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Documento 61997CJ0124

Acórdão do Tribunal de 21 de Setembro de 1999.
Markku Juhani Läärä, Cotswold Microsystems Ltd e Oy Transatlantic Software Ltd contra Kihlakunnansyyttäjä (Jyväskylä) e Suomen valtio (Estado finlandês).
Pedido de decisão prejudicial: Vaasan hovioikeus - Finlândia.
Livre prestação de serviços - Direitos exclusivos de exploração - Máquinas de jogo.
Processo C-124/97.

Colectânea de Jurisprudência 1999 I-06067

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:1999:435

61997J0124

Acórdão do Tribunal de 21 de Setembro de 1999. - Markku Juhani Läärä, Cotswold Microsystems Ltd e Oy Transatlantic Software Ltd contra Kihlakunnansyyttäjä (Jyväskylä) e Suomen valtio (Estado finlandês). - Pedido de decisão prejudicial: Vaasan hovioikeus - Finlândia. - Livre prestação de serviços - Direitos exclusivos de exploração - Máquinas de jogo. - Processo C-124/97.

Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-06067


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


Livre prestação de serviços - Restrições - Legislação nacional que reserva a um organismo de direito público a exploração de máquinas de jogo - Justificação - Protecção dos consumidores e da ordem social

[Tratado CE, artigo 59._ (que passou, após alteração, a artigo 49._ CE)]

Sumário


Uma legislação nacional que reserva a um único organismo de direito público o direito exclusivo de explorar máquinas de jogo no território nacional e que impede assim os operadores dos outros Estados-Membros, directa ou indirectamente, de colocarem eles próprios máquinas de jogo à disposição do público, com vista à sua utilização contra remuneração, constitui, mesmo que seja indistintamente aplicada, um obstáculo à livre prestação de serviços.

Todavia, este entrave, na medida em que a legislação em causa não comporte qualquer discriminação em razão da nacionalidade, pode ser justificado por motivos de protecção dos consumidores e da ordem social. Se é verdade que a referida legislação não proíbe a utilização das máquinas de jogo mas reserva a sua exploração a um organismo público autorizado, a determinação do alcance da protecção que um Estado-Membro pretende garantir no seu território, em matéria de lotarias e outros jogos a dinheiro, faz parte do poder de apreciação reconhecido às autoridades nacionais. Cabe-lhes, com efeito, apreciar se, no contexto do objectivo prosseguido, é necessário proibir total ou parcialmente actividades desta natureza ou apenas restringi-las e prever, para o efeito, modalidades de fiscalização mais ou menos estritas. Nestas condições, a mera circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por um outro Estado-Membro não pode ter qualquer incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das decisões tomadas na matéria. Estas devem apenas ser apreciadas à luz dos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e do nível de protecção que as mesmas pretendem garantir.

Partes


No processo C-124/97,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE), pelo Vaasan hovioikeus (Finlândia), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Markku Juhani Läärä,

Cotswold Microsystems Ltd,

Oy Transatlantic Software Ltd

e

Kihlakunnansyyttäjä (Jyväskylä),

Suomen valtio (Estado finlandês),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Março de 1994, Schindler (C-275/92, Colect., p. I-1039), e dos artigos 30._, 36._, 56._, 59._ do Tratado CE (que passaram, após alteração, a artigos 28._ CE, 30._ CE, 46._ CE e 49._ CE) e 60._ do Tratado CE (actual artigo 50._ CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: P. J. G. Kapteyn, presidente das Quarta e Sexta Secções, exercendo funções de presidente, J.-P. Puissochet (relator) e P. Jann, presidentes de secção, C. Gulmann, J. L. Murray, D. A. O. Edward, H. Ragnemalm, L. Sevón e M. Wathelet, juízes,

advogado-geral: A. La Pergola,

secretário: L. Hewlett, administradora,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação de M. Läärä e da Oy Transatlantic Software Ltd, por P. Kiviluoto, advogado em Jyväskylä,

- em representação da Cotswold Microsystems Ltd, por H. T. Klami, professor na Universidade de Helsínquia,

- em representação do Governo finlandês, por T. Pynnä, consultora jurídica no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

- em representação do Governo belga, por J. Devadder, director de administração no Serviço Jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento, na qualidade de agente, assistido por P. Vlaemminck e L. Van Den Hende, advogados no foro de Gand,

- em representação do Governo alemão, por E. Röder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, e C.-D. Quassowski, Regierungsdirektor no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo espanhol, por L. Pérez de Ayala Becerril, abogado del Estado, na qualidade de agente,

- em representação do Governo neerlandês, por A. Bos, consultor jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

- em representação do Governo austríaco, por F. Cede, Botschafter no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

- em representação do Governo português, por L. Fernandes, director do Serviço Jurídico da Direcção-Geral das Comunidades Europeias do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Â. Cortesão Seiça Neves, membro do mesmo serviço, e J. Ramos Alexandre, inspector-geral dos jogos no Ministério da Economia, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo sueco, por E. Brattgård, departementsråd no Departamento do Comércio Externo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

- em representação do Governo do Reino Unido, por J. E. Collins, Assistant Treasury Solicitor, na qualidade de agente, assistido por M. Brealey, barrister,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por A. Caeiro, consultor jurídico, e K. Leivo, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações de M. Läärä e Oy Transatlantic Software Ltd, representados por P. Kiviluoto, da Cotswold Microsystems Ltd, representada por H. T. Klami, do Governo finlandês, representado por T. Pynnä, do Governo belga, representado por P. Vlaemminck e L. Van Den Hende, do Governo alemão, representado por E. Röder, do Governo espanhol, representado por M. López-Monís Gallego, Abogado del Estado, na qualidade de agente, do Governo irlandês, representado por M. Finlay, SC, do Governo luxemburguês, representado por K. Manhaeve, advogado no foro do Luxemburgo, do Governo neerlandês, representado por M. A. Fierstra, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo português, representado por L. Fernandes e Â. Cortesão Seiça Neves, do Governo sueco, representado por L. Nordling, rättschef no Secretariado Jurídico (UE) do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo do Reino Unido, representado por J. E. Collins, assistido por M. Brealey, e da Comissão, representada por A. Caeiro e K. Leivo, na audiência de 30 de Junho de 1998,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 4 de Março de 1999,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 21 de Março de 1997, entrado no Tribunal de Justiça em 25 de Março seguinte, o Vaasan hovioikeus colocou ao Tribunal, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE), três questões prejudiciais relativas à interpretação do acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Março de 1994, Schindler (C-275/92, Colect., p. I-1039, a seguir «acórdão Schindler»), e dos artigos 30._, 36._, 56._, 59._ do Tratado CE (que passaram, após alteração, a artigos 28._ CE, 30._ CE, 46._ CE e 49._ CE) e 60._ do Tratado CE (actual artigo 50._ CE), a fim de apreciar a compatibilidade com estas disposições de uma legislação nacional que reserva a um organismo público o direito de explorar máquinas de jogo no território do Estado-Membro em causa.

2 Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe M. Läärä, a sociedade de direito finlandês Oy Transatlantic Software Ltd (a seguir «TAS») e a sociedade de direito inglês Cotswold Microsystems Ltd (a seguir «CMS»), recorrentes no processo principal, ao Kihlakunnansyyttäjä (Jyväskylä) (procurador do distrito de Jyväskylä) e ao Suomen valtio (Estado finlandês), quanto à exploração de máquinas de jogo na Finlândia.

A regulamentação nacional

3 Na Finlândia, por força do artigo 1._, n._ 1, da arpajaislaki (1.9.1965/491) (Lei n._ 491, de 1 de Setembro de 1965, sobre os jogos de azar, na sua versão em vigor na altura dos factos no processo principal, a seguir «arpajaislaki»), os jogos de azar só podem ser organizados, com a autorização da Administração, a fim de recolher fundos no quadro de uma acção de beneficência ou com qualquer outra finalidade desinteressada prevista por lei. Segundo o artigo 1._, n._ 2, da arpajaislaki, são, nomeadamente, considerados jogos de azar, na acepção desta lei, as actividades de casino, as máquinas de jogo e outros aparelhos de jogo ou os jogos em que, em troca de uma quantia em dinheiro, o jogador pode receber um lote consistindo em dinheiro, numa mercadoria ou em qualquer outro benefício considerável em dinheiro, ou ainda em fichas susceptíveis de ser convertidas em dinheiro, mercadorias ou benefícios.

4 O artigo 3._ da arpajaislaki prevê nomeadamente que a Administração pode conceder a um organismo de direito público a autorização para manter em funcionamento, contra remuneração, máquinas de jogo e outros aparelhos de jogo ou para explorar uma actividade de casino, a fim de recolher fundos destinados a diferentes acções de interesse geral, enumeradas por esta disposição. Só pode ser concedida uma única autorização cobrindo estas actividades, em relação a um período determinado.

5 Esta autorização foi concedida à Raha-automaattiyhdistys (associação para a gestão de máquinas de jogo, a seguir «RAY»), por força do artigo 1._, n._ 3, do raha-automaattiasetus (29.12.1967/676) (Regulamento n._ 676, de 29 de Dezembro de 1967, sobre as máquinas de jogo, na sua versão em vigor na altura dos factos). Segundo o artigo 6._ deste regulamento, a RAY tem o direito, a fim de realizar o seu objecto, que é recolher fundos destinados a satisfazer as necessidades citadas no artigo 3._ da arpajaislaki, de manter em funcionamento, contra remuneração, máquinas de jogo e exercer uma actividade de casino, bem como fabricar e vender máquinas de jogo e aparelhos de divertimento. Os artigos 29._ e seguintes do mesmo regulamento precisam as condições em que o produto líquido das actividades da RAY, cujo montante figura no orçamento de Estado, deve ser entregue ao Ministério dos Assuntos Sociais e da Saúde e depois repartido entre os organismos e fundações que têm por objecto a satisfação das referidas necessidades.

6 Por força do artigo 6._, n._ 1, da arpajaislaki, quem, sem autorização, organizar jogos de azar para os quais seja exigida uma autorização é passível de multa ou de pena de prisão que pode ir até seis meses. Além disso, segundo o artigo 16._ do título 2 da rikoslaki (13.5.1932/143) (Lei penal finlandesa na sua versão resultante da Lei n._ 143, de 13 de Maio de 1932), qualquer instrumento que pertença ao autor da infracção ou ao seu mandante e que foi utilizado para cometer a infracção, ou que foi fabricado ou adquirido apenas para o efeito, pode ser confiscado.

O litígio no processo principal

7 Resulta do despacho de reenvio que a CMS confiou à TAS, de que M. Läärä é o presidente, a exploração, na Finlândia, de máquinas de jogo ditas «AWP», de tipo Golden Shot, que são, segundo os termos do contrato celebrado entre as duas sociedades, propriedade da CMS. Estes aparelhos têm discos rotativos que ostentam imagens de frutos. Quando os discos se imobilizam, quer por si só, quer por acção do jogador que os acciona com uma manivela, e a sequência formada pelos desenhos constar da tabela dos prémios, a máquina dá ao jogador um prémio unitário que pode ir, no máximo, até 200 FIM (para uma aposta compreendida entre 1 FIM e 5 FIM).

8 M. Läärä foi accionado criminalmente, na sua qualidade de responsável da TAS, no Jyväskylän käräjäoikeus (tribunal de primeira instância de Jyväskylä), por ter feito funcionar estas máquinas na Finlândia, sem autorização. Apoiado pela TAS e pela CMS, chamadas a depor, contestou a infracção que lhe era imputada, porque, nomeadamente, a possibilidade de ganhos proporcionada pelas máquinas Golden Shot não assentava essencialmente na sorte mas também, de forma não desprezível, na habilidade do jogador, de modo que estas máquinas não podiam ser qualificadas de jogos de azar, e porque a legislação finlandesa era incompatível com as normas comunitárias que regem a livre circulação de bens e de serviços. O käräjäoikeus, que não acolheu os seus argumentos, condenou-o numa multa e ordenou o confisco das máquinas.

9 Tendo os interessados recorrido desta decisão para o Vaasan hovioikeus, este decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1) O acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Março de 1994 no processo C-275/92, Her Majesty's Customs and Excise/Gerhart Schindler e Joerg Schindler, deve ser interpretado no sentido de que é equivalente ao presente caso (v. acórdão proferido em 6 de Outubro de 1982 no processo 283/81, Srl CILFIT e Lanificio di Gavardo SpA/Ministério da Saúde) e de que as disposições do Tratado CE devem portanto ser interpretadas da mesma forma que o foram no processo acima mencionado?

No caso de a resposta à primeira questão ser total ou parcialmente negativa, o hovioikeus apresenta as seguintes questões suplementares:

2) As normas do Tratado CE sobre a livre circulação de bens e de serviços (artigos 30._, 59._ e 60._) também se aplicam a máquinas de jogo como as aqui em causa?

3) Se a resposta à segunda questão for afirmativa,

a) os artigos 30._, 59._ ou 60._ ou qualquer outro artigo do Tratado CE obstam a que a Finlândia limite o direito de explorar as máquinas de jogo em questão criando um monopólio a favor da Raha-automaattiyhdistys, independentemente do facto de a limitação em causa afectar de igual modo os operadores de jogos nacionais e estrangeiros, e

b) à limitação em causa aplicam-se as justificações dos artigos 36._ ou 56._ do Tratado CE, ou de qualquer outro artigo, com base nas razões incluídas na lei relativa a jogos de azar ou nos seus trabalhos preparatórios ou em qualquer outra razão e, para a análise desta questão, é relevante a dimensão do prémio que pode ser obtido nas máquinas de jogos e o facto de a possibilidade de ganhar se basear na sorte ou na habilidade do jogador?»

10 Com as suas três questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se, à luz do acórdão Schindler, os artigos 30._, 59._ e 60._ do Tratado devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que concede a um único organismo público direitos exclusivos de exploração das máquinas de jogo, como a legislação finlandesa, tendo em conta os motivos de interesse geral invocados para a justificar.

11 M. Läärä, a TAS e a CMS alegam que a exploração das máquinas de jogo em causa no processo principal é, nomeadamente em razão da modéstia das apostas e dos prémios e da sua finalidade principal, que é a de oferecer um divertimento assente na habilidade do jogador, totalmente diferente da organização das grandes lotarias, objecto do acórdão Schindler. Em sua opinião, o direito exclusivo concedido à RAY é contrário às disposições do Tratado sobre a livre circulação de bens e de serviços e sobre a concorrência, principalmente porque os objectivos de interesse geral invocados para o justificar não são verdadeiramente prosseguidos e podem ser alcançados por medidas menos restritivas, como, por exemplo, uma regulamentação impondo aos exploradores as exigências necessárias.

12 Os Governos finlandês, belga, alemão, espanhol, irlandês, luxemburguês, neerlandês, austríaco, português, sueco e do Reino Unido, bem como a Comissão, consideram, pelo contrário, que as disposições do Tratado não se opõem a uma legislação nacional que concede direitos exclusivos de exploração das máquinas de jogo, como a legislação finlandesa, desde que a mesma seja justificada por considerações análogas às consagradas pelo Tribunal de Justiça no acórdão Schindler. Para todos estes Governos, os jogos em causa no processo principal, que proporcionam, mediante pagamento, a possibilidade de ganhar prémios em dinheiro, são jogos a dinheiro comparáveis às lotarias, relativamente às quais o Tribunal de Justiça admitiu que cabia aos Estados-Membros, tendo em conta as suas especificidades socioculturais, apreciar se é necessário restringi-las ou até mesmo proibi-las para a protecção da ordem social.

13 Recorde-se, a este respeito, que, no n._ 60 do acórdão Schindler, o Tribunal de Justiça sublinhou as considerações de ordem moral, religiosa ou cultural que envolvem as lotarias e os outros jogos a dinheiro em todos os Estados-Membros. As legislações nacionais tendem, de modo geral, a limitar, e até mesmo a proibir, a prática de jogos a dinheiro e a evitar que sejam uma fonte de lucro individual. Assinalou também que, atendendo à importância das somas que permitem recolher e aos ganhos que podem proporcionar aos jogadores, sobretudo quando são organizadas em grande escala, as lotarias comportam riscos elevados de delito e de fraude. Constituem, além disso, uma incitação à despesa que pode ter consequências individuais e sociais nefastas. Finalmente, sem que este motivo possa, em si, ser considerado uma justificação objectiva, não é indiferente, segundo o Tribunal, salientar que as lotarias podem participar, significativamente, no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tais como as obras sociais, de beneficência, o desporto ou a cultura.

14 Como resulta do n._ 61 do mesmo acórdão, o Tribunal considerou que estas particularidades justificam que as autoridades nacionais disponham de um poder de apreciação suficiente para determinar as exigências que a protecção dos jogadores e, mais geralmente, atendendo a particularidades socioculturais de cada Estado-Membro, a protecção da ordem social implicam, tanto no que se refere às modalidades de organização das lotarias e ao volume das suas apostas, como à afectação dos lucros que originarem. Nessas condições, compete-lhes apreciar não apenas se basta restringir as actividades das lotarias, mas também se é necessário proibi-las, desde que essas restrições não sejam discriminatórias.

15 Embora o acórdão Schindler diga respeito à organização de lotarias, estas considerações são igualmente válidas, como resulta aliás dos próprios termos do n._ 60 deste acórdão, para os outros jogos a dinheiro que apresentem características comparáveis.

16 É um facto que, no acórdão de 26 de Junho de 1997, Familiapress (C-368/95, Colect., p. I-3689), o Tribunal de Justiça recusou-se a assimilar certos jogos às lotarias tendo as características examinadas no acórdão Schindler. Tratava-se de jogos-concurso propostos em periódicos, sob a forma de palavras cruzadas ou de adivinhas, permitindo, após sorteio, a alguns dos leitores que tivessem dado as respostas esperadas, ganhar prémios. Como o Tribunal de Justiça assinalou, nomeadamente, no n._ 23 desse acórdão, tais jogos, organizados apenas em pequena escala e cujos prémios são pouco importantes, não constituem uma actividade económica independente, mas apenas um elemento, entre outros, do conteúdo redactorial de uma revista.

17 No presente processo, pelo contrário, resulta das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que se trata de um jogo de azar e que os aparelhos em causa oferecem, contra pagamento especificadamente destinado à sua utilização, uma expectativa de ganho em dinheiro. A relativa modéstia das apostas e dos prémios, invocada pelos recorrentes no processo principal, de modo algum impede, como sublinhado pela maioria dos Governos aqui intervenientes, que a exploração de tais aparelhos permita recolher somas consideráveis, em razão, nomeadamente, do número de jogadores potenciais e da tendência de a maior parte de entre eles, atendendo à rapidez do jogo e ao seu carácter repetitivo, voltar a jogar um grande número de vezes.

18 Nestas condições, os jogos que consistem na utilização, mediante remuneração, de máquinas de jogo como as que estão em causa no processo principal devem ser considerados jogos a dinheiro comparáveis às lotarias visadas no acórdão Schindler.

19 No entanto, o presente processo distingue-se do processo Schindler sob diferentes aspectos.

20 Antes de mais, as actividades de lotaria em causa no acórdão Schindler não são actividades relativas a «mercadorias» abrangidas, como tais, pelo artigo 30._ do Tratado, devendo as mesmas ser consideradas actividades de «serviços», na acepção do Tratado CE (acórdão Schindler, n.os 24 e 25). Em contrapartida, as máquinas de jogo constituem, em si mesmas, bens susceptíveis de cair no âmbito do artigo 30._ do Tratado.

21 Em seguida, ao passo que a legislação nacional em causa no acórdão Schindler proíbe, salvo excepções nela determinadas, a organização das lotarias no território do Estado-Membro em causa, a legislação aqui em exame não proíbe a utilização das máquinas de jogo, mas reserva a sua exploração a um organismo de direito público que beneficia de uma autorização concedida pela Administração (a seguir «organismo público autorizado»).

22 Por fim, como assinalado em algumas das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, outras disposições do Tratado, como as relativas ao direito de estabelecimento ou às regras de concorrência, podem ser aplicáveis a uma legislação como a que está em causa no processo principal.

23 No entanto, sobre este último aspecto, uma vez que o órgão jurisdicional nacional se limitou a acrescentar à menção dos artigos 30._, 36._, 59._ e 60._ do Tratado, que figura na sua terceira questão, a de «qualquer outro artigo», sem dar qualquer outra precisão a este respeito nem nos fundamentos nem no dispositivo do seu despacho, o Tribunal de Justiça não está em condições de se pronunciar sobre a questão de saber se outras disposições do Tratado, que não as relativas à livre circulação de mercadorias e à livre prestação de serviços, se opõem a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal.

24 No que respeita, em primeiro lugar, às disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias, estas podem, como assinalado no n._ 20 do presente acórdão, aplicar-se às máquinas de jogo, que constituem bens susceptíveis de ser objecto de importação ou de exportação. É incontestável que tais máquinas se destinam a ser postas à disposição do público, com vista à sua utilização contra remuneração. Mas, como o advogado-geral salientou no n._ 19 das suas conclusões, a circunstância de uma mercadoria importada se destinar à prestação de um serviço não é, por si só, susceptível de a subtrair às regras relativas à livre circulação (v., neste sentido, acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Itália, C-158/94, Colect., p. I-5789, n.os 15 a 20).

25 A este respeito, há que assinalar que uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal é susceptível, na medida em que o organismo público autorizado é legalmente o único explorador possível de máquinas de jogo destinadas a uma utilização contra remuneração e em que tem o direito de fabricar ele próprio tais máquinas, de entravar a livre circulação de mercadorias.

26 Todavia, na ausência de precisões suficientes sobre as consequências efectivas da legislação em causa em relação à importação das máquinas de jogo, o Tribunal de Justiça não está em condições, no quadro da presente instância, de se pronunciar sobre a questão de saber se o artigo 30._ do Tratado se opõe à aplicação de tal legislação.

27 Em segundo lugar, quanto às disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços, as mesmas aplicam-se, como o Tribunal de Justiça considerou no acórdão Schindler a respeito da organização de lotarias, a uma actividade que consiste em permitir aos utilizadores participar, contra remuneração, num jogo a dinheiro. Deste modo, essa actividade cai no âmbito de aplicação do artigo 59._ do Tratado, desde que pelo menos um dos prestadores esteja estabelecido num Estado-Membro diferente daquele em que o serviço é proposto.

28 Como referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, uma legislação nacional sobre as máquinas de jogo, como a legislação finlandesa, na medida em que proíbe a qualquer pessoa, que não o organismo público autorizado, a exploração destes aparelhos, não implica qualquer discriminação em razão da nacionalidade e atinge indistintamente os operadores eventualmente interessados em tal actividade, estabelecidos na Finlândia ou noutro Estado-Membro.

29 Apesar disso, tal legislação, na medida em que impede os operadores dos outros Estados-Membros, directa ou indirectamente, de colocarem eles próprios máquinas de jogo à disposição do público, com vista à sua utilização contra remuneração, constitui um obstáculo à livre prestação de serviços.

30 Há assim que indagar se esta violação da livre prestação de serviços pode ser admitida ao abrigo das medidas derrogatórias expressamente previstas pelo Tratado ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral.

31 A este respeito, os artigos 55._ do Tratado CE (actual artigo 45._ CE) e 56._ do Tratado, aplicáveis na matéria por força do artigo 66._ do Tratado CE (actual artigo 55._ CE), admitem as restrições justificadas pela participação, mesmo ocasional, no exercício da autoridade pública ou por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Além disso, resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdão de 25 de Julho de 1991, Collectieve Antennevoorziening Gouda, C-288/89, Colect., p. I-4007, n.os 13 a 15) que os obstáculos à livre prestação de serviços resultantes de medidas nacionais indistintamente aplicáveis só podem ser aceites se estas medidas forem justificadas por razões imperiosas de interesse geral, se forem adequadas a garantir a realização do objectivo que prosseguem e se não excederem o que é necessário para o atingir.

32 Segundo as indicações constantes do despacho de reenvio e das observações do Governo finlandês, a legislação em causa no processo principal corresponde à preocupação de limitar a exploração da paixão dos seres humanos pelo jogo, de evitar os riscos de delito e de fraude resultantes de tais actividades e de só autorizar as mesmas a fim de recolher fundos destinados a obras de beneficência ou ao apoio de causas desinteressadas.

33 Como o Tribunal de Justiça admitiu no n._ 58 do acórdão Schindler, estes motivos devem ser considerados no seu conjunto. Os mesmos prendem-se com a protecção dos destinatários do serviço e, mais geralmente, dos consumidores, e ainda com a protecção da ordem social, tendo já sido decidido que estes objectivos podiam ser considerados razões imperiosas de interesse geral (v. acórdãos de 18 de Janeiro de 1979, Van Wesemael, 110/78 e 111/78, Colect. 1979/I, p. 27, n._ 28; de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/França, 220/83, Colect., p. 3663, n._ 20, e de 24 de Outubro de 1978, Société générale alsacienne de banque, 15/78, Colect., p. 665, n._ 5). É ainda necessário que, como foi afirmado no n._ 31 do presente acórdão, as medidas assentes em tais razões sejam adequadas a garantir a realização dos objectivos prosseguidos e não excedam o que é necessário para os atingir.

34 Como foi assinalado no n._ 21 do presente acórdão, a legislação finlandesa distingue-se da legislação em causa no acórdão Schindler, nomeadamente, porque não proíbe a utilização das máquinas de jogo mas reserva a sua exploração a um organismo público autorizado.

35 Todavia, a determinação do alcance da protecção que um Estado-Membro pretende garantir no seu território, em matéria de lotarias e outros jogos a dinheiro, faz parte do poder de apreciação reconhecido pelo Tribunal de Justiça às autoridades nacionais no n._ 61 do acórdão Schindler. Cabe-lhes, com efeito, apreciar se, no contexto do objectivo prosseguido, é necessário proibir total ou parcialmente actividades desta natureza ou apenas restringi-las e prever, para o efeito, modalidades de fiscalização mais ou menos estritas.

36 Nestas condições, a mera circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por um outro Estado-Membro não pode ter qualquer incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições tomadas na matéria. Estas devem apenas ser apreciadas à luz dos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e do nível de protecção que as mesmas pretendem garantir.

37 O facto de os jogos em causa não serem totalmente proibidos não basta, contrariamente ao que sustentam os recorrentes no processo principal, para demonstrar que a legislação nacional não visa realmente alcançar os objectivos de interesse geral que pretende prosseguir e que devem ser considerados no seu conjunto. Com efeito, uma autorização limitada destes jogos num quadro exclusivo, que tem a vantagem de canalizar o desejo de jogar e a exploração dos jogos num circuito controlado, de evitar os riscos de tal exploração com fins fraudulentos e criminais e de utilizar os benefícios daí resultantes para fins de utilidade pública, também se insere na prossecução de tais objectivos.

38 O mesmo acontece no que respeita à circunstância de os diferentes estabelecimentos em que estão instaladas as máquinas de jogo receberem do organismo público autorizado uma parte das receitas obtidas.

39 Quanto à questão de saber se, para alcançar estes objectivos, seria preferível, em vez de conceder um direito exclusivo de exploração ao organismo público autorizado, adoptar uma regulamentação impondo aos operadores interessados as exigências necessárias, a mesma faz parte do poder de apreciação dos Estados-Membros, desde que, todavia, a escolha feita não seja desproporcionada em relação à finalidade prosseguida.

40 Sobre este ponto, resulta nomeadamente do regulamento sobre as máquinas de jogo que o RAY, que é o único organismo titular da autorização de explorar estas máquinas, é uma associação de direito público cujas actividades são exercidas sob o controlo do Estado e que deve, como assinalado no n._ 5 do presente acórdão, entregar a este último o montante do produto líquido distribuível resultante da exploração das máquinas de jogo.

41 Embora seja um facto que as quantias assim auferidas pelo Estado para fins de utilidade pública podiam igualmente ser obtidas de outras formas, como a tributação das actividades dos diferentes operadores que poderiam exercê-las no quadro de uma regulamentação de carácter não exclusivo, a obrigação, imposta ao organismo público autorizado, de entregar o produto da sua exploração constitui uma medida certamente mais eficaz para garantir, em razão dos riscos de delito e de fraude, uma estrita limitação do carácter lucrativo de tais actividades.

42 Assim, não se afigura que, na medida em que confiam direitos exclusivos a um único organismo público, as disposições da legislação finlandesa sobre a exploração das máquinas de jogo, dado que afectam a livre prestação de serviços, sejam desproporcionadas à luz dos objectivos que a mesma prossegue.

43 Assim, há que responder ao órgão jurisdicional de reenvio que as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação nacional que concede a um único organismo público direitos exclusivos de exploração das máquinas de jogo, como a legislação finlandesa, tendo em conta os objectivos de interesse geral que a justificam.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

44 As despesas efectuadas pelos Governos finlandês, belga, alemão, espanhol, irlandês, luxemburguês, neerlandês, austríaco, português, sueco e do Reino Unido, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Vaasan hovioikeus, por despacho de 21 de Março de 1997, declara:

As disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação nacional que concede a um único organismo público direitos exclusivos de exploração das máquinas de jogo, como a legislação finlandesa, tendo em conta os objectivos de interesse geral que a justificam.

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