Social Europeu concedido pelas decisões da Comissão C (94) 1972, de 29 de Julho de 1994, C (94) 2613, de 15 de Novembro de 1994 e C (94) 3226, de 29 de Novembro de 1994 (a seguir «decisão impugnada»).

 Quadro jurídico

 Regulamento (CEE) n.° 2052/88

2       O artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 2052/88 do Conselho, de 24 de Junho de 1988, relativo às missões dos fundos com finalidade estrutural, à sua eficácia e à coordenação das suas intervenções, entre si, com as intervenções do Banco Europeu de Investimento e com as dos outros instrumentos financeiros existentes (JO L 185, p. 9), tal como alterado pelo Regulamento (CEE) n.° 2081/93 do Conselho, de 20 de Julho de 1993 (JO L 193, p. 5, a seguir «Regulamento n.° 2052/88»), está assim redigido:

«A acção comunitária será concebida como um complemento das acções nacionais correspondentes ou como um contributo para as mesmas. Será estabelecida através de uma concertação estreita entre a Comissão, o Estado‑Membro interessado, as autoridades e os organismos competentes – incluindo, no âmbito das disposições previstas pelas regras institucionais e pelas práticas existentes próprias de cada Estado‑Membro, os parceiros económicos e sociais – designados pelo Estado‑Membro a nível nacional, regional, local ou outro, agindo todas as partes na qualidade de parceiros que prosseguem um objectivo comum. Essa concertação é adiante denominada ‘parceria’. A parceria abrangerá a preparação e o financiamento, bem como a apreciação ex      ante, o acompanhamento e a avaliação ex post das acções.

A parceria realizar‑se‑á no pleno respeito pelas respectivas competências institucionais, jurídicas e financeiras de cada um dos parceiros.»

3       O artigo 13.°, n.° 3, deste regulamento prevê que para as medidas aplicadas nas regiões que podem beneficiar de um intervenção a título do objectivo n.° 1, a participação comunitária concedida a título de fundos estruturais fica sujeita ao limite de 75%, no máximo, do custo total e, em regra geral, 50%, no mínimo, das despesas públicas.

 Regulamento (CEE) n.° 4253/88

4       Nos termos do artigo 9.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 4253/88, de 19 de Dezembro de 1988, que estabelece as disposições de aplicação do Regulamento n.° 2052/88 no que respeita à coordenação entre as intervenções dos diferentes fundos estruturais, por um lado, e entre estas e as do Banco Europeu de Investimento e dos outros instrumentos financeiros existentes, por outro (JO L 374, p. 1), tal como alterado pelo Regulamento (CEE) n.° 2082/93 do Conselho, de 20 de Julho de 1993 (JO L 193, p. 20, a seguir «Regulamento n.° 4253/88»), os créditos dos fundos estruturais não podem substituir‑se às despesas estruturais públicas ou equiparáveis do Estado‑Membro no conjunto dos territórios elegíveis para um objectivo.

5       Nos termos do artigo 17.°, n.° 2, deste regulamento, a participação financeira dos fundos é calculada quer em relação aos custos totais elegíveis quer em relação ao conjunto das despesas elegíveis públicas ou equiparáveis (nacionais, regionais ou locais e comunitárias) relativas a cada acção (programa operacional, regime de ajudas, subvenção global, projecto, assistência técnica ou estudos).

6       O artigo 23.° do mesmo regulamento, que tem por epígrafe: «Controlo financeiro», prevê:

«1.      Para garantir o êxito das acções empreendidas por promotores públicos ou privados, os Estados‑Membros, aquando da execução das acções, tomarão as medidas necessárias para:

–       verificar regularmente se as acções financiadas pela Comunidade foram empreendidas de forma correcta,

–       prevenir e combater as irregularidades,

–       recuperar os fundos perdidos na sequência de abuso ou negligência. Salvo se o Estado‑Membro e/ou o intermediário e/ou o promotor provarem que esse abuso ou negligência lhes não são imputáveis, o Estado‑Membro será subsidiariamente responsável pelo reembolso das importâncias indevidamente pagas. […]

Os Estados‑Membros informarão a Comissão das medidas tomadas para esse efeito e, em especial, comunicarão à Comissão a descrição dos sistemas de controlo e de gestão criados para assegurar a execução das acções de forma eficaz. Informarão regularmente a Comissão sobre o andamento dos processos administrativos e judiciais.

Os Estados‑Membros manterão à disposição da Comissão todos os relatórios nacionais adequados relativos ao controlo das medidas previstas nos programas ou acções em causa.

Após a entrada em vigor do presente regulamento, a Comissão adoptará as regras pormenorizadas para aplicação do presente número, de acordo com os processos referidos no título VIII, e comunicá‑las‑á, para informação, ao Parlamento Europeu.

2.      Sem prejuízo dos controlos efectuados pelos Estados‑Membros de acordo com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais, e sem prejuízo do disposto no artigo 206.° do Tratado e de qualquer inspecção efectuada ao abrigo da alínea c) do artigo 209.° do Tratado, os funcionários ou agentes da Comissão podem controlar no local, nomeadamente por amostragem, as acções financiadas pelos fundos estruturais e os sistemas de gestão e de controlo.

Antes de efectuar um controlo no local, a Comissão informará o Estado‑Membro interessado, por forma a obter todo o apoio necessário. O recurso da Comissão a eventuais controlos no local sem aviso prévio será regido por acordos celebrados no âmbito da parceria, em conformidade com as disposições do Regulamento Financeiro. Podem participar nos controlos funcionários ou agentes do Estado‑Membro.

A Comissão pode solicitar ao Estado‑Membro em causa que efectue um controlo no local para verificar a regularidade do pedido do pagamento. Os funcionários ou agentes da Comissão podem participar nesses controlos e devem fazê‑lo, se tal lhes for solicitado pelo Estado‑Membro em causa.

A Comissão providenciará no sentido de que os controlos por si realizados sejam efectuados de maneira coordenada, por forma a evitar a repetição de controlos em relação a um mesmo objecto e num mesmo período. O Estado‑Membro em causa e a Comissão trocarão imediatamente entre si todas as informações pertinentes sobre os resultados dos controlos efectuados.

3.      Durante os três anos subsequentes ao último pagamento relativo a uma acção o organismo e as autoridades responsáveis devem manter à disposição da Comissão todos os documentos comprovativos relativos às despesas e aos controlos referentes a essa acção.»

7       O artigo 24.° do Regulamento n.° 4253/88, que tem por epígrafe «Redução, suspensão da contribuição», dispõe:

«1.      Se a realização de uma acção ou de uma medida parecer não justificar, nem em parte nem na totalidade, a contribuição financeira que lhe foi atribuída, a Comissão procederá a uma análise adequada do caso no âmbito da parceria, solicitando nomeadamente ao Estado‑Membro ou às autoridades por ele designadas para a execução da acção que apresentem as suas observações num determinado prazo.

2.      Após essa análise, a Comissão poderá reduzir ou suspender a contribuição para a acção ou para a medida em causa se a análise confirmar a existência de uma irregularidade ou de uma alteração importante que afecte a natureza ou as condições de execução da acção ou da medida, e para a qual não tenha sido solicitada a aprovação da Comissão.

3.      Qualquer verba que dê lugar a reposição deve ser devolvida à Comissão [...].»

 Matéria de facto na origem do litígio

8       Com a Decisão 94/626/CE de 13 de Julho de 1994, relativa ao estabelecimento do quadro comunitário de apoio para as intervenções estruturais comunitárias nas regiões irlandesas abrangidas pelo objectivo n.° 1, ou seja, a totalidade do território (JO L 250, p. 12), a Comissão aprovou o dito quadro para o período de 1 de Janeiro de 1994 a 31 de Dezembro de 1999.

9       Com base nesta decisão a Comissão adoptou posteriormente as decisões C (94) 1972, de 29 de Julho de 1994, C (94) 2613, de 15 de Novembro de 1994 e C (94) 3226, de 29 de Novembro de 1994, através das quais concedeu uma contribuição financeira do Fundo Social Europeu (a seguir «FSE»), no valor de 1 897 206 226 EUR, a programas operacionais relativos, respectivamente, ao turismo, ao desenvolvimento industrial e ao desenvolvimento de recursos humanos (a seguir «programas operacionais»).

10     O Department of Enterprise, Trade and Employment (a seguir «DETE») foi a autoridade de gestão designada pela Irlanda para a execução deste programa operacional.

11     De 6 a 10 de Novembro e de 4 a 6 de Dezembro de 2000, os serviços da Comissão efectuaram em Dublim, ao abrigo do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 4253/88, controlos no local e investigações relativas a acções co‑financiadas pelo FSE entre 1994 e 1998. Estas acções foram empreendidas pelo National Training and Development Institute (a seguir «NTDI») e pela Central Remedial Clinic, sob a responsabilidade do National Rehabilitation Board. Os serviços da Comissão controlaram também a pista de auditoria fornecida pelo DETE com vista a verificar a correspondência entre os montantes pagos pela Comissão e os montantes exigidos pelos diferentes beneficiários finais que participavam nos programas operacionais.

12     Após estes controlos foi elaborado um relatório de auditoria que a Comissão comunicou às autoridades irlandesas, por ofício de 13 de Fevereiro de 2001, convidando‑as a apresentarem observações. De acordo com aquele relatório, os pedidos de co‑financiamento apresentados no quadro dos programas operacionais apresentavam as seguintes irregularidades:

–       em vez de declarar a totalidade dos fundos nacionais destinados ao financiamento dos projectos, o NTDI só declarou as fontes nacionais de financiamento até 25% do custo total das despesas, ou seja, a percentagem mínima de financiamento nacional exigido para poder beneficiar do co‑financiamento do FSE a título do objectivo n.° 1;

–       após ter aplicado o mecanismo de conversão previsto no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento da Comissão, de 2 de Julho de 1990, que estabelece regras relativas à utilização do ecu na execução orçamental dos fundos estruturais (JO L 170, p. 36), o DETE alterou os montantes obtidos após conversão transferindo parte das despesas públicas não co‑financiadas para as despesas co‑financiadas;

–       as irregularidades referidas resultaram num co‑financiamento excessivo e traduziram‑se numa alteração da pista de auditoria das operações co‑financiadas pelo FSE.

13     Por ofício de 20 de Dezembro de 2001, o DETE informou a Comissão do resultado das suas investigações no tocante a essas irregularidades e reagiu às conclusões do relatório de auditoria.

14     Não tendo, segundo a Comissão, sido apresentado nenhum facto novo em resultado dessas investigações, por ofício de 28 de Fevereiro de 2002, aquela deu início ao procedimento previsto no artigo 24.° do Regulamento n.° 4253/88 e convidou as autoridades irlandesas a apresentarem as suas observações.

15     Na resposta de 18 de Junho de 2002, completada por carta de 25 de Julho de 2002, as autoridades irlandesas reconheceram que os pedidos de co‑financiamento apresentados pelo NTDI não tinham sido elaborados em conformidade com as boas práticas do FSE. A este propósito referem que, após verificação, o NTDI apresentou pedidos de co‑financiamento rectificados para os anos de 1997 e 1998, mas que, ao invés, não pôde ser efectuada com o mesmo grau de precisão uma rectificação para os anos de 1994 a 1996 devido, nomeadamente, a uma perda de dados causada pela alteração do sistema informático do NTDI.

16     Além disso, essas autoridades reconhecem que as rectificações dos pedidos de co‑financiamento operadas pelo DETE não eram correctas. Contudo, esclarecem que essas rectificações não conduziram a um financiamento comunitário indevido ou excessivo, dado que só foram efectuadas nos casos em que as despesas elegíveis eram suficientemente elevadas e nos casos em que, por violação do mecanismo de conversão, os pedidos de co‑financiamento tinham sido subavaliados.

17     Por fim, segundo as mesmas autoridades, ao demonstrar a existência de despesas elegíveis suficientes, o exercício de rectificação e de revisão dos pedidos de co‑financiamento obviou às rupturas involuntárias da pista de auditoria.

18     Após ter examinado as observações das autoridades irlandesas, a Comissão, pela decisão impugnada, reduziu em 15 614 261 EUR o montante total da contribuição financeira comunitária inicialmente atribuído aos programas operacionais.

 Quanto ao recurso

19     Em apoio do seu recurso a Irlanda invoca quatro fundamentos baseados, respectivamente, em erro manifesto de apreciação, violação das regras de direito relativas à aplicação do Tratado, violação do princípio da proporcionalidade e violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima.

 Quanto ao primeiro fundamento, baseado em erro manifesto de apreciação

20     No seu primeiro fundamento, a Irlanda sustenta que, ao recusar‑se a tomar em consideração as rectificações feitas aos pedidos de co‑financiamento, que pretendiam demonstrar que as irregularidades constatadas não tinham resultado num financiamento comunitário indevido ou excessivo, e ao reduzir a contribuição financeira do FSE, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação em matéria de facto e de direito. Com efeito, na medida em que as irregularidades denunciadas pela Comissão são, na realidade, erros processuais de natureza meramente técnica e sem impacto sobre o orçamento comunitário, é injustificada a recusa da Comissão de tomar em consideração os pedidos de co‑financiamento rectificados. Por outro lado, a circunstância de os mapas financeiros terem sido definitivamente encerrados em 31 de Dezembro de 1999 também não justifica tal recusa.

21     A Comissão sublinha antes de mais que a Irlanda não contesta que os pedidos de co‑financiamento apresentavam irregularidades.

22     Sustenta, em seguida, que as correcções feitas nos pedidos de co‑financiamento eram inaceitáveis, dado não terem sido objecto de um processo de certificação regular e terem sido apresentadas após a data do encerramento definitivo dos mapas financeiros.

23     Além disso, a Comissão entende que, na medida em que assentam em extrapolações, não acompanhadas de documentos justificativos, as rectificações feitas nos pedidos de co‑financiamento para os anos de 1994 a 1996 não cumpriam a exigência prescrita no artigo 23.°, n.° 3, do Regulamento n.° 4253/88.

24     Por fim, a Comissão alega que as irregularidades que estiveram na base da adopção da decisão residem não na elegibilidade das despesas mas na sua fonte de financiamento e que, por outro lado, tiveram um impacto nos mapas financeiros e na programação dos fundos.

25     Nos termos do artigo 274.° CE, a Comissão executa o orçamento sob sua própria responsabilidade e até ao limite das dotações concedidas, de acordo com os princípios da boa gestão financeira e os Estados‑Membros cooperam com a Comissão a fim de assegurar que as dotações sejam utilizadas de acordo com os princípios da boa gestão financeira.

26     A este propósito o Tribunal de Justiça já declarou que o financiamento pelo Fundo Europeu de Orientação e de Garantia Agrícola das despesas efectuadas pelas autoridades nacionais se rege pela regra segundo a qual apenas as despesas efectuadas em conformidade com as normas comunitárias estão a cargo do orçamento da Comunidade (acórdão de 6 de Outubro de 1993, Itália/Comissão, C‑55/91, Colect., p. I‑4813, n.° 67). Este princípio é também aplicável à atribuição de uma contribuição financeira a título do FSE.

27     Em especial, por força do artigo 24.°, n.° 2, do Regulamento n.° 4253/88, a Comissão pode reduzir, suspender ou suprimir a contribuição para a acção ou medida em causa quando a análise desta confirmar a existência de uma irregularidade.

28     No caso em apreço, é pacífico que, nas observações apresentadas no âmbito do processo de análise previsto no artigo 24.° n.° 1, do Regulamento n.° 4253/88 e no decurso do processo no Tribunal de Justiça, a Irlanda não contestou a existência das irregularidades constatadas pela Comissão nem adiantou elementos susceptíveis de infirmarem a sua veracidade.

29     Por outro lado, não podem ser acolhidas as considerações da Irlanda de que aquelas irregularidades são de natureza «técnica» e não causam prejuízo ao orçamento comunitário.

30     Com efeito, o artigo 24.° do Regulamento n.° 4253/88 não faz qualquer distinção de ordem quantitativa ou qualitativa no que toca às irregularidades que podem levar à redução de uma contribuição.

31     Além disso, como observou o advogado‑geral no n.° 36 das suas conclusões, mesmo as irregularidades que não tenham um impacto financeiro preciso podem lesar seriamente os interesses financeiros da União e o respeito do direito comunitário e justificar, por essa razão, a aplicação de correcções financeiras pela Comissão.

32     Daí resulta que a Comissão actuou acertadamente ao reduzir a contribuição financeira comunitária atribuída inicialmente aos programas operacionais.

33     Por outro lado, no que se refere à data de encerramento definitivo dos mapas financeiros, resulta quer do quadro comunitário de apoio para as intervenções estruturais comunitárias nas regiões da Irlanda no âmbito do objectivo n.° 1, para o período de 1 de Janeiro de 1994 a 31 de Dezembro de 1999 quer das decisões C (94) 1972, C (94) 2613 e C (94) 3226 que não podia verificar‑se nenhuma modificação dos mapas financeiros nem nenhuma autorização orçamental após 31 de Dezembro de 1999.

34     Por conseguinte, na medida em que os pedidos de co‑financiamento rectificados apresentados pela Irlanda após esta data implicavam uma nova programação dos compromissos do FSE para o período em causa, a Comissão actuou também correctamente ao declarar inaceitáveis os ditos pedidos.

35     Daí resulta que o primeiro fundamento suscitado pela Irlanda não é procedente.

 Quanto ao segundo fundamento, baseado na violação das regras de direito relativas à aplicação do Tratado

36     No seu segundo fundamento a Irlanda sustenta que, por um lado, ao não ter adoptado as normas de execução em matéria de controlo financeiro antes de 1997 e, por outro, ao aplicar retroactivamente o Regulamento (CE) n.° 2064/97 da Comissão, de 15 de Outubro de 1997, que estabelece normas de execução do Regulamento (CEE) n.° 4253/88, no que respeita ao controlo financeiro, pelos Estados‑Membros, das operações co‑financiadas pelos Fundos estruturais (JO L 290, p. 1), a uma situação que ocorreu no quadro da contribuição financeira do FSE atribuída à Irlanda para os anos de 1994 à 1997, a Comissão violou o artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 4253/88.

37     Em seguida, a Irlanda considera que a Comissão violou o artigo 24.° do Regulamento n.° 4253/88. Com efeito, a Comissão não procedeu a uma análise adequada do processo e os elementos identificados no decurso desta análise não constituíam irregularidades graves que justificassem uma redução da ajuda financeira.

38     Por fim, segundo este Estado‑Membro, a Comissão violou igualmente o princípio da parceria previsto no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2052/88.

39     A Comissão sustenta que a adopção tardia das normas de execução em matéria de controlo financeiro não está relacionada com a decisão impugnada e que, de todo o modo, a Irlanda deveria ter intentado uma acção por omissão, nos termos do artigo 232.° CE, ou ter interposto um recurso de anulação, nos termos do artigo 230.° CE, nos dois meses a seguir à sua adopção.

40     A Comissão argumenta que o Regulamento n.° 2064/97 se limita a formalizar práticas anteriores em matéria de auditoria e de controlo financeiro e que, mesmo antes de 1997, qualquer ruptura da pista de auditoria era contrária às disposições dos Regulamentos n.os 2052/88 e 4253/88.

41     No que concerne à violação do artigo 24.° do Regulamento n.° 4353/88, a Irlanda limita‑se, segundo a Comissão, a repetir as críticas já adiantadas a propósito do primeiro fundamento. De todo o modo, a Comissão alega não ter infringido esta disposição. Com efeito, por um lado, a investigação desenvolvida e o diálogo havido com a Irlanda foram adequados e, por outro, a Comissão entende que as irregularidades constatadas eram especialmente graves e justificavam, portanto, a decisão de reduzir a contribuição financeira atribuída aos programas operacionais.

42     Por fim, a Comissão considera que o argumento assente na violação do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2052/88 é inadmissível, uma vez que a Irlanda se limita a invocar esta disposição sem especificar de que consta a violação.

43     O argumento da Irlanda respeitante à violação pela Comissão do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 4253/88 não pode ser acolhido.

44     A este propósito, há que concluir que, por um lado, a interposição de um recurso, nos termos do artigo 230.° CE, que tem por objecto a anulação de uma decisão de redução de uma contribuição financeira comunitária não é o meio adequado para contestar a adopção tardia das normas de execução em matéria de controlo financeiro previstas no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 4253/88. Para esse efeito, a Irlanda poderia ter atacado a inacção da Comissão através da propositura de uma acção por omissão, nos termos do artigo 232.° CE, antes da adopção do Regulamento n.° 2064/97, ou ainda contestar a validade deste regulamento, interpondo recurso de anulação, nos termos do artigo 230.° CE, nos dois meses após esta adopção.

45     Por outro lado, no que se refere à alegada aplicação retroactiva do Regulamento n.° 2064/97, basta observar que a decisão impugnada não se refere a nenhuma disposição deste regulamento, mas tem por base disposições em vigor à época dos factos, a saber, nomeadamente, os artigos 4.°, n.° 1, e 13.°, n.° 3, do Regulamento n.° 2052/88 e os artigos 9.°, n.° 1, e artigo 17.°, n.° 2, do Regulamento n.° 4253/88.

46     Além disso, como observou o advogado‑geral no n.° 45 das suas conclusões, antes já da adopção do Regulamento n.° 2064/97, o conjunto das disposições pertinentes em vigor exigia aos Estados‑Membros beneficiários de uma contribuição financeira comunitária a título de fundos estruturais que prestassem todas as garantias que assegurassem a exacta correspondência entre as despesas efectivamente realizadas no quadro dos projectos co‑financiados e os respectivos pedidos de contribuição financeira comunitária. Deste modo, estas disposições eram, por si, suficientes para sancionar as irregularidades cometidas pelas autoridades irlandesas. Em especial, o artigo 23.° do Regulamento n.° 4253/88, que serviu de base ao Regulamento n.° 2064/97, exige aos Estados‑Membros que tomem as medidas necessárias para verificar com regularidade se as acções financiadas pela Comunidade foram levadas a cabo correctamente para prevenir e punir as irregularidades e recuperar os fundos perdidos na sequência de abuso ou negligência.

47     Não pode ser acolhido o argumento da Irlanda assente na violação, por parte da Comissão, do artigo 24.° do Regulamento n.° 4253/88.

48     Com efeito, resulta claramente dos autos que foi cumprido o procedimento previsto nesta disposição. Assim, após os seus serviços terem realizado controlos no local em Novembro e Dezembro de 2000, a Comissão, por relatório de auditoria transmitido às autoridades irlandesas em 13 de Fevereiro de 2001, referenciou várias irregularidades evidenciadas nesses controlos Com base nestas constatações, por ofício de 28 de Fevereiro de 2002, a Comissão comunicou às ditas autoridades que pretendia reduzir a contribuição financeira do FSE relacionados com os pedidos de co‑financiamento irregulares e convidou‑as a apresentarem observações no prazo de dois meses, nos termos do artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 4253/88.

49     Por outro lado, na medida em que ao alega que as constatações feitas pela Comissão não constituem irregularidades suficientemente graves para justificarem uma redução das contribuições financeiras do FSE, este argumento significa uma repetição do primeiro fundamento apreciado no âmbito do presente recurso.

50     Por último, no que toca à violação do princípio da parceria invocado pela Irlanda, há que recordar que resulta do artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e da jurisprudência a ele relativa que a petição inicial deve indicar o objecto do litígio e a exposição sumária dos fundamentos do pedido, e que esta indicação deve ser suficientemente clara e precisa para permitir ao recorrido preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer o seu controlo. Daqui resulta que os elementos essenciais de facto e de direito em que se funda um recurso devem decorrer, de forma coerente e compreensível, do texto da própria petição (acórdãos de 9 de Janeiro de 2003, Itália/Comissão, C‑178/00, Colect., p. I‑303, n.° 6 e de 14 de Outubro de 2004, Comissão/Espanha, C‑55/03, não publicado na Colectânea, n.° 23).

51     Tal não é o caso do argumento da Irlanda relativo à violação, por parte da Comissão, do princípio da parceria. Com efeito, na petição, o dito Estado‑Membro limita‑se a invocar uma violação deste princípio sem precisar quaisquer elementos de facto e de direito que sustentem esta alegação.

52     Por conseguinte, na medida em que se refere à violação do princípio da parceria, o segundo fundamento é inadmissível e deve ser rejeitado.

53     Resulta do que antecede que o segundo fundamento invocado pela Irlanda é parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente.

 Quanto ao terceiro fundamento, baseado na violação do princípio da proporcionalidade

54     Com o seu terceiro fundamento, a Irlanda alega que a decisão de reduzir a contribuição do FSE é desproporcionada. Com efeito, outras soluções teriam permitido à Comissão alcançar o objectivo pretendido. Assim, esta poderia, designadamente, ter tido em conta as explicações e as correcções apresentadas pelas autoridades irlandesas.

55     A título subsidiário, a Irlanda considera que o montante reclamado é desproporcionado.

56     A Comissão sustenta que, tendo em conta as irregularidades identificadas no caso vertente e em conformidade com o princípio da boa gestão financeira que lhe incumbe, por força do artigo 274.° CE, não lhe restava outra opção senão reduzir a contribuição financeira comunitária pelo menos do montante correspondente a essas irregularidades. Nestas condições, a decisão impugnada não colide com o princípio da proporcionalidade.

57     Cabe recordar que, em matéria de fundos estruturais, é o artigo 24.°, n.° 2, do Regulamento n.° 4253/88, alterado, que constitui a base jurídica de qualquer pedido de reembolso da Comissão (acórdão de 24 de Janeiro de 2002, Conserve Itália/Comissão, C‑500/99 P, Colect., p. I‑867, n.° 88).

58     Em especial, quando o exame do caso revela que, devido à existência de uma irregularidade, a contribuição financeira é parcialmente injustificada, esta disposição permite à Comissão reduzir a contribuição.

59     No caso em apreço é pacífico que, na decisão impugnada, a Comissão reduziu a contribuição financeira do FSE do montante correspondente às irregularidades verificadas e com o único objectivo de excluir do co‑financiamento comunitário as despesas ilegais ou injustificadas.

60     Daí decorre que a redução a que procedeu é conforme com o princípio da proporcionalidade.

61     Por conseguinte, improcede o terceiro fundamento invocado pela Irlanda.

 Quanto ao quarto fundamento, baseado na violação dos princípios da confiança legítima e da segurança jurídica

62     No seu quarto fundamento, a Irlanda sustenta que, ao ter‑lhe pedido no decurso dos contactos posteriores aos controlos no local pelos seus serviços, que procedesse à correcção e verificação dos pedidos de co‑financiamento, a Comissão criou uma confiança legítima de que tomaria em consideração esses pedidos de co‑financiamento corrigidos. Esta confiança legítima foi, aliás, reforçada pelo facto de, na sua prática anterior, a Comissão ter autorizado a revisão de tais pedidos quando as despesas inelegíveis tinham sido identificadas.

63     Por outro lado a Irlanda considera que, ao defraudar tal expectativa e ao assentar a decisão impugnada em regras não previstas pela regulamentação aplicável no momento dos factos ou imprecisas, a Comissão violou o princípio da segurança jurídica.

64     A Comissão argumenta que, atentas as irregularidades verificadas, as autoridades irlandesas não tinham razões para manter uma confiança legítima no facto de que lhes seria concedido o co‑financiamento pedido. Com efeito, por um lado, a confiança legítima que o beneficiário de uma contribuição pudesse ter em que a ajuda lhe viria a ser paga termina quando comete uma irregularidade. Por outro lado, nenhum elemento permite concluir que as autoridades irlandesas tenham tido a garantia de que os pedidos de co‑financiamento não comportavam irregularidades ou que estas não implicavam uma redução da contribuição financeira do FSE.

65     A Comissão considera que o princípio da segurança jurídica foi respeitado uma vez que, na decisão recorrida, se limitou a executar a legislação aplicável à época dos factos, de acordo com a qual o montante do reembolso indevidamente pago pelo FSE pode ser exigido quando se prove ter existido irregularidade.

66     No caso vertente, não resulta de modo algum do processo que a Comissão tenha dado garantias precisas à Irlanda que pudessem ter criado a este Estado‑Membro fundadas esperanças de que a Comissão teria em conta os pedidos de co‑financiamento corrigidos e de que não procederia à redução da contribuição financeira relativa às irregularidades verificadas.

67     Assim, não pode ser entendido que, ao adoptar a decisão impugnada, a Comissão violou o princípio da confiança legítima.

68     Por outro lado, segundo jurisprudência consolidada, o facto de a Comissão não ter procedido à rectificação devida durante o exercício precedente, tendo tolerado as irregularidades por razões de equidade, não implica que o Estado‑Membro em causa adquira o direito de exigir a mesma atitude para as irregularidades do exercício seguinte com base nos princípios da segurança jurídica ou da confiança legítima (v. acórdãos de 6 de Outubro de 1993, Itália/Comissão, C‑55/91, Colect., p. I‑4813, n.° 67, e de 6 de Dezembro de 2001, Grécia/Comissão, C‑373/99, Colect., p. I‑9619, n.° 56).

69     Também não se pode considerar que o princípio da segurança jurídica que exige que as normas jurídicas sejam claras e precisas e tem por finalidade garantir a previsibilidade das situações e das relações jurídicas abrangidas pelo direito comunitário (acórdão de 15 de Fevereiro de 1996, Duff e o., C‑63/93, Colect., p. I‑569, n.° 20), foi violado pela decisão impugnada, uma vez que a regulamentação aplicável no momento dos factos previa a possibilidade de a Comissão reduzir a contribuição financeira no caso de se ter constatado a existência de irregularidades.

70     Em consequência improcede o quarto fundamento invocado pela Irlanda.

71     À luz do que precede há que negar provimento ao recurso na íntegra.

 Quanto às despesas

72     Por força do disposto no n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte contrária o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da Irlanda e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Irlanda é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.

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